Neste artigo, utilizamos os conceitos de governamentalidade e parceria como ferramentas teóricas para sustentar a seguinte tese: na Contemporaneidade3, relações de parceria têm funcionado como formas de governamento dos indivíduos a um custo político e econômico mínimo.
Para fundamentar esse argumento, apresentamos, a seguir, como o conceito de parceria tem sido operado, tomando como exemplos os dois contextos de análise acima: no primeiro, estudamos a relação que vem se estabelecendo, na atualidade, entre a ideia de diversidade sexual (e seus desdobramentos no campo da política, dos movimentos sociais e da educação) e os arranjos biopolíticos que configuram mecanismos atuais de governamentalidade capazes de capturar as diferenças sexuais, alçando-as ao campo da normalização e da heteronormatividade; no segundo, examinamos a relação família-escola e, principalmente, a ênfase atribuída à família, que precisa tornar-se parceira da escola e compartilhar com ela responsabilidades para gerenciar os riscos sociais, dentre eles, o fracasso escolar, por exemplo4.
Governamentalidade e parceria como ferramentas teórico-analíticas
Contexto de análise 1
[...] em parceria com o movimento homossexual (p. 7).
[...] representantes do movimento homossexual (p. 11).
[...] têm visto surgir uma eficiente parceria entre grupos GLTB e órgãos de saúde e de segurança pública municipais, estaduais e federais (p. 15).
[...] mobilização de ações integradas de instituições governamentais e não-governamentais (p. 19).
[...] por meio do estabelecimento de parcerias com a sociedade civil organizada (p. 19).
[...] em parceria com organizações de defesa dos direitos dos homossexuais (p. 20).
[...] parceria e participação de usuários GLTB e do movimento organizado (p. 23).
[...] em parceria com agências internacionais de cooperação e com a sociedade civil organizada (p.25).
[...] por meio de parcerias com suas lideranças, movimentos sociais e organizações da sociedade civil (p.27).
Fonte: Programa Brasil sem Homofobia (Brasil, 2004).
[...] promover a articulação e a parceria entre o poder público, sociedade civil organizada, institutos de pesquisa e universidades (p. 35).
[...] paridade entre governo e sociedade civil, assegurando na representação da sociedade civil a paridade dos segmentos LGBT (p. 40).
Fonte: Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (Brasil, 2009).
[...] da articulação e da parceria entre o poder público, sociedade civil organizada (p. 3).
[...] a participação de entidades formais e informais, garantindo a maioria de dois terços da sociedade civil em todos eles (p. 9).
[...] Fomento à participação e representação do movimento LGBT nos conselhos e conferências de saúde (p. 12).
[...] estabelecendo parcerias com organizações da sociedade civil organizada que trabalham com adolescentes e jovens LGBT (p. 15).
[...] em parceria com o setor privado e organizações da sociedade civil (p. 21-22).
Fonte: 2ª Conferência Nacional LGBT - Diretrizes (Brasil, 2011).
Contexto de análise 2
Pesquisadora: Por que motivos a professora chama vocês?
Paola: No meu caso, ela está tendo dificuldade em fazer a Helena acompanhar a turma. Então, a preocupação dela é essa. A Helena não está conseguindo alcançar o objetivo.
Pesquisadora: E aí ela te chama para falar disso?
Paola: Não só isso. No caso, a gente se procura mais quando ela tem o neuro [neurologista], quando ela tem o psiquiatra, daí, eu entro em contato com ela [a professora] e aviso: “eu preciso ir à escola levar a avaliação”
Pesquisadora: Que mais? Quando a professora chama na escola, o que ela diz?
Laura: Normalmente, chama quando aconteceu algo bem ruim, que está chegando muito atrasado, se brigou na escola ou se é para uma entrega de boletins, uma coisa assim. [...] Quando eles chamam, é porque alguma coisa aconteceu. Fora isso, não. Eles não chamam para dizer: “olha, dá para tu vires à escola nesse dia para a gente dar uma conversada, discutir como está?”. Só quando chegaram ao extremo.
Carolina: É, só quando chegam ao extremo, exatamente...
[...]
Pesquisadora: Quando as professoras chamam vocês na escola, chamam para dizer que a criança está com dificuldade, é isso? Já aconteceu de vocês serem chamadas na escola mais de uma vez e terem que contar a história mais de uma vez, de novo?
Irene: Para cada professor, tu tens que contar, tu tens que explicar, cada professor que passa... Pelo menos, lá no colégio do meu guri. [...] Para cada professora, tu vais ter que explicar tudo de novo [...]. Porque não é, não tem uma continuidade, não é o mesmo professor. Por exemplo, um professor não passa para o outro [...]. Tu contas tudo, como é que é o teu filho, qual a dificuldade do teu filho, como é que foi no ano que passou, se tem algum problema de saúde. Daí, eles perguntam um monte de coisas, sabes?
Paola: Lá no nosso colégio... Todo ano tem a reunião, eles chamam todos os pais. [...] Todo professor faz isso, conversa com cada pai para saber se o seu filho tem algum problema de doença, se pode participar da ginástica, de que religião é. Daí, eles perguntam tudo. Como é que é o relacionamento em casa, como é que ele se relaciona com os colegas, como é que foi o ano que passou. Então, eu acredito que não seja passado de uma professora para outra, sabes? Porque, se passasse de uma para outra, eles não chamariam os pais para conversar.
Pesquisadora: Fabiana, tu concordas com o que as colegas estão colocando?
Fabiana: É, no caso, no ano passado, eles me chamavam. Ele era muito distraído, ficava viajando na sala de aula, assim, [...] não copiava as matérias. [...]
Fonte: Grupo focal, encontro V, 27/05/2010.
Situando brevemente a questão da governamentalidade, pode-se dizer que ela foi examinada com maior detalhamento por Michel Foucault nos cursos Segurança, território, população (1977-1978) (Foucault, 2008a) e Nascimento da Biopolítica (1978-1979) (Foucault, 2008b). No primeiro, o autor desenvolveu uma história das governamentalidades para depois examinar a formação de uma governamentalidade política articulada à emergência de uma razão de Estado; no segundo, analisou a governamentalidade sob uma nova perspectiva, com base nos temas do liberalismo e do neoliberalimo - o que Foucault vai chamar de quadro de racionalidade política. Tal movimento possibilita a análise de um conjunto de práticas de governamento produzidas no contexto de racionalidades políticas - o que podemos nomear como governamentalidade neoliberal.
Afirmamos que na Contemporaneidade essa forma de governamentalidade (neoliberal) funciona como ferramenta conceitual importante para descrever e analisar relações de parceria, pois possibilita perceber como se constituíram, no âmbito de determinadas instituições, novos/outros mecanismos de vigilância, controle e intervenção sobre a vida dos indivíduos e das populações, fruto das estratégias estabelecidas entre o Estado, a economia política e os dispositivos de seguridade.
Ao descrevermos e analisarmos as relações de parceria, procuramos distinguir os termos aliança e parceria. Enquanto a aliança pode ser entendida como uma forma de relacionamento mais associada à Modernidade, a parceria pode ser caracterizada como um tipo de relação típica da Contemporaneidade. A aliança caracteriza-se como um tipo de união que visa à administração do futuro; a parceria se estabeleceria como uma forma de relação voltada para o gerenciamento dos riscos. Ambas estão implicadas em formas de governamento das condutas dos indivíduos e da população. Entretanto, nossa aposta é a de que a aliança pressupõe uma distinção clara de responsabilidades, enquanto a parceria implica um compartilhamento de responsabilidades.
Nesse sentido, cabe dizer também por que escolhemos usar o termo parceria, e não outro, como acordo, pacto ou, principalmente, aliança, como já assinalamos anteriormente. Evidentemente que o mais óbvio seria dizer que usamos tal expressão porque ela, como se pode ver nos documentos do segundo contexto de análise, é explicitada e assumida como o substantivo que define as intenções acordadas entre o Estado e os movimentos sociais LGBT (no caso do contexto 1), ou entre Estado e família (no caso do contexto 2).5
Indiscutivelmente, isso é um fato e está escancarado em várias passagens nos excertos acima, seja na sua forma literal, seja no uso de expressões que o denotam. Em todo caso, para além dessa simples correspondência, usamos o termo parceria por acreditar que ele pode expressar de maneira mais potencial as conexões que vêm sendo estabelecidas, no contexto brasileiro, entre Estado e outras esferas, sejam os movimentos sociais, sejam as famílias, por exemplo. Tais conexões, da forma como temos suspeitado, podem indicar os caminhos pelos quais, em nosso país, as tecnologias de governamento neoliberal dos corpos e das práticas dos sujeitos têm sido implementadas6.
Mais que simplesmente garantir que determinado empreendimento aconteça, a noção de parceria implica, da forma como a entendemos, um gerenciamento dos riscos envolvidos nesse objetivo, de modo a compor técnicas de governamento da experiência sexual e de gênero, por exemplo. A relação de parceria, nessa acepção, seria caracterizada pelo compartilhamento de responsabilidade entre os dois agentes (Estado e movimentos sociais e/ou Estado e família), de maneira que ambos sejam partícipes no processo de controle das condutas e dos corpos e práticas que pretendem governar a partir de sua lógica essencializadora.
Desse modo, ao promover essas técnicas de gerenciamento, a relação de parceria também seria capaz de fazer com que os sujeitos objetivados por ela governassem a si mesmos, evitando maiores perigos sociais, o que fica explicitado em passagens nos contextos de análise acima, como: “estimular a representação LGBT”, “fomentar a participação LGBT”, para assim “resgatar esses sujeitos de um quadro alarmante de exclusão e prejuízo social rumo à inclusão e ao pleno exercício e gozo da cidadania”, “viabilizando, assim, as ferramentas para o exercício do controle social”.
A partir das análises que aqui desenvolvemos, procuramos mostrar como, na cultura contemporânea, o poder é exercido por meio das relações de parceria e opera orientando e (con)formando a conduta dos movimentos sociais e das famílias na direção desejada - todos e cada um têm que participar. Trata-se daquilo que nomeamos no âmbito de nossas pesquisas como tecnologia da participação, uma tecnologia implicada na produção da parceria Estado-família-escola e Estado-movimentos sociais.
Com base nessa compreensão, cabe dizer que a tecnologia da participação se torna fundamental para que Estado e escola possam agir sobre a família e sobre os movimentos sociais − por meio de técnicas de dominação. Ao mesmo tempo, cada membro da família e dos movimentos sociais age sobre essas ações e sobre si mesmo, transformando a sua conduta - por meio de técnicas de si. Examinam-se, então, as relações de parceria que podem resultar em uma ação de um/uns sobre o(s) outro(s) e, ao mesmo tempo, em uma ação de alguém/alguns sobre a ação do(s) outro(s) e sobre si mesmo.
Em vista disso, recorrer ao curso Nascimento da Biopolítica (1978-1979) é importante, pois nele é possível encontrar elementos capazes de explicar como o liberalismo e o neoliberalismo se desenvolveram como prática, como um método de exercício do governo no interior do Estado governamentalizado. Foucault mostrará, a partir do neoliberalismo alemão e americano, como se forjaram as estratégias da arte de governar a partir do solo preparado pela razão de Estado e o liberalismo. Especialmente no caso americano, o mercado assumirá, no âmbito do neoliberalismo, o lugar onde e por meio do qual se dará a constituição mesma do sujeito, uma espécie de oráculo a dizer a verdade sobre cada grupo de pessoas, bem como sobre cada um isoladamente, passando a figurar, assim, como “[...] um lugar de verificabilidade/falsicabilidade para a prática governamental” (Foucault, 2008b, p. 45). Na governamentalidade neoliberal, portanto, todas as condutas passam a ser reguladas pela lógica do autoempreendedorismo, e será papel do Estado administrar a população não apenas no que se refere às condutas coletivas, como também às escolhas de cada indivíduo em particular, um gesto que acionará processos de individuação e subjetivação controlados pelo mercado. Com isso, a governamentalidade neoliberal fundirá a noção de homo economicus do liberalismo com a teoria do capital humano e, dessa forma, transformará os indivíduos em empreendedores de si mesmos, reconfigurando a biopolítica de Estado em termos não da diminuição de seu alcance, mas de uma reinscrição de suas técnicas e estratégias.
Se a partir do século XIX houve um abrandamento das funções do Estado por meio do surgimento de inúmeras outras instituições de sequestro (Foucault, 1999), como escolas, fábricas, prisões, isso não significa, em absoluto, seu enfraquecimento. O Estado tem se constituído em um importante instrumento de propagação de tecnologias de governamento, tecnologias essas que têm a cada dia criado formas mais sutis de captura e controle de subjetividades. Enredados por esse jogo, os sujeitos da diversidade sexual passam a figurar como alvo das estratégias biopolíticas que articulam a necessidade de investimentos constantes para que eles mesmos, diante do Estado, se constituam como corpos governáveis e, assim, continuem a fazer parte dessa dinâmica.
Desse modo, vê-se esboçar no contexto das sociedades de seguridade um jogo mais perspicaz, em que a reclusão outrora firmada por meio de procedimentos de exclusão do sujeito do convívio social cederá seu lugar para algo mais sofisticado, ou seja, uma reclusão por inclusão mediante a fixação dos indivíduos aos aparatos que os governam e administram suas vidas. Esse tipo de reclusão, novidade a partir do século XIX, não irá mais apenas disciplinar as condutas marginais por meio de sua exclusão explícita, mas sim irá sequestrar corpos e práticas desviantes com o objetivo de incluí-los e normalizá-los, ou seja, “trata-se de garantir a produção ou os produtores em função de uma determinada norma” (Foucault, 1999, p. 114).
Nesse sentido, cabe fazer uma distinção entre a noção de normação e a noção de normalização. Enquanto aquela está ligada aos processos disciplinares, esta tem a ver com os processos de seguridade. Na normação, a norma seria a primeira coisa a ser definida para, a partir dela, se estabelecer o que é o normal e o anormal. Já na normalização, a norma se estabeleceria em diferentes níveis de distribuição; ela seria uma espécie de dedução em relação à ideia de normal/normalidade definida já anteriormente. Conforme explica Foucault:
São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é o que é primeiro, e a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, eu diria, que não se trata mais de uma normação, mas sim, no sentido estrito, de uma normalização (Foucault, 2008a, p. 83).
Se nas sociedades disciplinares a norma agia no sentido de demarcar explicitamente quem era o incluído e o excluído, estabelecendo uma dicotomia entre os termos, nas sociedades de seguridade, o que está em jogo é incluir a todos para corrigir e normalizar seus corpos e práticas, bem como qualquer outra irregularidade que possa aparecer no corpo populacional e oferecer perigo às biopolíticas de controle e administração da vida, seja em âmbito individual ou coletivo. Por um lado, a norma permite estabelecer um modelo geral prévio diante do qual todos devem ser referidos, por outro lado, a norma permite distinguir “[...] por meio da exaltação/banalização das diferenças identitárias que caracterizam os sujeitos dentro de suas comunidades [...]” (Lopes, 2011, p. 288).
No que concerne mais especificamente ao contexto de análise 1, talvez seja justamente por isso que, mesmo no interior das comunidades familiares e LGBT, possamos identificar diferentes pontos referenciais que estabelecem quem é e quem não é normal, quem pode e quem não pode permanecer no jogo, quem merece e quem não merece acessar os benefícios e direitos conquistados. Talvez seja por isso, também, que há no interior da comunidade LGBT uma pulverização cada vez maior de identidades reivindicando para si um lugar de direito a partir de diferentes curvas de normalidade.
Nessa perspectiva, interessa-nos examinar esse modelo de inclusão de nosso tempo que ajuda a sedimentar a luta e a teorização político-identitária LGBT, bem como os efeitos dessa sedimentação no campo escolar-educacional. Ao questionar a lógica inclusiva que opera a partir das identidades e das conquistas jurídicas e civis a ela associadas, temos em vista não a posição de quem nega os avanços políticos e sociais que ela acarretou, tampouco de quem nega os efeitos que seus discursos e suas práticas promoveram/promovem no combate à LGBTfobia7, ao machismo, ao sexismo. Aliás, reconhecemos tais deslocamentos e os compreendemos como uma possibilidade de reivindicação política. Porém, mesmo diante disso, pensamos ser necessário explicitar os mecanismos de produção do sujeito da diversidade sexual e as estratégias biopolíticas que o têm fixado em uma identidade reconhecível, em um corpo traduzível, em uma vida viável moral e economicamente, passível de ser normalizada pelos dispositivos de inclusão neoliberais nas esferas social e educacional (Sierra, 2013).
Para fundamentar essa argumentação, um dos significados atribuídos à parceria família-escola e as suas implicações educacionais serão brevemente examinados aqui. Utilizamos parte dos resultados de uma pesquisa8 para discutir as possibilidades que o conceito de governamentalidade oferece em termos teóricos e metodológicos, especialmente para examinar a relação família-escola.
A relação família-escola parece natural - mas não é. Três ideias sustentam esse argumento. Primeira: a relação família-escola (aliança) é construída na Modernidade e vem funcionar como um instrumento importante para a universalização do ensino. Segunda: na Contemporaneidade, a relação família-escola é ressignificada (parceria). Família e escola tornam-se parceiras para gerenciar os riscos sociais. Terceira: com base nas duas primeiras ideias, pode-se afirmar que há o deslocamento de uma relação família-escola como aliança para uma relação família-escola como parceria.9
No que concerne ao contexto de análise 2, considerando as passagens em destaque no início da primeira seção deste texto, começamos ressaltando, de forma mais ampla, o modo como as famílias narram suas experiências com a escola e as professoras. Segundo as mulheres-mães10, a escola chama quando há problemas ‒ quando o aluno está com dificuldades de acompanhar a turma ou quando algo bem ruim acontece. Assim, pode-se dizer que, muitas vezes, o convite que a escola faz à família está relacionado com problemas de aprendizagem ou de comportamento que precisam ser resolvidos - mas como tais problemas são abordados pela escola?
Ainda com base no que foi dito pelas mulheres-mães, é possível perceber que a escola aborda o problema interrogando a família sobre sua vida: de que forma vive a criança? Com quem vive? Como a família se relaciona com ela? ‒ “eles perguntam tudo”. Diante disso, podem-se formular outras questões: as reuniões são planejadas com que objetivos? Se a escola investe nos processos de ensino e aprendizagem, que relações são estabelecidas entre as informações obtidas quando “perguntam tudo” e a prática pedagógica? Que “tudo” é esse que entra no jogo político e pedagógico das aprendizagens? Não questionamos a necessidade da reunião em si, mas os usos que têm sido feitos dela pela escola. A reunião de pais é entendida como ponto de partida para examinar as relações estabelecidas entre família e escola.
Para compreender um pouco melhor essa questão, discutiremos brevemente a noção de risco e suas implicações para a relação família-escola. Tomando como base os trabalhos de Giddens (2007) e Ewald (2000), é possível questionar o caráter natural desse conceito. A invenção do conceito está intrinsecamente relacionada a uma nova forma de relacionar-se com o futuro. A palavra risco emerge em um momento histórico em que começa a estabelecer-se um tipo de relação com o futuro, um futuro marcado pelo cálculo dos riscos. De ameaças e perigos sobrenaturais - bruxas e fantasmas - ou naturais - terremotos, furacões e enchentes -, tomados como fatalidades, e de sentimentos como insegurança e incerteza, passamos, na Modernidade, por transformações que permitem mobilizar o conceito de risco para explicar os acontecimentos.
Como explica Giddens (2007), a ideia de risco foi estabelecida nos séculos XVI e XVII. Nesse processo de significação, foram atribuídos ao risco os sentidos de orientação espacial (navegação em águas desconhecidas) e de tempo (cálculo das consequências decorrentes das transações bancárias); mais tarde, o conceito foi ampliado, e fatos puderam ser ordenados por categorias (trata-se de definir, por exemplo, a natureza do nascimento e da morte).
Com a emergência da noção de risco na Modernidade, tais sentidos foram ressignificados. Os sentimentos de insegurança e incerteza não desapareceram, mas a invenção da noção de risco criou condições para o entendimento de que a insegurança e a incerteza podem ser administradas por meio de ações para prevenir ou evitar perigos e ameaças. Trata-se de “um modo de tratamento específico de certos acontecimentos que podem suceder a um grupo de indivíduos. [...] Um esquema de racionalidade, uma maneira de decompor, recompor, ordenar certos elementos da realidade” (Ewald, 2000, p. 88-89).
Esse esquema de racionalidade permitirá atribuir a certos acontecimentos outra natureza. Isso será possível graças ao cálculo de probabilidades, um processo que está relacionado, de um lado, com o desenvolvimento da teoria da probabilidade no século XVII e, de outro, com a sofisticação da estatística e o uso que lhe foi conferido como ciência do Estado.
Retomando o objetivo destacado anteriormente, a importância atribuída à relação família-escola está relacionada ao processo de administração de determinados tipos de riscos. Nesse contexto, a aliança família-escola torna-se importante porque funcionará como instrumento de administração desses riscos. Ao mesmo tempo, também é possível argumentar que tal aliança contribui para conferir certa objetividade a acontecimentos da vida privada e para posicionar os sujeitos (crianças e famílias) como alvo de práticas assistenciais, educativas e de controle sistemáticas.
Sob essa perspectiva, o fracasso escolar será compreendido como um fenômeno econômico que deve ser inserido num cálculo de custo. Governar significará, portanto, outra distribuição das coisas. A escola continua investindo na vigilância, no diagnóstico e na correção, como se pode observar nas seguintes falas: “Normalmente, [a escola] chama quando aconteceu algo bem ruim, que está chegando muito atrasado, se brigou na escola ou se é para uma entrega de boletins, uma coisa assim. [...]”; “É, no caso, no ano passado, eles me chamavam. Ele era muito distraído, ficava viajando na sala de aula, assim, [...] não copiava as matérias”.
Entretanto, outras falas permitem perceber que, para gerenciar o risco do fracasso escolar, na Contemporaneidade, a escola põe em funcionamento um conjunto de técnicas que são mais da ordem do controle e menos da ordem da disciplina11.
Assim, o processo de escolarização permitirá à escola moderna desenvolver mecanismos de controle e regulação das crianças, ao mesmo tempo em que essa instituição investe no governamento de suas famílias. “A escola [...] não deve simplesmente formar crianças dóceis; deve também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira de viver, seus recursos, sua piedade, seus costumes, [fazendo da família mais um] minúsculo observatório social” (Foucault, 2000, p. 174, grifos nossos).
Com base nessa ideia, podemos retomar os excertos já destacados, principalmente a reunião de pais realizada pela escola. Entendemos que essa reunião não é apenas uma oportunidade para aproximar a família da escola, mas também uma técnica de governamento. A reunião torna-se um espaço privilegiado para o acompanhamento e a avaliação da vida familiar, como podemos observar nas falas das mulheres-mães: “Para cada professora, [a família] vai ter que explicar tudo de novo”; “Todo professor faz isso, conversa com cada pai para saber se o seu filho tem algum problema de doença, se pode participar da ginástica, de que religião é. Daí, eles perguntam tudo. Como é que é o relacionamento em casa, como é que ele se relaciona com os colegas, como é que foi o ano que passou”.
Por um lado, o exame detalhado faz com que as condições de vida da família sejam conhecidas, avaliadas e transformadas em um risco calculável ‒ a família torna-se, portanto, governável. Por outro lado, esse conhecimento possibilita a formação de condutas familiares, visando a manter o aluno na escola, evitar o aumento das taxas de reprovação e melhorar o desempenho escolar das crianças, entre outros objetivos. Trata-se aqui de investir na produção de pessoas capazes de governar a si mesmas, evitando a propagação de riscos sociais.
É nesse contexto que a família será acionada como parceira da escola para garantir que a criança seja educada para entrar no jogo, permanecer no jogo e desejar permanecer no jogo12 - jogo aqui entendido como processo de escolarização. Trata-se de uma parceria família-escola que envolve a identificação, o acompanhamento e o controle dos desempenhos - uma gestão dos processos escolares.
Tal como na Modernidade, a identificação do problema permanece importante, mas agora as técnicas mais ou menos rígidas e fechadas serão substituídas por outras, que permitirão criar infinitas soluções para o problema, abarcando um maior número de sujeitos e estabelecendo os limites do aceitável numa faixa de normalidade - o que ele sabe; o que ele não sabe; o que ele faz; o que ele não faz. Como apontam Veiga-Neto e Saraiva (2009),
Na Modernidade sólida, o futuro era visto como administrável. A administração, no âmbito tanto público quanto privado, consistia num conjunto de técnicas seguras, bem desenhadas e com embasamento científico, que deviam ser aplicadas de modo a construir um futuro sob medida em função das nossas expectativas. Na Modernidade líquida, já não se acredita ser possível administrar o e para o futuro, isso é, prever e garantir, com segurança, o futuro. [...] De modo simplificado, parece-nos possível dizer que, enquanto a administração tem seu funcionamento ligado a cenários mais estáveis, com menor nível de incerteza, a gestão tem maior capacidade de lidar com a instabilidade. Enquanto a administração pensa no futuro, a gestão lida com o devir (Veiga-Neto e Saraiva, 2009, p. 194).
Com isso, é possível afirmar que o foco está no gerenciamento do risco, e não mais na sua administração. A mudança está relacionada, portanto, aos objetivos dessa nova forma de lidar com os riscos: “não mais para disciplinar, senão para conter e para registrar as informações acerca de nossas ações; [...] de modo que se possa, a qualquer momento no futuro, conferir, fiscalizar e examinar” (Veiga-Neto, 2008, p. 147). Sob essa perspectiva, pode-se dizer que a parceria família-escola funciona como um mecanismo de segurança dos desempenhos dos estudantes que permitirá à escola gerir os problemas de aprendizagem do aluno, fazendo com que ele permaneça incluído, permaneça no jogo, apesar de apresentar problemas.
Esta análise permite-nos argumentar que, no contexto da governamentalidade neoliberal, a relação família-escola é reinscrita, ressignificada e reinventada, ganhando outros contornos. Operando-se com o conceito de governamentalidade, numa perspectiva foucaultiana, torna-se possível descrever e analisar um conjunto de técnicas de governamento das famílias. Pode-se dizer que a reunião de pais, o tema de casa e a reunião do Conselho de Pais e Mestres (CPM) se constituem, ao mesmo tempo, como modalidades de participação e como técnicas de governamento das famílias. Trata-se de uma passagem da administração para um gerenciamento do risco do fracasso.
Com isso, a partir da análise da reunião de pais, por exemplo, procuramos mostrar como, na cultura contemporânea, o poder é exercido por meio dela e opera orientando e (con)formando a conduta das famílias na direção desejada ‒ a família tem que participar. A análise das relações de poder permitiu até aqui descrever e examinar as relações de parceria implicadas na produção do sujeito governável e autogovernado, que age sobre a ação do(s) outro(s) e sobre si mesmo, tornando-se parceiro do Estado, da escola e da família.
Últimas palavras: parceria e educação
No contexto dos discursos de tolerância e inclusão, os sujeitos envolvidos nas relações de parceria, com o apoio dos movimentos sociais, passam a reivindicar seu direito à educação, inclusive usando como forma de ação política um dizer-se sobre seu gênero e sua sexualidade13. Não é à toa, portanto, que os processos de inclusão desses sujeitos na escola aconteçam a partir de mecanismos identitários que classificam, ordenam e hierarquizam, tornando, assim, toda e qualquer experiência escolar passível de decifração. Todavia, este princípio de inclusão aciona, de outro lado, um mecanismo de exclusão da diferença, pois o reconhecimento das identidades sempre deixará de fora os corpos que, de um modo ou de outro, não se ajustam às definições que desenham as fronteiras das identidades. Por isso, mesmo reconhecendo os avanços que a teorização identitária provocou na forma como os sujeitos são encarados, ouvidos e incluídos na esfera social e, por consequência, educacional, é preciso aventar os limites de tal teorização, especialmente no que tange ao esquadrinhamento identitário, que, para operar eficientemente, precisa deixar de fora todos os corpos que não se reconhecem na estabilidade dessa forma de inclusão, pautada em um ideário de respeito e tolerância.
Diante disso, a análise em torno do conceito de governamentalidade, bem como da noção de parceria que queremos aqui estabelecer, se faz necessária. Esta análise permite-nos argumentar que, no contexto da governamentalidade neoliberal, tanto a relação família-escola quanto a relação Estado-movimentos sociais são reinscritas, ressignificadas e reinventadas, ganhando outros contornos. Essas relações de parceria tornam-se fundamentais para maximizar o governamento dos sujeitos a um custo político e econômico mínimo. O que importa é investir na parceria, fazendo com que cada um assuma responsabilidades e conduza suas ações para promover as mudanças sociais desejadas. Novos discursos e práticas articularão formas de governamento que produzirão corpos normalizados em identidades fixas e estáveis. Estas, diante das biopolíticas de Estado, se conformarão à heteronormatividade e, em grande medida, aos dispositivos de controle gerados também pela própria Pedagogia escolar.
Dessa maneira, será extremamente importante pensar como as formas de governamentalidade de nossa atualidade adquirem novos contornos à medida que potencializam os efeitos dos dispositivos anátomo-políticos e biopolíticos e, com isso, reverberam com mais força e violência os processos de normalização. O panorama contemporâneo e sua lógica neoliberal apresentam novos discursos e novas práticas de correção, conformação e individualização de corpos que, agora, se espraiam nas ações e nos dizeres dos próprios movimentos sociais e nas políticas implementadas pelo próprio Estado. A assunção do sujeito de direito cria, em seu vácuo, o sujeito viável que, rendido diante das garantias civis e jurídicas já alcançadas, se ajusta à norma, ao mercado e aos discursos que o fabricam como um corpo livre da abjeção. Esse sujeito, ou o “novo homo economicus, como denominou Foucault, deverá ser o resultado de investimentos familiares e educacionais na infância e na juventude, assim como também resultado de intervenções no campo da saúde e do corpo [...]” (César, 2009, p. 272).
Os novos dispositivos de controle desse nosso presente atualizam-se em novos procedimentos, novas práticas, novos discursos que asseguram a inclusão de todos sob o pretexto idílico do oferecimento de um mundo igualitário, justo e para todos. Novos procedimentos que vendem a garantia de uma vida melhor, mais saudável, mais correta, mais proveitosa a quem se dispuser, de um jeito ou outro, a comportar-se pacificamente no interior da norma e a encontrar, nesse lugar, uma identidade com a qual se reconheça para assim poder acessar os frutos reivindicados pelos movimentos sociais e assegurados pelo Estado.
Na esfera educacional, essa lógica trança-se a um tipo de governamento dos corpos e das práticas, que passam a ser regulados por acordos que instauram novos temas no currículo (gênero, diversidade sexual, relação família-escola, entre outros), não mais distribuídos de maneira disciplinar, mas sim de maneira transversal. Esses temas, no interior da escola, antes de se constituírem em possibilidade de invenção de um novo projeto ético e estético, vão transformar-se, na Contemporaneidade, em novas maneiras de fazer a gestão da vida.