Introdução
As tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC), incorporadas a objetos de aprendizagem (OA), têm sido cada vez mais utilizadas no ensino, para contemplar objetivos pedagógicos que propiciem aos estudantes uma aprendizagem mais dinâmica e significativa (Mendes; Almeida; Catapan, 2020).
Carneiro e Silveira (2014, p. 239) definem os OA como:
[...] quaisquer materiais eletrônicos (como imagens, vídeos, páginas web, animações ou simulações), desde que tragam informações destinadas à construção do conhecimento (conteúdo autocontido), explicitem seus objetivos pedagógicos e estejam estruturados de tal forma que possam ser reutilizados e recombinados com outros objetos de aprendizagem.
Os OA são ferramentas de apoio ao professor, sendo seu uso dependente dos objetivos pedagógicos que este deseja alcançar, auxiliando-o na implementação de novas estratégias para potencializar a aprendizagem e ofertando oportunidades aos estudantes que contemplem os diferentes estilos de aprendizagem (Mendes; Almeida; Catapan, 2020; Ritter; Peripolli; Bulegon, 2020).
Em virtude do desenvolvimento de uma quantidade expressiva de OA, atualmente, há repositórios para seu armazenamento e compartilhamento, para que eles possam ser reutilizados entre instituições e professores. Para tanto, os OA devem apresentar alguns requisitos funcionais, entre eles: granularidade (nível de agregação a outros recursos), acessibilidade, interoperabilidade (diversos sistemas e organizações trabalhando em conjunto), reutilização (capacidade de ser aplicado fora do contexto em que foi desenvolvido), conformidade com padrões de design e existência de metadados (Yassine; Kadry; Sicilia, 2017; IEEE,2002). Outro requisito necessário para ampliar seu uso inclui seu alinhamento a um objetivo pedagógico. Os professores precisam ter clareza quanto ao desenvolvimento e à reutilização dos OA, para que seu uso motive e estimule os estudantes a explorá-los e a buscar novos conhecimentos (Carneiro; Silveira, 2014).
Como os OA precisam preencher uma série de requisitos técnicos, funcionais e pedagógicos, foram desenvolvidos instrumentos e modelos de avaliação para garantir sua qualidade e avaliar sua eficácia (Yassine; Kadry; Sicilia, 2017). As dimensões avaliadas dos OA são diversas, tais como seu processo de desenvolvimento, sua adequação ao público a que se destina (para professores, desenvolvedores ou estudantes) e as características do ambiente em que ele será utilizado. Os instrumentos podem avaliar a opinião de quem os utiliza ou conter uma lista de critérios a serem checados, os quais, dependendo do contexto, podem ser específicos para certificação (Akpinar, 2008).
Um dos instrumentos para avaliar os OA é o Learning Object Review Instrument (Lori), desenvolvido por Vargo et al. (2003) e aprimorado por Nesbit e Li (2004). O Lori avalia aspectos pedagógicos, tecnológicos e de experiência do usuário. Contém nove itens com rubricas breves descritivas de cada um, sendo eles: qualidade do conteúdo, alinhamento de objetivos de aprendizagem, feedback e adaptação, motivação, design de apresentação, usabilidade de interação, acessibilidade, reutilização e conformidade com os padrões. Os itens são avaliados por uma escala Likert de 5 pontos. Uma revisão sistemática sobre instrumentos para avaliação de OA, realizada entre os anos de 2005 e 2015, com 30 artigos, constatou que o Lori foi o mais utilizado (Pereira Neto et al., 2017).
Apesar de termos encontrado um artigo escrito por Silva e Shimiguel (2020) fornecendo algumas explicações sobre as nove dimensões do Lori, não identificamos na literatura sua versão traduzida e adaptada culturalmente para uso no Brasil.
Compreendendo a importância do Lori para avaliação de OA e a não existência de uma versão brasileira, o objetivo deste estudo foi realizar a tradução e adaptação transcultural do Learning Object Review Instrument para o uso no Brasil, com a devida autorização do autor principal do instrumento.
Método
Desenho do estudo e normas éticas
O estudo foi metodológico, de adaptação transcultural, realizado entre novembro de 2021 e abril de 2022. Todas as suas etapas foram executadas de forma virtual.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o número 3.063.423. Todos os participantes, após explicação dos objetivos da investigação, do método de coleta de dados e dos preceitos éticos, leram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, os que concordaram em participar, assinaram-no.
Participantes e local do estudo
O Comitê de Especialistas foi composto por cinco participantes experts em OA. Os participantes do pré-teste da versão brasileira do Lori foram 34 professores selecionados intencionalmente. Os critérios de inclusão foram: ser professor e usar objetos de aprendizagem cotidianamente. Os critérios de exclusão consistiram em: não ser brasileiro e não fazer o uso de OA na condução de suas disciplinas.
Todos os participantes foram convidados pela pesquisadora principal deste estudo por correio eletrônico e o processo de coleta de dados ocorreu de forma virtual.
Learning Object Review Instrument (Lori)
O Lori foi desenvolvido com base nas áreas de Design Instrucional, Ciência da Computação, Desenvolvimento de Multimídia e Psicologia Educacional (Vargo et al., 2003) e aprimorado por Nesbit e Li (2004), com a finalidade de garantir a qualidade dos recursos de aprendizagem utilizando OA com suporte tecnológico, mediante a avaliação de nove dimensões de critérios dos OA por experts (Nesbit; Li, 2004): 1. qualidade do conteúdo: veracidade, concisão, apresentação das ideias e nível apropriado dos detalhes; 2. objetivos de aprendizagem: orientação entre os objetivos de aprendizagem, atividades, avaliações e características do acadêmico; 3. feedback e adaptação: adaptação do conteúdo às características do acadêmico e feedback referente às suas atuações; 4. motivação: capacidade do jogo em motivar e interessar o acadêmico; 5. apresentação do jogo: todos os componentes que compõem o jogo, incluindo texto, layout, áudio, vídeo e animações; 6. interação e usabilidade: interação com o dispositivo de ajuda e interatividade com o conteúdo descrevendo os níveis de dificuldade (para o acadêmico avançar para a próxima atividade, por exemplo); 7. acessibilidade: se o jogo é acessível para pessoas com necessidades especiais; 8. reaproveitamento: potencial de uso em cursos e contextos distintos; e 9. observância de normas: se está de acordo com normas internacionais e especificações técnicas relevantes (para jogos que usam plataformas digitais, por exemplo).
As respostas ao Lori são realizadas em escala Likert de 5 pontos, em que 1 equivale à pior avaliação e 5 equivale à avaliação mais alta; há também a alternativa de resposta “Não se aplica (NA)”.
Etapas de uma adaptação transcultural do Lori
Beaton et al. (2000) propõem que a adaptação transcultural consista da tradução (T) da versão original do instrumento, de forma independente, por dois tradutores da língua materna da tradução a ser feita, um com domínio do conceito e outro sem, gerando as versões T1 e T2, seguida pelo encontro dos tradutores e pesquisadores das duas traduções, com vistas a esclarecer quaisquer divergências entre as versões traduzidas e chegar-se a um consenso para elaborar uma síntese das traduções, produzindo a versão traduzida T1,2. Posteriormente, são realizadas, de forma independente, duas retrotraduções (RT), para a língua original do instrumento, por tradutores que dominem a língua-alvo e tenham a língua materna do instrumento original, gerando as versões RT1 e RT2. Na sequência, um Comitê de Especialistas, composto por profissionais com domínio sobre o conceito e profissionais que dominem a língua-alvo e a do instrumento original - com cinco profissionais bilíngues -, tem acesso ao instrumento original e a todas as versões geradas, para análise da equivalência semântica, idiomática, cultural e conceitual de cada elemento do instrumento, a fim de que sejam tomadas decisões para elaboração da versão pré-final do instrumento. A versão pré-final é avaliada quanto à clareza e à adequação cultural de cada componente, entre indivíduos que utilizarão o instrumento traduzido. Nessa etapa, o número de participantes deve ser de 30 a 40 (Beaton et al., 2000). O Comitê, então, analisa os resultados e, em consenso, gera a versão final.
Condução da adaptação transcultural do Lori
As duas versões do Lori para o português usado no Brasil foram feitas, de forma independente, por dois tradutores brasileiros com fluência na língua inglesa (T1 e T2), sendo que um deles conhecia os conceitos a serem avaliados e outro não, seguidas por sua síntese, realizada pelos tradutores e pesquisadores (T1,2). A versão T1,2 foi retrotraduzida de forma independente por dois tradutores americanos com fluência na língua portuguesa falada no Brasil, sem acesso à versão original e sem domínio dos objetivos do instrumento, gerando as versões retrotraduzidas denominadas RT1 e RT2.
O Comitê de Especialistas foi composto por cinco profissionais bilíngues, um psicólogo, um design de jogos, um profissional em metodologia e dois professores. Para cada especialista, foi enviado um questionário elaborado com o uso da plataforma Google Forms e autopreenchido, contendo as variáveis sociodemográficas de sexo, idade, perfil da instituição (se pública ou privada), titulação acadêmica e área de atuação como professor. Cada componente do instrumento foi analisado quanto à equivalência semântica, idiomática, cultural e conceitual. Empregou-se a escala de respostas Likert de 5 pontos, em que 1 representava “Discordo totalmente” e 5 “Concordo totalmente”. Além disso, havia um espaço reservado para o participante fornecer suas sugestões e/ou comentários, objetivando refinar o instrumento. Após a análise dos resultados, as duas pesquisadoras deste estudo elaboraram a versão pré-final do Lori.
A versão pré-final foi submetida ao pré-teste, que contou com a participação de 34 professores brasileiros que faziam uso de objetos de aprendizagem em suas disciplinas. Foi elaborado um questionário com o uso da plataforma Google Forms e autopreenchido, contendo as variáveis sociodemográficas de sexo, idade, perfil da instituição (se pública ou privada), titulação acadêmica e área de atuação como professor, solicitando a avaliação, em escala Likert de 3 pontos de cada componente, incluindo o enunciado, da versão pré-final quanto à clareza, em que 1 era “nada claro”, 2 “parcialmente claro e precisa de revisão” e 3 “totalmente claro”; e quanto à adequação cultural para a cultura brasileira, em que 1 era “nada adequado”, 2 “parcialmente adequado para a cultura brasileira e precisa de revisão” e 3 “totalmente adequado”. Abaixo da avaliação de cada componente, havia um espaço aberto, solicitando sugestões e/ou comentários sobre o componente avaliado. Após o pré-teste, os resultados quantitativos foram analisados e os qualitativos com sugestões e comentários foram compilados pelas autoras para se obter um consenso acerca da versão final. A Figura 1 ilustra o processo de adaptação transcultural do Lori em nosso estudo, desde a tradução inicial até a etapa do pré-teste.
Análise dos dados
Os dados foram armazenados em planilhas Microsoft Excel® e analisados com o emprego do programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 22. A análise foi realizada por estatística descritiva com frequência absoluta e relativa para variáveis categóricas. Foi considerada a porcentagem de 80% como ponto de corte para se aceitar que o componente era claro ou adequado. As variáveis contínuas foram analisadas com média e desvio-padrão (DP) ou mediana e intervalo interquartil (IIQ), dependendo da normalidade dos dados, a qual foi testada com o uso do Teste de Shapiro-Wilk. Foi empregado o teste exato de Fisher para investigar diferenças entre grupos de variáveis categóricas, admitindo-se p ≤ 0,05 como o limite de significância.
Resultados
Entre os 34 professores que participaram do pré-teste, 14 eram do sexo masculino (41,2%) e 20 do sexo feminino (58,8%). A média de idade foi de 41,9 anos (DP = 10,2) e a mediana de tempo de atuação foi de 9,0 anos (IIQ = 10,0). As características dos participantes estão descritas na Tabela 1. Como se pode observar, metade dos participantes tinha titulação acadêmica de doutorado ou pós-doutorado e a maior parte atuava na área de Ciências da Saúde e na rede privada de ensino.
Tabela 1 Características dos 34 participantes do pré-teste do Learning Object Review Instrument (Lori)
| Características | n (%) |
|---|---|
| Titulação | |
| Pós-doutorado | 1 (2,9) |
| Doutorado | 16 (47,1) |
| Mestrado | 15 (44,1) |
| Especialização | 2 (5,9) |
| Área de atuação como professor | |
| Ciências Humanas | 6 (17,6) |
| Ciências Biológicas | 3 (8,8) |
| Ciências da Saúde | 18 (52,9) |
| Ciências Exatas | 7 (20,6) |
| Vínculo administrativo da instituição em que atua | |
| Pública | 13 (32,2) |
| Privada | 21(61,8) |
Fonte: Elaboração própria.
A Tabela 2 mostra a distribuição da avaliação dos 34 participantes do pré-teste quanto à clareza e à adequação cultural da versão pré-final do Lori. Como se nota, os únicos itens que menos de 80% dos participantes consideraram claros foram o item 1 (qualidade de conteúdo) e o item 3 (feedback e adaptação); todos os itens foram considerados adequados culturalmente por mais de 79% dos participantes.
Tabela 2 Distribuição da avaliação dos 34 participantes do pré-teste sobre a clareza e a adequação cultural de cada componente da versão pré-final brasileira do Learning Object Review Instrument (Lori)
| Componentes avaliados | Parcialmente claro e precisa de revisão n (%) | Totalmente claro n (%) | Parcialmente adequado para a cultura brasileira e precisa de revisão n (%) | Totalmente adequado para a cultura brasileira n (%) |
|---|---|---|---|---|
| Apresentação do Lori | 5 (14,7) | 29 (85,3) | 3 (8,8) | 31 (91,2) |
| Instrução quanto ao uso do Lori | 5 (14,7) | 29 (85,3) | 2 (5,9) | 32 (94,1) |
| Escala de respostas | 4 (11,8) | 30 (88,2) | 7 (20,6) | 27 (79,4) |
| Instrução quanto às classificações de objetos de aprendizagem usando o Lori | 3 (8,8) | 31 (91,2) | 1 (2,9) | 33 (97,1) |
| Item 1: Qualidade de conteúdo | 8 (23,5) | 26 (76,5) | 1 (2,9) | 33 (97,1) |
| Item 2: Alinhamento do objetivo de aprendizagem | 6 (17,6) | 28 (82,4) | 1 (2,9) | 33 (97,1) |
| Item 3: Feedback e adaptação | 9 (26,5) | 25 (73,5) | 4 (11,8) | 30 (88,2) |
| Item 4: Motivação | 3 (8,8) | 31 (91,2) | 2 (5,9) | 32 (94,1) |
| Item 5: Design da apresentação | 6 (17,6) | 28 (82,4) | 3 (8,8) | 31 (91,2) |
| Item 6: Usabilidade na interação | 3 (8,8) | 31 (91,2) | 2 (5,9) | 32 (94,1) |
| Item 7: Acessibilidade | 6 (17,6) | 28 (82,4) | 3 (8,8) | 31 (91,2) |
| Item 8: Conformidade com os padrões | 4 (11,8) | 30 (88,2) | 2 (5,9) | (94,1) |
Fonte: Elaboração própria.
Nota: Na tabela, não constam as opções “nada claro” ou “nada adequado para a cultura brasileira” porque nenhum participante as marcou.
O Quadro 1 exibe as sugestões e os comentários dos participantes da etapa do pré-teste para a clareza e para a adequação cultural.

Fonte: Elaboração própria
Quadro 1 Comentários e/ou sugestões fornecidos pelos 34 participantes do pré-teste, ao avaliarem a clareza e a adequação cultural dos componentes da versão brasileira pré-final do Learning Object Review Instrument (Lori)
Após o pré-teste, os autores deste estudo avaliaram todas as contribuições dos participantes e, em consenso, elaboraram a versão final (Figura 2), a qual foi retrotraduzida por um tradutor que tem a língua portuguesa falada no Brasil como língua materna, fluência na língua inglesa e é especialista em jogos. A versão retrotraduzida foi enviada para o autor do instrumento, que a aprovou sem nenhuma condição.

Fonte: Elaboração própria com base em Nesbit e Li (2004)
Figura 2 Versão adaptada para a língua portuguesa falada no Brasil do Learning Object Review Instrument (Lori)
Discussão
O presente estudo apresentou o processo de tradução e adaptação transcultural do instrumento Lori para avaliação de objetos de aprendizagem. Todas as etapas previstas na literatura foram executadas com sucesso e apenas dois itens (1 e 3) foram alterados para maior clareza, sendo todos considerados adequados culturalmente. Reconhecendo que o Lori inclui itens relevantes para o desenvolvimento de objetos de aprendizagem, sua adaptação cultural se torna importante para o uso adequado em outra língua, reduz custos e tempo, além de permitir estudos multicêntricos (Beaton et al., 2000).
Gurko (2011) enfatizou em seu trabalho que o Lori disponibiliza um conjunto útil de recursos para a avaliação de objetos de aprendizagem, o que se torna ainda mais relevante em virtude do crescente uso de ferramentas digitais. Santiago et al. (2020) fizeram o uso do Lori, ainda que não validado para uso no Brasil, objetivando examinar a qualidade de um objeto virtual de aprendizagem relacionado ao pré-natal para adolescentes grávidas.
Isso posto, passos adicionais para obter evidências de sua validade demandam a aplicação da versão criada a um número maior de participantes, pesquisa que, agora, pode ser realizada por estudiosos de OA, pois se sabe que é necessário não apenas traduzir o instrumento, mas, também, garantir consistência no conteúdo e validade de face entre as versões original e adaptada do instrumento (Beaton et al., 2000). Portanto, a sequência desta investigação está ligada à obtenção das fontes de evidências de validade do Lori para o uso no Brasil, sequência esta que já está em desenvolvimento, envolvendo análise fatorial exploratória e confirmatória, além de análise multigrupo, a fim de abranger todas as áreas de ensino-aprendizagem.
Ressalta-se que este estudo teve a limitação da não obtenção de mais artigos de adaptação em outros países para investigar a comparação dos achados aqui expostos.















