Introdução
O propósito deste artigo é analisar a nova tentativa de padronização dos currículos dos cursos de formação de professores da educação básica no Brasil, a partir do contexto político conservador que se instalou no país após o golpe político, parlamentar, jurídico, midiático e sexista consumado no dia 31 de agosto de 20161 e a consolidação desse golpe por meio do resultado das “eleições” presidenciais de 2018 que levou a extrema direita de volta ao poder, agora pelo voto direto2.
As tentativas de uniformização dos currículos dos cursos voltados à preparação de novos docentes para a educação básica (as licenciaturas) foram mais fortes e mais evidentes antes da redemocratização do Brasil, em meados dos anos 1980. A partir de 1996, ano em que se aprovou Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96 ou, simplesmente, LDBEN), o maior desafio dos governos eleitos foi assumir mais explicitamente o modelo de formação docente que se pretendia adotar no país. Iniciaram-se, assim, fortes disputas políticas em torno do arquétipo de formação de professores que deveríamos seguir. Alinhados à chamada “ideologia de mercado”, os governos que se sucederam a partir do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, incluindo este3, abraçaram o discurso de assegurar a “coerência” entre as diretrizes curriculares nacionais para a formação docente e a Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC-Educação Básica) e isto certamente representou o retorno à tentativa de homogeneizar as propostas curriculares dos cursos de formação de professores no país. Precisamos compreender esse enorme retrocesso nas atuais políticas docentes4 no Brasil a partir de uma perspectiva histórica.
Os “currículos mínimos” e a padronização da formação docente
Como sabemos, os cursos de formação de professores (as licenciaturas) foram criados, no Brasil, nas antigas faculdades de filosofia, nos anos 1930, principalmente, como resultado da preocupação com a regulamentação do preparo de docentes para o ensino secundário5. Além de um modelo de formação de professores que se mostrou, desde o início, inadequado, em razão das licenciaturas serem tratadas como meros apêndices dos bacharelados6, os cursos de formação de professores das faculdades de filosofia eram bastante elitizados, o número de formados era muito pequeno e, por via de consequência, tais cursos não respondiam quantitativamente à demanda de preparação de novos docentes para o país.
Para atender a demanda de certificação de um número cada vez maior de novos professores, criaram-se, na década de 1960, os primeiros cursos superiores de “curta duração” com o objetivo de formar professores para o “ginásio” e o ensino secundário (CANDAU, 1987). Ao se assumir a ideia de formação do “professor polivalente”, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) apresentou, na década de 1970, um conjunto de indicações e pareceres - a chamada “Proposta Valnir Chagas” - visando a criação das licenciaturas de 1º grau de curta duração, conhecidas como “licenciaturas curtas”. Para Candau (1987, p. 25), havia uma diferença básica entre essas duas propostas: “Enquanto que nos anos 60 ela tinha um caráter emergencial e, portanto, transitório, nos anos 70, ela surge como um processo regular de formação de professores e ganha inclusive uma justificativa pedagógica: a de formar o professor polivalente”.
A Resolução nº 30, de julho de 19747, propunha, por exemplo, um currículo dividido em duas etapas, sob forma de Licenciatura em Ciências, polivalente, de 1º grau, em 1.800 horas, que poderia ser acrescida de uma habilitação específica de Física, Química, Matemática, ou Biologia, com um mínimo de 1.000 horas, e que formaria o professor de 2º grau.
A aprovação da Resolução 30/74 desencadeou um movimento de reação ao novo sistema de formação de professores no país. Os documentos finais dos encontros do chamado “Movimento Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação de Educadores”, por exemplo, reafirmavam a necessidade de extinção das licenciaturas curtas e parceladas, a médio ou longo prazo, e a não autorização do funcionamento de novos cursos dessa natureza. Como se sabe, a extinção definitiva das “licenciaturas curtas” no Brasil aconteceu apenas com a aprovação da LDBEN, em 1996.
Fica clara, então, a intenção dos governos ditatoriais do regime militar no Brasil (1964-1985) em “solucionar” o problema da demanda crescente de novos professores para a educação básica do país - e a “solução” encontrada, como vimos, foi aligeirar a formação docente por meio da diminuição das cargas horárias dos cursos, ou seja, da criação das “licenciaturas curtas e polivalentes”.
Além disso, os governos militares ditatoriais exerceram forte controle sobre os cursos superiores em geral e de formação de professores em particular, pois estes deveriam se organizar por meio dos chamados currículos mínimos que definiam até mesmo os nomes e as cargas horárias das disciplinas obrigatórias desses cursos. É importante ressaltar que o currículo mínimo foi o mecanismo utilizado durante a ditadura militar para padronizar não apenas os currículos dos cursos de formação de professores (as licenciaturas), mas de todos os demais cursos de graduação do país8.
Com a redemocratização do Brasil, em meados de 1980, e a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996, os currículos mínimos e sua excessiva rigidez foram considerados extemporâneos, algo que atrapalharia as instituições na busca de inovações e de diversificações em suas propostas curriculares. Dessa maneira, o espírito da LDBEN de 1996 estaria voltado para uma maior flexibilidade na organização dos cursos na educação em geral e no ensino superior em particular (BRASIL, 1997). A Lei 9.394/96 estabeleceu, então, que os cursos de graduação no país - e não apenas as licenciaturas - deveriam se organizar a partir de diretrizes curriculares nacionais9.
Diretrizes curriculares e a flexibilização da formação docente
A regulamentação da ideia de diretrizes curriculares nacionais aconteceu com a aprovação da LDBEN que estabeleceu como um dos deveres das universidades “fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as diretrizes gerais pertinentes” (artigo 53; inciso II). Além disso, em meio a polêmicas no campo, a LDBEN, em seu artigo 48, acabou com a vinculação entre certificados de conclusão de curso e exercício profissional, definindo que os diplomas se constituem apenas em prova da formação recebida por seus titulares. Por via de consequência, a figura do “currículo mínimo”, como mencionado anteriormente, instrumento legal que determinou a organização dos cursos superiores no Brasil a partir da Lei 5.540/68 e conduziu os concluintes desses cursos a diplomas profissionais, foi revogada com a LDBEN de 1996.
Em 3 de dezembro de 1997, a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação - SESu/MEC publicou o Edital SESu nº 4, convidando as diferentes organizações, entidades e instituições a enviar propostas de diretrizes curriculares para os cursos de graduação superior. Para análise e sistematização dessas propostas, a SESu/MEC compôs uma comissão de especialistas por curso de graduação, com base em indicação de nomes pelas instituições. Todavia, não se criou uma comissão que se responsabilizasse por diretrizes curriculares comuns a todas as licenciaturas. Por via de conseqüência, as versões finais dos documentos dos cursos que, além do bacharelado têm a licenciatura, contemplaram distintas concepções sobre a formação de professores.
Esses documentos usaram diferentes termos para se referirem às licenciaturas - entre outros, “curso”, “modalidade”, “módulo” e “habilitação” - o que denotava, na verdade, divergências epistemológicas em relação à formação dos profissionais da educação. No caso da Matemática, por exemplo, foram construídas duas diretrizes curriculares: uma para a licenciatura, outra para o bacharelado. Já na Química, apesar de os especialistas escreverem um único documento, a licenciatura foi explicitamente considerada um curso com características próprias. Por outro lado, a maior parte dos documentos considerou a licenciatura uma “modalidade”, um “módulo” ou uma “habilitação”. Nesse caso, a ênfase recaiu novamente sobre a formação do bacharel. Curiosamente, em alguns desses documentos, previa-se a preparação dos professores em determinada área do conhecimento, porém sem formação pedagógica alguma!
Quando o processo de construção das diretrizes curriculares já estava bastante avançado na maioria das comissões de especialistas, a SESu/MEC resolveu nomear um “grupo tarefa”, composto por cinco professores ligados à área de educação, com a finalidade de elaborar um documento norteador para as diretrizes curriculares das licenciaturas. Nessa oportunidade, as instituições não foram solicitadas a indicar nomes para esse grupo nem, tão pouco, a enviar propostas para serem analisadas e sistematizadas. De acordo com a estratégia montada por essa Secretaria, tal documento deveria ser encaminhado a um outro grupo de professores, de áreas específicas, que se encarregaria de coordenar a construção das diretrizes das licenciaturas em cada uma dessas áreas, responsabilizando-se por articular o texto produzido pelo “grupo tarefa” e as diretrizes das comissões de especialistas. Porém, este último passo nunca chegou a ser dado.
Apesar de muito tardio e de seguir um trajeto diferente daquele realizado pelas comissões de especialistas, o processo de construção das diretrizes dos cursos de formação de professores foi concluído com a aprovação da Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.
A Resolução CNE/CP 01/02 definiu no artigo 7º inciso I que “A organização institucional da formação dos professores, a serviço do desenvolvimento de competências (sic), levará em conta que a formação deverá ser realizada em processo autônomo, em curso de licenciatura plena, numa estrutura com identidade própria” (BRASIL, 2002). Tal definição pode ser compreendida como uma resposta dos legisladores para o fato de, historicamente, no Brasil, os cursos de licenciatura funcionarem como apêndices dos cursos de bacharelado. Porém, é importante destacar, desde já, que um ponto de grande tensão nos debates sobre a legislação educacional brasileira da época foi a respeito da utilização do “modelo de competências” ou “pedagogia das competências” na formação de professores. Vários autores (por exemplo, DIAS e LOPES, 2003; FREITAS, 2002; MAUÉS, 2003) teceram severas críticas à ideia da centralidade do currículo por competências na preparação dos profissionais da educação. Como veremos mais adiante neste artigo, em razão da restauração conservadora no Brasil, a partir do golpe de estado de 2016, a ideia do currículo por competências voltará com toda a força nas políticas atuais voltadas para a formação de professores no país.
O Parecer CNE/CP 009/2001 preconizou aquela redação do artigo 7º inciso I da Resolução CNE/CP 01/02 quando afirmou que “a Licenciatura ganhou, como determina a nova legislação, terminalidade e integralidade própria em relação ao Bacharelado, constituindo-se em um projeto específico. Isso exige a definição de currículos próprios da Licenciatura que não se confundam com o Bacharelado ou com a antiga formação de professores que ficou caracterizada como modelo ‘3+1’” (BRASIL, 2001).
Para tal, o Conselho Pleno do CNE posicionou-se claramente a favor da separação entre os cursos de licenciatura e de bacharelado desde a entrada dos alunos na universidade. Mesmo que os dois cursos tivessem momentos em comum - por exemplo, várias disciplinas básicas ou de “conteúdo específico”10 poderiam ser ministradas indiscriminadamente para licenciandos e bacharelandos -, não poderia haver ali (no caso, na licenciatura) dúvidas sobre qual profissional se pretendia formar. A instituição e os educadores (formadores de professores) deveriam ter clareza suficiente sobre o perfil de egresso que se deseja em um curso de licenciatura.
Com a aprovação da Lei 9.394/96 e, posteriormente, a entrada em vigor da Resolução CNE/CP 1, de 18 de fevereiro de 2002, e da Resolução CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002, observa-se também um aumento significativo da carga horária teórico-prática nos cursos de formação de professores. Passou-se a discutir intensamente o que pretendia dizer o dispositivo legal do artigo 65 da LDBEN - a obrigatoriedade das 300 (trezentas) horas de “prática de ensino”. De um lado, alguns autores (por exemplo, DIAS-DA-SILVA, 2005; MAUÉS, 2003) criticaram o aumento da carga horária “prática” e a imposição das 1.000 horas de “atividades práticas” - prática como componente curricular (400 horas), estágio supervisionado (400 horas) e atividades científico-culturais (200 horas) - nos currículos dos cursos de formação de professores. De outro lado, autores, como, por exemplo, Anna Maria Pessoa de Carvalho, viram na obrigatoriedade das 300 horas de “prática de ensino” uma oportunidade para se promover a integração teoria-prática e a interdisciplinaridade entre diferentes conteúdos nos cursos de licenciatura. Essa autora, ao comparar as licenciaturas com o curso de Medicina, constatou inúmeras deficiências na formação de professores. Para ela, uma diferença notória entre os dois cursos é a interação entre teoria e prática. Sem negligenciar o papel da teoria na formação dos professores, ela defendeu que as atividades práticas dos licenciandos ganhassem maior relevância nas matrizes curriculares e uma aproximação universidade/escola para se garantir tal formação (CARVALHO, 2001).
Pode-se afirmar que, infelizmente, as universidades brasileiras, de um modo geral, não aproveitaram o contexto bastante favorável, do ponto de vista da legislação educacional da época, para a adoção de medidas que significassem uma mudança verdadeiramente paradigmática nos cursos de formação de professores no país. Algumas publicações desse período sobre as reformulações nos cursos de licenciatura em universidades brasileiras parecem confirmar essa tese. Elizabeth Krahe, por exemplo, afirma que a tendência da reforma das licenciaturas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foi apenas acomodar os cursos às propostas curriculares legais, sem necessariamente reformular a fundo o sistema de formação de professores nessa Universidade (KRAHE, 2004). Para Diniz-Pereira e Viana, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os colegiados de cursos tiveram grande autonomia para decidir suas reformulações curriculares e isto fez com que essa reforma acontecesse sem um “norte” ou um direcionamento maior por parte da administração central da UFMG (DINIZ-PEREIRA e VIANA, 2008). Na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Eduardo Terrazan chegou a uma conclusão semelhante quanto às licenciaturas em Física, Química e Ciências Biológicas da UFSM. Para ele, não houve um padrão quanto às formas de organização dos componentes curriculares, ainda que esses cursos pertencessem à mesma Universidade (TERRAZAN et al., 2008).
No entanto, algumas universidades brasileiras como, por exemplo, a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), aproveitaram a legislação educacional da época para tomar decisões que realmente beneficiassem as licenciaturas. Na UFOP, decidiu-se pela separação institucional entre os cursos de licenciatura e os respectivos cursos de bacharelado, cada qual com um colegiado de curso próprio, e, além disso, os presidentes de cada um desses colegiados constituíram a chamada “Subcâmara das Licenciaturas” diretamente vinculada à Pró-reitoria de Graduação (PROGRAD) (ver UFOP, 2002).
Pouco tempo após as universidades concluírem as reformas curriculares dos cursos de licenciatura baseadas nas diretrizes curriculares de 2002 - por exemplo, na UFMG, alguns cursos concluíram suas reformas apenas no ano de 2009! - aprovaram-se novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de formação de professores no país, em 2015. A Resolução CNE/CP n. 2, de 1º de julho de 2015, definiu, então, as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada”.
Não é propósito deste artigo analisar a Resolução CNE/CP n. 2, de 1º de julho de 201511. Em linhas gerais, no que diz respeito aos cursos de licenciatura plena, essa Resolução conserva o essencial das diretrizes curriculares anteriores - com exceção, é claro, a ênfase dada, no documento de 2002, à ideia de “competências”. Além disso, ela aumenta a carga horária desses cursos de 2.800 horas para 3.200 horas12. Ademais, em meio a polêmicas no campo, ela regulamenta algumas vias alternativas de formação de professores no país como, por exemplo, os cursos de formação pedagógica para graduados não licenciados e os chamados “cursos de segunda licenciatura”. A Resolução de 2015 apresenta ainda, em um único documento, as diretrizes para a formação inicial e para a formação continuada de professores com a intenção de articular esses dois momentos do desenvolvimento profissional dos docentes da educação básica. Outro avanço dessa Resolução foi a existência de um capítulo específico sobre a “valorização dos profissionais do magistério” entendida como “uma dimensão constitutiva e constituinte de sua formação inicial e continuada” (BRASIL, 2015).
A Resolução 02/2015 deu um prazo de dois anos, a contar da data de sua publicação, para as instituições formadoras implantarem as novas diretrizes curriculares para a formação de professores, ou seja, essas instituições teriam até o dia 1º de julho de 2017 para concluírem as reformas de seus cursos de licenciatura. Porém, no dia 9 de maio de 2017, o Ministério da Educação (MEC) solicitou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a alteração do prazo13. Instituições como, por exemplo, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e a Associação Brasileira das Universidades Comunitárias de Educação Superior (Abruc) também pediram a extensão do período. O Conselho Pleno do CNE decidiu, então, pela ampliação do prazo de dois para três anos para as instituições formadoras se adaptarem à norma vigente.
No dia 4 de junho de 2018, dentro do novo contexto político conservador após o golpe de 2016, o MEC solicitou, mais uma vez, a prorrogação do prazo para implementação das novas diretrizes curriculares para a formação de professores e, desta vez, alegou que as discussões sobre a Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio ainda estariam em andamento naquele Colegiado. Para tal, o ofício enviado pelo MEC ao CNE citou o §8º do Art. 7º da Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que, na visão do Ministério, vincula os currículos dos cursos de formação de professores à Base Nacional Comum Curricular (BNCC)14. Porém, entidades da área educacional como, por exemplo, a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), a Associação Brasileira de Currículo (ABdC) e a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio) manifestaram-se contrárias à nova dilatação do prazo.
Por fim, o CNE decidiu ratificar o prazo de 1º de julho de 2018 para implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica. Na análise do mérito, o CNE explicita a sua posição: “não é plausível a hipótese de que a Resolução CNE/CP n. 2/2015 dependa da elaboração e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)” (BRASIL, 2018). Todavia, esse Parecer nunca chegou a ser homologado!
Tem-se, por meio desse ofício que foi enviado ao CNE solicitando novamente a ampliação do prazo para implantação das diretrizes curriculares da formação de professores, a explicitação da intenção da nova composição do MEC em atrelar a reforma dos cursos de formação de professores à implantação da BNCC. Tal propósito ficará ainda mais claro com a publicação pelo MEC, em dezembro de 2018, do documento “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica” que será brevemente analisado no item a seguir.
A situação atual: uma nova tentativa de padronização dos currículos de formação de professores no Brasil
Com as tristes mudanças na política brasileira testemunhadas a partir de 2016, houve rumores em relação à definição de uma base nacional comum curricular também para os cursos de preparação para o magistério. A Professora Helena de Freitas alertou, por meio do seu blog, que o Ministério da Educação (MEC) havia iniciado um “processo de reforma curricular dos cursos de formação de professores, com vistas a adequá-los à BNCC”. Segundo ela, esta seria uma maneira de “recuperar a proposta de currículo mínimo, ultrapassada na década de 90”15.
No dia 13 de dezembro de 2018, no apagar das luzes de um governo ilegítimo que, como mencionamos anteriormente, assumiu o poder federal por meio de um golpe político, parlamentar, jurídico, midiático e sexista, o MEC reuniu jornalistas para anunciar, por intermédio de uma apresentação oral com uso do PowerPoint ®, a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica.
Durante essa apresentação, o público presente foi informado que essa Base se sustentaria em três pilares: o conhecimento, a prática e o engajamento. Tem-se a seguir uma transcrição de um texto do Portal do MEC para a divulgação da proposta de Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica:
No eixo conhecimento, o professor deverá dominar os conteúdos e saber como ensiná-los, demonstrar conhecimentos sobre os alunos e seus processos de aprendizagem, reconhecer os diferentes contextos e conhecer a governança e estrutura dos sistemas educacionais.
Já no eixo da prática, o professor deve planejar as ações de ensino que resultem na aprendizagem efetiva, saber criar e gerir ambientes de aprendizagem, ter plenas condições de avaliar a aprendizagem e o ensino, e conduzir as práticas pedagógicas dos objetos do conhecimento, competências e habilidades previstas no currículo.
No terceiro e último eixo está o engajamento. É necessário que o professor se comprometa com o seu próprio desenvolvimento profissional, com a aprendizagem dos estudantes e com o princípio de que todos são capazes de aprender. Também deve participar da construção do projeto pedagógico da escola e da construção de valores democráticos. Além de ser engajado com colegas, famílias e toda a comunidade escolar (grifos meus)16.
Além da natureza prescritiva do texto, evidenciada por meio da recorrência do uso do verbo “dever”, chama a atenção que, segundo a “proposta”, o professor terá também que se comprometer “com o seu próprio desenvolvimento profissional”! Ou seja, o desenvolvimento profissional é concebido como de responsabilidade exclusiva do professor. Isso leva a crer que o professor deverá arcar, por exemplo, com os custos das ações de formação continuada que ele deve participar ao longo de sua carreira. Dessa maneira, o envolvimento em ações de formação continuada não é concebido como um direito do trabalhador da educação, como já defendido em outras publicações (ver, por exemplo, DINIZ-PEREIRA, 2010; 2019).
Ainda durante a apresentação oral dessa “proposta”, assumiu-se explicitamente que o aprendizado dos professores seria orientado por competências. De acordo com aquilo que foi divulgado, os futuros professores deverão ser formados com base em competências gerais e competências específicas a serem desenvolvidas em cada um dos três pilares revelados anteriormente. Percebe-se claramente a volta do discurso das competências, fortemente presente na Resolução n. 1 de 2002, e que foi duramente criticado, na época, pela literatura especializada em educação e em formação de professores, e que, em razão da resistência da comunidade de educadoras/es brasileiras/os e da mudança do contexto político do país a partir de 2003, felizmente, não chegou a ser efetivamente colocado em prática.
No dia seguinte àquela apresentação aos jornalistas, ou seja, em 14 de dezembro de 2018, o MEC encaminhou ao CNE uma “versão preliminar” de um documento intitulado “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica”. Ele divide-se em três partes: “I - Estado da arte da formação de professores”; “II - Visão sistêmica da formação”; “III - Matriz de competências profissionais” (BRASIL, 2018).
Percebe-se nitidamente a adoção acrítica de uma linguagem economicista e em consonância com as lógicas de mercado desde o primeiro parágrafo do documento:
Com transformações tão aceleradas do mundo contemporâneo, a educação precisa acompanhar o ritmo e formar os novos cidadãos para um mundo incerto e sempre novo. O desenvolvimento social e econômico está pautado no novo capital: o conhecimento. É ele que gera e agrega valor (sic) ao produto (sic) e ao serviço, quando articulado a habilidades e valores (p. 4; grifos meus).
De acordo com esse documento, o objetivo da “proposta” é “propiciar o início de estudos e de debates para a instituição da base nacional da formação de professores da Educação Básica, que oriente as diferentes formas de habilitação para a docência nas etapas e modalidades da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio” (p. 8; grifos meus). Mais adiante, o texto explicita que: “o referencial básico da proposta, ora apresentada, objetiva o efetivo desenvolvimento de competências docentes que integram o conhecimento, a prática e o engajamento de profissionais, sustentando a formação de professores competentes no exercício profissional de seu magistério...” (p. 9; grifos meus).
No item II do documento, “Visão sistêmica da formação”, defende-se que: “a formação inicial de professores precisa de novos marcos para o desenvolvimento de habilidades e competências profissionais cujos focos seja: o domínio dos conhecimentos previstos na BNCC” (p. 31; grifos meus). Além da retórica das habilidades e competências, recorrentemente utilizada ao longo do texto, assume-se uma ideia, a meu ver, completamente simplista e absurda, de transformar as licenciaturas em meros cursos preparatórios para implantação da BNCC.
Defende-se ainda, nessa parte do documento, que a residência pedagógica17, “inspirada no modelo clínico de formação de médicos e de alguns outros profissionais da área da saúde”, substitua o estágio considerado “totalmente desvinculado dos conteúdos curriculares e da prática profissional” (p. 33). Observa-se aqui uma generalização irresponsável em relação ao desenvolvimento dos estágios obrigatórios curriculares nos cursos de licenciatura no Brasil. Ainda nos dizeres do documento: “Propõe-se que, ao menos um dia na semana durante todo o seu percurso formativo, o licenciando tenha atividade na escola associada ou conveniada” (p. 33-34). A pergunta que se faz é a seguinte: para quê? Alunos que acabaram de deixar a escola - estou me referindo àqueles que acabaram de concluir o ensino médio - deverão voltar a instituição escolar para realização de atividades (quais?) na escola desde o primeiro semestre? De novo: para quê? Eu defendo que o contato direto com a realidade das escolas - seja por meio da prática como componente curricular, seja por meio do estágio supervisionado (que prefiro chamar os dois de “estágios”) - aconteça, nos cursos de licenciatura, apenas a partir do terceiro semestre. A antiga discussão sobre a condição suis generis da profissão de magistério em que, ao formarmos professores, acumulamos, ao longo da nossa trajetória escolar e acadêmica, milhares de horas de contato direto com esses profissionais (ver, por exemplo, LORTIE, 1975) me faz defender que é fundamental garantir um distanciamento estratégico da escola no primeiro ano de realização dos cursos de licenciatura para que os licenciandos aprendam a desnaturalizar uma série de coisas que existem e acontecem na instituição escolar - trata-se da desconstrução de um olhar ingênuo e enviesado para a construção de um olhar profissional crítico sobre a escola. Por fim, essa ideia de substituir o estágio - algo previsto na legislação brasileira - por uma proposta pouco fundamentada de “residência pedagógica” parece apenas uma estratégia de marketing a fim de imprimir nos cursos de formação de professores a marca de um governo que, não podemos nos esquecer, era completamente ilegítimo por ter chegado ao poder por meio de um golpe de estado.
Para garantir que os cursos de licenciatura realmente trabalhem as habilidades e competências profissionais desejadas, defende-se ainda que o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) adeque-se “à nova matriz de competências” sugerida no documento e que ele ainda possa servir como “habilitação à docência”, bem como “parte do ingresso em concursos públicos” (p. 35). Atrelar componentes do currículo a avaliações sistêmicas como estratégia para que eles sejam realmente contemplados pelas instituições de ensino é uma ideia que existe desde a aprovação do Substitutivo Darcy Ribeiro, em dezembro de 1996, e que, desde então, vem sendo utilizada por governos de diferentes filiações ideológicas.
No item III da “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica”, apresenta-se, então, a chamada “Matriz de competências profissionais”. Segundo o discurso presente nesse documento, o “currículo comprometido com o desenvolvimento de competências constitui hoje um paradigma dominante na educação do Brasil e em muitos outros países” (p. 41). O documento explicita doze competências gerais - quatro para cada pilar de sustentação da proposta: “conhecimento, prática e engajamento” - a serem desenvolvidas. Também é explicitada, nesse documento, a intenção de atrelar essas chamadas “competências profissionais” às competências previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
[...] a BNCC traz dez competências gerais para que a nova geração possa viver num mundo mais equânime, mais justo e solidário. Esse paradigma não pode ser diferente na formação do professor, que acompanhando as competências já previstas para a educação básica, pode trazê-lo aos referenciais de formação docente. O aluno, futuro professor, precisa desenvolver tais competências na sua formação para que possa formar seus alunos com os mesmos princípios. (p. 51).
As doze competências gerais da “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica” se desdobram, cada uma delas, entre quatro a seis novas competências, somando-se um total de 53 competências específicas! Chamam a atenção justamente aquelas competências específicas diretamente atreladas à BNCC:
1.1.2 Dominar os direitos de aprendizagem, competências e objetos de conhecimento da área da docência estabelecidas na BNCC e no currículo;
1.4.3 Conhecer a BNCC e as orientações curriculares da unidade federativa em que atua;
3.1.4 Demonstrar as competências gerais da BNCC (p. 53-55).
O documento “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica”, elaborado pelo Ministério da Educação (MEC), em dezembro de 2018, depois de encaminhado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para análise e emissão de parecer, foi devolvido ao MEC, em 2019, reencaminhado ao CNE, ainda em 2019, e o Parecer CNE/CP No 22/2019, que analisa as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação)”, foi, finalmente, aprovado pelo Conselho Pleno do CNE em 7 de novembro de 2019.
É importante registrar que essa tramitação para aprovação do Parecer CNE/CP No 22/2019 aconteceu sem discussão com a sociedade civil organizada. Uma “terceira versão” desse Parecer foi aprovada no dia 18 de setembro de 2019, sem que o CNE tivesse divulgado as duas “versões” anteriores! Essa “terceira versão” foi disponibilizada apenas no mês seguinte, em outubro de 2019, e, em menos de 30 dias após a sua divulgação, o Parecer foi aprovado.
Mesmo assim, ainda em outubro de 2019, houve uma forte reação contrária de entidades nacionais da área de Educação (ANPEd, ANFOPE, CNTE, FORUMDIR...) àquela “terceira versão” do Parecer.
Indiferente à oposição explicitada pelas entidades nacionais da área de Educação, o Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação aprovou, no dia 20 de dezembro de 2019, a Resolução CNE/CP No 2 que define “as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação)”. Esta Resolução revogou a Resolução CNE/CP No 2, de 1º de julho de 2015. Ou seja, em pouco mais de quatro anos, após a maioria das universidades e demais instituições de ensino superior (IES) já terem iniciado os processos de reforma de seus respectivos cursos de licenciatura orientados pela Resolução CNE/CP No 2, de 1º de julho de 2015, revoga-se esta e as IES são, então, simplesmente comunicadas que elas devem iniciar um novo processo de reformulação dos seus respectivos cursos de formação de professores baseado agora em uma outra Resolução: a BNC-Formação. Fica claro, por meio dessa decisão, o desrespeito do MEC e do CNE com as universidades e demais instituições de ensino superior brasileiras e deixa-se a péssima impressão de que, infelizmente, tanto o Ministério quanto o Conselho não são instituições sérias e confiáveis.
O documento “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica”, elaborado pelo MEC e brevemente analisado neste artigo, foi o texto-base para a redação do Parecer CNE/CP No 22/2019 e da Resolução CNE/CP No 2. Nesta Resolução, um documento de nove capítulos e trinta artigos, a palavra “competência” foi utilizada 51 vezes! Além disso, vários artigos e incisos dessa Resolução (como, por exemplo, os Artigos 2, 3, 8 Incisos II e IV) assumem explicitamente que as competências a serem desenvolvidas pelos licenciandos estão em sintonia com aquelas previstas na Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC-Educação Básica). Ou seja, as licenciaturas transformam-se, de maneira simplista e reducionista, em meros cursos preparatórios para os futuros professores implantarem a BNCC-Educação Básica quando estes assumirem a docência.
Não há dúvidas que, de maneira semelhante ao que aconteceu no país durante os governos militares ditatoriais, a BNC-Formação trata-se de uma nova tentativa de padronizar os currículos dos cursos de licenciatura no Brasil. O discurso adotado nesse documento de se assegurar a “coerência” entre as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores e a Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC-Educação Básica) representa, infelizmente, o retorno da adoção de mecanismos que garantam a uniformização das propostas curriculares dos cursos de formação docente no Brasil e o rígido controle sobre elas.
Considerações finais
Diferente do chamado “currículo mínimo”, mecanismo utilizado no Brasil durante os governos militares ditatoriais (1964-1985) e que definia até mesmo os nomes e as cargas horárias das disciplinas obrigatórias dos cursos de graduação - e, entre eles, dos cursos de formação de professores -, as diretrizes curriculares nacionais orientaram, a partir de 1996, a reforma desses cursos permitindo a eles maior autonomia e flexibilidade. O primeiro, ao enrijecer bastante a estrutura dos cursos de graduação no país - e, entre eles, as licenciaturas -, mostrou-se favorável à uniformização das propostas curriculares desses cursos e, por via de consequência, ao forte controle sobre elas. As “diretrizes”, ao intencionalmente possibilitarem a diversificação e a inovação de propostas curriculares nos cursos de graduação - e, entre eles, os cursos de formação de professores -, vão na direção oposta a essa ideia de homogeneização e controle.
Em relação à reforma curricular dos cursos de graduação no Brasil, e, mais especificamente, dos cursos de formação de professores, como vimos, a opção, a partir da aprovação da LDBEN de 1996, foi claramente pela diversificação dos currículos. Fortes instrumentos de padronização, comuns durante o regime militar, como, por exemplo, o “currículo mínimo”, foram substituídos por diretrizes curriculares após o processo de redemocratização do país.
A restauração conservadora no país, a partir do golpe político, parlamentar, jurídico, midiático e sexista de 2016, proporcionou a recente volta da utilização de instrumentos e de estratégias de padronização das propostas curriculares dos cursos de licenciatura, por meio, da aprovação da BNC-Formação. Esta, ao buscar “coerência” entre a estandarização dos currículos da educação básica no país - a chamada Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC-Educação Básica) - e aqueles dos cursos de formação de professores, infelizmente, representa um enorme retrocesso em termos do que vinha se construindo no Brasil nas últimas décadas.