Introdução
O que pretendemos neste artigo é contribuir para a compreensão do legado de Montessori, a partir da visibilidade que é necessário conferir à relação entre esse legado e aquilo que o sustenta e explica. Se é verdade que um tal legado não pode ser dissociado das ideias nucleares do Movimento da Escola Nova (MEN), nomeadamente, a centralidade da criança nas salas de aula, a defesa de um projeto de educação integral e a necessidade de uma pedagogia científica, importa compreender porque é que estas ideias se afirmam na reflexão e propostas de Montessori e como é que se afirmam neste âmbito. Deste modo, este é um texto que visa assumir-se, também, como um contributo para se complexificar a reflexão sobre aquele movimento, através das leituras específicas dos pensamentos e das obras singulares dos autores que nele são enquadrados.
Assim, neste texto, e depois de uma abordagem biográfica de Montessori, explora-se a relação entre pedagogia, ciência e catolicismo na obra da pedagoga italiana, de forma a compreender o impacto dos fundamentos dessa obra na reflexão e nas práticas que, através dela, nos são propostas. Trata-se de uma decisão que, mais do que pretender desvalorizar a reflexão didática de Montessori, visa aprofundá-la através da sua contextualização epistemológica, discutindo, por um lado, a natureza das suas potencialidades e vulnerabilidades e, por outro, as vicissitudes do processo de construção da obra que nos legou. O que se pretende é, mais do que produzir um exercício de reflexão em retrospetiva, contribuir para uma discussão que, assumindo Montessori como referência, possa ajudar-nos a debater as limitações das perspetivas de natureza tecnocrática, quando estas tendem a obscurecer e a desvalorizar as componentes ideológica e epistemológica das obras educativas.
Resta referir que este foi um trabalho que explorou e ampliou a reflexão, na tese de doutorado que produzi (Fernandes, 2003), sobre a obra de Montessori como figura de referência do Movimento da Escola Nova. Neste sentido, pode afirmar-se que estamos perante uma pesquisa que pretendeu conferir visibilidade aos elementos singulares das reflexões e propostas da pedagoga italiana, interrogando-as ao nível da função enunciativa que nelas se exprimem, da formação discursiva a que pertencem e do sistema geral de arquivo de que fazem parte (Foucault, 1995). Para concretizar um tal projeto criou-se um conjunto de mapas concetuais das obras da autora que, por sua vez, foram o objeto do processo de interlocução que se estabeleceu através do confronto com as leituras de trabalhos sobre o pensamento educativo da pedagoga italiana, com o objetivo de compreender, por um lado, como aí se articulam a sua fé na ciência e a sua fé religiosa e, por outro, as implicações de uma tal sinergia na configuração daquele pensamento.
Biografia breve de Maria Montessori
Maria Montessori nasceu no mesmo ano, 1870, em que ocorreu a unificação do país onde nasceu, a Itália. Era filha de Alessandro Montessori e de Renilde Stopanni e, apesar de ter nascido em Chiaravalle, uma comuna italiana localizada na província de Ancona, será em Roma que irá crescer, estudar e viver uma parte significativa da sua vida (Gutek, 2004; Obregón, 2006; Foschi, 2008; Kramer, 2017).
Para além das influências familiares, nomeadamente da mãe, que foram decisivas para que tenha sido uma das primeiras mulheres, em Itália, a frequentar uma universidade e a graduar-se em Medicina, importa referir, igualmente, a influência, segundo Foschi (2008), de Guido Baccelli, um médico progressista e maçónico, que a ajudou a enfrentar as vicissitudes académicas e profissionais, por ela vividas, num mundo onde era vista, por ser mulher, como uma intrusa2. É Foschi (2008), ainda, que se refere a Sante De Sanctis, um pioneiro, em Itália, dos estudos em Psicologia Experimental e do Desenvolvimento, que a ajudou na elaboração da dissertação com a qual se graduou, a Angelo Celli, “um representante da esquerda liberal e docente de ‘Higiene Experimental’” (p. 239), e a Clodomiro Bonfigli, professor de Psiquiatria Clínica. Identifica-se, assim, um conjunto relevante de intelectuais, com o qual Montessori se relacionou, que eram conhecidos pelo seu envolvimento político e cívico em projetos através dos quais se defendia que uma ciência, baseada nos princípios que o Positivismo consagrou, deveria ser uma ciência interessada em investir na profilaxia social das doenças (Foschi, 2008).
Foi este ambiente académico que contribuiu, certamente, para explicar, também, o ativismo político e cívico que Montessori protagonizou. Neste âmbito, importa referir o seu envolvimento na emergência do movimento feminista italiano, o qual, segundo de Foschi (2008, p. 240), condicionou, entre 1896 e 1908, “fortemente a sua carreira profissional”. Neste período, assiste-se ao seu envolvimento em muitas iniciativas nacionais e internacionais, ajudando a formar associações de mulheres, participando em conferências e publicando artigos na imprensa feminista. Para além disso, Montessori manteve relações com o movimento maçónico italiano através das relações pessoais e profissionais que foi estabelecendo com alguns dos seus membros, nomeadamente com Ernesto Nathan, Grão-Mestre do Grande Oriente em Itália, que se tornou um dos mais importantes apoiantes das Casas das Crianças que a pedagoga italiana veio a fundar (Foschi, 2008). Em 1899, chega mesmo a filiar-se numa associação para-maçónica que aceitava mulheres como seus membros: a Sociedade Teosófica. Uma organização secreta que valorizava a ação social e a educação das crianças como o principal motivo das suas preocupações, “onde as mulheres assumiam um papel decisivo” (Foschi, 2008, p. 241).
Sendo possível compreender como a sua relação com a educação é marcada pelo conjunto de influências acabado de referir, importa chamar a atenção, também, para a sua presença na primeira conferência italiana de pedagogia, em 1898, na cidade de Turim, onde defendeu que as questões relacionadas com as crianças portadoras de deficiência “era mais um problema pedagógico do que um problema médico” (Obregón, 2006, p. 152). A importância desta participação adquire particular notoriedade biográfica porque nos revela como o trabalho que realizou com crianças portadoras de deficiência mental, em 1898 e 1899 (Obregón, 2006), acabou por constituir uma experiência decisiva para se abordar o seu pensamento e a sua obra. É que, no trabalho que realizou com essas crianças, encontra-se quer a génese do seu investimento na área da educação quer a crença de que um tal investimento poderia ter um impacto positivo na vida de todas as crianças. Por outro lado, foi graças a essa experiência que Montessori realizou uma viagem pedagógica a Paris, onde pôde contatar com o modelo médico-psicológico francês e, por esta via, com as ideias de Itard e do seu discípulo, Séguin (Foschi, 2008), cuja influência na sua obra são incontornáveis3. Foram dois anos decisivos na vida de Montessori que, para além do trabalho realizado, conheceu Giuseppe Montesano, com o qual manteve uma relação amorosa, da qual nasceu o seu único filho, Mario Montessori, que educou como mãe solteira (Foschi, 2008).
Por fim, importa reconhecer a importância do vínculo que a pedagoga italiana estabeleceu com a Antropologia quer quando se qualificou, como professora universitária, realizando um trabalho relacionado com esta disciplina quer porque foi esta a disciplina que lecionou, durante alguns anos, na Faculdade de Educação, em Roma, nos cursos de formação inicial de professores do Ensino Primário (Foschi, 2008; Kramer, 2017). Pode mesmo considerar-se tal como o faz Foschi (2008) que uma tal disciplina, em conjunto com os contributos da Psicologia e da Pedagogia, está na origem da abordagem multidisciplinar que sustenta a sua visão.
Será, então, a sua fama como especialista em educação das crianças que esteve na origem do convite de Eduardo Talamo para dirigir as atividades educacionais das Casas das Crianças promovidas pelo Instituto Romano de “Beni Stabili” (IRBS) (Foschi, 2008). Talamo era um engenheiro civil e o diretor geral do IRBS, uma sociedade imobiliária que foi criada para gerir o património que o Banco de Itália havia recebido, na sequência da bancarrota da indústria da construção nos anos posteriores à unificação de Itália (Foschi, 2008). Coube a Talamo, como diretor do IRBS, modernizar os edifícios, habitados pela classe trabalhadora, de forma a torná-los mais higiénicos e iluminados, no âmbito de um projeto de intervenção urbana que visava apetrechar os bairros com determinadas valências, entre as quais se contavam jardins, galerias e, acima de tudo, os espaços de educação infantil, para crianças entre os 3 e os 7 anos, que Olga Lodi4 batizou por “Case dei Bambini” (Casa das Crianças), o nome que perdura até hoje (Foschi, 2008).
Foi, então, no dia 6 de janeiro de 1907 que se inaugurou em Roma, no nº 58 da Rua Marsi, a primeira dessas Casas, o que correspondeu, como se sabe, a um momento- -chave da vida e da obra de Maria Montessori, no momento em que foi nesse espaço, e nos outros espaços equivalentes que, entretanto, se foram inaugurando, que se criaram as condições para desenvolver o que a pedagoga designava por Pedagogia Científica. É que, para Montessori, uma tal possibilidade dependia obrigatoriamente da existência de uma escola que permitisse “o livre desenvolvimento da atividade da criança” (Montessori, 1958, p. 15), de forma a emergir “uma nova natureza humana, com tanta claridade que os seus caracteres normais se impõem como realidade indiscutível” (Montessori, s.d., p. 357). Só criando tais condições é que, de acordo com Montessori, o empreendimento de criar uma Pedagogia Científica seria um empreendimento exequível.
A parceria entre Talamo e Montessori encerra-se, todavia, em 1909, abrindo-se, assim, um novo capítulo na vida da pedagoga, a qual correspondeu à relação que esta acabou por estabelecer com a Ordem das Irmãs Franciscanas de Maria (IFM) e que esteve na origem de “uma importante Casa das Crianças que foi fundada em 1910 e onde se realizaram, a partir de 1913, os primeiros cursos internacionais de divulgação do Método” (Foschi, 2008, p. 247), a Casa da Rua Giusti. Para além do acontecimento em si mesmo, este novo tipo de colaboração é uma ocorrência importante, dado que significa o restabelecimento do vínculo entre Montessori e a sua fé religiosa, bem presente no fato de “ter iniciado com os seus colaboradores mais próximos um curso de formação sobre a doutrina católica” (Foschi, 2008, p. 247). É no âmbito, também, de uma tal parceria que se abrem outras casas da organização, em Milão e Taormina, as quais assumiam algumas particularidades face às Casas da IRBS, nomeadamente o momento dedicado às orações que se realizavam nas primeiras e não nas segundas (Foschi, 2008).
É quando se encerra a Casa da Rua Giusti que se encerra, igualmente, a colaboração entre Montessori e a IFM, iniciando-se, a partir de 1915, o processo de internacionalização do denominado “Método Montessori”, correspondente à aceitação internacional da sua obra (Foschi, 2008). Neste sentido, e segundo Obregón (2006), os seus livros começaram a ser traduzidos nas mais diversas línguas, abrindo-se escolas Montessori na corte do czar, no Canadá, Chile, China e Japão, tal como, entre outros países, na Argentina e no México. Ainda de acordo com Obregón (2006), começaram-se a organizar ações de formação, dirigidas para professores, na Alemanha, Áustria, Espanha, França, Países Baixos, Inglaterra ou, entre outros, na Índia. Em 1912, Montessori é convidada por Alexander G. Bell, que conhecera o seu trabalho através da leitura de um artigo, para proferir algumas conferências nos Estados Unidos da América, tendo sido recebida, inclusivamente, na Casa Branca (Obregón, 2006). Montessori torna-se, assim, numa pedagoga internacionalmente reconhecida, o que a levou a realizar palestras pelo mundo, a participar em cursos de formação e a envolver-se noutros projetos relacionados com a divulgação do seu método.
Paradoxalmente, a sua fama no estrangeiro não tem, à época, a mesma correspondência no seu país de origem (Gutek, 2004), após os encontros e os desencontros quer com a IBRS quer com a IFM. Será, provavelmente, esta uma das razões que a leva a aceitar o patrocínio de Benito Mussolini que, em 1924, dois anos depois de chegar ao poder em Itália, se reúne com Montessori para manifestar o seu interesse pelo seu método e pela implementação do mesmo nas escolas italianas (Gutek, 2004). Inicia-se, assim, uma relação que irá perdurar até 1934 quando Mussolini decide mandar encerrar as escolas montessorianas, acabando a pedagoga por se exilar em Espanha5, depois de se ter recusado a assumir o papel de embaixadora italiana das crianças que lhe fora atribuído pelo governo fascista, de forma a capitalizar o seu prestígio internacional (Gutek, 2004). Inicia-se, assim, um período marcado por viagens pelo mundo, só voltando a Itália, em 1947. Será em 1952, aos 81 anos, que Montessori acabará por falecer em Noordwidjk an Zee, na Holanda, onde ficou sepultada.
Em conclusão, não é possível deixar de associar o pensamento e a obra de Montessori à vida e ao tempo em que a pedagoga viveu. A sua Pedagogia Científica constitui a expressão da influência de um ambiente onde a crença nas possibilidades redentoras da Ciência alimentou as esperanças das pessoas e os seus projetos, o que explica a afirmação da possibilidade, vista como uma inevitabilidade, de, através dessa mesma ciência, se construir uma Escola mais humana e, sobretudo, mais capaz de respeitar a Natureza das crianças. Tal como já o defendi neste trabalho, o projeto de Montessori constituiu um contributo que, a par de outros que se enquadram no Movimento da Escola Nova, serviu para instalar “a ciência no coração da educação” (Avanzini, 2003, p. 54). Mesmo que o tenhamos de avaliar como um contributo singular porque, para Montessori, a “Pedagogia Científica” não é entendida como uma ciência aplicada à pedagogia mas como “a ciência dos pedagogos que não se preocupam em conhecer, mas que se preocupam fundamentalmente com a mudança” (Correia, 1998, p. 42), não deixa de continuar refém do ambiente epistemológico que se configurou em função dos pressupostos que o positivismo consagrou. Neste sentido, estamos perante uma opção epistemológica que faz depender a proposta pedagógica de Montessori, tal como as propostas pedagógicas daquelas e daqueles que se identificam com o MEN, de um “saber iluminado e da aplicação de uma técnica pura” (Charbonnel, 1988, p. 27), o que, no caso da primeira, obriga a considerar a relação entre aquela opção e o seu catolicismo, tendo em conta que este, tal como tentaremos demonstrar, acaba por determinar os fundamentos e a intencionalidade epistemológica da obra montessoriana. Trata-se de uma decisão que, por um lado, visa refutar as leituras excessivamente tecnocráticas sobre o pensamento de Montessori e, por outro, possibilitar a produção de um olhar mais clarividente acerca das suas potencialidades, equívocos, omissões, contradições e vulnerabilidades.
Pedagogia, Ciência e Catolicismo na obra de Montessori
Na biografia que traçamos sobre Maria Montessori constatamos que foi educada numa família católica. Constatamos, igualmente, que o que poderá ser designado como um segundo período da Casa das Crianças teve o patrocínio e ocorreu no seio de uma organização católica, a Ordem das Irmãs Franciscanas de Maria (IFM), o que esteve na origem do que Foschi (2008) designou com o restabelecimento do vínculo entre Montessori e a sua fé católica. Para além disso, Montessori publica, em 1922, a obra The Child in the Church onde
descreve o trabalho desenvolvido em Barcelona na Casa dei Bambini nella Chiesa (“Casa das Crianças na Igreja”) e afirma que “Isto é, daqui em diante, um complemento necessário à educação religiosa da primeira infância: tornando a liturgia acessível às crianças” (Cocchini, 2008, p. 8).
É, ainda, Cocchini (2008, p. 8-9) que nos informa que
noutras duas obras, Life in Christ (1931) e de Holly Mass explained to Children […], Montessori continuou a descrever as suas atividades de forma evocativa e precisa. Ainda que muitos elementos concretos e algumas afirmações doutrinárias estejam evidentemente datadas, continuam a ser textos capazes de estimular uma reflexão profunda.
Importa referir que na obra emblemática de Montessori, Pédagogie Sientifique: La découverte de l’enfant (1958), a qual é anterior a The Child in the Church, há um capítulo intitulado “Educação religiosa” (entre as páginas 231 e 236) onde a autora afirma que
as linhas gerais da educação religiosa são as mesmas do nosso projeto educacional: a preparação de um ambiente onde se distinguem diferentes preocupações, aquelas que podemos considerar como relacionadas com a vida prática, e outras que dizem respeito à expansão do sentimento religioso, a educação do coração e a cultura necessária para conhecer a religião (Montessori, 1958, p. 231).
Na perspetiva de Montessori (1958), há dois ramos interdependentes da educação: “aquela que ensina a criança em relação ao mundo exterior e uma outra que educa sobre a realidade da vida sobrenatural” (Montessori, 1958, p. 231). Um projeto que começou a ser desenvolvido em Barcelona, na escola modelo Montessori, “onde foram desenvolvidas as primeiras iniciativas de educação religiosa, de acordo com as minhas ideias” (Montessori, 1958, p. 231).
É a reflexão de Montessori, neste domínio, que acabou por inspirar alguns projetos de referência no domínio da educação religiosa de crianças. Um deles, o projeto “Catechesis of the Good Shepherd”, foi protagonizado por Sofia Cavalleti, uma estudiosa da Bíblia e da espiritualidade cristã e judaica que, em colaboração com Gianna Gobi, uma educadora montessoriana, aplicou os princípios pedagógicos de Montessori à educação religiosa de crianças entre os 3 e os 12 anos (Cavalletti, 1992). Outro projeto foi o de Jerome Berryman, abordado na obra The Spiritual Guidance of children: Montessori, Godly Play, and the Future (2013). Estamos, assim, perante um legado montessoriano que, de acordo com Avanzini (2003, p. 56) teve, também,
uma influência considerável […], sobre a dinâmica da pedagogia religiosa, a qual marcou em profundidade a reflexão e a ação de Marie Fargues, de Joseph Colomb, de Pierre Faure e, sobretudo, de Hélène Lubienska de Lenval.
Segundo Gilsoul (2012), Lubienska, que havia ficado entusiasmada com uma visita que fez a uma sala montessoriana, foi aconselhada a falar com a própria Montessori que, por sua vez, a convidou a frequentar um dos seus cursos. É em 1929 que ocorre a sua participação num desses cursos, o que está na origem de uma viragem na sua vida, já que passa a assumir uma relação de grande proximidade com Montessori, “viajando em conjunto e encontrando-se quase diariamente” (Gilsoul, 2012, p. 222), ao ponto de H. Lubienska ser a formadora responsável pela parte do programa refente à educação sensorial e ao ensino de francês no “20º curso internacional que ela própria coorganiza em 1934” (Gilsoul, 2012, p. 222), em Nice. Ainda que a rutura entre as duas pedagogas tenha ocorrido neste evento, não se pode deixar de reconhecer a influência inequívoca de Montessori na pedagogia de Lubienska, mesmo que esta a veja, pelo menos num determinado momento, como uma influência meramente instrumental6.
O que se sabe é que, de acordo com Gilsoul (2012), para Lubienska, no período que vai de 1931 a 1942, “a sua única referência é a sua ‘mestre de pensar’, Maria Montessori” (Gilsoul, 2012, p. 235). Daí que chegue a afirmar que “tenho por esse método uma admiração apaixonada; sei, por experiência, que nos oferece resultados magníficos” (p. 235). Durante aqueles anos, os seus artigos são, por isso, todos consagrados ao Método Montessori (Gilsoul, 2012).
A quarta manifestação do catolicismo de Montessori que consideramos decisiva para discutir os fundamentos ideológicos e epistemológicos do seu pensamento e obra tem a ver com o recurso continuado a expressões que remetem para o ideário católico, em função das quais a pedagoga define pressupostos e constrói argumentos. Daí que as citações bíblicas, as referências a Cristo e aos santos, sejam uma constante nos escritos de Montessori, nomeadamente naqueles cujo objetivo tinha a ver com a divulgação das suas ideias para públicos mais indiferenciados7, e na reflexão que a mesma produz sobre duas temáticas estruturantes da sua obra: (i) a redenção da sociedade por via da educação da criança e (ii) a reflexão sobre a natureza da criança como referência decisiva do trabalho educativo a promover.
Para Montessori, a “criança é o eterno Messias que, constantemente, desce para o meio dos homens tombados, para os conduzir ao reino dos Céus” (Montessori, s.d.8, p. 377), já que, para a pedagoga italiana, “a criança é o progenitor do Homem” (Montessori, s.d., p. 338), estabelecendo, assim, o seu papel na redenção da Humanidade, o que pode ser entendido como o argumento nuclear a partir do qual fundamenta a sua doutrina pedagógica. Daí que afirme que “Cristo chamou-as para indicar aos adultos o caminho do reino dos Céus, advertindo-os da sua cegueira: “Se não te converteres e não chegas a ser como esta criança não poderás entrar no reino dos Céus” (Montessori, s.d., p. 368), o que corresponde à ideia de que “o adulto aperfeiçoa o ambiente, mas a criança aperfeiçoa o ser: os seus esforços assemelham-se ao indivíduo que caminha, sem descanso, até alcançar a meta. Por conseguinte, a perfeição do Homem adulto depende da criança” (p. 339), já que sendo ela “que contém o segredo da nossa natureza” (p. 360) deverá converter-se, por isso, na perspetiva de Montessori, “em nosso mestre” (p. 360).
Será a partir da centralidade que Montessori atribui à criança na redenção da humanidade que se justifica quer as críticas que produz acerca da denominada Escola Tradicional quer, subsequentemente, a defesa do projeto de ação pedagógica alternativo que propõe.
Compreende-se, pelo estatuto e a importância que a criança assume na sua obra porque é que Montessori (s.d.) denuncia de forma tão veemente uma Escola onde as crianças se encontram
fechadas e escravizadas, expostas a um tormento a que a sociedade as obriga. O peito estreito, que dá predisposição para a tuberculose, era originado pela permanência aí durante longas horas, curvadas sobre as carteiras, a ler e a escrever; a coluna vertebral curvava-se devido a essa posição forçada, a miopia era devida ao prolongado esforço do olhar, sem luz suficiente, e, finalmente, todo o corpo se deformava e era quase asfixiado por longas permanências em locais com reduzido espaço e fechados (Montessori, s.d., p. 366).
Uma escola que era incapaz não só de compreender o sofrimento das crianças que aí entravam “totalmente fatigadas pelo trabalho da manhã” (p. 367), como ainda contribuía para agravar esse mesmo sofrimento quando as obrigava ao confronto com um mestre que “procurava despertar o interesse daquelas crianças exaustas por meio de castigos e impelindo-as à obediência com ameaças” (p. 367). Castigos tão humilhantes como eram aqueles através dos quais se viam os professores a “pendurar cartazes infamantes nas costas, colocar orelhas de burro, ou expor o aluno numa verdadeira picota, de forma a que quem passe diante dele se ria e o insulte” (p. 368-369) ou tão dolorosos como os de obrigar as crianças a “permanecer de pé durante horas seguidas, com a cara voltada para um canto da aula” (p. 369). Uma escola que Montessori chega a comparar ao “primeiro episódio da Paixão de Cristo” (Montessori, s.d., p. 374).
É o insustentável projeto de uma escola onde os alunos se comprimem “no meio de instrumentos que degradam o corpo e o espírito: as carteiras, as recompensas e as punições exteriores, de forma a reduzi-los à disciplina da imobilidade e do silêncio” (Montessori, 1958, p. 20) e a “verter maquinalmente o conteúdo dos programas no seu espírito: programas compilados nos ministérios e impostos por via das leis” (Montessori, 1958, p. 20) que Montessori recusa e denuncia. Fá-lo a partir de um quadro axiológico que exprime o compromisso entre o biologismo dos seus “instintos-guia”9 ou dos seus “períodos sensíveis”10 (Montessori, s.d., p. 74) e a cosmogonia religiosa que a leva a afirmar que “logo que se descubra as leis do desenvolvimento da criança, descobrir-se-á o espírito e a sabedoria de Deus que age na criança” (Montessori inBöhm, 1994, p. 156). Um quadro axiológico que Montessori foi configurando ao longo da vida e que, de algum modo, se exprime através de uma mescla de valores onde se vislumbram os princípios liberais que orientaram e modelaram a sua educação e a sua ação académica e cívica e os princípios religiosos de alguém que teve uma educação católica e que, em dado momento da sua vida, redescobre o compromisso com o catolicismo, em função do qual o seu pensamento e obra adquirem sentido e legitimidade.
É através da argumentação que desenvolve para defender a necessidade de construir um projeto de ação pedagógica alternativo que Montessori volta a recorrer ao ideário católico como instrumento de explicitação das suas ideias e argumentos. A Escola que Montessori denuncia é um espaço educativo através do qual o “adulto atribui a si próprio um poder quase divino” (Montessori, s.d., p. 68), o que conduziu esse mesmo adulto a “crer que era ele o Deus da criança e pensou, a seu respeito, o que diz o Génesis: ‘Criei o Homem à minha imagem e semelhança’” (Montessori, s.d., p. 68). Daí que a soberba tenha sido “o principal pecado do Homem: Substituir-se a Deus foi causa da miséria de toda a sua descendência” (Montessori, s.d., p. 68). Neste caso, se esse adulto não compreender que a criança tem imperativos psíquicos e de desenvolvimento que não se compadecem com intervenções intempestivas, se continuar a ser seduzido pelo seu próprio poder, então, “o adulto pode cancelar os desígnios divinos desde a origem e, assim sucedendo de geração em geração, o Homem, na sua encarnação, crescerá deformado” (Montessori, s.d., p. 68). É que o “recém-nascido, para nós, não é um homem. Quando chega a este mundo, não sabemos recebê-lo, embora o mundo que criamos lhe esteja destinado, para que o continue e o faça caminhar para um progresso superior ao nosso. Tudo isto nos recorda as palavras de S. João Evangelista: ‘Ele veio ao mundo, e o mundo foi criado para Ele; mas o mundo não o reconheceu. Veio a sua própria casa e os seus não o receberam’” (Montessori, s.d., p. 54). Por isso, é que os adultos, a quem a sociedade “atribui o mérito da educação e desenvolvimento da criança” (Montessori, s.d., p. 29) poderão ser confrontados com uma acusação “apocalítica, misteriosa e terrível como a voz do juízo final: Que fizeste das crianças que te confiei?” (Montessori, s.d., p. 30).
O investimento na construção do Método pode ser, de algum modo, encontrado nesta pergunta. Uma questão à qual Montessori responde, identificando o ambiente de trabalho que se oferece às crianças e o material didático que criou, bem como o posicionamento discreto do professor como condições necessárias ao desenvolvimento do seu projeto educacional.
O ambiente e o material são fatores decisivos para Montessori, tendo em conta que a educação da criança “não pode ser outra coisa além da independência progressiva do adulto, realizada por intermédio de um ambiente adequado, em que a criança encontre os meios necessários ao desenvolvimento das suas funções” (Montessori, s.d., p. 323), daí que “o erro da liberdade da criança, na educação, foi considerar uma hipotética independência ante o adulto, sem a correspondente preparação do ambiente” (Montessori, s.d., p. 324). Como se constata, este é um fator decisivo para Montessori (s.d.), ao ponto desta defender que se “foi preparado para elas um meio adequado, vêem-se crianças pequeníssimas executar atos com tal habilidade e exatidão e com tanta precocidade que nos deixam perplexos” (Montessori, s.d., p. 151).
Quanto ao mestre, Montessori (s.d.) refere-se a ele de forma inequívoca, afirmando que tem de “inspirar-se nos sentimentos de S. João Baptista: ‘Convém que ele cresça e eu diminua’” (Montessori, s.d., p. 188), o que, mais do que um apelo à passividade dos professores, corresponde à afirmação da necessidade destes assumirem um estado mental que se aproxima “da pureza do intelecto que sentiu S. Francisco de Assis” (Montessori, s.d., p. 241), o qual “predispõe ao iluminativo, no qual se pode receber a inspiração divina” (Montessori, s.d., p. 241).
Como se constata, o recurso ao ideário católico pode assumir diferentes funções no discurso que Montessori produz sobre a redenção da humanidade através da necessidade de se abordar um projeto educacional onde a criança ocupe o centro da cena educativa. Há situações em que o recurso àquele ideário visa envolver emocionalmente as pessoas na narrativa, tal como acontece, por exemplo, quando se tende a promover uma identificação, explícita ou implícita, entre Cristo e a Criança. Noutras situações, o objetivo será focalizar a atenção do leitor em argumentos tidos como relevantes que, nos textos montessorianos, passam por citar passagens bíblicas, as quais visam, sobretudo, robustecer os conteúdos das mensagens que se divulgam. Há, ainda, um outro tipo de situações em que, através do recurso à imagética católica, se pretende produzir uma comunicação mais eficaz, como é o caso da reflexão sobre o papel que os professores deverão assumir nas salas Montessori.
Conclusão
Como se comprova, não se podem dissociar os compromissos religiosos de Maria Montessori da obra que nos legou. Uma obra que, não deixando de exprimir as opções da pedagoga italiana, também exprime o seu enquadramento num espaço e num tempo históricos que importa valorizar quando se reflete sobre o pensamento e a obra de quem quer que seja.
É através dos trabalhos que Alberto Filipe Araújo produziu, em colaboração com outros investigadores (Araújo e Ribeiro, 2014; Araújo et al., 2005), que se pode conferir visibilidade ao “sagrado no pensamento educacional de Maria Montessori” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 887) e, particularmente, o modo como o catolicismo da pedagoga modela a sua conceção de Criança, a qual “resulta da confluência de duas perspetivas, a da pedagogia que se pretende afirmar como ciência e a do humanismo cristão” (Araújo et al., 2005, p. 23).
Não se nega o investimento da pedagoga italiana na construção de uma abordagem acerca da Criança concetualmente fundada em áreas do saber como a Antropologia ou a Psicologia, o que se defende é que essa abordagem, do ponto de vista dos seus fundamentos, é mais ampla e terá que ser compreendida em função do que aqueles autores, baseados em Gilbert Bosetti, associam com o “culto do Menino Jesus e o tema da Criança Rei reativado na Itália católica, especialmente a partir da I Guerra Mundial” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 895). Daí que defendam que o fato de Montessori pretender abordar cientificamente o comportamento da Criança não foi, em si, um fato impeditivo de “dar voz à Criança Divina, à Criança Redentora, enfim do Salvador Criança. É sob o “signo do mitologema cristão da criança salvadora (Bosetti, 1997, p. 101-126) que a abordagem teórica e sua prática psicopedagógica de Montessori se estrutura e se desenrola” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 902).
Isto não significa, tal como Araújo e Ribeiro (2014) defendem, que “a autora tenha feito da teologia cristã o seu ponto de partida para estudar o “segredo da infância”, mas tão somente sublinhar até que ponto a visão cristã da infância, nomeadamente o mitologema da criança redentora […], marcou toda a sua obra” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 902).
Ainda inspirados em Bosetti, Araújo e Ribeiro (2014) associam Montessori ao que estes autores designam por “religião da infância” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 903), o termo que utilizam para se referir a “todas aquelas narrativas impregnadas de religiosidade que ao sacralizarem a idade juvenil constitui para o autor [Bosetti] ‘o verdadeiro mito da origem das sociedades ocidentais modernas’ […]” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 903).
É perante o conjunto de argumentos acabados de explicitar que parece ser plausível afirmar que a obra e o pensamento de Montessori, apesar de se fundarem “numa psicopedagogia científica, que se pretendia inovadora, progressista e experimentalista […], nunca deixou de afirmar-se também como um tipo literário contaminado pela tradição cristã e católica” (Araújo e Ribeiro, 2014, p. 906).
O pressuposto através do qual Montessori (s.d.) defende que a criança é o progenitor da humanidade enquadra-se nesta narrativa. Trata-se de uma afirmação que sustenta o projeto de investigação da pedagoga italiana, conferindo-lhe legitimidade concetual e epistemológica, mas não deixa de ser, também, uma afirmação que, para ser formalizada da forma como o foi, remete para uma visão do mundo onde os vínculos católicos da sua autora se revelam de forma subentendida, como se de um palimpsesto se tratasse. Daí que o fato de Montessori (s.d.) afirmar que “a criança produz a própria humanidade e, por isso, os seus direitos são ainda mais exigentes em reclamar transformações sociais” (Montessori, s.d., p. 362), possa ser considerado como uma poderosa razão capaz de explicar porque é que a pedagoga italiana valorizou tanto a necessidade de observar a criança, de a estudar em condições existenciais diferentes daquelas que a fazem depender de um adulto que se sente “o criador, a providência, o dominador, o executor” (Montessori, s.d., p. 336). Uma iniciativa nuclear para explicar o seu investimento na construção de uma Pedagogia Científica que, afinal, parecia pretender responder, apenas, a duas questões que a Bíblia a inspirou a fazer: “Mas como é que foi criado? Como recebeu esta criatura viva os atributos da inteligência e poder sobre todas as coisas da criação, apesar de provir do nada?” (Montessori, s.d., p. 337). Será essa criança que o seu trabalho nas “Case dei Bambini” irá revelar, de forma a tornar possível concretizar o pressuposto, a partir do qual Montessori defende, afinal, que “Cristo auxilia todos os homens, sob a forma da criança” (Montessori, s.d., p. 183). Assim sendo, considera-se que se pode concluir que o projeto de intervenção pedagógica que anima Montessori só é passível de ser compreendida no âmbito de uma abordagem que, no seu caso, não dispensa o religioso como componente da dimensão humana incontornável que sustenta o seu legado pedagógico, tal como se constata quando a pedagoga italiana refere que aos “instintos-guia”
está ligada a própria existência da vida, na sua elevada função cósmica e, embora sejam reações em face do meio, constituem delicadas sensibilidades internas, “dentro da vida”, tal como o pensamento puro é uma característica totalmente interior da mente. Prosseguindo a comparação, poder-se-iam considerar os pensamentos divinos que se elaboram no íntimo dos seres vivos que depois impelem estes a atuar em ações no meio exterior (Montessori, s.d., p. 348).
É esta relação entre o divino e a ciência que, em Montessori (s.d.), assume o papel de relação seminal, como se à segunda competisse revelar o primeiro. Se através da Pedagogia Científica se visasse compreender como é que funciona a “vitalidade interior especial que faz o milagre das conquistas naturais da criança” (Montessori, s.d., p. 78), isso corresponde a um desígnio que tem as suas raízes na crença de que
Deus deu à Criança uma natureza própria e fê-lo fixando certas leis do desenvolvimento definidas tanto para a vida do corpo como da alma. Aqueles que são responsáveis por esse desenvolvimento devem obedecer a essas leis. Se não as respeitarem afastam-se do princípio que Deus fixou para guiar a infância porque a afastamos das leis que Deus, Ele próprio, estabeleceu (Böhm, 1994, p. 155-156).
Se é necessário reconhecer que esta sinergia entre fé e ciência coloca a obra de Montessori perante problemas concetuais e epistemológicos inevitáveis, também parece ser razoável poder considerar que, através da mesma, se desmonta a ilusão nuclear da racionalidade pedagógica que o positivismo alimentou quando se demonstra a impossibilidade de se pensar a ação educativa como uma ação dissociada das opções axiológicas daqueles que pensam e agem no terreno da educação.
Quanto aos problemas atrás referidos pode considerar-se, entre outros, que fazer depender a educação, de quem quer que seja, das prescrições de uma alegada natureza da Criança, à qual subjaz a ordem divina, tem, como consequência, a desvalorização da dimensão cultural da Escola, bem como os desafios e as tensões epistemológicas contingentes que aí se vivem, como desafios e tensões necessários para se abordar as aprendizagens e o desenvolvimento pessoal e social dos alunos que aí se devem ter lugar.