Introdução
O artigo preconiza uma potencialidade pedagógica do pensamento de Camus (1989), em sua abordagem da temática do absurdo. Para “costurar” esse pensamento com o ensino e a aprendizagem da Filosofia, teremos como base seu relevante ensaio O mito de Sísifo. Esse escrito originou-se do incômodo do autor franco-argelino pela derrocada da conquista civilizatória liberal-democrática com as atrocidades nazifascistas, na Segunda Guerra Mundial. Essa situação-problema provocou-o ainda jovem, com 29 anos, a produzir a obra no ano de 1941, embora sua publicação ocorresse no ano seguinte. O mito de Sísifo configurou-se numa paradigmática filosofia da não significação do mundo, pois, nessa obra, Camus retoma a narrativa homérica sobre Sísifo, para abordá-la de modo inovador como a primeira elaboração filosófica sobre o tema da absurdidade, com incidência existencial.
O início do livro de Camus desconcerta o leitor. O autor francoargelino concentra ousadamente a tradição filosófica ao proclamar, na primeira página, sua talvez mais famosa frase: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”. (CAMUS, 1989, p. 7). A chave de leitura dessa impactante frase será, por sua vez, a última afirmação desta obra: “É preciso imaginar Sísifo feliz” (CAMUS, 1989, p. 76), cujos termos se articulam numa unidade significativa ao desafio colocado no início do livro: se a vida tem ou não sentido.
Em princípio, o absurdo é a ausência de sentido. Ausência que não implica o cometimento de suicídio. Nosso autor não compactua com a retórica comum e tradicional quanto à necessidade de uma “razão para viver”, posto que não há um sentido prévio para a vida; tal posição, porém, não o leva a defender nem o suicídio físico nem o filosófico, que é o foco de sua análise. Naquele contexto de 1941, o tema “suicídio” não foi tratado por ele como um fenômeno sociopolítico de direitos humanos ou de saúde pública. Seu ponto de vista partiu de questões de caráter existencial, desde a experiência do indivíduo perante o cenário cotidiano do qual se reconhece dissociado:
O que desencadeia a crise é quase sempre incontrolável. Os jornais falam frequentemente de “profundos desgostos” ou de “doença incurável”. Essas explicações são válidas. Mas seria preciso saber se no mesmo dia um amigo do desesperado não lhe falou em tom indiferente. Este é o culpado. Pois isso pode ser o suficiente para precipitar todos os rancores e todos os aborrecimentos ainda em suspensão. (CAMUS, 1989, p. 8).
Como Camus bem lembra acima, a indiferença de um “amigo”, assim culpável, gera desespero, sendo “suficiente para precipitar todos os rancores e todos os aborrecimentos ainda em suspensão”. (CAMUS, 1989, p. 8). Apesar dessa fina análise, Camus não justifica o suicídio. Sem discutir a moralidade ou imoralidade das decisões motivadas individualmente, propõe uma alternativa ao nada do suicídio físico ou filosófico frente ao absurdo, talvez ancorado em sua experiência singular. A perda de vínculos associativos não foi provavelmente vivida por Camus, em sua difícil infância como filho de um agricultor morto na Primeira Guerra Mundial, tendo sido criado com seu irmão por uma mãe surda e analfabeta, além de ter contraído tuberculose aos 16 anos. (TODD, 1998). Nessa adversidade, supõe-se existir solidariedade entre as famílias operárias de seu bairro na luta cotidiana por sobrevivência, cujos vínculos socioafetivos, distintos do Estado e do atomismo liberal, fortaleciam a capacidade coletiva e individual de enfrentamento das barreiras diárias para uma vida melhor e mais feliz.
Com o propósito de valorizar a vida absurda do estudante da rede pública, analisaremos O mito de Sísifo com o fito de mostrar a pertinência do pensamento de Camus para se instaurar imaginativamente horizontes de intensificação da vida, a partir do sentimento de absurdidade do mundo.
Em nosso propósito, partiremos da articulação conceitual de Camus para analisar a implicação paradoxal de sua filosofia perante o assombro de um estado maquínico, de precarização social e padronizações institucionais, em particular na vida dos estudantes de periferia das grandes cidades.
O absurdo como oportunidade de ensino e aprendizagem da Filosofia
Jogando-se com a sonoridade das palavras, O mito de Sísifo é o “mito de-cisivo”. (CAMUS, 1989, p. 87, n. xxxi). Esse caráter decisivo se instaura graças ao componente existencial do absurdo do mundo, em semelhança com o relato do mito grego que exponho a seguir. Nesse relato, a condenação de Sísifo é uma “maldição”. A maldição evoca o caráter trágico da ação punitiva dos deuses; ação suportada por Sísifo, como relatado acima. Na leitura filosófica proporcionada pela original interpretação do mito grego, em O mito de Sísifo, contudo, o absurdo não consiste numa punição. (CAMUS, 1989, p. 48). Desse modo, seria pertinente uma interpretação desse mito como oportunidade para o ensino e a aprendizagem de Filosofia e não como mera punição. Com a rolagem contínua e repetitiva do rochedo, sendo uma metáfora de nossa existência absurda, o ato de rolar o rochedo ensejaria paradoxalmente um aproveitamento pedagógico de uma potencialização do sentimento de absurdidade experienciado pelo “homem absurdo” (CAMUS, 1989, p. 28-29) - expressão estendida analogicamente aqui ao “estudante absurdo”.
Inspirada no mito grego, a expressão “trabalho de Sísifo” significa um trabalho burocrático, cansativo e tedioso; em síntese: um sacrifício inútil e sem perspectiva de mudança para melhor. Essa rotina de “corrida dos ratos” se constata em muitos estudantes de escolas públicas, tão depauperados pela péssima infraestrutura de estudo e moradia. O estudante pobre convive cotidianamente com um ambiente desprestigiado socialmente, incluindo a escola, e com situações-limite de violência e racismo. Isso estimula a descrença “suicida” na dignidade de uma vida a serviço de uma estatística burocrática, aliada a um amplo processo de financeirização geral de mundo. (OLIVEIRA, 2009, p. 739-760).
Não acreditar no futuro e não ter esperança se encaixa na metáfora camusiana da eterna rolagem de “Sísifo”, em que estudantes e operários anônimos e massificados vivem uma condição extenuante e sem sentido, sem esperança de mudança. Apesar dessa condição, nunca é válido optar por qualquer tipo de suicídio, mesmo com o grau atual de sofisticação e produção de muros absurdos. A condição absurda seria, então, “a” condição humana. Não convém exigir nem otimismo nem pessimismo de nossos estudantes. Não deve-se forçá-los a darem sentido a um contexto constitutivamente caótico, embora não lhes condiga conformarem-se existencialmente com a injustiça social. As amarras político-institucionais não os impedem de existir, tanto quanto qualquer outra pessoa. Incumbe ao professor de Filosofia, em tal contexto desafiador, contribuir na autoanálise de cada estudante, em sua experiência singular e comum, com os demais colegas visando uma valorização dessa experiência e de uma ação ética de solidariedade. A mais importante aprendizagem, após a leitura de O mito de Sísifo, é a capacidade de sermos felizes apesar do absurdo, sem fatalismo ou apatia. Desde a universalidade da realidade absurda da existência, “é preciso imaginar Sísifo feliz”, inclusive ante a redução de um humano a uma máquina, como descreve a citação acima, ou a um animal, como os nazistas fizeram com os judeus.
Tratar do absurdo no ensino e a aprendizagem de Filosofia não é esvaziá-lo numa elaboração teórica que aponte para um mundo utópico e inexistente. Esse desenho idealista de sociedade não é a proposta camusiana. Sua proposta também não pretende apelar para um sacrifício do intelecto alheio à nossa humana absurdidade. Encontra-se um exercício do filosofar sem respostas fáceis e prontas a um acontecimento, por definição, inédito e, ademais, insuperável. Também não é o caso de se ser otimista ou pessimista, a questão central é (con)viver com um presente marcado pelo absurdo: “[...] essa forma de dominação através da dinâmica temporal que vem a ser o capitalismo tende paradoxalmente a se tornar cada vez mais presentista”. (ARANTES, 2014, p. 72). A narração do mito de Sísifo não indica um contínuo vai e vem entre a repetição nostálgica do passado à espera de um futuro que nunca chega, mas indica algo ainda mais promissor: a importância de se enxergar o presente por si, independentemente de nossas memórias e esperanças. Logo, a única possibilidade de se sustentar a vida para o estudante absurdo é a vivência do presente.
É preciso conviver com os males e com o horror sem aceitá-los passivamente. Nessa perspectiva, Eliane Brum transmite a seus leitores sua constatação de como a leveza da alegria é uma forma de resistência para os povos da floresta amazônica perante a destruição da própria morada: Aprendi com os povos da floresta amazônica, que tiveram suas vidas destruídas junto com a floresta mais de uma vez, e que resistem e resistem e resistem, que o principal instrumento de resistência é a alegria. Oswald de Andrade dizia que a alegria é a prova dos nove. Mas eles já sabiam disso muito antes. Metem o dedo na cara do opressor, que continua lá, e riem por gostar de rir. Riem só por desaforo. (BRUM, 2018, 9/10/2018, texto online).
A repetição de vidas destruídas em conjunto com a floresta permite estabelecer uma analogia com a repetição de se empurrar o rochedo ao cume do monte. O segredo da resistência nessa repetição destruidora é o riso. Ao tratar acerca do dom-juanismo, declara Camus: “Esse riso, a insolência vitoriosa, os pulos e o gosto pelo teatro são coisas claras e alegres. Todo ser saudável tende a se multiplicar.” (CAMUS, 1989, p. 46). Desse modo, o riso e alguma indisciplina carnavalizante se manifestam em estudantes da Educação Básica da rede pública - numa atitude igual a do personagem Bandido da Luz Vermelha, no filme de mesmo nome produzido por Rogério Sganzerla, que proclamava anarquicamente: “Quando a gente não pode fazer a gente avacalha.” (ApudAZEDDINE, 2004). Essa “carnavalização” precisa ser reconhecida como um ato político pelos próprios estudantes. Em que pese a derrisão não se identificar com a felicidade, a irreverência pode favorecer uma politização pelo afeto; uma politização com força para resistir à destruição de existências e comunidades situadas muito comumente em lugares qualificados como “território do crime”, de acordo com a lógica da guerra às drogas - lugar a ser evitado e segregado pelo aparato policial-militar. Nas diversas formas de resistência e protesto, é preciso imaginar um sentido político para a irreverência cotidiana do estudante, em condição de absurdidade.
É preciso imaginar o estudante-Sísifo feliz
Vida e existência não são sinônimas em Camus. A certeza da existência e a estranheza de si suscita o “sentimento da absurdidade” por causa do “divórcio” entre o existente e sua vida, ou entre “o ator e seu cenário” (CAMUS, 1989, p. 9). Por isso, a compreensão da existência é um contínuo desafio ao longo de um tortuoso, angustioso e desesperador caminho de afirmação da vida absurda.
Camus apresenta sua proposta em contraponto às grandes linhas da obra Doença até a morte, publicada em 1849. Nela, Kierkegaard reconhece a imanência do desespero ao humano. Na visão clássica judaico-cristã, bem expressa no pensamento de Kierkegaard, o desespero é um pecado a ser combatido. (CAMUS, 1989, p. 29). O desespero é uma categoria do espírito oposta à felicidade e, por conseguinte, contraposta à eternidade a ser conquistada. Ambas, eternidade e felicidade, conquistam-se pela superação do desespero, porque ele sinaliza a inconsciência humana quanto a seu destino espiritual em Deus.
Camus atribui o seguinte paradoxo a Kierkegaard: “Deve-se ferir mortalmente a esperança terrena - só então é que nos salvamos pela esperança verdadeira”. (CAMUS, 1989, p. 82). A tentativa de usar a esperança na eternidade para curar a doença mortal do desespero, porém, só gera resignação; por isso, no desespero encontra-se nossa única e mais alvissareira “esperança”; e não na esperança de esquivar-se da morte, daí esta esperança celestial ser, num duplo sentido, uma espécie de “esquiva mortal” (PEREZ, 2010, p. 100), pois se configura uma desvalorização da vida humana.
O paradoxo de uma esperança advinda da falta de sentido da existência, contudo, é mais rico e promissor para a vida do que o paradoxo do salto da fé, como opção existencial ao absurdo do mundo. A absurdidade não se opõe à esperança marcada por uma racional recusa do sentido da vida e, com isso, pela valorização da vida do existente; em contraposição à proposta kierkegaardiana de que, perante o absurdo, resta-nos apenas o “paradoxo” subjacente ao salto, ancorado pelo “sacrifício do intelecto”:
O cristianismo é o escândalo e o que Kierkegaard procura é simplesmente o terceiro sacrifício exigido por Inácio de Loiola, aquele com que Deus mais se rejubila: “o sacrifício do Intelecto”. Esse efeito do “salto” é curioso, mas não deve mais nos surpreender. Ele faz do absurdo o critério do outro mundo quando é somente um resíduo da experiência deste mundo. “Em seu fracasso”, diz Kierkegaard, “o crente encontra seu triunfo”. (CAMUS, 1989, p. 27).
Nosso autor considera o suicídio filosófico uma contradição, pois o suicídio filosófico é fruto de uma argumentação que nega o pensamento como estratégia de superação do limite da racionalidade humana pela fé, reconciliando-se com o absoluto e alcançando a felicidade ao se unir com Cristo. O salto pode ser dado logo, quando se toma consciência do desespero, posto que tal consciência do desespero gera mais desespero. O desespero de toda possibilidade infinita aprisionaria o indivíduo na finitude de seu desejo inalcançável, convertendo o desespero em necessidade. Logo, o absurdo é o infinito de possibilidades frente ao finito de necessidade. A possibilidade contra a necessidade aprisiona o indivíduo num desespero pela perda de objetividade e pelo vazio de significação, como “lugares desertos e sem água”. (CAMUS, 1989, p. 11).
O paradoxo kierkegaardiano de uma vida a ser vivida para além da racionalidade e pelo pathos do Deus das possibilidades infinitas acarreta, segundo a interpretação de Camus, outro paradoxo: um pensamento que nega a si mesmo e se supera por meio de Deus, que por sua vez nega o pensamento em vista de um salto da fé. (CAMUS, 1989, p. 29). De modo mais preciso, esse conjunto de paradoxos é contradição e contradição frustrantes, cansativas e irresolvíveis, pois movimentam gradual e repetidamente a autorreflexão da consciência. (CAMUS, 1989, p. 13). Tal esforço dialético de autorreflexão da consciência entre o finito e o infinito causa-lhe cansaço e engendra-lhe o grande perigo: o da resignação, e resignação infinita, no momento imediatamente anterior ao salto da fé:
O último estádio que precede a fé, pois ninguém a alcança antes de ter realizado previamente esse movimento; porque é na resignação infinita que, antes de tudo, tomo consciência do meu valor eterno, e só então se pode alcançar a vida deste mundo pela fé. (KIERKEGAARD, 1979, p. 135).
A resignação é perigosa nem tanto por ser uma resignação anestesiada pela ditadura do presente contra o futuro “salto” ou, mais propriamente, pela eternidade de cunho escatológico. A resignação se torna perigosa pelo sacrifício da razão e pela desvalorização da finitude do humano, e de sua razão, defronte ao absoluto divino, quando o suicídio filosófico finalmente permite o descanso desse movimento de autorreflexão.
Camus traz uma nova inflexão ao descanso da resignação infinita. Para ele, o esgotamento, não o cansaço, traz efetivamente o novo. O descanso se dialetiza com o trabalho; seria como o descanso do operário quando chega cansado em casa. Tal descanso, por conseguinte, é apenas uma pausa ao trabalho, reforçando-o. Inverso ao cansaço é o esgotamento. O esgotamento impede o trabalho - como metáfora de exploração de possibilidades -, não obstante tal exaustão oportunize, paradoxalmente, uma transformação da existência: “O homem absurdo só pode esgotar tudo, e se esgotar”. (CAMUS, 1989, p. 37).
A consolação metafísica pelo “salto da fé” não é, portanto, uma consolação consistente, uma vez que essa paz nos envenena. (CAMUS, 1989, p. 17). O salto da fé não consola o indivíduo frente à experiência do absurdo do mundo, porque sua busca do absoluto critica o exercício da racionalidade humana. A solução kierkegaardiana para o desespero, como uma cura para a doença mortal e necessária aos humanos, é o suicídio filosófico pelo “salto da fé”. Mais acertadamente, na visão de Camus, o salto da fé como “saída” do desespero é, ao contrário do que diz o autor dinamarquês, a expressão máxima da “doença do espírito”. (CAMUS, 1989, p. 7). O salto da fé não serve como remédio para o desespero porque não cura o indivíduo do sentimento difuso de absurdidade, mas deixa o indivíduo mais doente. Daí a pretensa “saída” pelo salto da fé, que não é saída, já que não existe saída ou alternativa ao absurdo do mundo. (CAMUS, 1989, p. 25).
Nasce desse esgotamento de qualquer saída uma escolha da vida a ser vivida, ainda que em face da própria execução, quando mais claramente se reconhece residualmente o precioso da vida, após a perda do precioso de tudo. (CAMUS, 2008, p. 123). O sentimento de absurdidade é condição da liberdade na apropriação camusiana da figura mítica de Sísifo. O fato de não haver uma significação prévia de “liberdade” - pois não existe “liberdade em si” (CAMUS, 1989, p. 37) - potencializa o quadro de Sísifo. O estudante absurdo justapõe liberdade e absurdo como imperativo para a sua existência. A cada instante há escolhas em nosso estado de absurdidade; daí o paradoxo de uma liberdade limitada circunstancialmente e, ainda assim, factível, inclusive ao se facejar muros intransponíveis.
Por isso, nosso autor afirma o desespero do existente como exercício paradoxal da liberdade mais eficiente do que o salto kierkegaardiano da fé: “O importante, dizia o abade Galiani à Sra. D’Épinay, não é curar, mas viver com os seus males”. (CAMUS, 1989, p. 28). Eis a principal diferença entre Camus e o pensamento de Kierkegaard, conforme o ponto de vista parcial do primeiro, pois sabemos que o autor franco-argelino não contextualizou suficientemente a complexidade da filosofia de Kierkegaard. Seja como for, não viver e pensar com os males e as dilacerações é um desafio didático-pedagógico com a estéril e crescente tentativa de se responder com respostas canônicas e religiosas, frequentemente fundamentalistas, à ausência de um sentido preciso de “mundo”. A irracionalidade de cunho religioso se revela um relevante desafio para o ensino e a aprendizagem de Filosofia no ambiente escolar público, onde com frequência a ameaça do obscurantismo acompanha o tensionamento de grupos contrários à laicidade do Estado Democrático de Direito, em sua embriaguez irracional pelo divino e em sua vocação ao êxtase.
Contra o fundamentalismo religioso, o texto de Camus revela a nossos estudantes absurdos que, em contraposição à liberdade impossível trazida por Deus, há a liberdade humana e sem Deus, do âmbito do possível - o que não se traduz em proclamar a sua inexistência. O ponto essencial da argumentação não é o ateísmo, mas a salutar conjugação entre cristianismo e absurdidade ao não se crer na vida futura, em sintonia com a seguinte enunciação feita por Dostoiévski em Os Possessos: “Se Stravóguin crê, não crê que crê. Se ele não crê, não crê que crê.” (ApudCAMUS, 1989, p. 44). A ambiguidade da crença lhe permite uma crítica cirúrgica: o problema é um tipo kierkegaardiano de cristianismo em sua ilusória esperança e paz numa vida eterna e celestial, como reação irracional ao absurdo do mundo. A irracionalidade do salto da fé não consiste no melhor modo de se resistir ao desespero diante do nada e do absurdo trazido pela racionalidade. Preconiza Camus:
É necessário viver com o tempo e morrer com ele ou se subtrair a ele para uma vida maior. Sei que se pode transigir e que se pode viver no século acreditando no eterno. Isso se chama aceitar. Mas essa palavra me repugna, e eu quero tudo ou nada. Se escolho a ação, não pense que a contemplação me seja como uma terra desconhecida. Mas ela não pode me dar tudo e, privado do eterno, quero me aliar ao tempo. Não quero fazer constar na minha conta nem saudade nem amargura: só quero é ver com clareza. É como lhe digo: amanhã você será mobilizado. Para você e para mim, isso é uma libertação. O indivíduo não pode nada e, no entanto, pode tudo. Nessa maravilhosa disponibilidade você compreende por que o exalto e o esmago ao mesmo tempo. E o mundo que o tritura e sou eu que o liberto. Eu lhe forneço todos os seus direitos. (CAMUS, 1989, p. 55).
Daí a ressalva camusiana da frase de Nietzsche: “O que importa não é a vida eterna, é a eterna vivacidade.” (CAMUS, 1989, p. 53). É melhor a eterna vivacidade da paixão conjugada com a liberdade do que a certeza de uma vida futura e eterna. A existência humana se fortalece e se vivifica ao se percorrer a estrada do absurdo e do desespero. O gesto corajoso não é o salto da fé, mas assumir o absurdo como algo constitutivo e ontológico de nossa existência. De modo ontológico a vida se vincula ao desespero. O pior mal é não ter sofrido desespero. Aceitar o absurdo, sem resignação, liberta-nos. (CAMUS, 1989, p. 36). Um eu livre surge através do desespero que nos tira da “gangorra” de vitórias ou derrotas: “Ciente de que não há causas vitoriosas, tomo gosto pelas causas perdidas: elas requerem uma alma inteira, igual à sua derrota, como as suas vitórias.” (CAMUS, 1989, p. 55).
Ao inverso de uma atitude melancólica ou de uma fixação nostálgica em épocas passadas, a existência então se abre imaginativamente e acolhe criativamente o absurdo do evento inesperado. Viver o absurdo potencializa e transforma a vida em sua abertura ao acontecer inesperado. O grande acontecimento, para Camus, foi a ocupação alemã na França, quando tudo foi concedido e tudo foi perdido. Perdeu-se um sentido de “povo”, mas outro surgirá; para tanto, nunca se deve resignar-se, mas revoltar-se.
Como complemento à obra O mito de Sísifo, o livro intitulado O homem revoltado, publicado em 1951, trata mais detalhadamente da “revolta metafísica”, que “estende toda a consciência ao longo da experiência”. (CAMUS, 1989, p. 36). Camus aponta para o inescapável acionamento de regras e princípios como elementos norteadores de conduta numa ação solidária de revolta ou “rebeldia”, com liberdade e paixão, contra a injustiça do mundo (CAMUS, 2017, p. 36-37). Foi o que fez o próprio Camus ao participar da resistência à ocupação e ao governo colaboracionista de Vichy, de 1940 a 1942 e fundar o jornal clandestino Combat, na mesma época de redação de O mito de Sísifo. Escreve Camus:
O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela. Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta. Contrapõe o que é preferível ao que não é. Nem todo valor acarreta a revolta, mas todo movimento de revolta invoca tacitamente um valor. Tratase realmente de um valor? Por mais confusa que seja, uma tomada de consciência nasce do movimento de revolta: a percepção, subitamente reveladora, de que há no homem algo com o qual pode identificar-se, mesmo que só por algum tempo. (2017, p. 24).
Não há, portanto, fatalismo, mas a vivência apaixonada do presente na construção provisória de um valor coletivo, o que exige imaginação. A imaginação, contrariamente ao salto da fé, tensiona os limites do mundo e favorece o exercício da rebeldia. Assim, o maior desafio, num campo de concentração por exemplo, não é a tentativa fantasiosa de aceitar esse absurdo como se fosse uma realidade já dada; como não é também suicidarse ou prescrever leviana e abstratamente soluções revolucionárias.
Assim, contrariamente ao cavaleiro da fé e sua esperança para além da vida, temos o herói absurdo (CAMUS, 1989, p. 74) personificado no Dr. Bernard Rieux, o protagonista do romance A Peste, de 1947. Médico que não se conforma com a peste e luta contra a sua disseminação na cidade de Oran, na Argélia. Camus acompanha aí os “escritores de tese”, em cuja literatura se constata o uso potente da imaginação para o exercício da rebeldia solidária:
O pensamento abstrato redescobre, enfim, o seu apoio na carne. E de igual modo os jogos romanescos do corpo e das paixões se organizam um pouco mais segundo uma visão do mundo. Já não se contam histórias: cria-se o seu universo. Os grandes romancistas são romancistas filósofos, isto é, o contrário dos escritores de tese. Assim Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoiévski, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns deles. Mas justamente a escolha que eles fizeram de escrever mais em imagens do que em raciocínios é indicadora de um certo pensamento que lhes é comum, persuadido da inutilidade de todo princípio de explicação e convencido da elucidativa mensagem da aparência sensível. (CAMUS, 1989, p. 63).
A expressão “aparência sensível” evoca o valor da experiência. A imaginação, como o ilimitado do pensamento, transporta-nos à vida; bem diferente do pouco pensamento, que nos afasta da vida quando a vida se defronta com “muros absurdos”, apelando então para outra vida. Por isso, declara na sequência nosso autor: “um pouco de pensamento afasta da vida, mas muito leva de volta a ela”. (CAMUS, 1989, p. 63). Ademais, de acordo com a citação destacada acima, o mundo não se estreita pela racionalidade cartesiana, cujo modelo de racionalidade não dá conta do indecifrável, limitado e trágico universo.
Não se escolhe a aventura da vida por construções abstratas de sentidos sobre ela. Viver o acontecimento de seu mundo não se explica ou se resolve, não obstante se experimenta e se descreve “numa indiferença lúcida” (CAMUS, 1989, p. 60), produzindo uma ação ética pela revolta, a exemplo do Dr. Rieux ou mesmo de Guido, o pai no filme “A vida é bela”. Este filme nos atordoa por traçar uma estratégia racional, leve e até humorística num ambiente trágico. A invenção de um jogo pelo pai para brincar com seu filho num campo de concentração nazista torna o filme uma fábula da existência. Ele mostra a potência da imaginação por sua impactante capacidade de transfigurar um acontecimento absurdo e dilacerante em ação ética em defesa da vida, apesar da ameaça da morte à espreita em cada “instante sutil” de sua faina diária. Para tanto, é preciso usar a imaginação para não submergir na loucura e no silêncio do mundo e dessa forma viver e ser feliz.
No universo subitamente restituído ao seu silêncio, elevam-se as mil pequenas vozes maravilhadas da terra. Apelos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não existe sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e seu esforço não acaba mais. Se há um destino pessoal, não há nenhuma destinação superior ou, pelo menos, só existe uma, que ele julga fatal e desprezível. No mais, ele se tem como senhor de seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta sobre sua vida, Sísifo, vindo de novo para seu rochedo, contempla essa sequência de atos sem nexo que se torna seu destino, criado por ele, unificado sob o olhar de sua memória e em breve selado por sua morte. Assim, convencido da origem toda humana de tudo o que é humano, cego que quer ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre caminhando. O rochedo continua a rolar.
Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz. (CAMUS, 1989, p. 76).
Repitamos: é preciso imaginar o estudante absurdo feliz. Transfigurar imaginativamente o absurdo da opressão numa potencialidade existencial sintoniza, ainda, com a poesia de mais um aprendiz dos povos da floresta, Mello (1987, p. 214): “Não, não tenho caminho novo./ O que tenho de novo/ é o jeito de caminhar.” Este poema traz paradoxos em sintonia, a nosso ver, com a análise e discussão de Camus em O mito de Sísifo e desdobramentos para o ensino e a aprendizagem de Filosofia. Não somos máquinas e, por isso, há escolhas no caminho existencial, ainda que seja por um novo modo de caminhar, quando não vamos aonde gostaríamos de ir. Com imaginação é preciso Sísifo assumir livremente sua vida por entre a opressão dos “muros absurdos”. (CAMUS, 1989, p. 11). É preciso imaginar como possível o estudante ser feliz, apesar da debilidade de sua existência. O muro de uma escola não impede o exercício da imaginação e até contribui com ela. Nesses muros de opressão e silenciamento, é expressão democrática fazê-los falarem, contando diversificadas narrativas, convertendo-as em afirmação de vidas alternativas.
O destino pertence a Sísifo e, por analogia, ao estudante absurdo. Os estudantes absurdos hão de construir imaginativamente novas narrativas desde os próprios referenciais culturais, como a infiltração de vida num muro de cimento, tijolos e preconceitos. Muros que se convertem em criativas motivações e possibilidades existenciais. Para tanto, é preciso imaginação ao estudante absurdo. Eis a contribuição da Filosofia de Camus para nossos estudantes absurdos.
Conclusão
Os estudantes absurdos das escolas públicas são alguns dos recentes Sísifos de nosso tempo. A filosofia do absurdo contribui para a análise potencializante e não pessimista de vários dramas históricos contemporâneos e de um drama em particular: o cenário de catástrofe de nossa educação pública. Compõe essa catástrofe a situação do magistério público em nosso país. Professores sofrem um excesso de burocratização e intimidação, conforme se constata com o ataque à liberdade de cátedra por associações como a “Escola sem Partido”. Além disso, o professor da rede pública se depaupera pelas péssimas condições de trabalho e pela baixa remuneração salarial, numa existência esvaída entre múltiplas tarefas sem propósito e a serviço de uma instituição governamental frequentemente opaca aos professores, acarretando problemas de violência e saúde mental, com um elevado índice de licenças para o tratamento de ansiedade e depressão. Daí a pouca atratividade da profissão e a indispensável necessidade de potencialização dessa absurdidade vivida pelo professorproletário, que, infelizmente, corresponde a uma forma de “professorabsurdo”, a ser problematizada também sob a inspiração do homem absurdo de O mito de Sísifo.
O ensino e a aprendizagem da Filosofia obviamente não têm o fito de impedir a autonomia reflexiva de cada estudante. Entretanto, é importante que ele conheça o vasto repertório da História da Filosofia, para checar como certas propostas teóricas, desencaixadas da visão ordinária da sociedade, abrem-se para novas reflexões que, por sua vez, inauguram possibilidades existenciais e políticas. Nesse sentido, o texto de Camus é um conteúdo fundamental para introduzir o educando da periferia na centralidade político-pedagógica do pensar filosófico, a partir exatamente do próprio sentimento de absurdidade e desorientação - sentimento que implica o estímulo por caminhos existenciais alternativos, em que pese não haver horizontes de mudanças estruturais na realidade institucional dos sistemas de ensino nas redes públicas.
Nossa proposta de abordagem de O mito de Sísifo, no ensino e na aprendizagem da Filosofia das redes públicas se deve à baixa probabilidade de, a curto ou médio prazos, vislumbrar horizontes de transformação político-institucional em nosso país. Essa falta de horizontes predeterminados ou utópicos não impede, mas favorece uma potência criativa do agora enquanto acontecimento. (CAMUS, 1989, p. 70-73). Assim, cai por terra uma possível acusação de que uma abordagem pedagógica do absurdo geraria apassivamento conformista, com a opressão e seus muros metafóricos ou literais. Ao contrário, a inquietação pedagógica deste artigo foi com o propósito de aproveitar um pensamento tão original como o de Camus, para contribuir com o reconhecimento da capacidade de rebeldia de nossos estudantes para enfrentarem, sem falsa esperança ou escapismos, as ruínas de seu mundo. A obra O mito de Sísifo nos ensina a potência do exercício da imaginação, muito maior do que a sua alternativa irracional, num hipotético além-mundo. A ausência de horizontes, por fim, exige uma reflexão sobre a atualidade do currículo da disciplina. Incumbe aos professores de Filosofia proporcionarem a seus estudantes absurdos textos da História da Filosofia, que os coloquem como ousados protagonistas de um cenário pautado pela estranheza. Ousadia sem qualquer teleologia ou sentido apriorístico da natureza humana; sem cair no mero cumprimento de regras morais preestabelecidas.