Introdução
O desafio que propomos consiste em discernir e analisar os riscos de degeneração dos regimes democráticos contemporâneos, através da atomização social e do retorno do discurso totalitário. O percurso será subdividido em três tempos. Inicialmente, retomaremos o tema da possibilidade de degeneração da democracia segundo a perspectiva de Platão e Aristóteles com o objetivo de apresentar os seus traços elementares. Em seguida, faremos uma breve consideração sobre as transformações dessa problemática com a instauração das democracias na modernidade.
No segundo ponto, voltaremos nossa atenção à obra do filósofo francês Alexis de Tocqueville, pois reconhecemos a originalidade com que tratou das ameaças à democracia no quadro do liberalismo político do século XIX. Crítico à centralização do poder, Tocqueville sustentava que a descentralização e a criação de instâncias intermediárias funcionariam como um contrapeso à “tirania da maioria” e ao despotismo - este último, no caso das democracias liberais, seria, no entanto, facilitado pela despolitização e pelo individualismo.
Embora o pensamento tocquevilliano seja, nesse aspecto, bastante atual, procuraremos mostrar em um terceiro ponto que as ameaças contemporâneas exigem que se coloquem em relevo os efeitos produzidos pelas novas mídias e pelo retorno de um discurso totalitário. Faremos uso de alguns textos escolhidos de Baudrillard e Rancière na tentativa de melhor explicitar o modo como as ameaças atuais à democracia se entrelaçam com a sociedade de consumo, especialmente com as novas mídias e com o retorno de um discurso totalitário. Desse modo, pretendemos apresentar e descrever duas dimensões que consideramos significativas para se realizar uma crítica da democracia contemporânea.
1 O regime democrático e a possibilidade da sua degeneração
Tão antigo quanto as experiências democráticas na Grécia Antiga é a percepção de que a democracia, enquanto forma de governo, é suscetível ao desvio e à degeneração. Assim como qualquer tipo de governo, o regime constitucional-democrático também está sujeito à corrupção. Um dos problemas centrais da filosofia política, desde os períodos antropológico e sistemático da filosofia antiga, consistiu, precisamente, em interrogar quais seriam os melhores modelos e quais mecanismos poderiam ser criados para evitar ou diminuir a possibilidade de degeneração do governo da cidade.
Em uma famosa passagem de O Político de Platão, o estrangeiro, em diálogo com o jovem Sócrates, classifica os governos em três tipos - monarquia, aristocracia e democracia - e reconhece que, em todas essas formas, é possível governar respeitando as leis ou não. A democracia seria a pior forma entre os governos que se conformam à legalidade e a melhor nos casos em que não se a respeita. (O Político, 302e-303b, 2011, p. 1422). Bem submetida às leis escritas, ou seja, à legalidade, a monarquia corresponderia à melhor forma de governo.
Aristóteles, por sua vez, no Livro III da Política, retoma a mesma classificação tripartite e as suas três formas desviantes (Política, V, 7, 1279b, 2014, p. 2389), porém adota outra posição, sustentando que todas as formas degeneradas seriam globalmente viciadas, de maneira que não seria justo afirmar, por exemplo, a superioridade da oligarquia à tirania, pois ela seria apenas menos má (Política, IV, 2, 1289b, 2014, p. 2413).
Igualdade e liberdade constituíam para o estagirita princípios democráticos. Nesse sentido, o justo tem como medida o critério numérico, de modo que a autoridade decorre da decisão da maioria. Porém, há um tipo de democracia degenerada em que a maioria soberana governa por decretos e não pela lei, transformando-se em uma demagogia despótica, similar à tirania. (Política, IV, 4, 1292a, 2014, p. 2419). Ainda nessa direção, uma maioria numérica pode recair na injustiça quando confisca os bens de minoritários (VI, 3, 1318a, 2014, p. 2478). Para evitar a demagogia, que tudo faz para comprazer as massas, como aumentar o confisco de bens pelos tribunais, Aristóteles sugere que o resultado desse confisco não seja vertido ao tesouro público, nem retorne ao povo, mas seja declarado sagrado. (VI, 4, 1320a, 2014, p. 2482).
Guardadas as devidas proporções, considerando-se a distância histórica e o contexto cultural no qual a Academia e o Liceu interrogaram acerca da solidez da democracia, é notável como essa questão ressurgiu diversas vezes em filosofia política, especialmente a partir da modernidade. A partir das transformações provocadas pelo gradual crescimento da burguesia, da contrarreforma, da busca de novos mercados e da crítica ao absolutismo monárquico, o modelo democrático ganhou um novo destaque, desde a perspectiva do liberalismo político.
É consabida a influência iluminista sobre os movimentos que sedimentaram o modelo democrático, embora essa influência tenha sido paulatina, pois muitos pensadores mantinham restrições para com a democracia. Rousseau chegou a afirmar que “em geral, o governo democrático convém aos Estados pequenos” (1987, p. 82), referindo-se, nesse sentido, à democracia direta. Logo em seguida a essa passagem, sustenta o filósofo, de modo cético, que, rigorosamente falando, “jamais existiu, jamais existirá uma verdadeira democracia”. (1987, p. 83).
Conforme a análise de Dalmo de Abreu Dallari, “é através de três grandes movimentos político-sociais que se transpõem do plano teórico para o prático os princípios que iriam conduzir ao Estado Democrático”. (2012, p. 147). O primeiro foi o movimento que muitos denominam de “Revolução Inglesa”, fortemente influenciada por Locke e que resultou na Bill of Rights de 1689. O segundo foi a Revolução Americana, cujos princípios foram traduzidos na Declaração de Independência de 1776. Por fim, o terceiro foi a Revolução Francesa, que conferiu universalidade aos seus princípios através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, recebendo esta última a influência do pensamento de Rousseau.
Com a consolidação do ideal de Estado Democrático em seu modelo representativo, tornou-se possível sintetizar em três os princípios que o orientam: a supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos. (DALLARI, 2012, p. 150). Um volume considerável de debates da filosofia política contemporânea voltou-se para a adoção, ao peso e às consequências da aplicação desses princípios. Autores como Paulo Bonavides, na esteira de Maurice Duverger, preferem ampliar o rol de princípios próprios à democracia, acrescentando, por exemplo, o sufrágio universal; a pluralidade partidária; a observância constitucional da divisão de poderes; a adesão à fraternidade social; o Estado de direito; a temporariedade dos mandados eletivos; e a existência garantida das minorias políticas. (BONAVIDES, 1998, p. 274). Em grande medida, a renovação do debate sobre as condições da democracia é motivada pela história recente, que recomenda cautela para com os fenômenos políticos resultantes do governo democrático em sua versão liberal contemporânea.
Talvez seja possível afirmar que a teoria da democracia deva ser pensada como uma teoria sobre as suas condições e seus limites. Como sinaliza Otfried Höffe, a experiência histórica “nos mostra a escravatura nos Estados Unidos, o nacional-socialismo, que, ao mesmo tempo, se confessava adepto do princípio democrático, e - é claro, bem menos contrastante - a Igreja do Estado da Suécia ou a proibição dos jesuítas e dos mosteiros, revogada na Suíça apenas nos anos setenta [...]”. (HÖFFE, 2006, p. 415). A partir dessa observação, interroga o filósofo alemão se a democracia não é nem uma condição necessária, nem suficiente para a introdução e a proteção dos direitos humanos. Trata-se de tema de grande atualidade e alvo de muitas controvérsias, sobretudo porque remete à afirmação histórica dos direitos humanos e à necessidade de instituições que os reconheçam e protejam. É nesse ponto que pretendemos situar a investigação sobre as ameaças à democracia.
Em seu nascedouro, a defesa do regime democrático está intimamente ligada ao liberalismo político e é neste que devemos procurar algumas das formulações sobre os riscos da democracia. Tomando esta direção, estabeleceremos como fio condutor a perspectiva de Alexis de Tocqueville. As razões que nos levam à sua obra são o importante lugar ocupado por ela no século XIX e o modo original como ele articula a defesa da democracia e o alerta sobre as ameaças de uma “tirania da maioria” e de um novo tipo de despotismo silencioso, inerentes à própria democracia.
2 Os riscos da centralização - a tirania da maioria e o individualismo
A obra de Alexis de Tocqueville (1805-1859) ficou por muito tempo circunscrita aos especialistas, tendo maiormente sido estudada na França e nos Estados Unidos, países que foram objeto de suas investigações. É relativamente recente a renovação do interesse por sua obra, especialmente a partir da interpretação de Raymond Aron (1964; 2008). Em seu livro As etapas do pensamento sociológico, de forma original e surpreendente, Aron confere a Tocqueville a posição de um dos fundadores da sociologia, mesmo que esse não tenha concebido um método sociológico rigoroso e tampouco tenha definido com rigor a noção de “sociedade democrática” por ele empregada (ARON, 2008, p. 316 e 318). O pensamento de Tocqueville, especialmente enquanto observador da Revolução de 1848, parece cumprir, na organização da obra de Aron, o papel teórico de um defensor do liberalismo político em resposta a Marx e a Comte, questão que mereceria uma investigação própria. No presente contexto, o nosso interesse volta-se diretamente para a obra de Tocqueville e circunscreve-se ao modo como ele avaliou as ameaças à democracia, nos moldes em que ele a conheceu.
Talvez não seja excessivo recordar que Tocqueville foi um nobre, filho de uma família legitimista normanda, cuja posição social e política contribuiu para as ideias que defendeu. Tocqueville terminou por aderir à defesa da democracia, essa “potência irresistível” (1951b, p. 104), mas sempre com uma forte crítica à tendência centralizadora. Viajou aos Estados Unidos para estudar o sistema penitenciário americano, de 1831 a 1832, período que o motiva a escrever e publicar os dois volumes sobre A democracia na América, em 1835 e 1840. É fundamentalmente nesses volumes que o autor, baseando-se na observação das interações sociais, defendeu a inseparabilidade entre a liberdade política e a igualdade.
Tornou-se, em seguida, um severo crítico da centralização jacobinista. Ao contrário dos Estados Unidos, “uma das características maiores do contexto histórico francês é a centralização”. (KRULIC, 2017, p. 74). Procurou mostrar, em O Antigo Regime e a Revolução, publicado em 1856, que a Revolução Francesa, embora radical, não foi tão inovadora como geralmente se supôs (1967, p. 80), na medida em que manteve diversas estruturas da centralização administrativa e, em muitos aspectos, as tornou piores. “A centralização tinha já a mesma natureza, os mesmos procedimentos, os mesmos focos de nossos dias, mas ainda não o mesmo poder.” (1967, p. 192).
A sua tese, ainda central para o liberalismo político, é a de que a liberdade não pode se assentar na desigualdade, mas na igualdade de condições e, por outro lado, a equalização das condições e oportunidades consiste em um processo que não pode ser realizado em detrimento das liberdades políticas, sob pena de ameaçar a própria democracia. Não foi por outra razão que ele decidiu estudar a democracia norte-americana. “Dentre os objetos novos que, durante minha estada nos Estados Unidos, atraíram minha atenção, nenhum impressionou mais vivamente os meus olhares do que a igualdade de condições.” (1951a, p. 1).
Em seu longo estudo, ele procura identificar os traços e as características do Estado norte-americano que trouxeram estabilidade ao regime. Tocqueville identifica, na descentralização administrativa, uma das grandes vantagens da democracia americana, a partir do estabelecimento de corpos políticos intermediários, que lhe permitiram temperar a onipotência da maioria e combater institucionalmente o individualismo, que produz uma despolitização e leva a uma nova forma de despotismo. São fundamentalmente esses dois aspectos - a tirania da maioria e o despotismo - com os quais nos ocuparemos no presente ponto.
É essencial para Tocqueville analisar como culturalmente as instituições lidam com os mecanismos de poder e os aparelhos de decisão. Mais do que uma avaliação do sistema representativo da democracia indireta, Tocqueville procura avançar em direção àquilo que ele chama de “sociedade democrática”, ou seja, um modelo de representação social das leis e dos costumes, ligado a um sentimento democrático, vivido pelos cidadãos e reforçado pela descentralização do poder. O maior risco de uma degeneração dos regimes democráticos pela centralização se dá pela “tirania da maioria” e pelo despotismo, este último decorrente da despolitização dos indivíduos.
Como vimos no ponto anterior, Platão e Aristóteles já haviam alertado para o perigo de degeneração da democracia e para sua transformação em um regime semelhante à tirania. Tocqueville procurou mostrar como essa noção se aplica ao modelo moderno de Estado, regido por uma democracia representativa e por instituições democráticas. Os limites da democracia consistem nas determinações que ela deve circunscrever a si mesma, ou seja, em parâmetros que ela deve estabelecer de tal modo que não seja levada à autodestruição ou não promova a perseguição e anulação das liberdades políticas individuais.
Tocqueville consagra um capítulo da Democracia na América à análise da onipotência da maioria nos Estados Unidos e outro capítulo ao que permite temperar esse poder tirânico. Talvez seja, nessa parte do livro, que o autor se mostra mais crítico à sociedade norte-americana, chegando a afirmar que “se a América ainda não teve grandes escritores, não devemos procurar alhures as razões: não existe gênio literário sem liberdade de espírito e não há liberdade de espírito na América”. (1951a, p. 267). Para o filósofo, o maior perigo dos Estados Unidos vem da tirania da maioria, tensionada pela centralização governamental. O que permite equilibrar essa tendência seria a descentralização administrativa, influenciada por um “espírito legista” na ocupação das funções públicas, pelos costumes, pelos valores religiosos e reforçada legalmente pelo federalismo, pelas instituições comunais e pelo Poder Judiciário. (1951a, p. 290-306).
A crítica tocquevilliana à tirania da maioria exerceu um papel importante na construção teórica do liberalismo político. Quase vinte anos depois da publicação do segundo volume da Democracia na América, seu amigo, o filósofo John Stuart Mill, publica, em 1859, o importante livro Sobre a Liberdade, no qual retoma a crítica à tirania do maior número: “como outras tiranias, a tirania do maior número foi, a princípio, e ainda é vulgarmente, encarada com terror, principalmente quando opera por intermédio dos atos das autoridades públicas.” (1942, p. 26). Seria necessário, portanto, encontrar o limite adequado à interferência da opinião coletiva sobre a esfera individual, mantendo-o contra as usurpações, por ser “indispensável tanto a uma boa condição dos negócios humanos como à proteção contra o despotismo”. (1942, p. 27). Em sua essência, encontra- se aqui um importante marco de um tema que ganhou novos contornos com o tempo, embora não tivesse ele ainda a dimensão protetiva do constitucionalismo democrático posterior à Segunda Guerra. Por essa razão, talvez seja prudente fazer um recuo para melhor elucidar o significado da “tirania da maioria” para Tocqueville.
Em realidade, o texto é indicativo de que a “maioria”, como designação quantitativa, se refere à onipotência que se expressaria no âmbito da opinião pública, como uma espécie de despotismo difuso na própria sociedade democrática. (1951a, p. 265-268). A aplicação mais imediata da sua análise realiza-se na esfera da liberdade de expressão e na liberdade de comércio, mas ela não se aplicaria, ainda, por exemplo, ao reconhecimento dos direitos de negros e índios.
A prova disso é que, embora Tocqueville não tenha se furtado ao exame do “futuro provável das três raças” dos Estados Unidos, ele o fez em um capítulo à parte e subsequente ao da análise da “tirania da maioria”. Nesse capítulo, Tocqueville reconheceu o infortúnio e a posição social inferior que ocupam o negro e o índio na sociedade norte-americana. “Ambos experimentam os efeitos da tirania; e mesmo se suas misérias são diferentes, elas podem acusar os mesmos autores.” (1951a, p. 332). No entanto, surpreende que, apesar de ele ter inclusive empregado nessa frase o termo “tirania”, não tenha ele considerado a questão dos negros e dos índios sob o mesmo ângulo da onipotência da maioria que ele havia destacado nos capítulos anteriores. Esse já é um sinal de que, para ele, não se trata do mesmo problema, não se trata necessariamente de reconhecer a cidadania e os direitos dos negros e dos índios.
É bem verdade que Tocqueville evitou justificar, “como certos autores americanos, o princípio da servidão dos negros.” (1951a, p. 376). Ademais, ele procura estudar a dificuldade de abolição nos Estados do Sul (1951a, p. 373), assinala a “atrocidade incrível” da legislação desses Estados (1951a, p. 377) e chega a fazer a previsão de uma Guerra Civil no país norte-americano (1951a, p. 373). Prevê igualmente dificuldades, como a proveniente da memória: “A lembrança da escravidão desonra a raça, e raça perpetua a lembrança da escravidão.” (1951a, p. 357). Ou, ainda, afirma que a abolição não conduziria o escravo à liberdade, mas apenas à “troca de mestre”. (1951a, p. 366). No entanto, a sua análise, de cunho histórico, econômico e social, não nos parece afirmar inexoravelmente a necessidade de reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e oriundos do continente africano.
Dessa forma, a leitura de Tocqueville nos faz perceber que a evolução da preocupação do liberalismo político com as condições e os limites democráticos, dirigida aos direitos das minorias políticas, permanece essencialmente ligada à esfera individual, em especial à liberdade de expressão e ao livre comércio. Não obstante, isso não nos impede de reconhecer, nos escritos de Tocqueville, os primeiros traços de uma problematização que tomará posteriormente uma dimensão mais ampla no que tange ao reconhecimento e à proteção das minorias políticas, sobretudo a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do constitucionalismo democrático contemporâneo.
Passaremos à análise de como a recaída no despotismo tornou-se uma ameaça à democracia. Entendemos que o risco da tirania da maioria, enfatizado no primeiro tomo da Democracia na América, e a ameaça do despotismo, apresentada no segundo tomo, são dois temas interligados, pois são como as duas faces da centralização do poder.
Para compreendermos a que Tocqueville se refere quando trata da ameaça de um despotismo, é preciso retornar à sua crítica ao individualismo, entendido por ele como um “sentimento refletido e sossegado que dispõe cada cidadão a se isolar da massa de seus semelhantes e a se retirar com sua família e seus amigos; de tal sorte que, depois de ter criado para si uma pequena sociedade eficiente, ele abandona prontamente a grande sociedade a ela mesma”. (1951b, p. 105). Ora, colocando-se os indivíduos, por seu individualismo, fora dos negócios públicos, torna-se a sociedade mais suscetível e vulnerável ao despotismo.
Ordinariamente, segundo o pensador, é na origem das sociedades democráticas “que os cidadãos se mostram mais dispostos a se isolar”. (1951b, p. 108). Como resultado do individualismo dos cidadãos, sem ligação comum que os retenha, o despotismo os separa, sem que um certo tipo de igualdade seja propriamente atacado. Isso porque “os vícios que o despotismo faz nascer são precisamente aqueles que a igualdade favorece”. (1951b, p. 109). Os Estados Unidos teriam combatido o individualismo que a igualdade fazia nascer através do governo livre, ou seja, através da liberdade política. “E eu digo que, para combater os males que a igualdade pode produzir, não há senão um remédio eficaz: a liberdade política.” (1951b, p. 112).
Segundo Tocqueville, a igualdade pode produzir tanto uma tendência à anarquia quanto outra ao despotismo. Como a primeira é mais visível, torna-se mais fácil resistir-lhe. A tendência ao despotismo seria menos visível, pois conduziria por um caminho mais longo e mais secreto em direção à servidão, razão pela qual ele a considera um perigo maior. O grande problema da equalização das condições é que “cada cidadão se perde na massa e não percebemos mais do que a vasta e magnífica imagem do povo ele mesmo”. (1951b, p. 298). Nesse sentido, a igualdade sugerida pelo pensamento de um governo único, uniforme e forte torna-se uma tendência “dos séculos democráticos” a ser combatida pela independência individual e pelas liberdades locais.
A espécie de despotismo que as nações democráticas mais devem temer é o despotismo silencioso, que é “mais alargado e mais doce”, pois degrada os homens sem os atormentar. (1951b, p. 323).1 Para Tocqueville, esse tipo de opressão, em rigor, não poderia ser chamada de “tirania” ou de “despotismo” (1951b, p. 324) e é totalmente nova em relação às outras formas de opressão dos povos democráticos. Através dela, uma multidão de indivíduos procura reconfortar-se com pequenas ocupações, por meio das quais eles preenchem suas almas. “A sujeição a coisas pequenas se manifesta todos os dias e se faz sentir indistintamente a todos os cidadãos. Ela não os desespera de modo algum, mas ela os contraria sem cessar e ela os leva a renunciar o uso de sua vontade.” (1951b, p. 326). Por meio de um modelo de entretenimento vulgar, os indivíduos alimentam o seu individualismo e se creem livres, quando em verdade formam uma multidão de despolitizados, dependentes e sujeitos a um poder central.
A tese de Tocqueville, em síntese, é que a tendência silenciosa ao despotismo deve ser controlada por instituições democráticas, por instâncias intermediárias de decisão e pelos indivíduos eles mesmos. Ou seja, mantendo-se um bom nível de participação dos indivíduos, no âmbito das múltiplas camadas da esfera social, com a descentralização do poder, Tocqueville acreditava ser possível construir mecanismos efetivos para o exercício da liberdade política. As palavras finais do segundo volume da Democracia na América terminam o livro com a mensagem de que depende das nações e de suas escolhas políticas que a igualdade conduza à servidão ou à liberdade.
A concepção de sociedade democrática que anima a tese de Tocqueville foi constantemente repisada e revisada pelo liberalismo político. Após o crash da Bolsa de 1929, já à beira da Segunda Guerra, o modelo liberal entrou em profunda crise e encontrou diversos críticos tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Muitos autores perceberam que a degradação da democracia, com a crise das instituições, deveria fazê-la passar por um reexame, não apenas como forma de governo, mas como um modelo de organização. No pragmatismo de John Dewey, por exemplo, encontramos a defesa de uma democracia “radical” e “criativa”, sustentada não na “forma política”, mas na “ideia de democracia”, ou seja, em um modo de vida (2008a, 2008b, 2008c), sem sucumbir, por exemplo, ao universalismo ou ao normativismo. O raciocínio de Dewey é, nesse ponto, mais complexo, porém similar ao que antes examinamos: as associações, enquanto organismos intermediários entre o Estado e a sociedade civil, convertem-se em modos de cooperação que reforçam o autogoverno e a perseverança das comunidades. Para Dewey, a finalidade da democracia é radical e está sempre por ser realizada, pois requer “uma enorme mudança nas instituições sociais, econômicas, jurídicas e culturais existentes”. (2008a, p. 132).
Embora não seja aqui o nosso enfoque, assinalamos que muitas outras perspectivas partilharam a defesa de uma maior participação dos cidadãos nos processos políticos, colocando em destaque as diferenças culturais e os temas relacionados à identidade. Essas perspectivas conduziram a uma ampla reflexão, em centenas de livros e artigos, acerca da necessidade de amparo e de reconhecimento dos direitos de grupos minoritários, entre elas, por exemplo, o multiculturalismo liberal de esquerda e o multiculturalismo crítico, de acordo com a classificação de McLaren (1997).
Recentemente, Brigitte Kurlic (2017) propôs uma interessante análise do pensamento de Tocqueville como forma de abordagem do “porvir da democracia”. Com efeito, a tirania da maioria e o despotismo silencioso das massas não deixaram de ser uma possibilidade latente em toda e qualquer democracia. Ao contrário, são riscos permanentes do regime democrático, pois esse se instaura sobre a igualdade e a projeta sobre a população a fim de instalar e fazer valer o princípio da maioria, a ser controlado e harmonizado com os direitos humanos e os direitos fundamentais.
No entanto, embora esses riscos sejam permanentes, entendemos que o modo como eles se apresentam sofreu transformações ao longo do tempo, sobretudo considerando as novas formas de ameaça a que se veem confrontadas as sociedades democráticas contemporâneas. A nosso juízo, a crise do modelo democrático na sua forma atual exige ainda outros recursos teóricos para que possa ser compreendida. É o que pretendemos desenvolver no próximo ponto.
3 Os riscos atuais - a atomização social e o discurso totalitário
Entre as mais variadas formas de ameaça às democracias na contemporaneidade, há uma que se sobressai - o totalitarismo. O poder do líder carismático sobre as massas, percebido e estudado por Weber, Le Bon, Freud, Reich e pela Escola de Frankfurt, produziu ainda na primeira metade do século XX uma nova forma de governo das massas. Trata-se de um governo autoritário dirigido a indivíduos atomizados e intercambiáveis, que deixaram a vulgaridade de seus lares (como temia Tocqueville), mobilizados por um tipo novo de propaganda, e aceitaram defender a união pela força, pelo feixe do fascismo e pela vitória medíocre do ódio. Com os novos mass media, a política ganhou um novo poder de comunicação, de espetacularização e de domínio. Foi bastante doloroso perceber que a ascensão desses regimes, durante o séc. XX, em nada se opôs ao chamado regime democrático; ao contrário, eles se tornaram possíveis no interior da democracia e buscaram assento em um de seus principais baluartes - a supremacia da vontade popular.
Os efeitos disso, na prática, como sabemos, foram aterradores. As populações que sofreram as mais duras consequências desse modelo e se viram totalmente ameaçadas foram aquelas que Hannah Arendt chamou de “povos sem Estado” e as “Nações de minorias”, como, por exemplo, as do Leste Europeu. Diante dessa dura realidade, como afirma a filósofa em Origens do Totalitarismo, “a própria expressão ‘direitos humanos’ tornou-se para todos os interessados - vítimas, opressores e espectadores - uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia”. (1989, p. 302). Atacada por uma realidade brutal e uma política baseada nas violências física e moral, a expressão “direitos humanos” tornou-se apenas uma expressão vazia. Ainda segundo Arendt, “nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam em considerar ‘inalienáveis’ os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum”. (1989, p. 312).
A partir da Segunda Guerra, foram feitos os mais largos esforços na tentativa de responder a esse problema, através da criação da ONU e da reformulação e institucionalização dos direitos humanos em âmbito internacional, através de uma nova Declaração Universal. No plano teórico, tornou-se praticamente um lugar consensual entre os liberais a diferença entre totalitarismo e democracia, bem como a necessidade de uma nova reflexão sobre esta última, a fim de evitar a todo custo, por suas nefastas consequências, transformar-se em regime totalitário. Por outro lado, autores como Agamben, em seu famoso Homo Sacer O poder soberano e a vida nua (2004), permanecem céticos quanto às atuais formas democráticas, na medida em que o modelo biopolítico em que vivemos nada mais seria do que a continuação do paradigma do estado de exceção. De um lado ao outro, qualquer que seja o referencial teórico adotado em filosofia política hoje, já não é mais possível teorizar sem, de algum modo, pensar na ameaça do totalitarismo.
Pretendemos mostrar, nas próximas linhas, dentro das limitações do presente artigo, que os riscos da democracia percebidos por Tocqueville ganharam nova profundidade com as novas tecnologias e os novos mecanismos de comunicação de massa, antes inimagináveis. A ameaça da tirania da maioria, transformada em horror pelos regimes totalitários, persiste hoje através do discurso totalitário. E o individualismo despótico, potencializado pelo modelo da sociedade de consumo e pelos aparelhos de comunicação de massa, transformou-se e produziu hoje uma atomização social onde impera a descrença na representação política.
Em nossos dias, o fantasma totalitário do fascismo assombra a democracia, sobretudo com dispositivos totalitários de controle mais difusos, mais silenciosos e menos perceptíveis do que aqueles empregados nos regimes da primeira metade do século XX. A grande dificuldade impõe-se em um plano emocional e comunicativo: os cidadãos já não se sentem mais politicamente representados. Medidas autoritárias, repressivas e reacionárias voltam a ser desejadas e expressas por camadas significativas da população.
O modelo democrático passa por uma crise notável e inaudita, de ordem global, em múltiplas esferas comunicacionais. A crise econômica global se associa à crise da democracia, colocando em descrédito a representação política e em suspeição o próprio ideal democrático. Desde o crash econômico e financeiro da Bolsa de Valores em 2008, uma das maiores crises da história do capitalismo especulativo, é possível notar uma nova onda política nos mais diversos países. Essa onda política ganhou volume em razão dos efeitos diretos da crise econômica sobre a globalização, como, por exemplo, a perda global de somas incalculáveis e o desemprego advindo das radicais transformações do mercado de trabalho. Alguns movimentos políticos que podem ser percebidos em larga escala procuraram dar uma resposta a essa crise, ainda vigente em nossos dias, com o aparecimento de um discurso antiglobalizante, apontando para o fortalecimento dos Estados- nações e, no âmbito dos direitos humanos, um discurso reacionário e policialesco, à serviço do retrocesso emancipatório.
À tese de Tocqueville examinada anteriormente, é preciso acrescentar que, no âmbito do capitalismo tardio estruturado pela globalização, não se podem ignorar os fatores internos e externos dramaticamente nocivos à autonomia econômica de cada Estado democrático. Sobretudo, não se pode ignorar que os fenômenos de escassez costumam gerar efeitos seriais, entre eles o desespero coletivo. Em uma massa sem esperança e atordoada, formada por indivíduos isolados e formações sociais atomizadas, encontra-se o “ovo da serpente” do totalitarismo. Em uma sociedade em rede, atravessada pelo individualismo consumista, pelo sentimento de impotência, pela perda de desejo e de sentido, abre-se o espaço para uma nova forma de fascismo que não ousa dizer seu nome, um neofascismo silencioso, provocado e alimentado pelos desastres da própria globalização capitalista e suas repercussões nas sociedades ditas democráticas.
A fim de melhor compreender a ascensão da descrença na representação política em diversos países - não apenas nos desenvolvidos, como também naqueles em desenvolvimento - colocaremos em relevo a atomização social à qual as sociedades contemporâneas foram predispostas ao adotar o modelo da sociedade de consumo. Em sua raiz, o liberalismo aposta no indivíduo como ponto de partida e desde sempre correu o risco de um individualismo que lhe é inerente. Ora, o modo como o individualismo se apresenta atualmente é lucrativo, pois faz movimentar o consumo, transformando-o em consumismo. Ocorre que a lógica do consumismo subsiste com pelo menos uma condição: a eterna insatisfação do consumidor. Esse sentimento contínuo de insatisfação, por sua vez, se retroalimenta de uma sensação difusa de impotência, que tende a aumentar conforme a situação de escassez e o aumento de desigualdade. É nessa impotência que se instala definitivamente o que denominamos aqui atomização social, com reflexos no campo da democracia representativa, ou seja, a descrença individualista na capacidade de representação política.
Essa descrença dificulta a organização dos corpos sociais e a defesa coletiva de demandas específicas, pois essas são a tal ponto fragmentárias que apenas o indivíduo na sua individualidade se sente à vontade para produzi-la. Não é à toa que as “insurreições” políticas em todo globo, ao longo da última década do século XX e da primeira década e meia do século XXI, passaram por um período de formação de massas indignadas sem uma demanda clara e precisa. Constituem um ajuntamento de forças - legítimo, sem dúvida -, mas que, ao final, pouca efetividade teve do ponto de vista político. Rancière corrobora nossa perspectiva em um entretien com Eric Hazan, recentemente publicado, Em que tempo nós vivemos?, no qual ele sustenta que “a insurreição que vem”, a insurreição ela mesma, vem “para se afastar de todo ativismo planificado” e que “alguns anos mais tarde, seus autores pensam poder fazer a constatação de que as insurreições são bem- vindas, mas não aportaram o que se esperava delas: não somente elas não foram ‘a revolução’ como ainda assinaram a morte da revolução como processo”. (2017, p. 59).
Não temos a menor intenção de negar que as novas tecnologias provocaram uma verdadeira revolução nas relações humanas, trazendo-lhes inúmeros benefícios de acesso à cultura e às comunicações. Por outro lado, não podemos ignorar certos efeitos nocivos e perigosos produzidos pelos novos sistemas de comunicação. É nesse ponto que buscamos apoio em um dos ensaios de Baudrillard, que desde os anos 1970, mostrou-se crítico e pouco otimista em relação ao que ele investigou e intitulou como “sociedade de consumo”. Ao longo dos anos, procurou mostrar como esse modelo de sociedade se desdobra e se movimenta em um jogo de signos, em que o excesso de informação convive com a diminuição do sentido. No livro Simulacros e simulação, de 1981, Baudrillard classificou em três formas o que ele chamou de “simulacros”: naturais (baseados na imagem e no fingimento); produtivos (baseados na força e na materialização pela máquina) e de simulação (baseados na informação, no modelo do jogo cibernético, com operacionalidade, com o objetivo do controle total e “hiper-realidade”). (1991, p. 151 e ss.). É especialmente este último que nos interessa, enquanto mecanismo de simulação, na medida em que interfere profundamente no modo como a informação é produzida e trocada.
Baudrillard já afirmava nesse mesmo livro que “[...] a informação é diretamente destruidora ou neutralizadora do sentido e do significado. A perda de sentido está diretamente ligada à ação dissolvente, dissuasiva, da informação, dos media e dos mass media”. (1991, p. 104). A informação devora os seus conteúdos por duas razões: (1) ao invés de comunicar, ela encena a comunicação, produzindo uma simulação, uma hiper-realidade, mais real do que o real, que tende a anulá-lo; (2) os mass media prosseguem uma desestruturação do real. (1991, p. 105-107). Embora tenha conhecido a tecnologia cibernética e tenha testemunhado o primeiro avanço comercial da internet e dos aparelhos celulares, o filósofo não chegou a conhecer a mais recente evolução dos aparelhos eletrônicos portáteis, a qual, entretanto, não apenas corrobora a sua tese como, em nosso entendimento, mostra dimensões ainda mais radicais da perda de sentido produzida pela ação dissolvente dos mass media. E isso a ponto de hoje se falar em “pós-verdade”, seja lá o que isso queira designar. A perda de sentido está no coração do sentimento de impotência, que termina por aprofundar ainda mais a atomização social.
No livro À sombra das maiorias silenciosas, Baudrillard mostra como, nesse jogo de informações, produz-se uma “idolatria” aos estereótipos e uma consumação dos signos, em uma fascinação com o “espetacular”. (1985, p. 15). Especialmente nos últimos anos, o que temos assistido é um novo tipo de espetacularização da política através dos mass media, como se os políticos tivessem percebido que poderiam valer-se facilmente da produção de estereótipos como nos reality shows, adotando rigorosamente a mesma metodologia televisiva. Ou ainda, podemos pensar na aplicação de logaritmos em informática, a fim de detectar o grau de preferência dos usuários, ou o Big Data, capaz de detectar diferentes conjuntos de eleitores e oferecer-lhes as mensagens mais persuasivas.
Talvez o pior resultado desse jogo de informações seja a produção paradoxal de uma maioria silenciosa, referente imaginário, objeto de um verdadeiro bombardeio de estímulos, que, no entanto, ninguém pode dizer representar ou por ela ser representado. (1985, p. 22-23). Não há, em nossos dias, como ignorar o potencial nocivo desse mecanismo e do seu uso político nas ditas democracias. A tirania de uma maioria a tal ponto massificada, que não se pode ver, qualificar ou atacar, mas que guarda a marca do atomismo social, ganha em nosso tempo dimensões profundas.
Um segundo aspecto que pretendemos analisar é o discurso, cada vez mais repetido, de ataque explícito ao processo democrático. Esse sintoma político parece-nos bem descrito no livro O ódio à democracia, de Jacques Rancière, publicado em 2005. Colocaremos em relevo algumas de suas descrições, sem que isso implique adotar o pensamento do autor em seu conjunto.
Rancière questiona a noção de “sociedade democrática”, seja como forma de governo, seja como forma de sociedade - podemos nesse aspecto incluir o pensamento de Tocqueville -, pois ele os considera enquanto tais apenas “uma pintura fantasiosa”. (2014, p. 68). Para ele, nunca houve propriamente governo democrático, senão governos que fizeram o jogo das oligarquias. O sufrágio universal foi ele mesmo uma forma representativa mista, “nascida na oligarquia, desviada pelo combate democrático e perpetuamente reconquistada pela oligarquia”. (2014, p. 71). Ou ainda: “Vivemos em Estados de direito oligárquicos, isto é, em Estados em que o poder da oligarquia é limitado pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais.” (2014, p. 94).
Com efeito, há vantagens, mas também limites nesse tipo de Estado. As eleições são livres, mas apenas fazem girar e reproduzir os mesmos dominantes. As liberdades são respeitadas, mas à custa de notáveis exceções. A imprensa é livre, mas só desenvolvem grandes jornais e emissoras de televisão aqueles que possuem a ajuda das potências financeiras. (2014, p. 94). Por outro lado, os efeitos de maio de 68, da liberação sexual e do consumo de massa contribuíram para o “reino dos desejos ilimitados na sociedade de massa moderna”, no qual a atomização dos indivíduos corresponde ao triunfo do número. Em nosso entendimento, o modo como esse reino dos desejos ilimitados se massifica e acaba paradoxalmente predispondo os indivíduos a se tornarem intercambiáveis no âmago de suas mais singulares ambições aproxima-se daquilo que Sartre denominou de serialidade do prático-inerte.
No entanto, o que Rancière chama de “processo democrático” perfaz- se não através do desejo ilimitado, o qual termina por operar a manutenção do status quo, mas através das ações dos sujeitos, trabalhando nos intervalos das identidades e reconfigurando as distribuições entre o público e o privado, entre o universal e o singular. Ao contrário de uma produção ilimitada ou de um desejo ilimitado, o que é ilimitado no processo democrático é o movimento de deslocamento dos limites entre o público e o privado, entre o político e o social (2014, p. 81). Esse processo, enquanto um perpétuo pôr em jogo, é “uma invenção de formas de subjetivação e de casos de verificação que contrariam a perpétua privatização da vida pública”. (2014, p. 81). O que Rancière chama de dimensão do “político” é a contradição entre o exercício do poder e o princípio democrático sobre o qual ele se repousa. (2017, p. 8). É nessa zona de conflito que o processo democrático se encontra em tensão com o jogo governamental oligárquico, o qual termina se beneficiando da atomização social.
De onde se levantam então as vozes que criticam e declaram ódio a esse processo, preferindo a incidência do controle da elite oligárquica? Rancière coloca em suspeita a crítica à democracia, na medida em que ela se transformou em “um ódio à igualdade pelo qual uma intelligentsia dominante confirma que é a elite qualificada para dirigir o cego rebanho”. (2014, p. 88). Ou seja, o discurso antidemocrático dos intelectuais de hoje, pelo qual trabalham a oligarquia estatal e econômica, aproxima-se de um esquecimento do processo democrático. (2014, p. 117).
No entretien Em que tempo nós vivemos?, Rancière reforça que a situação de ataque à democracia que ele havia denunciado há mais de dez anos ainda não foi ultrapassada, tendo, até mesmo, se amplificado, a ponto de ter se tornado a grande causa nacional francesa (2017, p. 9). Nessa ocasião, afirmou o autor que não há nenhum tipo de receita para revitalizar a democracia, embora se possa criar um distanciamento de uma visão dominante que assimila democracia e representação, mostrando que os regimes representativos são cada vez mais oligárquicos.
Em nossa percepção, o esquecimento da democracia se avizinha do discurso totalitário, reacendendo o ódio e afetando os consensos mais fundamentais. Os Estados ditos democráticos serão cada vez mais colocados à prova em suas instituições. Não há como prever até quando resistirão. O que se pode perceber através de sinais da política internacional, com o discurso de contenção do terrorismo, da violência, das migrações e do desemprego, é a relativização crescente dos direitos humanos e das políticas de hospitalidade e de tolerância.
Considerações finais
Toda forma de governo possui riscos de degeneração a ela inerentes. Desde a filosofia antiga, esses riscos foram estudados nas diversas formas de governo, inclusive na democracia. Com a modernidade, o governo democrático em seu modelo representativo estabeleceu-se paulatinamente com o impulso do liberalismo político. A partir de então, os riscos de degeneração da democracia foram ganhando novas proporções.
O pensamento de Tocqueville ajudou-nos a compreender, a partir de uma reflexão crítica sobre o modelo democrático, a importância da descentralização administrativa e da criação de instâncias intermediárias como contrapeso à centralização do governo. Além disso, essa análise permitiu enfatizar que um dos maiores riscos da democracia provém dos efeitos nefastos do individualismo e da despolitização dos cidadãos.
Por fim, procuramos mostrar que esses riscos são atravessados atualmente por outras questões que minaram a democracia desde dentro dela mesma, conduzindo ao totalitarismo. Atualmente, os maiores riscos da democracia são dois: (1) a atomização social em sua forma contemporânea, alimentada pela sociedade de consumo e pelas novas mídias, a qual conduziu em um período de crise econômica, à sensação de impotência e à crise de representação política; (2) o retorno de um discurso totalitário, contrário aos processos democráticos e mobilizado por uma oligarquia estatal e econômica condescendente com o retrocesso político.