Introdução
A experiência das ‘classes multisseriadas’ tem muito a nos ensinar. Há sinais de vida, de resistência, de vontade de fazer diferente.
Antunes-Rocha e Hage (2010, p. 15).
A breve passagem, retirada de Antunes-Rocha e Hage (2010), direciona nosso olhar a um lócus pouco comum nas escolas das regiões urbanas: as salas multisseriadas1. Essa organização escolar é, muitas vezes, parte da estrutura educacional encontrada em escolas no meio rural e, geralmente, encarada como uma solução excepcional diante da impossibilidade da formação de turmas com uma única série.
As salas multisseriadas são apresentadas como solução de organização para atender, com poucos profissionais, um número reduzido de sujeitos, pois são ordenadas em um mesmo espaço, sem separação, onde estão reunidos alunos de idades variadas e pertencentes a diferentes séries ou anos escolares, sob a regência de um único professor (CARDOSO; JACOMELI, 2010). Parente (2014, p. 62), em artigo em que analisa trabalhos sobre essa organização escolar na literatura internacional, afirma que a multisseriação surgiu “[...] como opção política de atender a uma população historicamente excluída da escola”. Sob essa perspectiva, essa forma de organização, por um lado, “[...] pode ser caracterizada como política de democratização do acesso à educação, ainda que tenha relegado a segundo plano as necessárias opções pedagógicas [...]” (PARENTE, 2014, p. 58). Por outro, autores como Menezes e Santos (2001) e Cardoso e Jacomeli (2010) lembram que nas escolas multisseriadas, muitas vezes, tem-se acesso apenas aos primeiros anos no Ensino Fundamental, o que denota uma visão limitante de continuidade dos estudos aos alunos atendidos nessas instituições.
Parente (2014) esclarece que as diferentes formas de organização escolar - que implicam a coeducação de alunos em diferentes séries ou etapas, idades ou “níveis” de conhecimento - existem em vários países, tanto nas regiões urbanas como no campo, embora sejam mais comuns no meio rural e em regiões menos povoadas. Como experiência de coeducação de alunos em diferentes idades e “níveis” de conhecimento pode ser citada a Escola da Ponte, em São Tomé, Portugal, cuja organização funda-se em um projeto educativo específico, que não se limita ao desenvolvimento curricular (PACHECO; PACHECO, 2015).
Além da justificativa pedagógica, Parente (2014) acrescenta outros motivos para a organização de escolas multisseriadas: elas podem estar localizadas em regiões pouco povoadas, afastadas e/ou de difícil acesso, podem ser um arranjo de regiões em que em há declínio populacional, podem estar em locais com insuficiência de escolas e professores, podem ser escolas móveis (mobile schools) com alunos de famílias nômades de diferentes idades/séries.
As escolas que trataremos neste texto compartilham dessa forma de organização administrativo-pedagógica - a multisseriação - e encontram-se em região geográfica peculiar, de difícil acesso, distante dos núcleos urbanos. Tratam-se de unidades de ensino situadas no município de Corumbá (MS), que, em razão da localização e da influência do ciclo das águas do Pantanal sul-mato-grossense, são denominadas de Escolas das Águas (ZERLOTTI, 2014; MELO; DUARTE; SAMBUGARI, 2020; NOZU; REBELO; KASSAR, 2020). Com atenção às características dessa localidade e à estrutura pedagógica das escolas dessa região, este artigo tem como objetivo analisar as condições de diversidade e de inclusão em turmas multisseriadas das Escolas das Águas do Pantanal corumbaense.
Para tanto, nos aproximamos dos contextos administrativos e pedagógicos das Escolas das Águas, sobretudo no segundo semestre do ano de 2019, com o intuito de conhecer algumas nuances da educação ofertada aos ribeirinhos/pantaneiros desse território ímpar. A proposta de trabalho foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa, sendo aprovada junto à Plataforma Brasil, com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética - CAAE: 25693219.1.0000.5160.
A metodologia do trabalho fundamentou-se em uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória, considerando “[...] as representações, as definições da situação, as opiniões, as palavras, o sentido da ação e dos fenômenos [...]” (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2014, p. 147) de professores das Escolas das Águas. Todos os participantes tomaram conhecimento prévio da pesquisa e concordaram com sua participação mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As técnicas de coleta de dados empíricos envolveram: a) observação das atividades na sede administrativa e em Escolas das Águas, com registros em diário de campo; b) entrevistas semiestruturadas com 20 professores dessas escolas, por meio de um roteiro com 15 perguntas. As entrevistas foram realizadas na sede administrativa ou nos próprios estabelecimentos de ensino, com gravação em áudio e posterior transcrição e textualização, com a retirada de expressões comuns à linguagem oral. Neste texto, o nome de cada professor participante foi substituído por um pseudônimo, para a garantia de seu anonimato. Precisamente, tendo em vista o propósito deste artigo, utilizamos as informações verbais prestadas, no ano de 2019, pelos professores Angélica, Antônio, Clarice, Cléber, Fátima, Jussara, Marília, Natália e Pedro.
As análises dos dados estão sistematizadas em dois eixos: o primeiro contextualiza as Escolas das Águas do Pantanal corumbaense e o segundo debruça-se sobre o trabalho docente em turmas multisseriadas nessas escolas, enfatizando a diversidade de séries, de disciplinas, de alunos e de desafios na construção de uma educação mais inclusiva. O material empírico foi analisado em interlocução com a literatura especializada, sob o entendimento de que o discurso, as representações, as opiniões, as palavras, as significações, os pensamentos de um sujeito são construções sociais, erigidas na apropriação, na reflexão e no embate de discursos de outros (BAKHTIN, 1988) e, nesse sentido, um discurso individual não é totalmente individual ou original (BAKHTIN, 1992); carrega marcas de outros discursos em determinado contexto histórico-cultural. Buscamos, pois, identificar possíveis fontes de interlocução.
Aproximação às Escolas das Águas
A população sul-mato-grossense é constituída por diversas origens e culturas. Vivem em suas terras pessoas oriundas de outras regiões do Brasil e de outros países, urbanas, camponesas, indígenas, quilombolas e das águas (ribeirinhos e pantaneiros) (MATO GROSSO DO SUL, 2014). Em face dessa diversidade, centralizamos nossa atenção no processo de escolarização de estudantes ribeirinhos e pantaneiros de escolas peculiares na região rural do município de Corumbá/MS.
As escolas municipais da região rural de Corumbá estão distribuídas em assentamentos e algumas fazendas. As que são foco deste trabalho localizam-se em diferentes regiões do Pantanal de Mato Grosso do Sul, cuja geografia sofre alterações com os ciclos de cheias e vazantes dos rios, relacionados ao movimento das chuvas durante o ano.
O Pantanal é uma área úmida, localizada no centro da América do Sul, que por suas características específicas, é reconhecido como Patrimônio Nacional pela Constituição Federal, considerado Reserva da Biosfera e, desde 2000, Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco (CAMINHA, 2010; RIBEIRO; MORETTI, 2012). A região é considerada a maior planície de inundação contínua do planeta e é dividida, considerando os aspectos relacionados a inundação, relevo, solo e vegetação, em 11 sub-regiões. Dezesseis municípios brasileiros compõem a área fisiográfica do Pantanal. Corumbá2 possui a maior extensão, com 44,74% da área de todo o Pantanal, que significa 95,6% do município (SILVA; ABDON, 1998).
O Pantanal é dividido em propriedades privadas (fazendas) que, pelas características locais, possuem, muitas vezes, grandes extensões de terra. Nem sempre é fácil o acesso a elas, o que leva alguns moradores a ficarem sem contato com a região urbana por meses, especialmente no período das cheias. As Escolas das Águas geralmente encontram-se dentro dessas fazendas, em espaços cedidos por seus proprietários, sendo que, dentre essas unidades, duas, Jatobazinho e Santa Mônica, decorrem de parceria público-privada.
Localmente, a região recebe subdivisões denominadas de Baixo, Médio e Alto Pantanal (CORUMBÁ, 2015). O Baixo Pantanal compreende a parte baixa do rio Paraguai, com distância aproximada de 280 km do Porto Geral3 até a região de Forte Coimbra. O Médio Pantanal engloba a região do rio Taquari, localizado a aproximadamente 180 km do Porto Geral. O Alto Pantanal envolve a parte alta do rio Paraguai, distando cerca de 320 km do Porto Geral, na divisa com o estado de Mato Grosso (CORUMBÁ, 2012; 2015).
De acordo com as alterações das estruturas administrativas municipais, bem como as demandas por escolarização, unidades de ensino para o atendimento aos povos das águas são ativadas, nucleadas ou desativadas. Em 2019, a organização das Escolas das Águas deu-se com cinco unidades polos, a partir das quais vinculavam-se quatro extensões. O Quadro 1 informa a localização e a organização das Escolas das Águas, nesse ano.
Quadro 1: Escolas das Águas de Corumbá/MS (2019).
Região | Polos | Extensões |
---|---|---|
Baixo Pantanal | Porto Esperança Ano de criação: 2005. Localização: Distrito de Porto Esperança. Distância da sede urbana: cerca de 75 km. | Sem extensão |
Médio Pantanal | Santa Aurélia Ano de criação: 1975. Localização: Colônia São Domingos,Fazenda Santa Maria, Região do Rio Taquari. Distância da sede urbana: cerca de 120 km. | São João Ano de criação: 1975. Localização: Colônia São Domingos, Fazenda Santa Irene, Região do Rio Taquari. Distância da sede urbana: cerca de 90 km. |
Sebastião Rolon Ano de criação: 1975. Localização: Colônia do Bracinho, Região do Rio Taquari. Distância da sede urbana: cerca de 180km. | Nazaré Ano de criação: 2008. Localização: Colônia do Cedro, Fazenda Farroupilha, Região do Rio Taquari. Distância da sede urbana: cerca de 140 km. | |
Alto Pantanal | Paraguai Mirim Ano de criação: 2014. Localização: Ilha Verde, próxima à Serra do Amolar, Região do Paiaguás. Distância da sede urbana: cerca de 140 km. | Jatobazinho Ano de criação: 2009. Localização: Ilha Verde, Região do Paiaguás. Distância da sede urbana: cerca de 110 km. |
São Lourenço Ano de criação: 2005. Localização: Barra do São Lourenço, Região do Paiaguás. Distância da sede urbana: cerca de 240 km. | Santa Mônica Ano de criação: 2011. Localização: Fazenda Santa Mônica, Região do Paiaguás. Distância da sede urbana: cerca de 488km. |
Fonte: Corumbá (2015; 2019).
O calendário, o funcionamento, a oferta de ensino e a organização das Escolas das Águas não são homogêneos nem fixos (NOZU; REBELO; KASSAR, 2020). A depender das condições climáticas, das demandas discentes, das reestruturações administrativas e das parcerias público-privadas, cada unidade ganha configurações próprias. Dados recentes, coletados junto à equipe gestora, informam que, em 2019, encontravam-se em vigência seis calendários escolares para as nove unidades de ensino. Das nove escolas, sete (Porto Esperança, Sebastião Rolon, Nazaré, Paraguai Mirim, Jatobazinho, São Lourenço e Santa Mônica) funcionavam em tempo integral e duas (Santa Aurélia e São João) meio período (manhã ou tarde).
No ano de 2019, todas as escolas sob administração pública ofertaram os nove anos do Ensino Fundamental e, dentre elas, Porto Esperança, São João e Paraguai Mirim ofertaram também Educação Infantil (Pré I e Pré II). Por fim, Santa Mônica e Jatobazinho, de parceria público-privada, ofertaram os primeiros anos do Ensino Fundamental, sendo que Jatobazinho também ofereceu Educação Infantil (Pré II). Quanto à organização escolar: Jatobazinho possuía uma turma de multietapa4 (Pré II e 1º ano do Ensino Fundamental) e os outros Anos Iniciais do Ensino Fundamental (2º, 3º, 4º, 5º) de forma seriada; Santa Mônica tinha duas turmas bisseriadas (1º e 2º ano; 3º e 4º ano) e uma seriada (5º ano); ao passo que as demais unidades de ensino se ordenavam por meio de turmas multisseriadas,
As matrículas dos alunos, no ano letivo de 2019, estavam dispostas da seguinte maneira: Porto Esperança (21 matrículas); Santa Aurélia (11 matrículas); São João (34 matrículas); Sebastião Rolon (22 matrículas); Nazaré (41 matrículas); Paraguai Mirim (46 matrículas); Jatobazinho (48 matrículas); São Lourenço (20 matrículas); e Santa Mônica (50 matrículas). Ao total, registraram-se 293 matrículas nas Escolas das Águas (CORUMBÁ, 2019).
Em todas as unidades escolares, há alojamento para os docentes devido à impossibilidade de regresso constante à região urbana, sendo que nas unidades de Nazaré, Jatobazinho, Paraguai Mirim, São Lourenço e Santa Mônica também foram disponibilizados alojamentos para os alunos, considerando a distância até suas residências. Em Nazaré, Jatobazinho e Paraguai Mirim, os estudantes ficavam alojados durante a semana e retornavam para suas casas no final de semana. Já em São Lourenço e Santa Mônica, os alunos permaneciam alojados durante o bimestre, passando à convivência familiar nos períodos de intervalos letivos.
A gestão administrativa e pedagógica das Escolas das Águas tem sede própria no perímetro urbano de Corumbá, sendo composta por uma diretora, três coordenadoras pedagógicas, uma secretária e duas auxiliares de secretaria. Esta equipe atua junto às ações de provimento de recursos humanos, mobiliários, materiais didático-pedagógicos, merenda escolar, transporte de discentes e docentes, bem como no acompanhamento das atividades relacionadas ao ensino e à aprendizagem, com visitas periódicas às Escolas das Águas. As unidades de ensino oriundas de parceria público-privada possuem gestão diferenciada das demais Escolas das Águas. Zerlotti (2014, p. 24), em pesquisa realizada nos primeiros anos da década de 2010, afirmou que as parcerias entre a Secretaria Municipal de Educação e os proprietários rurais fizeram com que Jatobazinho e Santa Mônica apresentassem “melhor infraestrutura, maior número de funcionários e a presença de uma coordenadora pedagógica em tempo integral”.
Para a realização do trabalho nas Escolas das Águas, há também um quadro técnico-administrativo responsável por atividades relacionadas à alimentação, transporte, alojamento e acompanhamento dos estudantes: merendeiras, piloteiros5 e tratoristas, monitores e auxiliares de serviços diversos. De acordo com Nozu, Rebelo e Kassar (2020, p. 1061),
[...] estes profissionais, hegemonicamente, residiam no perímetro urbano de Corumbá, permanecendo alojados nas dependências das escolas durante o período letivo, com vindas programadas para a cidade, comumente, nos interstícios dos bimestres.
Em 2019, havia 35 professores no quadro docente das Escolas das Águas, dos quais apenas três tinham cargos efetivos, via concurso público. Também, somente três professores tinham o domicílio na região das águas - dois deles, inclusive, cediam, em regime de comodato, espaços de suas propriedades para a instalação de unidades de ensino - ao passo que os outros residiam no perímetro urbano de Corumbá.
Antes de se deslocarem até as unidades de ensino, os professores recebiam uma formação pedagógica organizada pela equipe gestora, na sede administrativa urbana das Escolas das Águas. Conforme nos informou o professor Antônio (2019), da escola Porto Esperança, “[...] antes de vir para a escola é que acontece essa capacitação, para que nós cheguemos aqui na área e possamos dar um ensino de qualidade, já tendo uma base. Recebemos uma orientação pedagógica, com apoio do material específico a ser ministrado naquele bimestre” (informação verbal). Segundo Zerlotti (2014, p. 100), essas formações docentes, prestadas pela equipe gestora, “[...] enfocavam principalmente a dificuldade de trabalhar com salas multisseriadas”. Após as formações, os professores passam a atuar nas Escolas das Águas, com foco prioritário nos afazeres docentes, situação diferente da encontrada nas escolas multisseriadas da Amazônia paraense, evidenciadas na pesquisa de Hage e Barros (2010), na qual professores também exerciam funções não relacionadas à docência.
Cabe acrescentar que as Escolas das Águas funcionam com base em um Regimento Escolar (CORUMBÁ, 2017a) e um Projeto Político Pedagógico (CORUMBÁ, 2017b), que seguem explicitamente a política de Educação Inclusiva adotada no município, com o propósito de matricular todos os alunos em salas de aulas comuns, com a garantia de flexibilização e adaptação de currículos, metodologias de ensino e do processo de avaliação “adequado ao desenvolvimento desses alunos” (CORUMBÁ, 2017a, p. 19).
A adoção da Educação Inclusiva no município ocorre dentro de limites observados na política nacional de inclusão escolar (KASSAR; REBELO; RONDON; ROCHA FILHO, 2018), sob a restrição de gastos, numa perspectiva de otimização de recursos, dentro de uma lógica gerencial das políticas sociais (PERONI; OLIVEIRA; FERNANDES, 2009). É em meio a essas contradições que “[...] atores e autores educacionais são desafiados a construir saberes capazes de responder às demandas do cotidiano escolar relacionadas à convivência e aprendizagem na diversidade” (MATOS; MENDES, 2014, p. 36).
Nozu e Kassar (2020, p. 22) destacam que as Escolas das Águas do Pantanal corumbaense “[...] caracterizam-se pela diversidade de sujeitos, de tempos e de espaços educativos”. Nesse contexto, a política de inclusão tem sido implementada a partir de uma pluralidade de sentidos, valores, formações e condições materiais, produzindo diferentes efeitos no acesso e na permanência de estudantes com necessidades educacionais especiais6 nas Escolas das Águas (NOZU; KASSAR, 2020).
Desafios no trabalho pedagógico na perspectiva docente
Após a elucidação de aspectos contextuais, passaremos à discussão da organização do trabalho pedagógico em turmas multisseriadas das Escolas das Águas e, nessa contingência, aos aspectos relacionados à diversidade e à inclusão.
Cada unidade de ensino dispunha, no ano de 2019, de três a seis docentes para realização do trabalho pedagógico nas turmas multisseriadas. De acordo com Garcia (2006, p. 300), compreendemos o trabalho pedagógico como uma expressão do fazer docente “[...] em condições que lhe são dadas [...]”. Assim, as formas organizativas do trabalho pedagógico constituem-se em:
[...] sínteses concretas dos processos de gestão, financiamento, da organização curricular, das condições do trabalho docente, das possibilidades da relação pedagógica na interação professor/aluno e aluno/aluno, dos processos avaliativos, entre outros elementos fundamentais que dão contornos para a escola (GARCIA, 2006, p. 300).
A definição e a distribuição dos professores dentre as nove unidades eram realizadas pela equipe gestora das Escolas das Águas. Como nos relatou a professora Fátima (2019) da escola Porto Esperança: “[...] as coordenadoras e diretora fazem uma entrevista com os professores. Antes, elas falam ‘não é qualquer um que tem o perfil para ser o professor das águas’. Elas analisam tudo isso” (informação verbal). Isso porque, dentre outras particularidades, os professores, ao assumirem a regência nas Escolas das Águas, considerando a logística e a dificuldade de acesso, precisam dispor-se a ficar alojados na própria unidade de ensino durante o período letivo. Com exceção de Porto Esperança, cujos professores ficavam instalados durante a semana e retornavam para suas residências aos finais de semana, nas demais unidades de ensino os professores permaneciam hospedados, na própria estrutura escolar, no decurso do bimestre, regressando à sede urbana do município nos interstícios letivos para resolver questões pedagógico-administrativas, receber formação continuada, realizar consultas médicas e conviver com os familiares.
Como apresentado anteriormente, a multisseriação dava-se por meio de agrupamento em turmas de alunos matriculados do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental e, dependendo da demanda, também era formada turma de Pré-Escola (Pré I e Pré II) e turma multisseriada dos Anos Finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano). As duas unidades configuradas pela relação público-privada, Santa Mônica e Jatobazinho, eram as que apresentavam o maior número de matrículas e a organização escolar no formato seriado e bisseriado (Santa Mônica) e seriado e multietapa (Jatobazinho).
Na condição de multisseriação, os professores das Escolas das Águas trabalhavam com vários componentes curriculares, muitos dos quais fora de suas áreas de formação inicial. Vasconcelos e Albarado (2015), em estudo realizado em uma escola ribeirinha da Amazônia, também verificaram essa situação, em função da carência de profissionais. Os autores elucidaram que “[...] a carência é bem maior quando se trata de contratar profissionais especialistas para trabalhar em escolas de comunidades rurais/ribeirinhas” (VASCONCELOS; ALBARADO, 2015, p. 15). Evitar que professores assumam disciplinas muito distantes de sua formação parece ser uma preocupação da administração da Escolas das Águas, como revela a professora Fátima (2019) da escola Porto Esperança:
A coordenação e a direção têm essa preocupação de observar a formação do professor e colocar ali uma matéria mais específica, mais próxima, para que ele não tenha tanta dificuldade, e quando chegar aqui no campo, também não deixar os alunos a desejar (informação verbal).
No entanto, mesmo havendo certa atenção a esse aspecto, situações desafiadoras ocorrem, como a relatada pelo professor Antônio (2019), da escola Porto Esperança:
Trabalho com o ensino em tempo integral e atuamos nas salas multisseriadas, embora a minha formação seja na área de Ciências Biológicas, também trabalho com vários componentes curriculares. Por exemplo, esse ano, eu também ministro aulas de Matemática, de Educação Física, Formação Cidadã e Orientação, Pesquisa e Oralidade também, e um complemento das aulas de Educação Física que é a Iniciação Esportiva, que vai do primeiro ao quinto ano e do sexto ao nono ano (informação verbal).
Nessa dinâmica do trabalho pedagógico, não só as turmas e os componentes curriculares são múltiplos; as exigências sobre a atuação do professor acabam por reconfigurá-lo também em um professor com múltiplas funções. Ainda que esta seja uma prática usual e histórica em escolas não urbanas, os condicionantes de contingenciamento econômico, próprios da reforma da administração pública a partir dos anos de 1990 (PERONI; OLIVEIRA; FERNANDES, 2009), nos estimulam a pensar sobre a reconversão docente no cenário das Escolas das Águas, como um docente polivalente, flexível, protagonista e tolerante, como analisam Evangelista e Triches (2012).
A organização do espaço e do tempo das atividades pedagógicas junto às turmas multisseriadas das Escolas das Águas seguia a lógica da seriação dentro da multissérie (HAGE; BARROS, 2010; MORAES; BARROS; HAGE; CORRÊA, 2010; OLIVEIRA; FRANÇA; SANTOS, 2011). Nessa composição, os alunos são divididos, dentro da sala de aula, por série/ano escolar, como nos descreveu o professor Antônio (2019) da escola Porto Esperança: “[...] procuramos organizar os alunos em sala, próximos uns aos outros de acordo com a série” (informação verbal).
Ao ter em perspectiva a organização usual escolar de seriação por idade e/ou conteúdos, a proposta de multisseriação é vista como precária e não desejável. Como analisa Arroyo (2006, p. 113-114):
Classificar a escola do campo como multisseriada leva a uma visão sempre negativa e à tendência dos professores a organizar a escola por séries apesar de terem idades tão diferentes. Leva a recortar os conhecimentos: ‘agora trabalho o conteúdo da primeira série, agora com vocês o da segunda…’. Isso é um caos!
Nesse contexto, o professor vê-se multifacetado, dividido e cansado, já que a organização hipoteticamente pensada não existe. Segundo nos relatou a professora Clarice (2019), da escola Santa Mônica: “[...] acho que a gente acaba se dividindo em mil, porque é muita criança que você tem que trabalhar. Cada criança tem o seu perfil, então, às vezes, você divide a turma para dar conta” (informação verbal). Moraes, Barros, Hage e Corrêa (2010, p. 411) explicam que:
[...] quando os professores assumem a ‘proposta de multissérie’, como ‘junção de várias séries ao mesmo tempo e num mesmo espaço’, passam a elaborar tantos planos de ensino e estratégias metodológicas e de avaliação diferenciados quanto foram as séries presentes em sua turma.
Os conteúdos curriculares são pensados, muitas vezes, de forma fracionada, por ano escolar. O relato do professor Cléber (2019), da escola Nazaré, explicou este procedimento: “[...] a gente tenta assim: dá atividade para o 1º ano, pede para ele aguardar e aí você vai no 2º ano, pede também e assim vai, sucessivamente” (informação verbal). Procedimento próximo foi encontrado com o professor Antônio (2019), da escola Porto Esperança:
Eu levo alguma explicação já específica de acordo com cada série. Então, eu procuro tirar um tempo, me organizar dentro dessas duas horas para cada turma. Primeiro, começo com o sexto ano, geralmente, faço a explicação específica ali para eles, sétimo ano, oitavo ano, e findo com nono ano. Só que eu vi que esse processo que eu estava adotando no início até dava certo, mas aí, às vezes em um assunto específico, vamos dizer, do oitavo ano, ele requer um pouco mais de atenção, mais explicação. Então eu procuro, antes de iniciar as aulas, analisar qual é o [conteúdo] mais complexo e inicio com aquele, com aquela turma específica (informação verbal).
Sob a lógica da seriação, muitas vezes professores e professoras realizam
[...] a transferência mecânica de conteúdos aos estudantes, sob a forma de pequenos trechos, como se fossem retalhos dos conteúdos disciplinares, extraídos dos livros didáticos que conseguem ter acesso, muitos deles bastante ultrapassados e distantes da realidade do meio rural, os quais são repassados através da cópia ou da transcrição do quadro, utilizando-se da fragmentação do espaço escolar com a divisão da turma em grupos, cantos ou fileiras seriadas, como se houvesse várias salas em uma, separadas por ‘paredes invisíveis’ (MORAES; BARROS; HAGE; CORRÊA, 2010, p. 404).
Entretanto, estas “paredes invisíveis” (MORAES; BARROS; HAGE; CORRÊA, 2010) parecem, por vezes, não conter a circulação dos conteúdos seriados na dinâmica da turma multisseriada. A professora Marília (2019), da escola Nazaré, compartilhou uma situação recorrente:
Nós temos cinco séries de primeiro ao quinto e quatro séries do sexto ao nono. Às vezes, nós estamos explicando um assunto para o quinto ano, e o primeiro ano está prestando atenção. Nós fazemos a pergunta para o quinto ano e quem vai responder é o primeiro ano! (informação verbal).
A enunciação da professora Fátima (2019) da escola Porto Esperança nos pareceu caminhar em sentido complementar: “[...] às vezes, tem assunto, quando eu vou explicar para o sétimo, oitavo ano, e eles já sabem por já terem ouvido em outros anos, já terem acompanhado a explicação, a minha ou de algum outro professor que também já andou na escola” (informação verbal).
Os relatos dos professores ratificam Oliveira, França e Santos (2011), quando asseguram que grande parte dos docentes desenvolve suas atividades com conteúdos diferenciados por anos ou séries, desde o planejamento, mantendo a lógica do sistema seriado de ensino. Com essa práxis, a multisseriação em escolas no meio rural vai sendo constituída de uma forma precária - considerando os recursos estruturais, materiais e humanos - de materialização do modelo seriado urbano (HAGE; BARROS, 2010; MORAES; BARROS; HAGE; CORRÊA, 2010; MERCÊS; OLIVEIRA, 2018).
Moraes, Barros, Hage e Corrêa (2010, p. 403) narram ainda que, em turmas multisseriadas, os professores “[...] se sentem ansiosos, angustiados ao ter que planejar e desenvolver as atividades pedagógicas diferenciadas para todas essas séries em um mesmo tempo e ao mesmo espaço”. A fala do professor Antônio (2019), da escola Porto Esperança, foi representativa dessa situação:
A grande dificuldade que encontrei ao trabalhar com multidisciplinas em salas multisseriadas foi essa organização do tempo para que nenhum aluno fique sem explicação. Tem dias que acontece de alguma turma ficar sem explicação por conta do tempo, às vezes não dá (informação verbal).
A angústia parece presente em cobranças frente ao que se espera que aconteça e o que é possível desenvolver, como compartilhou a professora Angélica (2019), da escola Porto Esperança:
Eu estou com uma aluninha aqui do quarto ano, ela é a única do quarto ano. Então, muitas vezes, eu tenho que pegar uma coisa assim que eu vejo, é, fração, no quarto ano eu não consigo chegar, não tem como dar fração para uma criança do quarto ano, sabe por que? Porque ela está ainda descobrindo o que é multiplicação, ela ainda vai descobrir... ‘Ah, mas está muito atrasada!’ (informação verbal).
A seriação escolar “urbanocêntrica”, com a fragmentação do tempo, do espaço e do conhecimento, busca instituir-se, equivocadamente, como referência de qualidade da educação e a solução mais viável para superar o fracasso dos estudantes que vivem no campo (HAGE; BARROS, 2010) e, nesse contexto, a matrícula de alunos identificados como aqueles que demandam mais atenção pode ser vista como um desafio adicional, como na percepção da professora Natália (2019) da escola São Lourenço:
A gente fala que o trabalho é dobrado. Você já está ali em uma sala onde você tem que trabalhar vários conteúdos, vários anos diferentes e ainda você tem que olhar para o aluno com necessidade especial. Mas eu falo que ao mesmo tempo é uma experiência, você aprende! (informação verbal).
A percepção de acúmulo de trabalho ocasionado com o crescimento de matrículas de alunos com necessidades educacionais especiais nas salas de aulas comuns e a sensação de despreparo por parte dos professores são compartilhados por muitos docentes e estão registradas em pesquisas desde, ao menos, o início dos primeiros anos do século XXI (CORDEIRO, 2003). Dessa forma, se tomamos a perspectiva da formação sócio-histórica de pensamentos e discursos (BAKTHIN, 1988; 1992), os depoimentos dos professores das Escolas das Águas dizem muito dos saberes que circulam na educação do país. Esses aspectos parecem incidir de forma contundente em uma situação em que os docentes precisam ser superprofessores (EVANGELISTA; TRICHES, 2012) ou, como afirmou o professor Cléber (2019), da escola Nazaré:
Para incluir [os alunos com necessidades educacionais especiais] nas turmas multisseriadas a gente tem que ser um pouco ninja, homem aranha, tecer as teias para poder trabalhar, porque, olha, não é fácil! (informação verbal).
Na circulação de discursos e significações, há a identificação com pensamentos hegemônicos, mas, também, há a contestação (BAKTHIN, 1988), a cogitação de outras perspectivas; dessa forma, os professores vêm que características que levam à multisseriação, como o número pequeno de alunos na sala, podem ser adequadas a um atendimento individualizado, apesar dos contratempos e dificuldades apontados. Assim, narrativas também sinalizaram para possibilidades de práticas pedagógicas diferenciadas, envolvendo todos os alunos da turma, com temas e conteúdos compartilhados, mesmo com a persistência da lógica da seriação.
Eu acho que [o principal] é o planejamento, você antecipar as aulas, planejar as aulas. Pegar um conteúdo para trabalhar com todos eles. Aquele conteúdo desde a primeira série, na realidade você pode pegar até um assunto da segunda série que a primeirinha já vai estar observando, ali no meio da quarta série, quinto ano, e isso um se vai ajudando, complementando o outro (informação verbal) (PROFESSOR PEDRO - ESCOLA NAZARÉ, 2019).
Às vezes, se o conteúdo bate, o mesmo conteúdo você trabalha de diferentes maneiras. Mas, assim, você pega e prepara uma aula na qual todos possam aproveitar, mas você sabe que um aluno não tem 100% em uma sala multisseriada, não tem como você dar atenção para um só aluno, então você tem que abraçar todos ao mesmo tempo, a gente tenta e, no final, a gente consegue! (informação verbal) (PROFESSORA NATÁLIA - ESCOLA SÃO LOURENÇO, 2019).
Moraes, Barros, Hage e Corrêa (2010, p. 406) exortam a necessidade de destacar o que os docentes das “escolas têm conseguido realizar através de sua prática criadora e inventiva, de sua capacidade de inovar, de fazer diferente mesmo quando as condições materiais, objetivas e subjetivas são muito desfavoráveis, e as limitações e carências são muito profundas”, pois como afirma a professora Jussara (2019), da escola Santa Aurélia: “a gente tem que estar a todo o momento se reinventando, mesmo porque o recurso que a gente tem é muito pouco, e, assim, o que você aprende na faculdade é diferente da realidade que você convive no contexto” (informação verbal). No entanto, mesmo com a intenção de construir novas abordagens pedagógicas, a rigidez curricular - identificada pelos professores em algumas disciplinas - parece limitar a criação de novos caminhos, como entende o professor Antônio (2019), da escola Porto Esperança:
Alguns conteúdos dão para trabalhar geral, por exemplo, vou levar o tema hoje ‘alcoolismo’ para todos, de um modo geral em uma linguagem só, isso daí também facilita o nosso trabalho, não dificulta tanto. Agora Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, não tem como fugir porque é sequência (informação verbal).
É possível sugerir que, quando se tem como parâmetro a perspectiva da seriação, perde-se a possibilidade de criação de práxis pedagógicas inovadoras. Como argumentam Souza, Silvestre, Bastos, Vieira, Conceição, Bovo, Tosta, Castro, Santos e Avelar (2020, p. 54), “agrupar os alunos em idades diferentes, conciliando saberes e motivando o compartilhamento de ideias, pode ser uma experiência muito rica para toda a classe”.
Conclusões
As políticas educacionais brasileiras adotadas a partir dos anos de 1990 assumiram claramente a assunção de que toda a criança deve estar na escola. A postura como signatário da Declaração de Jomtien e dos compromissos subsequentes envolve, necessariamente, abarcar a diversidade da população brasileira. Aspectos dessa diversidade evidenciam-se nos bancos das Escolas das Águas, que recebem alunos dos denominados povos das águas. Nessa localidade, há uma convivência diferenciada, quando comparada à empreendida nas escolas urbanas, especialmente pela proximidade de contato diário de alunos e professores e interlocução valorizada entre família e escola, quando possibilitada pelas distâncias.
A convívio desses pequenos grupos parece ser facilitadora de situações de acolhimento e respeito entre as crianças, como avalia a professora Angélica (2019), da escola Porto Esperança:
A inclusão é bem aceita porque é uma comunidade pequena, então eles já vêm com aquele coleguismo de casa. Quando chegam aqui, como eles são muito conhecidos, são primos ou são vizinhos muito próximos, então aceitam muito bem o outro. Assim, em questão de inclusão, o aluno ter algum tipo de deficiência, eles até ajudam, não têm aquele problema de excluir o outro (informação verbal).
Um grande desafio, apontado pelos docentes, é a organização escolar em multisseriação que, pelas características identificadas, parece ser uma opção assumida mais pelas condições geográficas e econômicas encontradas do que por uma escolha pedagógica diferenciada.
Devemos notar que as “paredes invisíveis” (MORAES; BARROS; HAGE; CORRÊA, 2010) entre as turmas, de fato, não se sustentam. Exemplos apresentados pelos docentes como “[...] nós estamos explicando um assunto para o quinto ano, e o primeiro ano está prestando atenção” (informação verbal) (PROFESSORA MARÍLIA - ESCOLA NAZARÉ, 2019), podem ser tomados como evidência dessa divisão ilusória e convidar a pensar a educação sob novas formas de organização. Como já analisado sob perspectivas diferentes, por Arroyo (2006) e Pacheco e Pacheco (2015), a coeducação entre alunos de diferentes idades e “níveis” de conhecimento pode ser bastante interessante e significativa se adotada propositadamente como opção pedagógica. No entanto, para que isso ocorra é necessário grande investimento na formação docente. Zerlotti (2014, p. 119), em sua pesquisa,
[...] mostra que os professores percebem que precisam estar mais bem formados para poderem atuar no contexto das Escolas das Águas. Eles demonstram interesse em participar das formações continuadas e vão até elas em busca de respostas para o enfrentamento dos diferentes desafios de ensinar nessas Escolas. Isso é algo bastante positivo e que potencializa o trabalho com a diversidade cultural.
Souza, Silvestre, Bastos, Vieira, Conceição, Bovo, Tosta, Castro, Santos e Avelar (2020, p. 54) ressaltam a urgência de se
[...] repensar as formas de atendimento, a formação docente e os planejamentos para as classes multianuais para que sejam efetivas na aprendizagem cognitiva centrada nas necessidades dos estudantes. Desconstruir o conceito da multissérie concebida a partir da ideia de diversas turmas em uma só e compreender a Unidade de Estudantes com níveis de ensino diferenciados pode ser um desafio e um dos objetivos do docente.
No contexto pesquisado, entendemos que a formação é fundamental, mas não suficiente, pois a rotatividade profissional, propiciada pela contratação anual, faculta óbices para o envolvimento contínuo do decente com as Escolas das Águas. Sob essa forma administrativa, apesar de todos os esforços e a dedicação docentes, pode-se esperar a situação denunciada por Arroyo (2006), de “fracos vínculos” do corpo de profissionais com as escolas do campo, pois, como explica o autor, “não é um corpo nem do campo, nem para o campo, nem construído por profissionais do campo. É um corpo que está de passagem no campo e quando pode se liberar sai das escolas do campo” (ARROYO, 2006, p. 114).
Entendemos que a coeducação dos alunos de diferentes idades e “níveis” de conhecimento pode deixar de ser vista como “multisseriação”, como uma escola de “segunda categoria”, que tem como referência a escola seriada (ou anual). Esta escola diferente poderia ser uma forma interessante de criação e formação humana, uma resistência frente à escola fragmentada e multifacetada; uma escola em que se tivesse acesso ao conhecimento universalmente produzido e, também, onde fossem conhecidos e valorizados os saberes singulares construídos nessas localidades tão ímpares, e que, numa perspectiva dialética, também constituem o universal. Como nos lembra Arroyo (2010), a questão de fundo não é a seriação ou a multisseriação, mas se a organização das escolas do campo tem se constituído contemplando culturas, valores e tempos humanos das populações camponesas. A escola como resistência constrói o pertencimento social do campo, que é decisivo nessas históricas desigualdades (ARROYO, 2006); é a proposição de uma educação que, sem abrir mão do saber universal, também compreenda a vida, o trabalho, a cultura, os anseios, os saberes e as identidades das populações camponesas (ARROYO, 2010).