Sim, o que é nosso ninguém pode ter. Assim, também aquilo que a gente sente não pode ser dado. Seja o que for: orgulho, medo, gratidão. E se pudesse, o resultado continuaria igual, sem a exatidão da verdade. Lembro-me de um sorriso que o pai me deu - eu estava no palco, [...] era uma apresentação de dança na escola - e tanta era minha timidez, não maior que o meu receio de errar um passo, que eu tremia toda, eu precisava tanto de uma calma, e eu procurei o pai na plateia, [...] [ele] sabia quando a gente titubeia no voo, e [...] me deu aquele sorriso, e eu o peguei como uma corda - milagrosa. Mas aquilo que a gente sente não pode ser dado. Se o pai me desse o sentir inteiro que subiu ao seu rosto e fez com que abrisse aquele sorriso, eu continuaria pendurada no penhasco da dúvida [...]: seria preciso eu viver toda a sua história para saber, pela métrica dele, o tamanho daquele sentir. A gente, cada um de nós, é uma dor, uma alegria. O que é nosso é só nosso. Aquele ali, que tremula no líquido de minha memória, dando-me um sorriso, aquele é o meu pai. Eu sou a Bia, sua filha.
(CARRASCOZA, 2017, p. 26-27)
Quando passamos a nos considerar, de fato, professoras? Em que momento deixamos de questionar a nossa escolha profissional e nos sentimos mais confiantes tanto para enfrentar os dilemas que marcam o dia-a-dia da sala de aula e da escola quanto para compartilhar angústias e conquistas com os colegas, lançando, dessa forma, as bases para forjar a nossa maneira de exercer a docência e constituir a imagem que vai nos identificar profissionalmente como docentes? Qual o papel desempenhado pelas experiências vivenciadas no estágio para que possamos nos sentir mais seguras no exercício de nosso ofício na fase inicial da carreira e para a constituição de nossa imagem como professoras? E, por fim, que tipo de emoções e sentimentos marcam as primeiras aproximações com a “prática” e a entrada na profissão? Tais questões orientam a presente análise1 que discute a entrada bem-sucedida no magistério de quatro professoras iniciantes, que estão em sala de aula há menos de dois anos, sendo duas delas formadas pela Universidade de São Paulo (USP), no campus da capital do estado, e duas pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), localizada na cidade de Guarulhos. O critério para a escolha das instituições de origem das colaboradoras deste estudo foi a boa qualidade da formação inicial e o fato de terem realizado estágios diferenciados, na Escola de Aplicação vinculada à Faculdade de Educação da USP (EAFEUSP) e no Programa de Residência Pedagógica (UNIFESP). Com base nos relatos das quatro professoras iniciantes, procuramos compreender o modo como as dimensões da memória de seus percursos escolares, das experiências vivenciadas durante o estágio e dos conteúdos teórico-práticos do curso foram mobilizadas para a elaboração de um repertório inicial de práticas, num momento em que elas estão dando forma às suas identidades como docentes.
Nesse sentido, nosso interesse é compreender a maneira como se dá a passagem da formação inicial para o começo do trabalho como docente; isto é, como se deixa a tutela da universidade para constituir uma autonomia no exercício do magistério, advinda da construção de um repertório próprio de cada professora. Com isso, pretendemos contribuir para o debate a respeito do papel das situações práticas no processo formativo que se dá nos Cursos de Licenciaturas, de maneira a apreender os elementos que são mobilizados pelos sujeitos para elaborar as suas experiências como estudantes e assumir o papel de docente, desenvolvendo uma prática que tenha sua assinatura. Nessa perspectiva, a forma pela qual as colaboradoras da presente pesquisa percebem a contribuição dos estágios realizados durante a Graduação ganha especial importância na análise das narrativas privilegiadas aqui, pois se trata do momento em que elas tiveram o primeiro contato com o cotidiano escolar na qualidade de futuras professoras, tendo a oportunidade não só de mobilizar concepções acerca dos modos de ensinar aprendidos na faculdade em situações concretas de sala de aula, como também de conhecer práticas presentes nas instituições onde realizaram os estágios, de modo particular, aquelas dos docentes mais experientes que as acompanharam, orientaram e dispuseram-se a recebê-las, em sua sala de aula. A esse respeito, Souza ressalta que
Entender o estágio e o lugar que têm as experiências no processo de formação e na transformação das identidades e subjetividades, a partir da centralidade na pessoa do professor, envolve ordens diversas de complexidade, de múltiplos problemas teórico-práticos relacionados a aprendizagens da docência, aos repertórios de conhecimentos necessários ao desenvolvimento profissional e, consequentemente, à superação de que a instrumentalização técnica e didático-pedagógica garante, por si só, tanto o tempo da formação inicial quanto o exercício desenvolvido no estágio, como o período institucionalizado e formal, sistematicamente organizado para o exercício da profissão. (SOUZA, 2004, p. 265)
Ao considerarmos tais potencialidades do estágio para o processo por meio do qual se constitui um estilo próprio de exercer a docência tão logo se ingressa na profissão, conforme salientado, recorremos a quatro professoras iniciantes que tiveram experiências diferenciadas nesse sentido. Duas delas - Regina e Raquel2 - são ex-alunas do Curso de Pedagogia da UNIFESP, que desde 2006 conta com a Residência Pedagógica, programa voltado a esse aspecto da formação, o qual será discutido mais à frente; enquanto as outras duas - Ana e Alexandra - são licenciadas em Letras pela FEUSP e realizaram longos estágios na EAFEUSP, num modelo definido pela própria instituição, mas nem sempre relacionados diretamente aos estágios curriculares obrigatórios ou disciplinares. Em ambas as dinâmicas de estágio, sobressaem-se a publicidade das propostas e a discussão das mesmas, pois o professor que acompanha a prática pode ler o planejamento e contribuir para o mesmo, em algumas ocasiões. No caso da Residência Pedagógica da UNIFESP, as estudantes contam, ainda, com o acompanhamento de um docente da universidade que as orienta nesses primeiros contatos com a docência, ajudando-as a pensar alternativas para a prática a ser desenvolvida por elas em busca de um “modo mais adequado” de ensinar. Nesse processo, há a preocupação de se considerar os professores que recebem as estagiárias também em formação não só para se evitar julgamentos duros da prática profissional do outro, mas também para fomentar a reflexão contextualizada sobre a ação. Dessa forma, é possível construir julgamentos mais compassivos a respeito de si mesmo, favorecendo uma inserção profissional mais flexível e reflexiva.
Tal proposta para a realização dos estágios de modo tão peculiar, no caso da UNIFESP, foi delineada desde o início do Curso de Pedagogia, em 2007, em seu Projeto Pedagógico3. Já nessa ocasião, o estágio obrigatório foi organizado como Residência Pedagógica, fazendo com que os alunos, a partir do terceiro ano, fizessem imersões de 30 dias em salas de aula de Ensino Fundamental, 30 dias em Educação Infantil e 15 dias em salas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como na gestão das escolas. Todas essas modalidades de estágio prevêem uma parte de observação das práticas (não somente em sala de aula, mas o acompanhamento da totalidade das atividades da professora ou gestora que os recebe) e, em seguida, a aplicação de uma atividade planejada em conjunto com a professora da sala e supervisionada pelos preceptores da universidade, que são os docentes do curso que se encarregam de acompanhar grupos reduzidos de alunos. Ao final, produz-se um relatório da atividade e da observação que é entregue para a escola e para o preceptor. As escolas que recebem os residentes estabelecem convênio com a UNIFESP e os professores aceitam receber os licenciandos durante todo o ano em suas salas de aula. A contrapartida do Curso de Pedagogia é a realização de atividades de formação especiais para as escolas, a possibilidade de que os professores da rede cursem disciplinas isoladas do curso de Pedagogia e atividades de extensão em que as escolas parceiras são privilegiadas. Vale observar que, por questões de logística, a quase totalidade das escolas parceiras do UNIFESP na formação das alunas fica nos arredores do campus, na periferia de Guarulhos e, desse modo, oferecem uma vivência da realidade escolar da periferia da metrópole. 4
Já a EAFEUSP, localizada ao lado do prédio da referida faculdade, vincula-se administrativamente à mesma desde 1973, e oferece Ensino Fundamental e Médio, sendo seus estudantes filhos de professores e demais funcionários da USP, dedicando-se algumas vagas também para a comunidade externa à USP.5 Historicamente, a EAFEUSP tem considerado os estágios uma atividade importante, pois, desde 1976, quando da vinculação à FEUSP, esse é objeto de discussão sistemática e de reflexão na escola. Nos dias atuais, recebe um número expressivo de estagiários (entre 200 e 300 ao ano) provenientes tanto dos Cursos de Pedagogia e das demais Licenciaturas, de modo especial da FEUSP, cujo estágio é curricular, quanto de programas que oferecem bolsas aos estudantes da Graduação durante um período previamente estabelecido, tais como: Programa Aprender com Cultura e Extensão, do Programa Unificado de Bolsas (PUB), além de ter sido espaço para o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID)6. Afora isso, há o desenvolvimento de uma série de projetos coordenados por docentes sobretudo da FEUSP, mas também de outras unidades da USP.
Em seu Regimento, a EAFEUSP considera o estágio um dos principais aspectos de sua atuação, estabelecendo, para tanto, um calendário de inscrição e uma dinâmica de recepção dos estudantes para o acompanhamento e a avaliação de suas atividades na instituição7. A equipe pedagógica acolhe várias propostas de estágios curriculares que chegam semestralmente, apresentando-as aos estudantes, juntamente com o Plano Escolar da escola. A partir daí são organizados os estágios de acordo com as disciplinas e séries escolares, de modo a promover interações mais férteis entre os licenciandos, professores e alunos da escola, havendo um esforço para integrar o estagiário à dinâmica da escola, além de um acompanhamento bem próximo de um docente. O intuito é favorecer a presença de aprendizes junto aos docentes mais experientes. Para a EAFEUSP, essa dimensão integra a dinâmica de seu trabalho pedagógico e, para os licenciandos, é um diferencial importante para a sua formação profissional.
As duas propostas de estágio (UNIFESP e EAFEUSP) possuem características menos prescritivas e de adequação técnica e mais favorecedoras do convívio, do entendimento de que a sala de aula é parte da escola, ou seja, de uma rede de relações humanas e profissionais. Isso não significa que os aspectos técnicos do conhecimento profissional sejam deixados de lado, mas que eles constituem parte de um conjunto maior. Tais propostas de estágio acompanham, portanto, o reconhecimento, na área educacional, da complexidade dos conhecimentos e saberes que são mobilizados na prática docente (TARDIF, LESSARD, LAHAYE, 1991), tendo esse uma forte influência no processo formativo das colaboradoras da pesquisa realizada, conforme evidenciam as narrativas produzidas por elas a respeito de sua trajetória formativa e entrada na profissão. Essas foram constituídas partindo de questões sobre as experiências vivenciadas durante o Curso de Graduação e o início do trabalho como professoras, com a menção ao tema e eventuais intervenções da entrevistadora para solicitar esclarecimentos ou para estimular a fala em momentos de silêncio. As entrevistas foram realizadas online, devido à pandemia de COVID-19, sendo estas gravadas e, em seguida, transcritas, sistematizadas em categorias e analisadas por todas as pesquisadoras conjuntamente. Segue um quadro com alguns elementos de caracterização das quatro colaboradoras do estudo:
Colaboradoras | Curso de Graduação | Idade | Cor da pele | Trabalho durante a Graduação | Bolsa durante a Graduação | Trabalho atual |
---|---|---|---|---|---|---|
Regina (entrevista realizada em 16/09/20) | Pedagogia/ UNIFESP (2012-2016) | 25 | Negra | Kumon (6 meses) | Iniciação Científica | Professora de Educação Infantil/ Prefeitura São Bernardo do Campo |
Raquel (entrevista realizada em 17/09/20) | Pedagogia/ UNIFESP (2014-2019) | 24 | Parda | Estágio remunerado em Educação Especial em São Paulo e Guarulhos | não | Professora de Ensino Fundamental/ Prefeitura de Guaratinguetá |
Ana (entrevista realizada em 22/10/20) | Letras/ USP (2016-2019) | 24 | Branca | não | não | Professora num Curso de Alemão |
Alexandra (entrevista realizada em 29/10/20) | Letras/ USP (2014-2019) | 25 | Parda | não | Bolsa PUB-USP | Professora num Curso Preparatório para o Vestibular |
Caracterização das colaboradoras da pesquisa
Conforme evidenciam os dados apresentados, as quatro colaboradoras são bastante jovens, estão na faixa dos 20 anos. Três delas nasceram em São Paulo e uma delas, Ana, é natural da cidade litorânea do estado (Santos) e, no que se refere à condição sócio-econômica, ela é a única que pode ser classificada como pertencente à classe média e se autodeclarou branca, além de ter concluído o Ensino Fundamental e Médio numa escola particular, ao contrário de Alexandra que estudou apenas na rede pública de ensino. Já as outras duas cursaram o Ensino Fundamental numa instituição particular, sendo que Regina transferiu-se para uma escola pública no Ensino Médio e Raquel cursou esse nível de ensino em uma Escola Técnica do Estado de São Paulo (ETEC). Com exceção de Alessandra, as demais não fizeram “cursinho” para entrar no Ensino Superior, tendo realizado a Graduação, todas no período vespertino, mais ou menos no mesmo período, entre 2012 e 2019. Por enquanto, somente a Raquel cursou uma Especialização em Educação Especial. No âmbito profissional, ambas as pedagogas trabalham em escolas municipais do estado de São Paulo, sendo Regina concursada na Prefeitura de São Bernardo do Campo na Educação Infantil (30 horas/semanais), para atuar junto a crianças de 5 anos, ao passo que Raquel foi contratada em regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pela cidade de Guaratinguetá (40 horas/semanais) para ser professora do 1° ano do Ensino Fundamental. Já no que diz respeito às docentes formadas na área de Letras, Ana é professora de alemão em um curso voltado a enfermeiros que pretendem atuar em hospitais na Alemanha, mantido por uma empresa, enquanto Alexandra atua em um cursinho privado. Ambas não possuem uma carga horária fixa. Para as duas últimas, esse é o primeiro trabalho propriamente dito, pois não trabalharam durante a Graduação, ao contrário das outras duas que tiveram algum tipo de vínculo profissional, ainda que pontualmente: Regina trabalhou por 6 meses em uma rede voltada ao desenvolvimento do autodidatismo dos alunos chamada Kumon e Raquel realizou um estágio remunerado em Educação Especial, nos municípios de São Paulo e de Guarulhos, respectivamente.
Ao privilegiarmos, na análise das narrativas produzidas pelas colaboradoras da presente pesquisa, a maneira pela qual elas têm vivenciado a entrada no magistério, explorando os vínculos existentes entre as suas primeiras experiências em sala de aula (como estagiárias) e o início de seu trabalho como docentes, devemos ressaltar a importante contribuição dos inúmeros estudos voltados para os professores iniciantes e o seu processo de socialização profissional, entre os quais se sobressaem os de Almeida, Pimenta e Fusari (2019), Papi (2014), Oliverio (2014), Papi e Martins (2010) e de Knoblauch (2008). Além disso, temos análises dessa mesma natureza que se concentram em aspectos específicos da atuação docente - como por exemplo, a Educação Especial (API, 2018) ou o ensino de alguma disciplinas, em particular: Educação Física (HENRIQUE; FERREIRA; JANUARIO; SOUZA NETO, 2018) e Biologia (MELLINI; OVIGLI, 2020) - de grande relevância para se compreender as diversas nuances da entrada na profissão. Igualmente relevantes são as pesquisas realizadas acerca das políticas de inserção de docentes em redes públicas de ensino - como por exemplo, as da cidade do Rio de Janeiro (NASCIMENTO; FLORES; SILVA, 2019) e do estado de São Paulo (BARROS; AZEVEDO, 2016) -, bem como as que tratam do alcance de programas de mentoria para a iniciação à docência, tais como o PIBID, Bolsa Alfabetização e Residência Pedagógica da Universidade Federal de São Paulo/Guarulhos (ANDRE, 2018; CARDOSO; SANTOS; VOLPATO; CONCEIÇÃO, 2017; CUNHA; BRACCINI; FELDKERCHER, 2015).
De fato, a formação inicial em suas várias dimensões, desde aquelas que se referem ao estudo dos saberes pedagógicos, disciplinares ou curriculares (TARDIF, LESSARD, LAHIRE, 1991), bem como o processo de socialização profissional dos professores vêm mobilizando a atenção dos pesquisadores na área.8 Entretanto, a análise apresentada aqui, conforme salientado, volta-se para a maneira como as colaboradoras da pesquisa desenvolvida veem a passagem da condição de estagiárias para docentes, com vistas a apreender as articulações que elas estabelecem entre as memórias de formação e a prática que tem marcado a sua entrada na profissão. Tal pretensão associa-se às iniciativas de um dos eixos do Projeto Temático Saberes e práticas em fronteiras: por uma história transnacional da educação (1810 -...) - coordenado por Diana Vidal e Carlota Boto (Faculdade da Educação da USP) e financiado pela FAPESP (2018/26699-4) -, ao qual este trabalho está vinculado e que tem, entre seus objetivos, compreender os processos de formação docente, valendo-se das potencialidades da historiografia da educação brasileira, assim como da produção memorialística dos sujeitos envolvidos no processo educativo, notadamente professores, alunos e gestores.9 Busca-se, ainda, contribuir para se tratar da diversidade que caracteriza as salas de aula, envolvendo não só questões étnico-raciais e de gênero, mas também relativas a diferentes ritmos de aprendizagem e à educação inclusiva, favorecendo, assim, práticas mais sensíveis, de modo que a tolerância e o respeito às diferenças estejam mais presentes no cotidiano escolar.
Nesse sentido, cabe retomar as considerações finais do texto de Dante Moreira Leite (1991, p. 256), “Educação e relações interpessoais”, escrito em 1979, mas ainda extremamente relevante para se pensar a escola e os sujeitos em que nela atuam: “a compreensão amplia a nossa tolerância e impede uma revolta injusta e quase sempre inútil”. Tendo em vista que acabaram de ingressar no magistério, as colaboradoras do presente estudo ainda estão construindo a sua maneira de exercer a docência, acreditamos que esse é um momento particularmente propício para indagar a respeito da forma como elas vêm a interação não só com os alunos mas também com os colegas de profissão, considerando os laços entre a formação inicial e o começo do trabalho em sala de aula. A partir de uma “escuta sensível” (VICENTINI; GALLEGO, 2018), tivemos acesso a relatos que dão visibilidade ao que essas jovens professoras entendem como mais desafiador no início da profissão, seus medos, expectativas, bem como aos saberes aprendidos na Licenciatura (em especial nos estágios aí realizados) e que podem ser mobilizados no exercício do magistério.
De estudantes a professoras: estágios e mobilização de saberes em contexto
É tudo isso que faz o professor. Tudo isso que pude ver nascer em vocês, durante seus estudos, e observar, em mim e nos meus colegas, há muitos anos: um projeto que vai muito além da necessária definição administrativa de nossas tarefas, uma perspectiva que constitui o cerne da nossa identidade profissional. Uma coisa sobre a qual raramente falamos e, no entanto, não se cessa de buscar: uma “ação pedagógica”. (MEIRIEU, 2005, p. 10 - tradução livre feita por nós)
Em que momento, de fato, assumimos que estamos preparadas para atuar profissionalmente? Quais marcos podem ser notados nas trajetórias de formação, neste caso inicial, que nos auxiliam compreender aspectos importantes na constituição dos saberes significativos para a docência, enfatizando, neste momento, as experiências de estágio? De um modo ou de outro, os relatos das jovens professoras trazem elementos muito férteis para se discutir tais questões, tão caras para aqueles que se dedicam à formação docente. Esses expressam, tal como identificado por Meirieu (2005) na epígrafe acima, que ser professor é um projeto para além das tarefas aparentemente óbvias que fazem parte desse ofício, sendo esse um processo bastante singular. Suas narrativas, ao tratarem especificamente dos estágios, são permeadas de sensações, constatações e relações estabelecidas entre os saberes advindos da universidade, como também de suas experiências como estudantes, ao se depararem com contextos escolares reais. Ainda que sejam todas professoras iniciantes e tenham passado por experiências de estágio diferenciados, segundo destacado, seus relatos evidenciam a complexidade da dinâmica de constituição de saberes de diferentes naturezas, havendo conflitos, impasses, angústias, alegrias etc. próprias de cada uma. Ainda que se almeje, muitas vezes, uma preparação quase absoluta no âmbito da formação inicial, é preciso considerar que a carreira é uma história cheia de nuances, devendo-se levar em conta cada momento da trajetória docente, no caso enfatizado aqui, a entrada na carreira.
Esse tipo de compreensão dos processos formativos aproxima-nos das contribuições de Huberman (2000), autor que, ao tratar da carreira docente, identifica fases que marcam o ciclo de vida profissional dos professores ao longo dos anos, o que não significa que todos esses momentos ocorram sempre da mesma forma para todos. Ao tratar da “entrada na carreira”, por exemplo, o referido autor destaca o entusiasmo muitas vezes característico do jovem professor, mas também reconhece que pode ocorrer o que ele chama de “choque com a realidade”. É possível que esse ânimo inicial seja posto à prova perante as dificuldades intrínsecas à profissão, desencadeando uma etapa que o autor chama de “sobrevivência”. Seus estudos conduzem a pensar também que se o contato com a realidade for mais satisfatório, como foi o caso das colaboradoras da pesquisa discutida aqui, essa etapa poderá ser marcada mais por uma espécie de "descoberta", tendo um caráter mais positivo de maiores potencialidades de realização profissional, aspecto este bastante presente nos relatos das jovens professoras, de modo especial quando rememoram suas experiências nos estágios. Pelo fato desses terem sido diferenciados trouxeram outras perspectivas em termos da organização do ensino-aprendizagem e da relação pedagógica, sendo tais referências acionadas quando trataram da entrada formal no magistério. Desse modo, nessa primeira fase do ciclo da carreira docente, a experimentação é muito comum e as marcas didáticas estão em constituição, para posteriormente haver a “estabilização” e maior segurança.
Foi nessa perspectiva que Alexandra lembrou dos dois anos em que fez seu estágio com o primeiro e o segundo anos do Ensino Fundamental I da EAFEUSP, como bolsista PUB, como já mencionado. De mera observadora das aulas, foi passando gradativamente à participação mais ativa na regência de atividades. Começou com grupos de 10 alunos e também fazia atendimentos individuais. A proposta era ensinar aqueles que precisavam de mais ajuda no processo de alfabetização. Alexandra teve o apoio permanente das professoras, inclusive quando passou a atuar no segundo ano e foi recebendo mais autonomia no trabalho junto aos alunos. O tempo dedicado à aula aumentou, "trabalhava a sala como um todo", chegando até a ficar sozinha com as crianças. Inicialmente, essa situação causava-lhe insegurança e medo, mas foi assim que, em suas palavras, “consegui me firmar como professora”. Esse sentimento inicial de medo cedeu lugar a uma sensação de legitimidade para o exercício da docência a ponto de ela ressaltar, bastante entusiasmada, a percepção dos outros de sua nova condição: “Embora estagiária, me enxergavam como professora”. Assinala não apenas o apoio dos professores, como também dos funcionários e gestores da EAFEUSP nesse processo, evidenciando a importância das relações entre os diferentes agentes que atuam no ambiente para uma entrada bem sucedida na profissão.
As demais professoras também se recordam do momento que durante o estágio sentiram-se mais aptas para exercerem a docência, evidenciando toda a complexidade do ofício. Em suas narrativas, recordam de momentos em que era possível mobilizar conhecimentos da faculdade na prática e num ambiente seguro (uma vez que estavam acompanhadas por pessoas mais experientes). Destacam um aspecto que chama a atenção: a possibilidade de, ao estarem nesse papel de estagiárias, poderem observar, comparar e avaliar as situações com certo distanciamento, o que potencializou reflexões significativas nesse processo. A propósito dessas observações, a professora Regina afirma que “o papel do aluno é captar aquilo que considera bom”, pois
Eu vou pegar um pouquinho dela (a professora da sala que acompanha na RP), um pouquinho de outra professora que faz o intervalo junto com ela e eu estou olhando. Então, é um todo, né. Não dá para a gente pegar e fechar isso, então eu vou ser assim e pronto. A gente não aprende só com o melhor, a gente pode pegar e falar: isso eu não gostei, eu não quero isso, não vai ser bacana. Eu tô vendo que não tá dando certo pras crianças e então eu não posso fazer isso. (Regina, set. 2020)
Ao tratarem de suas experiências atuais como docentes, reconhecem que as vivências dos estágios a tornaram mais sensíveis a saberes que precisam ser aprendidos, ou seja, que lhes faltam para enfrentar seus desafios atuais. Essa constatação é particularmente significativa, pois notaram, com mais ou menos ênfase em suas narrativas, a partir de situações reais nos estágios, o que os autores Tardif, Lessard e Lahaye (1991) entendem como pluralidade e transitoriedade dos saberes envolvidos na docência. As professoras percebem que, por melhor que seja a formação inicial, nenhum saber serve para toda e qualquer situação ou contexto. Nesse sentido, Regina, ao contar sobre um curso voltado ao autismo que estava realizando, se indaga do que fará se em sua sala chegar um aluno com outro tipo de deficiência e afirma que “A gente nunca está preparado para tudo” (Regina, set. 2020). Esse tipo de indagação parece até indicar uma ambiguidade nas sensações que se tem quando se enfrenta o cotidiano escolar e da sala de aula, o que permeou, em certa medida, a percepção das demais professoras. Isso porque, ainda que assumam que os saberes acionados na faculdade e nos estágios têm tido um valor inestimável, reconhecem que viver a profissão não é algo mecânico, linear e estável, bastando ter um bom repertório para se ter êxito. Essa vivência dos limites da atuação permite uma abertura para aprender coisas novas e reflete-se na própria pessoa das professoras, que vão compreendendo melhor o mote “o professor está sempre em formação”, tão reiterado durante seus processos formativos. Seria essa uma problemática vivida somente pelos iniciantes?
Ao reconhecerem a existência de limites e a necessidade permanente de se acionar novos saberes para enfrentar os desafios intrínsecos à profissão não faz com que atribuam ao estágio um papel menos importante para suas histórias como docentes. No caso de Regina, ela percebe uma mudança em si mesma ao ingressar na profissão - sente-se mais madura para a sala de aula, o que ela explica como a presença mais contínua de um “olhar de observação” para seu cotidiano, olhar esse que foi aguçado, segundo ela, durante a Residência Pedagógica. Do mesmo modo, ao rememorar o período de dois anos que foi estagiária, Alexandra afirma: “Na Escola de Aplicação me encontrei”. Em relação ao trabalho realizado pelas professoras, a mesma docente o percebe como muito distinto do que ela tinha vivenciado como aluna em toda sua trajetória escolar. Para ela, algo muito marcante era o esforço permanente de uma "construção coletiva da aula", envolvendo nesse processo os alunos, os professores e os estagiários. Uma percepção parecida é expressa pela professora Ana, que aceitou permanecer na EAFEUSP como voluntária após realizar seus estágios curriculares obrigatórios da Licenciatura em Letras. Ela foi convidada pela Coordenação e pelas professoras do Ensino Fundamental I para continuar trabalhando com os alunos dos primeiros anos, que ela já conhecia e tinha vínculos, e colaborar em projetos específicos de leitura, os chamados "Círculos de leitura". A respeito da experiência, nas palavras de Ana, a opção por fazer todos os estágios na EAFEUSP se deu
[...] exatamente por isso, porque eu senti que eles dão um apoio, né? Porque a gente entra lá no meio sem saber. A gente tem conhecimentos teóricos, mas até aí, né? A gente tem experiência de aluno, mas lá eu senti que eles dão um apoio, eles dão a mão pra gente: olha, é desse jeito, tal... Eu achei bem legal. (Ana, out. 2020)
Especificamente acerca da relação entre os conhecimentos teóricos e a relevância de entrar em contato com situações práticas, conforme apontado por Ana, se faz presente também no relato da professora Raquel. Ao falar sobre a Residência Pedagógica que realizou no Ensino Fundamental, expressa o quanto a situação de colocar os conhecimentos em prática é importante na formação, ainda que nesse caso específico, ao contrário do indicado pela Ana, ela não tenha contado com o auxílio e apoio da professora no desenvolvimento de sua regência, pois a professora que a recebeu na escola retirou-se da sala para preencher o diário no momento em que ela teria que aplicar a primeira parte de sua sequência didática. Ao rememorar aquela situação, Raquel não esconde o quanto ter que lidar sozinha com a turma de crianças e pensar em tudo foi angustiante, porém ao lembrar daquele dia produziu uma reflexão muito potente sobre o papel formativo que aquela situação lhe proporcionou:
Nada do que eu esperava aconteceu. Eu saí com as crianças da sala, para fazer um jogo de Matemática, mas tinha estabelecido uma relação de amizade com as crianças, então elas não me respeitavam como professora e foi um caos. As crianças queriam fazer tudo menos o que eu estava propondo (...) Consegui realizar a atividade, mas foi muito difícil. E era a primeira vez, a primeira RP. E eu não sabia o que era… a gente estuda tantas coisas bonitas na faculdade… o planejamento…. e aí, na Residência, você identifica para que serve o tal planejamento, era para ter arrumado as coisas na quadra antes das crianças chegarem, aí que está o planejamento. (risadas). Eu só fui entender essas coisas na prática mesmo, por mais que eu estudasse, eu não associei…, aí no segundo momento, no segundo ou terceiro dia, eu já me organizei melhor. (Raquel, set. 2020)
O relato de Raquel é muito rico por evidenciar de que modo as situações práticas são importantes na melhor compreensão de concepções teóricas aprendidas na universidade, não sendo uma relação mecânica de mera aplicabilidade. Desse modo, é notável o caráter formativo que ela percebe em sua regência do Ensino Fundamental, momento em que pôde aproximar os conhecimentos teóricos àquela situação prática, ainda que tenha percebido que não se decorre da teoria um modo específico de agir, devendo esse ser construído a partir da consideração de vários fatores. Entretanto, em sua prática atual, como professora de creche, avalia que uma das lacunas em sua formação foi a ausência de uma Residência Pedagógica numa creche e mesmo de referências teóricas mais específicas com o trabalho junto aos bebês, uma vez que, segundo observa, lidar com essa faixa etária é muito diferente, não se sentia preparada. Toda a formação em creche é a rede do município que está dando para ela. Em seu relato, a professora reviveu, com certa aflição, o início do seu trabalho com os bebês, especialmente a troca de fraldas: “Tenho às vezes medo de pensar. Eu não sei como sobrevivi.” (Raquel, 2020) e assinala:
É tão corrido o tempo na escola, que eu me embananava muito com isso. [trocar as fraldas dos bebês da creche]”… “Elas têm prática [as auxiliares], eu não tenho prática… eu tinha que ficar deixando bem claro, olha, eu não tenho prática, eu não sei trocar fralda … isso não quer dizer que eu não esteja disponível para aprender” (...) “Na pandemia tivemos um curso Educar e cuidar e eu li bastante sobre a higienização… agora eu entendo as coisas que eu fiz lá. (Raquel, set. 2020 )
Como se observa, há o reconhecimento da importância da teoria para lidar com mais propriedade com as situações práticas, pois essa oferece maior segurança, como também de ser exposta a situações do cotidiano durante o estágio. Desse modo, ainda que as professoras percebam que a teoria é uma coisa e a prática é outra, não menosprezam as referências teóricas que estudaram ao longo da graduação, sendo estas imprescindíveis para nutrir os vários saberes que compõem a identidade docente.
Outro aspecto notável no relato das professoras já referindo-se à sua atuação profissional, é o papel dos saberes da experiência, conforme compreendido por Tardif, Lessard e Lahaye (1991), os quais não se restringem às vivências propriamente práticas tampouco ao estrito exercício profissional, mas são constituídos por suas histórias de formação desde a educação básica e de interação com os pares com os quais se teve maior contato no início da profissão, nesse caso nos estágios. Portanto, em seus esforços de explicitar como se percebem como docentes, enfatizam as referências das professoras que acompanharam no estágio e de professores que marcaram a sua trajetória escolar, os quais compõem um campo de referências que tem servido para validar, apoiar e inspirar suas práticas e também rever referências de seus tempos como alunas em dado momento de sua escolarização. A professora Alexandra, por exemplo, que atua em um cursinho, sendo responsável pela correção de redações, faz menções expressivas de como a sua experiência no Projeto de leitura e escrita junto às crianças da EAFEUSP é mobilizada em sua prática. Do mesmo modo, ela tem alguns de seus professores do cursinho e também do Ensino Médio como inspirações no modo como trata seus alunos e a disponibilidade demonstrada para auxiliá-los e até mesmo aconselhá-los. Esse tipo de percepção também é explicitada pela professora Regina, que aciona suas memórias do estágio, de maneira particular o modo como a professora lidava com as crianças, servindo essa como referência para a sua atuação. Já suas memórias como aluna trazem à tona uma série de referências que ela afirma evitar sua reprodução, tanto por se distanciar de suas concepções teóricas estudadas na graduação em Pedagogia quanto de suas experiências no estágio junto à professora que a acolheu. As quatro professoras que fizeram parte da pesquisa, talvez por estarem no começo, ainda estão abertas e sensíveis a esse “lugar do aluno” - e é assim que lembram do que pode fazer bem ou mal às relações e à auto-estima das crianças e de seus alunos adultos. Esse saber experiencial que não é do modelo do professor, mas das formas de viver a relação, é bastante mobilizado nas memórias que emergem ao falar de suas opções didáticas e no trato com os alunos.
Para além da sala de aula, as professoras exploram a inserção institucional que o estágio pode ou não viabilizar, aspecto este mais presente nas experiência da Ana e da Alexandra, mas percebida também pelas professoras Raquel e Regina. Afora o convívio com os professores que os receberam, a relação estabelecida com os docentes de modo geral, gestores, funcionários, pais e alunos complementa o processo de socialização profissional, permitindo que este tome posse e se torne participante da experiência cultural da escola. Trata-se, grosso modo, da busca por caminhos em que as disposições para o exercício do magistério possam ser transmitidas aos iniciantes de modo reflexivo, permitindo que a riqueza das tradições do ensino se filtrem pelas brechas da organização burocrática dos sistemas escolares. No caso da EAFEUSP, é interessante notar a ênfase nas dimensões coletivas e de colaboração como princípios de ação assinalados no seu Plano Escolar 2020 e também evocados nos relatos de Ana e Alexandra. Ambas se enxergaram como "parte" da escola que, em contrapartida, tem nos estágios um de seus grandes objetivos, decorrentes de seus vínculos com a FEUSP e outras unidades da USP. As falas dessas docentes assinalaram o quanto elas "carregam" de seus tempos na EAFEUSP um "jeito" de ser professoras. Segundo Alexandra: “Muita coisa do estágio eu levo para essa experiência”. (Alexandra, out.2020) Repetidas vezes ela assinalou o desejo de "trabalhar com a diversidade dos alunos e tentar abarcar a sua necessidade", que coincide com outro princípio muito evocado pela escola, que é o de reconhecer e valorizar a heterogeneidade dos estudantes. Essa preocupação também é assinalada em muitos momentos do relato de Ana. De seus estágios ficam, portanto, memórias individuais e coletivas que associam o magistério à preocupação com as várias possibilidades e necessidades de aprendizagens, bem como com o trabalho em equipe, em colaboração. Ao terem vivido uma experiência muito positiva no estágio na EAFEUSP em termos institucionais, as professoras Ana e Alexandra almejam um dia poderem atuar profissionalmente utilizando-se dessas referências, pois, atualmente, não trabalham em uma instituição escolar, mas uma delas leciona em um cursinho preparatório para o vestibular e a outra ensina alemão para enfermeiros, conforme já assinalado. Mas, afinal, estar em uma instituição escolar, como é o caso da Raquel e da Regina, necessariamente é experimentar um sentimento de pertencimento ou coletividade do trabalho docente?
Docência, solidão e o olhar dos outros: relações interpessoais e as imagens de si
O professor, na sua atividade criativa de ensinar, é um solitário, que por isso mesmo não deve esperar socorro definitivo de nenhum modelo ou método de ensino, por mais avançadas e sofisticadas que sejam as teorias que supostamente a fundamentam. (AZANHA, 1987, p. 76)
Ao associar o caráter criativo da docência à solidão que caracteriza o ofício, Azanha (1987) procura exaltar a importância da autonomia dos sujeitos para elaborarem o seu repertório pedagógico, mobilizando saberes de diferentes ordens para dar conta dos desafios com os quais se depararam no dia-a-dia da sala de aula, de modo a constituir a sua própria maneira de exercer o magistério. Esse aspecto da profissão assume um significado bastante específico na fase inicial da carreira docente, podendo reforçar uma sensação de desamparo e isolamento, dependendo das características das relações que marcam a instituição onde se começa a atuar como professor. Em razão desse fato, as práticas de acolhimento dos docentes recém-chegados, bem como de iniciativas para integrá-los ao grupo de trabalho já existente mostram-se de grande relevância para que o ingresso na profissão seja marcado por sentimentos favoráveis a uma atuação que vai se tornando, gradativamente, mais segura para partilhar dúvidas e alternativas pedagógicas com pares e gestores. Nos relatos analisados aqui, esse aspecto da entrada na profissão mostra-se de grande importância para a maneira pela qual as colaboradoras da pesquisa percebem as relações estabelecidas nas escolas onde estão atuando com os colegas de trabalho e os alunos sob a sua responsabilidade.
Com exceção de Alexandra, que trabalha hoje com um amigo dos tempos da Graduação, as jovens professoras ouvidas por nós disseram que muitas vezes se sentem sós, embora estejam inseridas numa rede de atividades que compõem a escola onde trabalham e que vinculam as suas salas de aula ao sistema de ensino de que fazem parte. Isso pode ser explicado não só pelo fato de não possuírem mais o apoio dos professores que tiveram na faculdade, mas também por serem, na condição atual, inteiramente responsáveis pela dinâmica das aulas em suas classes, sem a possibilidade de compartilhar com os colegas os problemas enfrentados em seu dia-a-dia. Hargreaves (1998) - no estudo em que acompanhou professores de todos os níveis de ensino, em diversas escolas canadenses - trata dessa questão como um aspecto da cultura do ensino, própria do mundo pós-moderno, que não diz respeito apenas ao Canadá, mas também a outros lugares do mundo, incluindo a realidade brasileira. Em suas palavras:
A maior parte dos professores continua a ensinar a sós, por detrás das portas fechadas, no ambiente auto-contido e isolado das suas salas de aula. A maioria das escolas elementares continua a ter [...] uma estrutura em forma de caixa de ovos: salas de aula segregadas, dividindo os professores uns dos outros, fazendo com que observem o compreendam pouco daquilo que os seus colegas fazem. O isolamento da sala de aula oferece a muitos professores uma medida bem-vinda de privacidade, uma proteção em relação a interferências exteriores, a qual é frequentemente valorizada por eles. No entanto, este isolamento também acarreta problemas. Embora purgue a sala de aula de atribuições de culpa e de críticas, também estanca fontes potenciais de elogio e de apoio. Os professores isolados recebem pouco feedback por parte dos outros adultos no que concerne o seu mérito, valor e competência. (HARGREAVES, 1998, p. 187)
A sensação de isolamento dos docentes, para Hargreaves (1998), é carregada de ambiguidade: por um lado, sentem-se responsáveis e donos de sua prática por estarem sós em sala de aula, mas, por outro, não encontram apoio de companheiros de trabalho nem têm com quem discutir a respeito dos desafios que enfrentam, para pensar melhores soluções. No caso das professoras iniciantes, cujas narrativas são analisadas aqui, trata-se de uma situação paradoxal, pois esse sentimento de solidão contrasta com a percepção de que suas práticas se comunicam e têm efeitos sobre as ações dos demais agentes escolares, dando a sensação de pertencimento à instituição onde estão atuando. Raquel, por exemplo, evidencia tal percepção, ao ressaltar a importância de o estágio ter incluído o aprendizado das dinâmicas do parquinho e da refeição, considerando todo o funcionamento da escola, não só da sala de aula. Entretanto, tal constatação contrasta com as dificuldades relatadas para interagir com os pares. Conforme já foi dito, diferentemente de Alessandra, que teve a oportunidade de trabalhar com um amigo da faculdade, as colaboradoras da presente pesquisa ressentem-se de não conseguirem fazer amigos na escola onde atuam, o que é dificultado pela diferença existente entre a formação delas - advindas de trajetórias bem-sucedidas e altamente qualificadas - e dos colegas, cujo preparo profissional muitas vezes é precário e os impede de compreender a função social da escola, ou pelo menos não a compreendem de um ponto de vista mais amplo, que implique o modo como trabalham.
Em razão desse fato, muitas vezes elas não têm com quem conversar. O relato de Regina expressa isso, ao contar que, quando chegou na escola, uma das primeiras formações oferecidas pela coordenadora foi sobre sequência didática, pois ela achava “interessante” que as professoras tomassem conhecimento de tal conteúdo. Ela ficou extremamente surpreendida porque isso foi uma das ênfases na formação teórico-prática das disciplinas do curso. “Como assim, as professoras não fazem sequência didática?” Raquel também demonstra uma espécie de estranhamento ao relatar que a maneira pela qual ela, devido à formação recebida na UNIFESP, considerava o processo de elaboração do Projeto Político Pedagógica da escola era bastante diferente dos demais colegas de trabalho:
É pouco tempo para compreender o quanto cada parte da escola colabora para o seu desempenho dentro da sala. E isso eu só vi quando cheguei na escola. E estando na escola, os textos que eu li na faculdade voltam na minha cabeça: ah, é interessante que a escola toda se envolva… [no processo de elaboração do Projeto Político Pedagógico da escola] (...) As pessoas formadas na UNIFESP têm isso: a forma como enxergam a educação é diferente, a forma como se posicionam, seja em que escola for, é diferente, porque entendem que o PPP é importante, que a escola participar da elaboração é importante. (Raquel, set. 2020)
Se, por um lado, as diferenças oriundas do tipo de formação recebida aparecem, nos relatos, como causa de uma sensação de isolamento em relação aos pares, por outro lado, o julgamento deles - assim como de outros agentes da comunidade escolar (funcionários, gestores e pais) também é tido como um aspecto fundamental para que as professoras iniciantes, cujos relatos são analisados aqui, se sintam capazes de exercer a docência. Regina, por exemplo, recorda de seu primeiro dia como responsável por uma sala de aula, mencionando o medo que sentiu no pátio, ao organizar a fila de alunos, de ser objeto da desaprovação dos pais, dos funcionários e, sobretudo, dos outros professores, fazendo-a agir com muita consciência de cada gesto. Tal fato remete-nos para a importância das relações interpessoais para a constituição de nossa identidade, tal como aponta Leite (1991), no artigo em que trata dessa questão sob duas perspectivas: “a educação como processo de formação, através das relações interpessoais” e “a educação como processo de preparação para as relações interpessoais” (1991, p. 237). Em seu entender, o êxito do trabalho do professor muitas vezes depende da sua capacidade de lidar com os alunos, para os quais a sensação de ser aceito por ele e pelos colegas de turma é imprescindível para o bem-estar no ambiente escolar - o que, por outro lado, é fundamental para o aprendizado de interações voltadas para a compreensão do outro e a tolerância. Nesse sentido, o autor lembra que a formação de nosso “eu” ocorre “num sistema de relações interpessoais”, que se dá de forma dinâmica, isto é:
[...] na interação de um eu com o outro ou com os outros. A imagem que temos de nós mesmos não é, certamente, o retrato do que os outros veem em nós, mesmo porque os outros não veem a mesma pessoa. Entretanto, sem as sucessivas imagens que os outros nos dão de nós mesmos, não poderíamos saber quem somos. (LEITE, 1991, p. 238).
Para melhor explicitar a natureza desse processo, o autor recorre a dois exemplos da literatura, em que a maneira pela qual os protagonistas são vistos pelos outros altera completamente a imagem de si e a interação entre os personagens da trama. No primeiro caso - Lucíola, escrito por José de Alencar em 1862 -, a heroína conhece um jovem que ignorava o fato de ela ser cortesã e, pelo fato de sua percepção não estar “deformada pelo hábito ou pelo estereótipo”, ele a leva a “buscar o seu eu verdadeiro eu”, deixando claro que “a nossa identificação dependendo dos outros, pelo menos tanto quanto de nós mesmos” (LEITE, 1991, p. 239). Já no segundo caso - O falecido Matias Pascoal, escrito por Luigi Pirandello em 1904 -, o protagonista tem a oportunidade de fingir a sua morte e forjar uma nova vida, mas “enfrenta a dificuldade de construir um novo eu, produto exclusivo de sua imaginação”, criando uma história de seu passado que o permitisse explicar-se a si mesmo e aos outros (LEITE, 1991, p. 239). Em ambas as situações, temos “lutas para fugir de uma identificação desagradável e para encontrar pessoas capazes de apresentar identificações melhores” (p. 242), baseadas em boas qualidades dos sujeitos, cujas trajetórias se alteram em função das imagens construídas a seu respeito pelos outros. Essa constatação é fundamental para se compreender as relações que se dão no ambiente escolar e o papel que desempenham junto às jovens professoras na maneira pela qual elas vêm a sua entrada na profissão e a imagem que estão constituindo de si mesmas no que se refere ao exercício do magistério.
Isto porque a aceitação e o respeito dos outros são aspectos de grande importância nos relatos analisados aqui, nos quais ficam evidentes não só as concepções que orientam a prática de cada uma delas, mas também a preocupação de atender os valores que se constituíram coletivamente pela categoria como condição para se exercer a docência com qualidade e ética, fazendo jus tanto à formação profissional recebida quanto às impressões de seu processo de escolarização, nos quais as lembranças de professores marcantes podem servir como inspiração, conforme discutido anteriormente, mas também como exemplos a serem evitados. Raquel, por exemplo, é enfática ao expor a sua preocupação de não se tornar o tipo de professora que conheceu no decorrer de sua Educação Básica, pois considera a sua prática completamente inadequada pelo fato de brigar com os alunos, recriminá-los, reprimi-los e falar alto, instituindo, em sala de aula, um clima opressor e autoritário, muito distante da ideia, cultivada durante o seu curso de formação, de uma relação pedagógica, voltada para o respeito mútuo e a emancipação dos sujeitos. Em sua narrativa, aparece, com frequência, o temor de se expor e de errar, assim como Regina também se refere, várias vezes, ao medo de não ser capaz de fazer um bom trabalho, de não estar suficientemente preparada, tanto na Educação Especial como na alfabetização.
Entretanto, esse sentimento - já experimentado por Regina na primeira vez em que organizou a fila de sua turma no pátio (conforme já foi dito) -, segundo a professora, “parece que acaba quando se está na sala de aula. É como se você não tivesse mais julgamento. Não é que você é livre para errar, mas se você errar, os alunos vão construindo com você” (Regina, set. 2020). A sala de aula é representada, em sua narrativa, como um espaço destinado à experimentação e ao trabalho em conjunto com as crianças, com as quais ela procura se relacionar de modo afetuoso, mas sem ignorar de que se trata de uma relação profissional, conforme veremos no próximo item. Ao contrário de Regina, Ana apontou a relação com os alunos, com idade próxima a dela (adolescentes e adultos), como um fator que tornou a sala de aula um espaço em que predominava uma sensação de isolamento e insegurança pelo fato de ela ser muito jovem. Aos seus 24 anos, ela recorda-se dessa sensação quando acompanhou, durante o estágio, as turmas do Ensino Médio e era um pouco mais velha do que os seus alunos - o que colocava em questão a sua autoridade docente. À época do estágio, ela sentia a necessidade de se reafirmar sempre, pois os “alunos testam os estagiários”. Ana conta que: “Na hora de fazer atividade na sala, os alunos queriam que os estagiários fizessem a tarefa deles. Eles não prestavam atenção.” (Ana, out. 2020) Esse mesmo desconforto ela sente com seus hoje no curso de Alemão, onde leciona. Inclusive, ela é mais jovem do que seus alunos, todos enfermeiros que estão se preparando para trabalhar em hospitais na Alemanha.
Ao refletir sobre esses desafios, ela se lembra de seus próprios tempos de aluna e considera que, assim, consegue compreender o que está em jogo nas relações estabelecidas entre estudantes, professores e estagiários. Reconhece que estes últimos costumam ser invisíveis na sala de aula. Eles ainda não têm uma autoridade reconhecida, pela sua condição de licenciandos que ainda não são professores e que, em geral, são muito jovens. Note-se que essa insegurança não ocorreu quando ela trabalhou com as crianças dos primeiros anos do Ensino Fundamental. Nesse lugar, Ana se sentia muito animada, acolhida e respeitada pelos pequenos, que costumavam sorrir e solicitar mais as interações e ajuda do estagiário, aproximando-se da sensação experimentada por Regina com os seus alunos. Com eles, Ana se sentia professora.
Tato, atenção e paciência: a sensibilidade na ação docente
não há corte entre a pedagogia e a personalidade. A pedagogia é uma técnica da operacionalização da personalidade. Quando se pede a um professor para mudar o seu método, não se pede apenas que ele mude de técnica, pede-se para que ele próprio mude.(Dubet, 1997, p. 226)
A fertilidade da formação das jovens professoras, na Licenciatura, transparece em relatos que destacam as lições aprendidas nos estágios. Ana, por exemplo, afirma que esta é “uma experiência que eu trago comigo. Me preparou um pouquinho para o que estava por vir”. Na EAFEUSP, “o estágio deu uma base de como lidar com o aluno” porque “tive muita experiência com criança e em escola. É uma bagagem. Eu tive essa base. Essas experiências estão em mim” (Ana, out. 2020). As palavras de Ana são exemplares e remetem para dimensões essenciais da profissionalidade docente. Como sugere Tardif (2000), estão em pauta os saberes experienciais, conforme já assinalado. Embora desvalorizado em face aos conhecimentos acadêmicos, em torno dos quais organizam-se as disciplinas ensinadas nas aulas, estruturam-se os planos de curso ou definem-se os princípios e métodos didáticos, os conhecimentos provenientes da prática e mais ligados, portanto, às experiências vividas são aqueles mais destacados nas falas das jovens professoras: “Eles incorporam-se à vivência individual e coletiva sob a forma de habitus e habilidades, de saber fazer e de saber ser. Podemos chamá-los de saber da experiência ou da prática” (TARDIF; LESSARD; LAHAYE, 1991, p. 220).
No conjunto dos trabalhos que valorizam a dimensão das experiências, articulam-se os trabalhos de Donald Schön (1983) que, desde a década de 1980, vêm chamando a atenção para a reflexão como uma competência aprendida ao longo da formação e do exercício do magistério. Entendida como um contexto complexo e imprevisível, a sala de aula traz desafios constantes, cujos caminhos decorrem da problematização. Conversar com e ser acompanhado por outros professores (mais experientes, como no caso dos estágios), conhecer experiências semelhantes, buscar saberes que permitam compreender, julgar e tomar decisões diante das situações vividas são exemplos de alternativas. Como diria Ana, elas dão “bagagem”, “base” do exercício da profissão, numa perspectiva diferente da racionalidade técnica e instrumental que se pauta na busca por receitas a serem seguidas. As lições do estágio estão implícitas nas falas das estagiárias quando elas se referem aos relacionamentos estabelecidos principalmente com os professores e com os alunos. Alexandra e Ana afirmam que se sentiam “parte” da EAFEUSP, reconhecidas como um membro da equipe pedagógica, estavam inseridas na rotina da escola.
No caso das duas entrevistadas aqui, nota-se em suas falas a participação em atividades de leitura, resolução de exercícios, elaboração de materiais didáticos e outras tarefas diárias com a turma ou com alunos específicos. Essas rotinas ajudam os estudantes a entenderem o funcionamento da escola e, como sugere Noblit (1995), em seu texto “Poder e desvelo na sala de aula”, dão uma sensação de segurança, ao garantir que todos na escola (sobretudo alunos, professores e estagiários) saibam o que e como fazer as coisas. Trata-se de uma forma de poder que está implícito no cuidado com os alunos e com as atividades cotidianas. Em relacionamentos dessa natureza, o poder não transforma o outro em objeto mas, diferentemente, sustenta e promove o outro como sujeito. O poder é usado para confirmar (e não para negar) o outro (NOBLIT, 1995), assegurando o bem-estar de todos que se encontram em sala de aula, tornando fundamental para o convívio valores com o respeito, a cooperação, a autonomia e a coerência em relação às regras e aos papéis dos diferentes agentes envolvidos no processo educativo. Na medida que os estagiários participam e assumem gradativamente esse poder, encontram aí a oportunidade de viver e serem responsáveis pelo ensino. Em outras palavras, formam-se no exercício dessas práticas e encontram aí as “bases”, nas quais vão constituindo a sua maneira de compreender a docência e estruturar a sua ação no magistério.
A esse respeito, as palavras de Ana são significativas, ao assinalarem que: “eu trago um pouco dessa experiência [de estágio]” e “meus alunos notam que eu tenho uma questão diferente, em relação aos outros professores que eles já tiveram aula. Eles notam um acolhimento maior” (Ana, out. 2020). Dessa forma, podemos dizer que as experiências vivenciadas no estágio acabam por funcionar como uma inspiração para as práticas a serem desenvolvidas no momento em que as jovens professoras estão constituindo o seu estilo de exercer a docência, de maneira condizente com a sua personalidade, conforme observa Dubet (1997, p. 226), no excerto que utilizamos como epígrafe deste item. Tal fato fica evidente quando as colaboradoras da presente pesquisa descrevem o modo como elas foram desenvolvendo diferentes formas de dirigir aos seus alunos, deixando entrever uma grande atenção às possibilidades de expressão de seu corpo, incluindo gestual, tom de voz e mesmo articulação da fala. Regina, por exemplo, enfatiza muito o cuidado que tem com a palavra, com o tom de voz. “Às vezes a gente fala sem pensar, e faz um estrago muito grande” (Regina, set. 2020). Raquel afirma o mesmo: “Dentro da sala de aula é a gente que dá o tom da coisa mesmo. Como você fala as coisas é importante, porque eles entendem de maneira diferente.” (set., 2020). Regina está atenta todo o tempo, o que aprendeu na Residência Pedagógica: quando as crianças lhe fazem perguntas, trata-se não só de ter a resposta correta, mas de escolher qual a maneira mais educativa fazê-lo. A grande referência a esse respeito é a professora que acompanhou na Educação Infantil. Ela conta que havia uma criança que sempre tinha o nariz escorrendo - a professora, ao invés de simplesmente limpá-la, foi ensinando aos poucos, de forma gradativa, a criança a limpar seu próprio nariz. Regina ficou tocada com essa atitude e tomou para si o exemplo de paciência e cuidado. Ela enfatizou a necessidade do professor ter tato para com os alunos, de prestar atenção àquilo que a criança lhe apresenta concretamente, no momento presente, ao invés de supor coisas ou de assumir aquilo que os pais e os professores dizem a respeito de determinadas crianças. A experiência de lecionar para adultos também demanda tato e paciência, num nível diferente. Ana, lecionando para enfermeiros, reconhece que ter trabalhado com crianças, durante o estágio na EAFEUSP, lhe deu preparo para perceber quando precisam de motivação, quando convém ser paciente… enfim, aprendeu a gestão emocional da classe. “É uma experiência que eu trago comigo. Me preparou um pouquinho para o que estava por vir, um pouco de inteligência emocional.” (Ana, out. 2020)
Tais aspectos ligados à dimensão afetiva da relação pedagógica também aparecem como mobilizadores da aprendizagem nos estágios curriculares, favorecendo de algum modo a integração dos conhecimentos adquiridos à prática: o acolhimento dos professores e da escola parece ser um diferencial nas experiências das colaboradoras da pesquisa. O relato de Regina é muito significativo nesse sentido, ao falar de sua residência na educação infantil. Ela tornou-se amiga da professora que, por coincidência, estava assumindo a sala no mesmo dia em que Regina começou o estágio. Era uma professora com certa experiência e Regina observou a segurança demonstrada na organização da sala e no modo como tratava as crianças, que lhe pareceu especial. “Quando eu falei para ela que precisava fazer um planejamento, uma atividade, ela foi muito solícita, me deu muitas ideias, muito apoio”. Durante a observação, essa mesma professora lhe disse algumas coisas que se chocavam com o que ela havia aprendido na faculdade, mas isso não a impediu de considerar a prática da docente como um todo e tê-la como uma referência positiva no que diz respeito à atuação profissional. Ao nosso ver, o acolhimento e a relação afetuosa permitiram uma avaliação ponderada da atuação da professora junto à qual Regina realizou o estágio, levando em conta não só os conhecimentos veiculados na universidade, mas também as especificidades da situação de aula, sujeita a inúmeros condicionantes que requerem um olhar compreensivo em relação aos agentes que nela atuam, favorecendo, inclusive, a abertura para o aperfeiçoamento.
Considerações finais
Os sentimentos vividos por quem começa a ser professor são dimensões fundamentais na elaboração de um repertório inicial da profissão, para além dos saberes teórico-práticos apropriados no Curso de Licenciatura. A passagem da condição de alunas para professoras conduz à construção de uma autonomia no magistério e o estágio pode oferecer um repertório importante nesse processo, tal como evidenciam os relatos das quatro jovens professoras que colaboraram com a análise aqui apresentada. Elas contaram suas experiências em cursos reconhecidos pela sua qualidade e pela oportunidade de tomarem contato com a prática de sala de aula em situações de estágios mais longos e reflexivos nas escolas que as receberam. A formação inicial ainda é uma experiência muito presente, já que essas professoras terminaram sua Graduação e ingressaram no magistério há menos de um ano, dá existência a aprendizagens, medos e expectativas muito fortes nesse momento. Os relatos dessas professoras não dizem apenas àquilo que elas vivenciam individualmente, mas também têm uma dimensão coletiva, envolvendo a escola como um todo, mas também aos valores e características com base nas quais se constrói o sentimento de pertencer a um grupo profissional (HALBWACHS, 2006). Suas experiências iniciais no magistério não são exclusivas, concordam em muitos pontos com as memórias de outras jovens professoras em estudos semelhantes. Ainda que estejam num período inicial de sua formação e trabalho, os relatos das quatro professoras não deixam de ser lembranças, mas assumem uma dimensão muito específica.
O que de algum modo nos surpreendeu durante a análise é como as questões do sentimento estão vivas e como estão ligadas à construção de um repertório de práticas que as identifique. Regina, Raquel, Ana e Alexandra contaram o que vem sentindo desde suas primeiras entradas na sala de aula, exercendo a docência. Elas destacam expectativas, medos e entusiasmos muito presentes nesse momento inicial na carreira. Ao construírem as suas narrativas acerca da entrada na profissão, as jovens professoras recuperaram suas experiências no que concerne à prática docente no estágio e nas atividades formativas que marcaram as aulas durante os Cursos de Pedagogia e Licenciatura, evidenciando a centralidade dos sentimentos vividos e as relações estabelecidas durante a formação. Esses elementos permitem a avaliação, a recuperação e a mobilização dos seus saberes profissionais, ao colocarem o próprio sujeito em questão. O que está em jogo, para as docentes iniciantes colaboradoras deste trabalho, é a definição de uma auto-imagem profissional e isso mobiliza fortemente a reflexão sobre si mesmas.
Aparentemente, os afetos são centrais para que um pensamento reflexivo possa ocorrer em situações práticas. A apropriação de conhecimentos teóricos e o amálgama com os saberes da experiência são mediados por sentimentos e, para nossas colaboradoras, constituem um exercício de sensibilidade. A sensibilidade para com os alunos que mobiliza e combina os conhecimentos teóricos, as imagens e modelos da memória, bem como os saberes herdados na prática profissional, parece ser aprendida por meio da vivência dessa própria solicitude durante a formação. É evidente que esta afirmação tem limites - o quanto a sensibilidade para com o outro é uma característica de personalidade e o quanto pode ser fruto da reflexão sobre educação? Este tipo de questão insolúvel não deveria nos impedir de pensar estratégias para favorecer o desenvolvimento dessa sensibilidade na formação. Nossa interpretação não pode ser confundida com uma representação historicamente construída, segundo a qual a docência vincula-se a uma vocação, a um amor “inato”, quase sacerdotal (SILVA; CATANI, 2019), pois as relações interpessoais, o afeto e os sentimentos envolvidos no exercício da profissão estão ligados às histórias dos professores em suas dimensões individuais e coletivas.
Trata-se de uma discussão longa, que diz respeito diretamente à identidade profissional. Segundo Nóvoa (2007), a identidade não consiste num dado adquirido, não é uma propriedade tampouco um produto, ao contrário, “é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão” (p. 16). Desse modo, é mais profícuo pensarmos em processo identitário, destacando a mescla dinâmica que caracteriza o modo como cada um se sente e se diz professor. Tal construção consiste num processo complexo pelo qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional, por isso necessita de tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças (GALLEGO, 2013). Ao assinalarmos a formação para a sensibilidade na sala de aula, gostaríamos de marcar a importância dessa dimensão. Ser professor vai para além das tarefas mais rotineiras e evidentes e os relatos das jovens professoras dão visibilidade a histórias cheias de nuances e sentimentos, que caminham ora por expectativas, ora por medos, desconfortos ou alegrias. Se, como tão bem lembrou Carrascoza (2017, p. 26), na epígrafe com a qual abrimos este texto, “aquilo que a gente sente não pode ser dado”, por outro lado, conhecer essas marcas no início da profissão pode inspirar alternativas mais férteis para a formação e o trabalho dos professores.