Introdução
Neste trabalho, o que moveu o nosso mundo foi o desejo. O nosso desejo de aprender a ensinar as crianças com autismo, o desejo das mães de verem seus filhos se desenvolvendo, o desejo das professoras de transformar seus alunos com autismo em sujeitos aprendentes, pessoas críticas e ativas socialmente e, principalmente, o despertar da criança com autismo para o desejo de brincar, interagir, falar, ensinar, aprender e se desenvolver.
A inclusão da criança com autismo na escola despertou muitas inquietações, também despertou o desejo de aprender a contribuir com a aprendizagem e o desenvolvimento destas crianças. Já passamos da fase de investigar que os professores não sabem o que fazer com elas, ou que elas estão na escola, mas não estão integradas, ainda que essa continue sendo uma realidade. É preciso, contudo, ultrapassá-la. Este trabalho aborda novas metodologias de trabalho e busca contribuir com o pleno desenvolvimento das crianças, considerando as potencialidades que elas apresentam.
Metodologia
Desenvolvemos uma abordagem de trabalho com as crianças com autismo na escola, que designamos como método “Singular”, ele foi fruto de uma pesquisa de intervenção desenvolvida no Doutorado em Educação na Universidade Federal de Sergipe. Nossa preocupação no início da intervenção era criar um ambiente prazeroso e seguro para a criança, em que ela se sentisse acolhida e respeitada, pensávamos em cada detalhe, em cada ação. Priorizamos a construção da confiança e do afeto, a cada um foi dado o que ele precisava no momento, que podia ser colo, beijos ou uma disputa. Vivenciamos com elas situações como se tivéssemos a mesma idade, disputávamos pelo brinquedo, tinha a hora deles cederem às minhas vontades e a hora de ceder às vontades deles. Teve muitas risadas quando não conseguíamos ganhar no jogo ou montar um brinquedo do jeito deles. Depois de muitas brincadeiras, ficavam um tempo sem fazer nada, apenas descansando, conversando e rindo.
Nosso problema de pesquisa era saber se as atividades lúdicas conseguiriam impactar positivamente na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças com autismo e concluímos que a brincadeira propicia, realmente, muitas aprendizagens. Não apenas de conteúdos da escola, mas ajuda no desenvolvimento de suas funções mentais, o que, por sua vez, auxilia nas interações sociais e até na diminuição de alguns sintomas, que, desde sempre, foram associados ao autismo, como, por exemplo, as estereotipias, o isolamento, o retraimento, a aversão ao contato físico e a fala robotizada.
Neste artigo apresentaremos as perspectivas das mães e professoras sobre o método Singular, que foi aplicado com duas crianças, Benício e Hugo (nomes fictícios), em duas escolas da cidade de Cajazeiras- PB.
Os dados foram coletados através de entrevistas não estruturadas e que não tinham tempo para terminar, mas em média duravam 50 minutos. Elas eram gravadas e depois transcritas na íntegra. Os dados coletados foram categorizados e apresentados em forma de quadros. Consideramos ser conveniente deixar os discursos como foram produzidos, com várias ideias expostas ao mesmo tempo e com cortes no pensamento, pois acreditamos que isso oferece ao leitor uma visão mais realista da conversa.
Identificamos que as professoras da sala de aula, em que executamos a intervenção, estavam abertas a aprenderem como trabalhar com as crianças com autismo, se importavam com os alunos e se alegravam com a evolução. A questão da educação do aluno com autismo não pode estar centrada apenas no professor, temos problemas macroestruturais, como a governança dos sistemas de ensino, e outros mais micro estruturais, como a organização da escola, as metodologias utilizadas, dentre outras.
Ressaltamos, nesse sentido, que a efetividade da inclusão escolar não está relegada apenas ao professor, entretanto, em meio a uma sociedade que mais segrega do que une, o fazer consciente dos docentes pode ser fundamental para uma educação inclusiva exitosa. Costa (2015, p. 35) defende uma “[...] perspectiva de formação enviesada pela experiência teórica que seja capaz de se contrapor à ‘dominação’ e à ‘inconsciência social’, aliadas à capacidade criativa e à emancipação do livre pensar dos professores”.
A inclusão das crianças com autismo na escola é desafiadora, pois exige uma reformulação da prática à teoria e vice-versa. Ressaltamos, nesse caso, a necessidade de discutir educação inclusiva na formação inicial e continuada docente, proporcionando os conhecimentos básicos para que os professores se comprometam com a aprendizagem de todos os alunos, aprendendo a lidar com as diferenças sociais, pessoais e culturais, a fim de não reforçar tratamento desigual ou excludente.
A teoria para a construção do método e para a análise dos resultados foi a Sociointeracionista de Vigotski, que defende que o sujeito é construído socialmente (VIGOTSKI, 1994, VIGOTSKI, 2010). Percebemos, em nosso processo de pesquisa, que a aprendizagem foi lentamente construída com as inúmeras oportunidades do dia a dia, de forma contextualizada, engajada e significativa, tanto para os profissionais envolvidos quanto para as crianças. Seguimos a rotina da escola, do tempo das atividades. Nosso acompanhamento fora da sala de aula acontecia em diferentes espaços das escolas, com diferentes pessoas e com múltiplos brinquedos, cada dia era uma nova aventura/aprendizagem.
Os brinquedos eram utilizados para trabalhar as diferentes funções mentais, muitas vezes passamos mais de uma semana trabalhando a mesma função mental, porém, nunca repetíamos o mesmo brinquedo dois dias seguidos, no outro dia era utilizado outro brinquedo que desenvolvesse a mesma função, pois quem ditava o tempo necessário era a criança. Não queríamos fixar uma rotina de atividades, pois uma das questões era o processo de adaptação a diferentes situações e brincadeiras. Se a criança gostasse muito de um brinquedo e pedisse, era negociado e marcávamos um dia na outra semana para brincar. A estratégia de marcar o dia de brincar com aquele brinquedo, ajudou na compreensão do tempo. No final da intervenção, Benício (nome fictício de uma das crianças) já contava os dias que faltavam para brincar do que queria.
Análise dos dados coletados com a mãe e as professoras de Hugo
As crianças conseguiram aprender e essas aprendizagem impulsionaram o seu desenvolvimento. A evolução das crianças foi percebida, não apenas pelas professoras, monitoras e mães, como também pelos outros profissionais da escola e até pelos demais familiares das crianças, como apresentado no Quadro 1:
Quadro 1 Percepção da mãe e professoras sobre a aprendizagem de Hugo
Funções mentais adquiridas | Discurso |
---|---|
Aprendeu a brincar | Ele gosta de brincar de massinha, eu percebo também Ane que ele, que ele diminuiu muito a atenção dele na tv, ele brinca mais com os brinquedos, mesmo que a tv esteja ligada, antes não, ele ficava mais tempo assistindo, hoje não, ele não precisa ficar na frente da tv, ele fica brincando em outros lugares. Ama um espelho, uma vaidade que só Jesus, (risos), ama um espelho e ele brinca mais com os brinquedos, sabe? (Mãe de Hugo). |
Socialização | Hugo melhorou bastante, do início do ano para cá, ele é outra criança, no início do ano ele era uma criança que sempre queria estar só, em vários momentos se isolava, não socializava com ninguém, nem com os coleguinhas, então a gente procurou formas de chamar a atenção dele e, com a ajuda de todos, ele começou a socializar e a interagir. (Professora de Hugo). Hoje ele interage bem melhor com os amiguinhos dele, Né? Se estiver em uma rodinha, estiverem brincando, ele fica ali junto com os colegas, ele brinca, brinca com as pecinhas, não conversa com as crianças, mas só em estar dividindo os mesmos brinquedos, já é uma grande evolução, pois isso não acontecia no início do ano. (Professora de Hugo). |
Interesse pela fala | Ele melhorou bastante, quando eu entrei aqui no começo do ano, Hugo não fazia nunca o que ele faz agora, ele está bem evoluído mesmo, já está falando umas palavras que ele não falava nada. (Monitora de Hugo). Às vezes, quando ele não conhece a palavra ele fica fazendo uns gestos de como seria a palavra, ele tem um interesse pela fala. (Mãe de Hugo). Em casa, em casa, eu percebo assim, quando ele está brincando, ou assistindo tevê ele não dá muita atenção com as palavras que eu falo para ele repetir, mas aí o que é que eu faço, eu coloco ele no colo e fico dizendo as palavras, ele já diz, se ele sentar no meu colo, ele já fala todas as palavras .... ele diz água, ele diz mamãe, que antes era só ainha, papai ele já fala, ele já fala vovó, ele fala Hugo. (Mãe de Hugo). |
Participação na rotina da escola | Ele gosta muito da rodinha, antes ele não gostava, mas agora, quando acaba ele fica chorando, porque ele ainda quer a rodinha, hoje ele gosta de participar da rodinha. (Monitora de Hugo). |
Seguir comandos e concentração | No começo, ele não podia ver um papel, hoje se a gente pedir para guardar um brinquedo ele guarda, se tiver um brinquedo assim e a pessoa disser: “Hugo, pegue o brinquedo”, ele pega, Ave Maria, é a coisa mais linda, ele guardando os brinquedos (risos), porque antes, nunca que ele guardava. Ele atende mais os comandos, ele está mais atento. (Monitora de Hugo). Hugo está bem, a gente percebe a evolução dele, ele evoluiu bastante, hoje ele se concentra melhor, tá realizando algumas atividades, ele para para ouvir, embora ele ainda não entenda muito bem, assim, algumas coisas que a gente pede a ele, ele não realiza, algumas atividades, mas pelo menos ele para para te ouvir, quando eu chamo o nome dele, ele vira, ele olha, na direção da pessoa que está falando, ele ainda não aceita muito, é, ainda não aceita um não, faz algumas birras, mas eu percebi muita evolução. (Mãe de Hugo). Ontem mesmo a professora dele chegou e chamou “Vamos sentar na rodinha” e ele foi, a coisa mais linda, bem tranquilo”. (Mãe de Hugo). Eu percebo que ele está muito mais concentrado na sala, muito, e não é só com a professora que ele tem o hábito, nem só com você, esses dias A PROFESSORA DE HUGO adoeceu, e quem veio substituir foi Ana e a tarde era a professora do maternal e eu olhando pelas câmaras, ela fez a rodinha a tarde, né? fez a rodinha e ele ficou sentado, de frente para ela e tudo que ela fazia ele repetia, era a coisa mais linda, eu ainda gravei, eu ainda gravei vou te mandar para você ver, né? foi muito lindo, ele está ótimo. Ele está muito, muito, eu percebo muita evolução nele, sabe? Graças a Deus, graças a Deus e a sua paciência. (Mãe de Hugo). Hoje ele segue as rotinas e os nossos comandos, a gente chama e ele vem, a gente diz não e ele entende.( Professora de Hugo). No início, a concentração dele não era voltada à gente, a gente falava, cantava música, fazia o possível para chamar a atenção dele, mas que não chamava tanto e hoje ele mudou bastante, ele observa bem, ele começou a falar, não frases formadas ainda, mas diz palavras soltas e está começando a fazer, a juntar as palavras, de duas ou três e a cantar músicas, ele brinca mais com os colegas, ele obedece mais os comandos, se a gente chama o nome dele ele olha, sabe que é com ele, então isso era uma coisa que não acontecia. (Professora de Hugo). |
Cuidados pessoais | Pronto, escovar os dentes, ‘vixe’, era uma luta para escovar os dentes de Hugo, hoje ele adora, escova de boa mesmo, lava as mãos, lava bem, faz tudo de boa. (Monitora de Hugo). Ele evoluiu muito, a gente percebe, é visivelmente perceptível que ele evoluiu, que ele dá mais atenção, que ele faz bem mais ações que antes ele não fazia, hoje, eu não sei se você observou, que até mesmo no pentear do cabelo, que antes ele não permitia, ele está mais tranquilo, ele hoje, escova os dentes que antes ele não escovava, não permitia que escovasse os dentes, então, assim, ele está mais concentrado, está aceitando mais as coisas. (Mãe de Hugo). |
Comer sentado | Ele senta na mesinha, embora que depois de um tempo ele levante, pois ainda gosta de correr, mas hoje ele senta para comer. (Monitora de Hugo). Hoje ele senta para se alimentar, foi uma das coisas que percebi que você insistiu bastante, que antes ele ficava correndo, ficava solto, se alimentava correndo, mas hoje ele senta, até em casa, hoje ele senta, na mesa. (Mãe de Hugo). |
Reação aos estímulos do mundo externo | Agora se alguma criança tomar o brinquedo dele, ele bate, antes ele não estava nem aí, já hoje, ele tem mais ação, se tomar ele vai lá, toma, bate. Se não mexer com ele, ele fica quieto, mas se mexer com ele, agora ele reage. (risos). (Monitora de Hugo). |
Planejamento mental | Quando é para ele ir para casa ele tem que calçar a chinela e pegar a bolsa, ele vai atrás de mim, se eu não fizer ele fica chorando, ele já sabe que tem que pegar, tem que pegar a mochila e calçar a chinela. (Monitora de Hugo). Ontem ele fez uma coisa que ele ainda não tinha feito. ...Ele pegou a fralda que eu já deixo lá, visível, dentro do quarto, ele pegou a fralda, levou até a mim e pediu para colocar a fralda, assim que eu coloquei ele fez cocô. [planejamento]. Eu fiquei assim, eu não acredito que ele fez isso não. Ele foi lá, pegou a fralda e pediu para colocar. Ave Maria eu fiquei encantada, eu fiquei encantada. (Mãe de Hugo). Sabe o que ele fez essa semana? A coordenadora, disse que não anda mais de bolsa aqui, pois ela deixou a bolsa dela na mesa, ele pegou a bolsa e entregou a ela e colocou ela para sair. (Mãe de Hugo). |
Aprendeu a sorrir | Ele não era de rir, assim, se você brincasse ele ria, mas não era aquela criança de rir espontaneamente. Ele não era assim de ser risonho não, ele sempre era “fechadão” (Mãe de Hugo). |
Compreende a rotina escolar | Ele conhece a sala dele, quando chega ele vai direto. Ele conhece os colegas da sala dele e no almoço ele fica bem sentadinho esperando o almoço dele chegar. (Monitora de Hugo). |
Coordenação motora | Uma coisa que Hugo evoluiu muito, que eu fico muito feliz, meu coração se enche de felicidade, pois no começo do ano Hugo não fazia circuito motores, ele não descia um escorregador no parque, hoje ele desce, Hugo não pulava quando a gente fazia o circuito, hoje ele pula, Hugo não corria, hoje ele corre, são coisas pequenas, mas que a gente que conhecia e ele não fazia isso, torna uma coisa gigantesca, gigantesca. (Professora de Hugo). |
Afetividade | Agora ele abraça e beija as professoras, sempre pede, e, quando elas começam a brincar, assim, a evolução dele é visível, assim, eu só tenho a agradecer. (Mãe de Hugo). As meninas percebem a evolução dele, elas mesmas comentam, Mãe ele, assim, antes ele gostava muito de ficar pela cozinha, né? Só que agora, além de não ficar na cozinha ele tem um apego maior às tias. (Mãe de Hugo). |
Faz a pinça para pegar no lápis | “A professora está fazendo na sala, e ontem mesmo quando eu entrei na sala, ela estava sentadinha com ele, e ele fazendo a atividade do nome dele.” Continuou : “Ele está bem mais esperto .Você não sabe de nada, ele achou um batom que é um lápis, as minhas cadeiras da sala, eu vou tirar uma foto e ti mandar, as minhas paredes estão um absurdo, o que é de caneta está tudo sendo escondido lá em casa, meus lápis de olho ele acabou todinho, na parede, ele acabou uma maquiagem completamente, só riscando as cadeiras. (Mãe de Hugo). |
Percepção | Hoje eu acredito que Hugo pode fazer tudo que ele quiser, acredito não, ele pode fazer, ele consegue, antes ele tinha medo, o que você trouxe Ane, também foi isso, foi a confiança nele ... foram trabalhadas tantas habilidades em Hugo, que a confiança dele só aumentou. (Professora de Hugo). |
Fonte: Entrevistas realizadas com a professora, a monitora e a mãe de Hugo.
Como as entrevistas eram não estruturadas e as entrevistadas falavam o que consideravam relevante, algumas categorias foram enfatizadas pelas mães, mas não foram relatadas pelas professoras, ou foram relatadas pelas professoras, mas não foram relatadas pelas mães. Criamos as categorias acima para agrupar os discursos, embora alguns discursos pudessem se enquadrar em mais de uma categoria. Podemos identificar que, com uma intervenção direcionada ao desenvolvimento integral da criança, com foco nas suas necessidades e que esteja conectada com a vida diária, a criança consegue aprender e se desenvolver. Dessa forma, iremos descrever os aspectos apontados pelas mães e professoras na aprendizagem e no desenvolvimento das crianças investigadas.
A mudança depois da intervenção foi percebida tanto pelas professoras, quanto pelas mães. No entanto, um aspecto nos despertou atenção especial, que foi o fato de percebemos uma certa surpresa com os novos comportamentos, com a aprendizagem e com o desenvolvimento das crianças que participaram da pesquisa. Se existe no país, um método de trabalho utilizado em várias formações continuadas, que são prescritas inclusive pelos médicos, que ao emitirem o laudo encaminham para as terapias, o esperado era que a criança evoluísse. Se desenvolver era para ser o padrão, o esperado, o exigido. Uma vez que, pela constituição, todas as crianças possuem o direito a ter uma educação de qualidade.
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...]
VII - garantia de padrão de qualidade (Brasil, 1988).
A fim de que seja possível efetivar o que está proposto no texto constitucional, é necessário que a educação seja, além de eficiente, também eficaz. Não adianta um trabalho com planejamento, recursos audiovisuais e concretos, se o resultado não é a aprendizagem e o desenvolvimento. A metodologia empregada precisa surtir efeito. Não queremos, com isso, dizer que apenas a teoria de Vigotski seja eficaz. O que sinalizamos com a experiência deste estudo é uma prática positiva, que trouxe resultados significativos para a aprendizagem de Hugo e Benício, duas crianças com autismo. Desse modo, defendemos que o olhar particularizado, enxergando a criança e direcionando a educação para as necessidades apresentadas pelo aluno, pode conduzir a resultados satisfatórios, a partir da teoria vigostikiana (Vigotski, 2005, VigotskI, 1997).
A surpresa com o progresso demonstra que não era o esperado, as mães já tiveram outras experiências de intervenção que não modificaram a performance na aprendizagem e no desenvolvimento da criança. O discurso sobre o autismo na literatura, apresenta, muitas vezes, um aspecto um pouco determinista, ou seja, “se ele tem autismo, vai ter esses comportamentos”, sem considerar que o ser humano pode ir muito além dos limites impostos, inclusive pelos seus aspectos biológicos. E as crianças terem evoluído demonstra que o problema não está apenas no autismo, mas nas formas como intervimos, na forma como organizamos as atividades educativas para essas crianças e na forma como “tratamos” as manifestações.
Outro aspecto mencionado pela mãe de Hugo foi o desenvolvimento de um maior apego às professoras e à pesquisadora. Elucidamos, nesse sentido, que a afetividade é um aspecto muito importante para o desenvolvimento infantil e para as interações sociais. Conseguimos estabelecer fortes vínculos emocionais com as crianças e esse aspecto precisa ser mais investigado.
Como nossa base era a intervenção de forma lúdica, começaremos nossa análise identificando se as crianças aprenderam a brincar funcionalmente na escola e em casa. A mãe e as professoras relataram o interesse pelos brinquedos e brincadeiras, o que se alinha à seguinte análise:
Quando se fala do TEA, é importante atentar ao fato de que algumas crianças apresentam prejuízos em determinadas funções, sejam elas relacionadas à capacidade do entendimento simbólico ou às habilidades de relacionamento com o outro e com o mundo, de modo a acometer significativamente a ludicidade. Dessa forma, nota-se que essas crianças tendem a preferir brincar com objetos, evitando contato com outras pessoas, já que possuem limitações nas habilidades sociais (Moura; Santos; Marchesini, 2021, p. 26).
Inferimos que o prejuízo em determinadas funções mentais não é a causa subjacente para o desinteresse pelos brinquedos e brincadeiras, mas que o não brincar é que desencadeia os prejuízos no desenvolvimento das funções. Ou seja, se mediarmos com a criança para que ela desperte o interesse pela ludicidade e tenha experiências gratificantes com os brinquedos e brincadeiras, tal ação irá impactar em sua aprendizagem e em seu desenvolvimento.
Entende-se que a partir da brincadeira a criança tem a possibilidade de estimular diferentes pontos que são essenciais para o desenvolvimento, tais quais: habilidades socioemocionais, que serão experienciadas a partir do autoconhecimento e do manejo das emoções vivenciadas durante a brincadeira, assim como o conhecimento sobre o outro, de forma que a criança poderá desenvolver a capacidade da percepção desse outro que é, também, dotado de emoções; autonomia, já que, no contexto da brincadeira, a criança entra em contato com tomadas de decisões, realização de escolhas, organização do ambiente, resolução de conflitos, definição e criação de regras; motricidade, enquanto manipula os objetos e se movimenta de forma planejada, percebendo o ambiente em que está inserida, o que, consequentemente, estimula o refinamento das motricidades fina e ampla; e comunicação e linguagem, que poderão ser aperfeiçoadas pela interação com o outro e diante de situações que requerem a utilização de recursos comunicativos, sejam eles verbais ou não. (Moura; Santos; Marchesini, 2021, p. 29).
Existe um grande investimento, tanto nas escolas, como fora dela, para que as crianças típicas aprendam brincando. Desde o final do século passado, cresceu o número de professores interessados em desenvolver atividades lúdicas com seus alunos, tanto individuais quanto grupais. A maioria das escolas da educação infantil possuem parques, espaços com terra e vários brinquedos nas salas de aula. Entretanto, não raro, o capacitismo atravessar a educação e as crianças com algum tipo de deficiência ou necessidade específica, como as que têm autismo, são, de antemão, vistas como incapazes. A elas, muitas vezes, os brinquedos são dados não para que aprendam e se desenvolvam, mas apenas para que sejam entretidas, que se mantenham ocupadas, sem que haja uma real finalidade educativa. Não nos opomos, claro, ao lúdico como fruição e prazer, nos referimos é a uma prática descuidada, bem como capacitista, que já exclui desses alunos a possibilidade de aprender, pois são lidos socialmente como incapazes.
Szundy e Fabrício (2019, p. 69), apoiadas em Volóchinov, destacam que:
Como bem nos lembra Volóchinov (2017 [1929], p. 93), o campo ideológico coincide com o campo dos signos. Eles podem ser igualados. Tudo que é ideológico possui uma significação sígnica, isso quer dizer que nossas subjetividades não estão fora do discurso e que ganham existência dentro de um sistema semiótico de classificações. Na forma de conhecimento modernista-colonial, um conjunto de categorizações agrupou seres humanos segundo uma lógica dicotômica e hierarquizante, produzindo modos de outramento perniciosos. Estes se instauram sob critérios semânticos de raça, gênero, sexualidade, classe social, entre outros, tomado como descritores de realidades essenciais. É nesse sentido que quaisquer usos de linguagem, como os classificatórios, por exemplo, operam ideologicamente, encadeando percepções de linguagem e de sociabilidades. Ideologias linguísticas, portanto, ocupam um espaço central em nossas (inter)ações com recursos semióticos do mundo social.
Destacamos que, conforme exposto pelas autoras, a sociedade se organiza também a partir de discursos, o que ressalta a importância da aquisição da linguagem, de variadas formas. De outro modo, a partir do exposto pelas pesquisadoras, destacamos a perniciosidade de discursos capacitistas e preconceituosos, que estigmatizam as pessoas com autismo e impedem que elas possam desenvolver aprendizados e potencialidades. É justamente esse discurso binarista, classificatório e hierarquizador que vai dizer que alguns devem ser privilegiados, enquanto outros apenas entretidos, tornando, assim, o projeto de educação inclusiva apenas um faz de conta.
Em contraposição a essa perspectiva, as crianças da nossa pesquisa aprenderam a brincar e, através desta aprendizagem, compreenderam muitas outras coisas, como o reconhecimento de seu próprio corpo e da presença dos outros nas atividades, seja imitando a professora, seja interagindo com as outras crianças. Sair da televisão e se envolver em atividades lúdicas, desperta na criança o vivenciar a vida real, vida de atividades e não de passividade. Ela passa a agir sobre os objetos e a interagir com pessoas e não apenas com a imagem das pessoas na televisão. A aprendizagem das funções mentais superiores através das atividades lúdicas é fortemente defendida por Vigotski (Vigotski, 1994, Vigotski, 2005).
A maior interação também despertou para a fala, pois Hugo consegue compreender em que situação deve utilizar as palavras, não somente repetindo o que a mãe fala, mas utilizando a fala como símbolo que traz recordações de eventos passados. Isso ocorre ao cantar uma música com o estímulo do fantoche, por exemplo, pois recorre à memória que foi trabalhada com outros brinquedos e que se materializa com o entendimento dos tempos de execução de atividades na escola. Neste sentido, ele interpreta estímulos do ambiente, já entende que a formação da fila na sala para ir para o refeitório é a preparação que antecede a hora do lanche.
O desenvolvimento da função simbólica é fundamental para o desenvolvimento cognitivo, sendo também o alicerce para a aquisição da linguagem, como um caminho para a construção dos sentidos, a partir dos significados. Só desenvolvemos a linguagem na interação com o ambiente e com o outro, visto que a partir destas interações é que os signos e os significados vão sendo construídos. Sem participar do mundo “cultural”, as funções psíquicas não seriam desenvolvidas.
O desenvolvimento mental passa necessariamente pelo desenvolvimento de memória, que é diferente da repetição de conceitos, frases ou palavras, é um guardar de experiências, sensações e signos. A memória ajuda no processo da atenção, pois temos mais facilidade de focar nossa atenção em atividades que façam parte de nossas vivências, das atividades prazerosas, que tenham significado. A função simbólica é muito importante para viabilizar o registro mental das informações que serão utilizadas nas atividades, na organização das informações e, consequentemente, na concentração. Todas as informações são importantes para o desenvolvimento cognitivo e criativo da criança, que pode agora planejar suas respostas dentro de um repertório mental, analisar qual ação vai escolher no momento. Em diferentes níveis, o planejamento mental está presente em diversas ações intencionais da criança.
A brincadeira ajuda muito no desenvolvimento da função mental. Isso porque, quando a criança escolhe o brinquedo, a peça que vai ser utilizada, em que sequência, o que fazer, que papel irá representar, dentre outras atividades, ela aciona esse processo de “guardar” as ações e, assim, passa a memorizar as ações desenvolvidas, as escolhas feitas, o que cada episódio causa emocionalmente nelas, dentre outras ações/sentimentos.
Desenvolvemos muitas brincadeiras que ajudavam nas funções mentais necessárias para a participação nas atividades escolares. Os brinquedos de seguir comandos foram bastante utilizados, sempre começamos com o próprio corpo da criança, mostre o olho, o cabelo, ou bata o pé, ande até a bolinha verde, pegue a pecinha que caiu no chão, a formiguinha pegou a barriga, depois passamos para as regras do jogo. Com Hugo, os comandos eram bem específicos, pegue tal brinquedo no saco, coloque o verde perto do vermelho, segure o martelinho com essa mão, coloque o fantoche nessa mão. Tivemos muitos momentos para ajudar a fazer a pinça, jogo de dados, pescaria com uma varinha bem pequena que ele era conduzido a pegar de pinça para ter mais precisão do movimento, e só depois passamos para o lápis. Depois que ele aprendeu a seguir os comandos nas brincadeiras, seguir os comandos da professora para a execução das tarefas ficou mais fácil. No início, os comandos eram falados e demonstrados, mas gradativamente ele executava as tarefas apenas com os comandos verbais e com as memórias de execução das tarefas.
Com as novas aprendizagens, a criança se organizou melhor, começou a participar das atividades e a sentar para comer e executar as tarefas. A percepção do outro e dos objetos se expressa na disputa pelos brinquedos que está usando. Antes qualquer criança tomava o que ele tinha, batiam e passavam por cima dele. Entretanto, com a evolução do significado dos objetos e da percepção do meio, ele começou a empurrar de volta, a revidar quando batiam e a pegar seus brinquedos que tinham sido tomados. Mesmo que ele não tenha consciência de seus direitos, pois ainda é muito pequeno, já começou a lutar pelo que é seu.
As entrevistadas também verbalizaram sobre suas aprendizagens e suas percepções, para ilustrar as falas, apresentamos o Quadro 2 a seguir:
Quadro 2 Aprendizagem da mãe, da professora e da monitora de Hugo
Aprendizagens | Discurso |
---|---|
Relação com a criança | Eu não tinha nem noção do que era autismo, eu nunca tinha tido nenhum contato com autista não. Eu ficava perdida, sem saber o que fazer, agora eu já sei mais ou menos como lidar com ele, tem muita menina que não sabe, não sabe lidar com ele, nem gosta de dar banho, essas coisas, não sabe lidar com ele, sabe como é? Eu já estou bem tranquila com relação a isso. (Monitora de Hugo). |
Ajuda a criança a se organizar mentalmente | Eu vi o que você faz quando ele está com raiva e eu faço também, ele adora quem faz carinho nele, nos dias que ele está muito estressado eu aliso ele e ele se acalma mais. (Monitora de Hugo). |
Realiza tarefas com a criança | À tarde tem pouca criança e ele fica mais, como é o nome? Ele interage mais, eu fiquei com ele correndo, pedindo para ele correr atrás de mim e ele realmente obedece aos comandos. “Corre Hugo” e ele vinha, tipo pega-pega, não tem? Ele corria atrás de mim e eu corria atrás dele, aí depois eu pedi para ele pular, “Pula Hugo”, e ele fazia um esforço para pular, não tem? As vezes ele não consegue pular, mas ele ficava tentando (risos) e depois conseguiu e antes nunca que ele fazia isso, e ele obedece hoje, obedece aos comandos, Ave Maria é muito bom. Eu dizia “Pula” e ele conseguindo pular mesmo. (Monitora de Hugo). O que mais gostei foi ver ele interagindo mais, obedecendo aos comandos da gente, só de ver ele evoluindo é bom demais, cada coisa que ele faz, que a gente nota, a gente fica bestinha. Não sei se você viu o vídeo que eu fiz, foi até da música do jacaré, não sei se você viu o vídeo, ele fica abrindo a boca na hora do jacaré, Ave Maria eu e a professora ficamos babando, ficamos doidinha, que eu nunca tinha visto ele interagindo daquele jeito, que nem sentar na rodinha ele queria. (Monitora de Hugo). |
Percepção sobre a pesquisadora | Às vezes eu falo com ela: “Ave Maria, Ane tem tanta paciência com esses meninos”, é tanto que os outros meninos perguntam por você também. (Monitora de Hugo). As atividades que você desenvolveu com ele foram muito boas, muito legais e que realmente chamava atenção, acredito que não teve nenhuma atividade que você levou que não o atraiu, eu percebi, foi muito bom pra mim, eu percebi que, realmente, é ... o brincar é muito importante, eu já sabia que era importante, né? É óbvio, mas assim, tão forte que é o brincar na educação infantil. (Professora de Hugo). |
Percepção sobre a professora | A professora está muito atenta com ele. (Monitora de Hugo). Eu acho que as professoras conseguem seguir com o trabalho. (Mãe de Hugo). Elas são um amor, elas têm esse cuidado, essas besteirinhas, ele é pesado, as meninas na sala e eu lá de Santa Helena assistindo, elas colocam ele no braço e ficam pulando (...) ele fica às gargalhadas. (Mãe de Hugo). |
Percepção sobre a criança | Ave Maria, eu adoro Hugo, eu adoro ele mesmo. Eu gosto muito de Hugo, porque ele é muito amoroso, só fica com raiva se enraivar muito. (Monitora de Hugo). |
Percepção sobre a intervenção | Quando você chegou eu achei que seria bom, pois a gente vê que você tem noção de como lidar com ele e a gente aprendeu com você, tanto que foi muito bom, eu amei. Hugo está muito evoluído, eu ainda lembro do começo do ano, ele não prestava atenção, assim, não tinha noção de nada né? já hoje não. (Monitora de Hugo). Quero agradecer demais, demais, demais, por tudo que você contribuiu, tanto que você contribuiu para a evolução de Hugo, tanto eu quanto o pai dele, somos muito gratos por tudo que você tem feito. (Mãe de Hugo). Percebi nas suas interações com ele, que ele está evoluindo bastante com você. (Mãe de Hugo). O tempo que você passou com a gente foi o pontapé para os avanços de Hugo, nos ajudou bastante, você esteve sempre ali, presente com a gente, nos ajudando, dando dicas de como a gente poderia melhorar mais ainda e foi aí que eu fui percebendo, observando também, e vendo algumas ações e atitudes que eu também poderia fazer com Hugo para que ele realmente se desenvolvesse. (Professora de Hugo). Foi muito bom ter passado esse tempo com você Ane, porque não foi só Hugo que evoluiu, eu como professora, a monitora, nós todos aprendemos, e assim, era uma dificuldade minha, trabalhar com crianças com autismo... eu não sabia se estava no caminho certo, você trouxe isso também para gente, trouxe ideias, dicas, aprendizado, companheirismo, nos ajudou bastante, e a gente agradece demais, pois quem vê Hugo hoje, fica abismado com o tamanho da mudança que ocorreu desde o início do ano. (Professora de Hugo). |
Percepção das tias e avós sobre a evolução | Sempre quando ele faz alguma coisa diferente, a gente grava e a gente sempre manda para as tias dele, as que moram em Fortaleza, em Santa Helena, para os meus irmãos também e para minha mãe e minha sogra, a gente sempre manda sabe? Elas estão encantadas, ele não tem ido muito ver minha mãe, pois ela é bem idosa, mas a gente sempre manda os vídeos, aí quando eu estou cantando, ou estou conversando com ele, eu gravo, elas ficam no céu, minha mãe chora, minha mãe chora, toda vez .... toda vida que alguém faz uma gravação dele eu mando para elas e toda vez é um choro, elas ficam emocionadas. (Mãe de Hugo). |
Fonte: dados coletados nas entrevistas com a mãe e as professoras de Hugo.
Em relação aos discursos das professoras, foi perceptível que aprender a mediar com Hugo, as deixou bem mais seguras e tranquilas. Nos relatos, percebemos o interesse e o envolvimento das professoras com a aprendizagem dele. Mesmo que algumas vezes elas associem a evolução da criança, com características pessoais da pesquisadora, como, por exemplo a paciência, que foi citada, aos poucos elas percebem o método e passam a executar as mesmas ações.
Análise dos dados coletados com a mãe, a professora e a psicopedagoga de Benício
O período de intervenção com Benício foi um pouco menor do que com Hugo, pois inicialmente faríamos a intervenção em uma única escola. Trabalhamos alguns aspectos com Benício, que não foram possíveis de serem trabalhados com Hugo, pois eles estavam em momentos diferentes de desenvolvimento. O processo de intervenção foi centralizado nas necessidades da criança, em suas potencialidades e em suas dificuldades. Iremos detalhar os aspectos trabalhados na percepção dos adultos, ilustrados no Quadro 3.
Quadro 3 Percepção da mãe, professoras e psicopedagoga sobre a aprendizagem de Benício.
Funções mentais adquiridas | Discurso |
---|---|
Aprendizagem | Eu não sei se fica correto eu usar as palavras que ele mudou da água para o vinho, mas Ane Cristine, Benício.... “a professora” está de prova, do ano passado, pra esse ano, depois que você começou a acompanhar ele, eu acho que mudou para melhor, eu acho que 95%, assim, não que ele só tinha 5% de coisas boas, mas assim, no desenvolvimento escolar, ele passou a gostar, a se interessar, a se desenvolver em todos os sentidos, até em casa comigo, na hora da tarefa escolar. (Mãe de Benício). Eu estou com Benício desde o ano passado, é, desde o mês de setembro do ano passado, quando ele chegou, ele era muito complicado de se trabalhar, eu não diria difícil, eu diria complicado para mim, que eu não tinha conseguido entrar naquele mundo dele ... Esse ano ele voltou diferente, ele voltou, apesar dele resistir a fazer, a executar atividades que envolvem escrita, mas ele te escuta mais e quando faz atividades do ponto de vista de jogos de montar, que não envolvam muito escrita, ele não tem resistência nenhuma, não é mais aquela criança que era. (Psicopedagoga de Benício). |
Atenção e concentração | Ele tinha uma, que ele ainda apresenta um pouquinho, vez por outra ele apresenta, mas ele apresentava muito a dificuldade motora, a agitação motora era muito forte nele, ele jogava a sandália para cima, ele não parava na roda e o seu trabalho em sala com ele tem ajudado ele a ter o, um olhar para o que acontece, o que a turma está fazendo, o que a professora está apontando ali como demanda, antes ele não ... assim, ele ficava disperso, ele ia para o meio da roda, ele se jogava. Com a tua presença, né? Você tem ensinado essa habilidade de escutar, de prestar atenção e de manter o foco naquilo que a gente está orientando. Isso foi muito positivo, está sendo muito positivo. (Professora de Benício). Essa semana ele apareceu em uma foto que publicaram do projeto de leitura, não sei se você acompanha, porque antes ele não aparecia nas fotos, ele não aparecia em nenhuma foto nessa situação, aparecia não, eu queria que tu visse, principalmente no ano passado, no pré I, menina, em hipótese alguma Benício fazia esse sentar de borboleta, com as pernas na frente e principalmente parar, olhar para a câmera era impossível, eu queria que tu visse, era luta, era muito difícil Benício tirar os cinco dias da semana na escola, porque era assim, uma reclamação em cima da outra, as vezes eu buscava ele antes, tipo assim, ele virando a sala, tu tá entendendo, não ficava de forma alguma na rodinha, era caindo por cima das outras crianças, passava e derrubava as cadeiras, as coisas que estavam em cima das cadeiras, menina, era luta e eu chorava de desgosto. (Mãe de Benício). Eu acho que ele mudou no comportamento, na sensibilidade, no ouvir, no ouvir, porque ele não queria escutar a gente. (Psicopedagoga de Benício). Aqui ele senta, só que antes, quando ele chegou ele queria trazer tudo, tudo, tudo, tudo, hoje ele já senta, as vezes eu digo: “Benício, você senta que eu vou buscar o que tem para você”, aí ele já senta. (Psicopedagoga de Benício). |
Interação social | A interação também tem evoluído bastante, é, antes ele pegava um brinquedo e se isolava, brincava, a gente via que ele estava no grupo, mas agora ele está mais ativo, fazendo junto com o colega, o colega monta a pecinha e ele está ali, interagindo mais com os colegas durante as brincadeiras, já guarda o brinquedo junto, aceita essa troca de turno, um fazer e o outro fazer, que antes ele se isolava, pegava as peças, virava de costas e queria fazer só, ele evoluiu bastante neste aspecto. (Professora de Benício). Eu já percebi que você está ajudando ele a perceber o outro, já vi você mediando para ele ajudar os colegas, isso ajuda ele a se aproximar do outro. É uma habilidade interessante, ajuda muito. Ele conserva mesmo quando você não está, ele está conseguindo mesmo quando você não está. (Professora de Benício). Hoje ele está bem desenvolvido, mas foi a peça primordial de você estar com ele, foi no desenrolar socialmente com as crianças, que ele não sabia fazer isso, ele já tinha mais habilidades em contas em casa, do alfabeto em si, mas a socialização era quase zero, eu tinha um desgosto tão grande, porque “a professora” dizia né, que ele tinha dificuldade no parquinho com as crianças, né, não tinha amizade. Hoje é completamente diferente, que “a professora” me diz, que ele se socializa totalmente no parquinho e antes ele não conseguia me contar nada quando chegava em casa e é tão de um jeito que hoje, eu achei engraçado demais, semana passada ele olhou pra mim e disse mesmo assim - “Mamãe a menina que eu gosto mais é “Estrela” e o menino “João”, Benício nunca na vida citava nomes, tu tá entendendo? E agora, pra mim é uma felicidade gigantesca, eu só tenho a agradecer, porque meu filho não se socializava com as crianças, que nem eu tô dizendo, era de um jeito que eu levava para a Art. Choperia, para os barquinhos, para os balneário dia de domingo eu tinha o maior desgosto, tipo assim, tinha um monte de crianças brincando na piscina, ele queria estar em um canto reservado, ele não ia não e no parquinho também não ia, queria estar mais reservado e agora é o contrário. Benício chega, conversa, ele quer justamente se entrosar com as crianças e foi tudo depois do desenvolvimento na escola, (risos), eu estou tão feliz que eu não tenho nem palavras. (Mãe de Benício). Ele nunca tinha se entrosado com ninguém, que ele tinha um problema sério com a socialização. (Mãe de Benício). Ele não sabia brincar com as crianças, ele empurrava, às vezes, sem querer, saia atropelando tudo, e já hoje não, por isso que eu te agradeço do fundo do coração. Ele mudou mesmo, ele consegue se socializar hoje com as crianças e dominar aquela brincadeira no parquinho, independente de ser uma criança ou dez, ele consegue, ele consegue se comportar, de saber a hora dele, ele não sabia a hora dele, tá entendendo? Por exemplo: tem um escorregador aqui, uma criança subindo de cada vez para descer no escorregador, ele não sabia fazer isso, ele queria empurrar e passar na frente de todo mundo pra descer primeiro (risos), ele não pegava fila, empurrava e passava, e agora ele sabe, ele sabe fazer isso sim, sabe esperar a hora dele. Antes não, a verdade tem que ser dita, agora ele já sabe. Eu digo assim, seu método é perfeito, (risos), seu método é perfeito, você está de parabéns. Muda a vida de muitas crianças, de muitas pessoas que precisam desse método, que antes era um método antigo. (Mãe de Benício). |
Fala | Benício tinha uma fala muito robotizada, eu tenho insistido muito com ele nesse aspecto, quando ele diz: “Benício vai”, na terceira pessoa, eu falo: “Eu vou”, aí ele repete: “Eu vou” e ele agora está mais funcional, ontem a gente saiu da sala e ele perguntou: “Por que que eu não fiz” e eu respondi: “Porque essa atividade a tia ainda não conseguiu concluir ainda com todas as crianças, não só com você, mas com quase toda a turma, eu só consegui fazer com 5”, ... , mas o que eu achei importante é que ele já disse: “Porque que eu não fiz”, ele poderia ter ido embora e não perguntar nada né? então, ele já está antenado nas conversas, se colocando. (Professora de Benício). Ele só dizia por que. Agora você faz uma pergunta a ele com o mesmo porque que ele usa e ele responde. (risos) que ele tinha raiva, por exemplo, quando ele perguntava o Porquê disso, eu olhava para ele e dizia -Benício, me diga o porquê disso. Ele tinha raiva, dizia: - “não”. Agora ele responde. Tudo que a gente pergunta ele responde. Era de costume ele só perguntar. Mãe, vovó, o porquê, porque, porque, e a gente retornava a pergunta para ele, ou então outras perguntas e ele não queria responder, não queria responder o mesmo porque que ele perguntava direto. (risos). (Mãe de Benício). No último encontro que eu tive com ele, eu percebi ele bem mais tranquilo e bem menos, é, com tantos porquês (risos), percebi isso nele, percebi ele mais adulto, assim, adulto na maneira de dizer, percebi ele mais maduro, porque era bem infantil quando chegou e agora eu percebo ele mais, mais assim, mais altivo, sabe? Eu percebi isso nele. (Psicopedagoga de Benício). |
Leitura | Eu me emocionei, ontem à noite, né? quando eu terminei o plantão ontem à noite, exausta aí eu liguei para minha mãe, toda vida quando eu termino eu faço chamada de vídeo, vejo ele, vejo minha mãe, meu pai, aí mãe disse: “Mãe de Benício, eu estou feliz demais com o desenvolvimento de Benício. Benício já está lendo, ela usou essa expressão, Benício já está lendo. (Mãe de Benício). |
Organização do pensamento | Eu já tinha percebido a inteligência dele, mas ele não conseguia se desenvolver e por isso que eu achei fantástico, eu agradeço a você e a Deus, porque tipo assim, ele se desenvolveu ultimamente, mudou da água para o vinho. Não sei nem se é interessante usar essa palavra, mas é tipo assim é como se ele tivesse colocando toda a inteligência dele para fora, que era guardada, camuflada, que ele não conseguia se soltar, se desenvolver. (Mãe de Benício). Ele evoluiu nestes aspectos, na questão da disponibilidade, a diminuição, porque no início era muito porquês ... e uma resistência de querer fazer as coisas, da última vez que ele veio já veio bem tranquilo e o que eu propus, embora teve um porque antes, mas ele exercitou, tanto na, no quadro acrílico, como na atividade mesmo é, impressa. (Psicopedagoga de Benício). |
Comportamento | Semana passada ligou pra mim (a professora) para conversar sobre um negócio lá da quadrilha, que eu fui perguntar sobre o calçado e tudo, mandei um áudio perguntando e ela ligou, aproveitou e ligou, aí eu aproveitei e fui perguntar sobre o desenvolvimento dele, aí ela disse que Benício estava realmente muito mudado na sala, parece ser outra criança, o comportamento, ela frisou mais no comportamento dele, ela disse: Olhe ele deixou daquilo de passar e derrubar as coisas, de derrubar as cadeiras, se acontecer de ele derrubar algo, ele mesmo apanha e coloca no cantinho, que antes ele não fazia isso. (Mãe de Benício). É como eu te disse, é como se ele estivesse amadurecido. (Psicopedagoga de Benício). Eu percebo assim, ele mais tranquilo, mais disponível, foi o que mais me chamou atenção, foi a disponibilidade, porque quando não se tem disponibilidade fica inviável o que você planeja né? (Psicopedagoga de Benício). |
Expressando sentimentos | Quando ele chegava com alguma coisa, triste, aí a gente perguntava, ele não falava, não dizia, não tinha quem fizesse, não tinha quem fizesse e agora não, agora ele sabe dizer, não diz assim, com toda a espontaneidade do mundo não, ainda não, mas diz, por exemplo: - “Benício, como foi hoje na escola? me conta”. Ele diz assim, uns pedaços, (risos), um pedaço do que aconteceu, não conta tudo que aconteceu não, mas agora ele já sabe, sabe expressar, ele sabe. (Mãe de Benício). É do mesmo jeito com a felicidade, vamos supor: - “Mãe, vamos para aquele canto que eu fico feliz.”, (risos). Engraçado, ele diz: “Mamãe, vamos rodar bicicleta comigo, que eu fico feliz.” (risos). Ele não sabe dizer assim: - “Mamãe, para eu ser feliz ....” um exemplo, ele diz o que quer primeiro para depois dizer (risos). Mas agora ele está dizendo, antes ele não dizia de jeito nenhum, não dizia de jeito nenhum, a gente tinha era preocupação com isso, queria saber o que era que estava acontecendo e ele não falava. (Mãe de Benício). Quando ele veio para cá, ele era seco, digamos assim, ele era aquela criança assim, parecia um robozinho, né? irritado, era um pouco irritado, não aceitava fazer o que a gente pedia ou sugeria para ele fazer. Hoje não, ele é disponível, mais disponível, ele consegue escutar, ele consegue fazer, e não com raiva, ele com entusiasmo, como se ele estivesse alegre, entende? Quando ele chega, ele já vem dando risada. (Psicopedagoga de Benício). |
Ajuda na organização da sala | No começo ele não queria, não queria não e dizia: “Eu não vou guardar”, eu dizia: “Benício, vamos guardar os brinquedos agora, tá chegando o horário de sair” “Não, eu não vou guardar, você guarda” ... Agora quando ele chega, ele sempre gosta de olhar o que tem dentro do baú, eu já expliquei que dentro do baú não tem nada, aí ele vai e escolhe o que ele quer e traz pra cá, eu sempre digo para guardar um para poder pegar o outro, senão mistura tudo. O alfabeto ele tira todinho, “Agora vamos colocar as letras no local”, aí ele coloca. (Psicopedagoga de Benício). |
Organização do material pessoal | Benício se desenvolveu tanto, que até nos mínimos detalhes a gente percebe Ane, no dia a dia, por exemplo: a gente chegava lá para pegar ele, Benício não sabia pegar nem a lancheira nem a pasta dele, hoje eu cheguei lá, aí disse: “Vamos Benício”, que eu cheguei do plantão e já fui eu que fui buscar, já deu tempo de pegar ele, quando eu cheguei lá, botei a cabeça e disse: “Vamos Benício”, ele estava conversando com três meninos, eu achei incrível aquilo ( risos), ele conversando mesmo, assim, aí quando ele olhou pra mim ele disse: “Mamãe”, aí eu disse: “vamos Benício”, aí do jeito que ele estava, a lancheirinha dele e a pastinha, pegou como se ele fosse um adulto, ele tendo responsabilidade com as coisas dele, e antes não, só queria que tu visse, era eu que ia e pegava, era, por incrível que pareça, era eu que pegava, que ele só levantava da cadeira, deixava tudo espalhado, aí ele pegou tudo, chegou bem pertinho de mim e disse: “Mamãe, ainda bem que a senhora chegou, que a senhora demorou muito hoje”, (risos). (Mãe de Benício). |
Fonte: Dados coletados nas entrevistas com a mãe e as professoras de Benício.
Houve muitas descrições do comportamento de Benício antes da intervenção, tanto pela mãe, como pela professora, como pela psicopedagoga, elas sempre relacionam o antes e o depois, o que foi interessante. Como ele interagia mais, mesmo que de forma desorganizada, as pessoas possuíam mais parâmetros para comparar. Se na análise de Hugo aparecia muito o surgimento das habilidades, com frases do tipo: - “ele começou a fazer isso ou aquilo”, agora iremos trabalhar com as comparações do comportamento de antes e do depois. Com frases do tipo: “antes ele fazia assim e agora faz assim”.
As frases “ele mudou”, “ele amadureceu”, ele melhorou 95%”, demonstram o quanto percebem as mudanças de Benício. Os seres humanos apresentam muita dificuldade em mudar comportamentos já enraizados, o processo, geralmente, leva muito tempo, mesmo em crianças ou adultos típicos, mas ele conseguiu, em pouco mais de três meses. E conseguiu em padrões de comportamento difíceis de serem mudados, como seguir regras de convivência social e mudar sua forma de comunicação. Além dos brinquedos e brincadeiras, utilizamos muito a comunicação verbal, as experiências, as atividades grupais, a reflexão, a inversão de papeis nas brincadeiras e o uso da imaginação, além de experiências que permitiam a escolha, o aguardar a vez, o esperar, o planejar, a autonomia e, para mim, o mais importante, o desejo de realizar todas essas tarefas e o interesse e o apego pelo outro.
É por meio da brincadeira que a criança amplia as possibilidades de contato com o mundo, o que proporciona o enriquecimento das relações interpessoais e individuais, de forma que a experiência desses encontros insere a criança no contexto sociocultural. Então, a brincadeira é muito mais que puramente a ação de brincar. A criança age sobre o brinquedo, ao passo que o brinquedo age sobre ela e, dessa forma, constrói-se um campo em que aspectos criativos são estimulados a partir da resolução de problemas, do contato com situações conflituosas e necessidades do uso de estratégias para atender a demandas que surgirão no processo do brincar (Moura; Santos; Marchesini, 2021, p. 31).
Como pudemos observar nas entrevistas, foi aprendendo a brincar que Benício desenvolveu o foco, a atenção, o planejamento mental, a imaginação, a ouvir, a emitir sua opinião em grupo, a interagir e a expressar seus sentimentos. Foi brincando que ele aprendeu a viver socialmente, a fazer amigos, conversar, ajudar e ser ajudado, participar de todas as atividades coletivas, inclusive a ser mais amoroso e afetivo.
Ao considerar a complexidade do ensino do encadeamento dos comportamentos relacionados ao brincar, evidencia-se a importância de identificar procedimentos sistematizados, principalmente adaptados ao contexto brasileiro. Dentre os comportamentos encadeados no brincar pode-se destacar: a manutenção do contato visual com o brinquedo, manutenção do contato visual com o par, permanência na brincadeira, seguimento das regras, uso funcional do brinquedo, alternância de turno, vocalizações pertinentes ao contexto da brincadeira, finalização adequada da brincadeira. Frequentemente, nas intervenções estruturadas a crianças com TEA, cada um dos comportamentos descritos acima é ensinado separadamente. O encadeamento dos comportamentos do brincar, em geral, é ensinado e mantido com o uso de dicas, sendo necessários estudos que investiguem como realizar o esvanecimento completo dessas dicas. Estudos futuros podem listar tais comportamentos, de modo a produzir um guia de orientação a ser implementado por pais e professores, com o objetivo de ampliar o desenvolvimento da criança com TEA durante atividades típicas, como o próprio brincar (Albuquerque; Benitez, 2020, p. 15).
O brinquedo foi muito importante para ele aprender a respeitar os acordos comigo, utilizamos muitos jogos com regras e de ganhar e perder, todas as ações eram dialogadas, ele testava brincar sem as regras, emitia opiniões do que achava da brincadeira sem as regras, compreendia na vivência comigo o que acontecia se cada um fizesse o que quisesse. Também deixava ele treinar bem no jogo, para que pudesse ter condições de ganhar quando fosse brincar com outras crianças, e ele mesmo dialogava com as crianças que não queriam seguir as regras jogando com ele. Ele aprendeu a perder algumas partidas com os colegas e começou a valorizar quando ganhava.
Muito raramente eu dava dicas para a execução da brincadeira, na maioria das vezes testávamos a melhor forma de jogar e se ele inventasse uma regra para tirar proveito, eu utilizava a mesma regra em meu favor, até que ele compreendesse se a regra era justa ou não. As conversas sobre os jogos e as regras fizeram com que ele despertasse para as regras sociais, pois, depois desses momentos lúdicos, ele conseguiu desenvolver uma interação social muito melhor com os colegas da sala. Como demonstrado pela fala das entrevistadas, ele fez amigos, aprendeu, inclusive, a cooperar e ensinar o que tinha aprendido na interação comigo. Muitas vezes ele conversava com os colegas em um contexto bem pertinente, sobre algo que tínhamos conversado.
A participação da professora foi fundamental na evolução de Benício, o vínculo deles era satisfatório e ela passou a valorizar mais as interações sociais, sempre que era possível colocava Benício em destaque e enriquecia suas possibilidades de interação. A professora era didática para ensinar os novos conceitos e não tinha pressa em atingir os resultados.
Os valores e desejos permeiam sempre as relações interpessoais. O professor, ao possibilitar um contato real do aluno com o conhecimento, de forma afetiva e cognitivamente significativa para o sujeito, sem preconceitos e atitudes que o afastem de uma representação coerente e saudável com a realidade, abre um novo campo interativo. Este permite a troca intersubjetiva e a produção de novos conhecimentos e possibilidades de apropriação epistemológica individuais e sociais. Essa dinâmica integrada entre o desenvolvimento socioafetivo e intelectual no processo de ensino-aprendizagem é um campo promissor para a ação pedagógica orientada para o estabelecimento de uma escola para todos, universal, diversa e inclusiva (Pieczarka; Valdivieso, 2021, p.70).
Nas entrevistas também pudemos identificar que ele consegue demonstrar mais suas habilidades, o despertar para a leitura e para a soma foi uma conquista bastante valorizada, principalmente pela mãe, que se emocionou muito com a conquista. Outro fator percebido pelas entrevistadas foi a felicidade, expressa através da facilidade em que o sorriso aprecia nas relações e na execução das tarefas e nas brincadeiras. Nas palavras da psicopedagoga, ele deixou de parecer um “robozinho”, como percebemos também nas falas reproduzidas no Quadro 4:
Quadro 4 Percepção das entrevistadas sobre a intervenção com Benício.
Aprendizagens e percepções | Discurso |
---|---|
Percepção sobre a intervenção | A sua participação na sala está sendo muito fantástica, eu estou adorando, tem me ajudado bastante, né?, na visão, em muitos aspectos, sobretudo na interação, que a gente deu uma esquecida, da importância das interações, da importância de rever Vigotski, né? a gente está muito ligado na ABA, na ciência ABA e a gente acaba esquecendo desse outro olhar que é bastante interessante também e com Benício tem dado uma direcionada nas atividades de sala, né? tem ensinado a ele muitas habilidades, eu estou gostando bastante da sua participação na sala com Benício. (Professora de Benício). Tomara que a sua teoria dê certo, para poder nos ajudar, pelo amor de Deus. Tomará que essa pesquisa dê certo, eu quero ler. (Psicopedagoga de Benício). |
Importância de ter uma criança com autismo na sala | Ele está brincando mais, está sendo mais sociável. Os colegas também procuram mais ele, em alguns momentos eu ainda sinto que tem algumas crianças que sentem a dificuldade de engajar ele nas brincadeiras, mas está sendo um objetivo nosso, né? (risos). Para eles também aprenderem. O importante do autismo, ter uma criança com autismo em sala é esse, o olhar que todos conseguem evoluir e aprender, porque ninguém é igual, os outros, que são típicos, também têm suas dificuldades, que as vezes não é na comunicação, não é na interação, mas é em outro aspecto e as vezes é também na interação, embora não sejam autistas, mas ter uma criança autista na sala é uma possibilidade, é um leque de possibilidades para que a gente possa trabalhar com as crianças vários aspectos da interação e da comunicação, do respeitar o outro, do esperar a vez, entre outras habilidades necessárias para que as crianças cresçam e consigam conviver no coletivo, né? (Professora de Benício). |
Atividades repetitivas | Tudo que tira ela do mundo é prejudicial, eu acho que é prejudicial demais, focar naquilo que a criança consegue fazer já, só porque ela fica concentrada né? E a gente vê muitas professoras fazendo isso também, não só as famílias, mas os professores também fazem isso, por exemplo, se a criança domina a habilidade de brincar com a massinha e isso garante que ela se concentre, aí fica o tempo todo só com a massinha. (Professora de Benício) |
Vínculo com a pesquisadora | Eu reparo assim, o vínculo, o vínculo dele é muito grande, a verdade tem que ser dita, uma criança, quando ela vem se expressar que gosta de uma pessoa, é que de fato ela realmente gostou, e lá em casa ele se expressa, diz que está com saudade de sua pessoa, assim, quando ele diz eu entendo que ele tá dizendo que é a mesma saudade nossa. (Mãe de Benício). Ave Maria, eu agradeço demais, eu estou muito feliz, eu quero que você saiba que você faz parte da nossa família. (Mãe de Benício). |
Fonte: dados coletados nas entrevistas com a professora, a mãe e a psicopedagoga de Benício.
A professora de Benício já tinha muita leitura e muita experiência em trabalhar com crianças com autismo, inclusive com o método ABA. Em sua fala, fica evidente que percebeu o quanto a teoria de Vigotski ajuda no desenvolvimento das habilidades que não estavam sendo trabalhadas com a teoria que ela utilizava. Ela aceitou com entusiasmo a introdução da nova abordagem nas intervenções e percebeu a importância das interações. A psicopedagoga demonstrou interesse na teoria que eu utilizei com ele, em outros momentos da entrevista ela apontou que não se identificava muito com a ABA e que irá estudar mais Vigotski, pois considerou que Benício conseguiu evoluir muito com a intervenção.
Considerações
O processo inclusivo é responsabilidade de toda sociedade, e a escola, além de matricular o aluno, precisa modificar a sua organização, com espaços/tempos flexíveis e planejamento que acolham as diferenças. A nossa pesquisa reafirmou que a escola comum é o lugar onde as crianças com autismo devem ser inseridas, espaço em que podem vivenciar diferentes experiências e aprender com elas.
Para que o processo inclusivo se instaurasse, nas escolas pesquisadas, era essencial que as práticas fossem refletidas e que novas estratégias fossem implementadas. O aluno com TEA, bem como em tantos outros casos, precisará de atividades diferenciadas para adquirir os conceitos científicos e também se adaptar à rotina escolar.
As mudanças observadas no trabalho de intervenção foram percebidas, também, pelas professoras na sala de aula e fora da sala de aula pelas mães, bem como pela psicopedagoga de um dos meninos. Nossos dados apontam para a necessidade de as crianças com autismo serem trabalhadas em uma perspectiva que englobe todos os aspectos do seu desenvolvimento, evitando atividades repetitivas e engessadas. É importante que sejam oferecidos diferentes estímulos, em diferentes ambientes, com diferentes estratégias, e que as atividades fomentem as ações coletivas, lúdicas e com significados