O dossiê denominado Mulheres na História da Educação: formação e profissionalização objetiva desvelar nuances da educação feminina na interface com as complexas intersecções entre o contexto sócio-histórico e as singularidades/diversidades nacionais e internacionais, a partir das instituições educativas e percursos profissionais que perpassaram a vida de mulheres. Especificamente, intui-se produzir conhecimento propulsor de reflexão crítica acerca da educação das mulheres no Brasil e nos Estados Unidos da América e possibilitar a interlocução interdisciplinar com o conhecimento da Educação e da História – abrangendo as tangentes entre o plano internacional, nacional e local – ao desvelar singularidades e diversidades da situação educacional feminina na História da Educação.
Organizado pela brasileira Lia Fialho – professora doutora da Universidade Estadual do Ceará – e pela americana Dawn Duke - Professora doutora da Universidade de Tennessee -, o dossiê, ao tratar da educação das mulheres brasileiras e americanas, problematiza paradigmas e paradoxos, a partir dos percursos educativos e profissionais em que as mulheres frequentavam. As singularidades e diversidades que permeavam à educação são reconstituídas considerando os lugares e os períodos distintos, a cultura, o cenário político, econômico e social. Tais aspectos são evidenciados tanto na educação familiar como na educação formal e profissionalização, perpassando pelos níveis de estudos diferenciados que emergem em formação feminina distinta, que abriga congruências e dissonâncias pertinentes ao lugar da mulher na sociedade.
Perrot (1998, p.13) chama atenção para o fato de que nos arquivos públicos, durante décadas do século XX, apenas encontrávamos “o olhar dos homens sobre os homens”, e que se forneciam poucas pistas a respeito das mulheres na história, haja vista se tratar por muito tempo como uma “categoria indistinta, destinada ao silêncio”. Por isso, durante longo tempo, o que se conhecia sobre as mulheres eram os discursos – “científicos” ou religiosos – que os próprios homens produziam sobre elas, isto é, sobre a mulher enquanto categoria ideal e abstrata, vocacionadas pela força da natureza materna a certo modelo de educação (Rago, 1997).
Salienta-se que desde as primeiras décadas do século XX, as mulheres começaram a buscar maior visibilidade e participação “permitida” dentro do processo histórico, possibilidade que foi se concretizando gradativamente, com amparo legal, inclusive, desde os deslocamentos e movimentos de resistências. Nas primeiras décadas do século XIX, contudo, já era possível encontrar mulheres que expressavam a insatisfação diante de sua falta de representatividade e que lutavam por ocupar outros espaços – para além do lar e da sala de aula, pois queriam ser reconhecidas como sujeitos da história (Cambi, 1993). Elas reivindicavam direitos iguais nas relações familiares, burlavam, às vezes até de forma solitária, as barreiras existentes, colocando em discussão a sua necessidade de participar política e socialmente de uma nova sociedade em construção (Fialho, Freire, 2018). Desde o princípio, uma das reivindicações femininas passa pelo direito à educação, justificando a importância de tal aquisição tanto para exercer bem o seu papel de mãe, formadora dos homens do futuro, quanto para o próprio engrandecimento espiritual. Afinal, era a luta em prol do desenvolvimento de sua capacidade intelectual e de sua capacidade, tanto quanto o homem, de exercer os mais variados cargos (Machado, 2005).
Comportamento cobrado pela sociedade e corroborado pela Lei, pela Igreja e pela Ciência, reforçado pela divulgação de uma verdadeira pedagogia do casamento, estabelecia as funções e os domínios específicos a homens e mulheres: a função da mulher consistia “em casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos cidadãos de amanhã”; ao homem, “cabia a representação legal da família, a administração dos bens comuns do casal e dos particulares da esposa segundo o regime matrimonial adotado, o direito de fixar e mudar o local de domicílio da família”, além de ser responsável pela manutenção da família. “A ele, a identidade pública; a ela, a doméstica.” (Maluf; Mott, 1998, p. 374- 379). Esse mesmo discurso que enfatizava a importância da mulher na geração e na formação do “caráter do cidadão de amanhã” foi material de elaboração de táticas para lutar por educação, para subverter a situação de dominação em que se encontrava.
Embora a saída das mulheres do reduto do lar para o trabalho e para a escola, para a sociedade produtiva, tenha sido marcada pela desigualdade de possibilidades escolares, predominância da atuação no magistério, e pela separação entre profissões masculinas – ativas – e femininas – sedentárias, num processo de naturalização da divisão sexual do trabalho. Estratégias, muitas vezes, camufladas por boas intenções. Se as mulheres iam se integrando cada vez mais ao sistema educativo e ao mercado de trabalho, ocupavam os postos mais feminizados e hierarquicamente mais baixos, e, consequentemente, desvalorizados. Compreender, todavia, os jogos de forças que eram tecidos pelas mulheres do século XX permite questionar paradigmas e padrões sociais instituídos que determinaram comportamentos e ações (Foucault, 2009).
Devido à importância da temática, bem como as décadas de invisibidade a que foi relegada a história das mulheres, em especial as mais desfavorecidas economicamente, os pesquisadores assumem um compromisso para com a historiografia do feminino, sobretudo no que concerne à igualdade, à cidadania e à liberdade do gênero humano. Decidiu-se, todavia, por ampliar e aprofundar os conhecimentos sobre a educação das mulheres no Brasil e nos Estados Unidos da América, abrangendo as tangentes entre o domínio do transnacional, do nacional e do plano local.
A história da educação feminina a que se propõe este dossiê, intitulado de “Mulheres na História da Educação: formação e profissionalização” apoia-se teoricamente na literatura já produzida acerca da história de mulheres que se debruçam sobre: a natureza feminina; família; educação; etnia; feminismo; lutas por direitos; resistências ao machismo; profissão; mercado de trabalho; dentre outros assuntos relativos ao tempo, à sociedade e à cultura em que as mulheres se inseriram e desenvolveram o sentimento de pertencimento.
Composto por sete artigos, o dossiê Mulheres na História da Educação: formação e profissionalização inicia-se com o texto de Dawn Duke denominado O Programa de Estudos Negros na Universidade de Tennessee: as perspectivas de uma ex-diretora do programa, que trata dos dilemas de uma administradora afrodescendente, chefe de um programa de estudos negros numa das principais universidades da região sul dos Estados Unidos, questionando os desafios da experiência na gestão de um programa por uma mulher negra na academia.
Em seguida, apresenta o artigo de Candace Slater intitulado Espelhos do presente em histórias do passado e profecias do futuro: comentários contemporâneos de jovens peregrinas a Juazeiro do Norte, que analisa as histórias contadas por mulheres jovens participantes da tradicional peregrinação que homenageia o Padre Cícero Romão Batista no sertão nordestino de Juazeiro do Norte, revelando uma sociedade que ainda olha com desconfiança para as mulheres que buscam melhorar suas vidas por meio da educação formal adicional e/ou do trabalho satisfatório fora de casa.
Na sequência, o manuscrito As promessas da conversa estudantil: a série de questões públicas de Harvard e as stuttering pedagogies, de Nancy Lesko, discuti como a ampliação das conversas estudantis nas escolas foi uma das múltiplas reformas dos anos 1960-1970 que visavam a passividade e a insensatez da educação nos Estados Unidos ao historicizar a conversa dos educadores em sala de aula a luz de críticas feministas e pós-coloniais dos supostos efeitos universais do diálogo entre os estudante.
O quarto artigo do dossiê, produzido por Lia Fialho, Ana Michele Lima e Zuleide Fernandes de Queiroz, é um estudo biográfico denominado Biografia de Aída Balaio: prestígio social de uma educadora negra, que objetiva compreender a história de vida de Aída Balaio (1897-1970), mulher negra e de origem simples, que concluiu o magistério graças ao ingresso filantrópico no Colégio Imaculada Conceição e como docente alfabetizou e assistiu a inúmeras pessoas de uma comunidade pauperizada – ao romper paradigmas relativos à raça e à situação econômica desfavorecida – ganhando relativa notoriedade por colaborar com o desenvolvimento da região do Mucuripe, Fortaleza, Ceará.
Onde estavam as mulheres? O ensino superior nos Estados Unidos entre os séculos XIX e XX, foi o artigo elaborado por Mirian Jorge Warde e Ana Cristina Rocha, para discutir como a escolarização básica norte-americana, ao tempo que se tornava objeto de interesse internacional por sua universalidade e práticas inovadoras, fomentava um ensino superior universitário que excluía as mulheres de maneira sistemática. Modificando-se somente no fim do século XIX por ocasião da criação de colleges femininos e à adoção da coeducação em universidades estaduais.
O sexto artigo, de autoria de Silvete Aparecida Crippa de Araújo e Liane Maria Bertucci, A formação da “mãe de família” para o trabalho: ações de iniciação profissional feminina no Lar Infantil Icléa (Federação Espírita do Paraná), Curitiba nos anos 1950, discute as aulas avulsas de artesanato e prendas domésticas e os cursos do Centro de Iniciação Profissional Lar Icléa. Estas duas ações, relacionadas à educação da mulher para o trabalho, reforçavam competências consideradas femininas, formando mulheres para que, mesmo atuando fora do lar, se ocupassem de funções idealizadas à “mãe de família”.
O último texto, A escola transformando vidas de mulheres negras, ribeirinhas, na região fronteiriça Brasil-Bolívia em meados do século XX, escrito por Anselmo Alencar Colares e Maria Lília Imbiriba Sousa Colares, aborda aspectos históricos da formação e profissionalização de professoras negras que foram pioneiras nas ações pastorais educativas de Dom Rey. Elas possibilitaram escolarização feminina que viabilizou a profissionalização e garantia de direitos para inúmeras mulheres negras e ribeirinhas da região do Vale do Guaporé-Mamoré, em Rondônia, que viviam sem perspectivas de inserção social.
Na congruência de reconstruir historicamente trajetórias de formação educacional e profissional de mulheres para subsidiar compreensão da dinâmica educação feminina, que sucede mudanças e permanências entre as gerações; os autores utilizam-se fontes documentais – revista, relatórios de instrução pública, livro de memória, materiais curriculares de Questões Públicas, manuais de professores, matérias de jornais, legislação educacional, fotografias, etc. – e fontes orais – entrevistas e narrativas. Estas fontes, aliadas a uma análise crítica e reflexiva, permitiram o desenvolvimento de problematizações sobre a educação de mulheres ou mesmo para as mulheres, propulsoras de possibilidades de romper paradigmas e questionar certos dogmas e estereótipos consagrados pelo senso comum ou pelas generalizações que subjugam o feminino. Logo, a leitura desse dossiê permite ampliar reflexões acerca da formação e profissionalização feminina de brasileiras e americanas, no campo da História da Educação, descortinando paradigmas e problematizando o lugar historicamente constituído para mulher na sociedade, que vem sendo paulatimanete alterado mediante progressos e retrocessos consoantes a uma história não linear repleta de lutas, resistências e acomodações.