A obra Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade, de Andrew Feenberg, traduzida para o português por Eduardo Beira, Cristiano Cruz e Ricardo Neder, apresenta inicialmente uma introdução a Andrew Feenberg e à teoria crítica da tecnologia, com o propósito de informar o leitor sobre a biografia e as produções teóricas de Feenberg. Na obra são esboçadas as principais ideias sobre o fenômeno técnico, o que Feenberg denomina de “Teoria crítica da tecnologia”, evidenciando seu vínculo com as reflexões autocríticas da tradição cultural.
Andrew Lewis Feenberg nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1943. Seu interesse pela filosofia e literatura o levaram para a formação em Filosofia, graduando-se na Universidade John Hopkins em 1965, seguindo para a Universidade da Califórnia, em San Diego, onde obteve o título de mestre em 1967. Nos anos posteriores, passou pela Universidade de Paris, na França. Ao retornar aos Estados Unidos, Feenberg realizou o doutorado na Universidade da Califórnia, sob a orientação de Herbert Marcuse, concluindo essa etapa em 1973. Além das muitas atuações como conferencista e docente visitante em instituições de diferentes países, Feenberg trabalhou como professor na Universidade Estadual de San Diego de 1969 a 2003. Mudou-se para Vancouver, Canadá, assumindo a posição que até hoje ocupa, a de professor na Universidade Simon Fraser e a cátedra em Filosofia de Tecnologia.
Na sequência da obra, apresenta-se um prólogo escrito por Brian Wynne, indicando que a obra de Feenberg é anunciadora de diversas perturbações e potencialidades das interfaces entre ciência, tecnologia e democracia. Feenberg construiu perspectivas sobre a questão da tecnologia, que mostram múltiplas ambiguidades endêmicas, incompletudes e diferenças de significado e propósitos nas construções sociais e políticas da tecnologia, frequentemente diminuídas a descobrimentos de especialistas. Feenberg construiu um trabalho com inspiração na filosofia que reconhece os alicerces da ausência democrática da tecnologia, enquanto crise ao paradigma emergente demolido pela tecnociência. Apresenta ainda um prefácio também elaborado por Brian Wynne e um posfácio de Michel Callon. A obra é subdividida em nove capítulos que chamam a atenção aos nexos entre tecnologia e experiência, de modo que introduz as temáticas principais da teoria crítica da tecnologia, recorrendo a reflexões de Foucault, Heidegger, e permeando os debates da escola de Frankfurt e da sociologia construtivista da tecnologia.
A primeira parte da obra, cujo título é Para além da distopia, “explora a crítica distópica da tecnologia que surge quando, no século XX, o progresso acabou por ser identificado com burocracia, propaganda e genocídio. A racionalidade científica e técnica domina assim a distopia que não deixa espaço para a liberdade e para a individualidade”. (FEENBERG, 2017, p. 67). De acordo com o autor, tal distopia poderá ser superada por meio de projetos de iniciativa dos próprios utilizadores da internet ou por meio de intervenções democráticas de ambientalistas, por exemplo, quando acionada com base no desenvolvimento do potencial libertador da tecnologia. No primeiro capítulo, intitulado Racionalização democrática: Tecnologia, poder e liberdade, são abordados e reconhecidos os temas centrais do livro e algumas terminologias, a saber: distopia e democracia, a dupla dimensão técnica e social da tecnologia, a reforma ambiental dos sistemas técnicos, a racionalização democrática e a contribuição do construtivismo social para a filosofia da tecnologia.
O segundo capítulo - Paradigmas incomensuráveis: valores e ambiente rejeita a visão do ambientalismo baseado na noção de inevitáveis trocas compensatórias (baseadas em custos e benefícios) e propõe uma abordagem cultural da política ambiental, que é interdependente “de escolhas sociais entre trajetórias alternativas que resultam em diferentes consequências ambientais. [...] A regulamentação pode conduzir a mudanças tecnológicas que favoreçam as atividades econômicas [...]”, dispensando as compensações. (FEENBERG, 2017, p. 74). O debate gira em torno de como o desenvolvimento tecnológico pode provocar a transformação civilizacional do imaginário, revolucionando a temporalidade social, os arranjos técnicos, econômicos e a trajetória escolar.
O terceiro capítulo é denominado Daqui a cem anos, revendo o futuro: a imagem variável da tecnologia e parte de uma discussão sobre o horizonte distópico. Nas palavras de Feenberg (2017, p. 74), “as utopias e as distopias dos séculos XIX e XX imaginaram que o destino da humanidade seria viver numa sociedade onde as relações sociais fossem mediadas pela tecnologia industrial”. Os discursos utópicos narravam os limites técnicos e as aplicações geradas para melhorar o lazer e a individualidade. Deste modo, Feenberg (2017, p. 74) afirma que “não há formas de ampliar o controlo técnico sem incluir a presença de seres humanos no sistema”, de modo que “a nova agenda democrática é a recuperação das formas de agência nas instituições da sociedade que são tecnicamente mediadas”, sendo a internet a que melhor representa os avanços para esta agenda, tendo em vista que promove a interatividade num grau sem precedentes no passado.
A internet aproxima a interação e a coexistência entre sujeitos e suas máquinas, mas a condição própria desse conhecimento não é instrumento pacífico à satisfação de necessidades humanas, visto que tais necessidades naturais são desqualificadas ou desconsideradas. O estudo mostra a problemática da tecnologia que passa a mediar as relações sociais e opera como uma fonte de poder impessoal do sistema a âmbitos específicos da vida dos sujeitos. Portanto, torna-se uma dimensão distópica, porque “parece estar acima do bem ou do mal”. (FEENBERG, 2017, p. 151). As visões (dis)utópicas de que a tecnologia pudesse melhorar a vida em sociedade, protegendo os sujeitos ou controlando as ferramentas modernas provoca uma distopia, pondo a tecnologia no centro do controle, que é transformado de um utensílio de informação a um meio de comunicação.
Nesse sentido, a segunda parte intitulada Construtivismo social apresenta aplicações metodológicas da teoria crítica da tecnologia, sob a perspectiva da racionalidade, da conformação social da cultura à tecnologia e da historicidade desse conhecimento ao desenvolvimento técnico. A investigação do capítulo quatro, Teoria crítica da tecnologia: uma perspectiva geral combina contributos da filosofia da tecnologia e dos estudos construtivistas da tecnologia, resultando numa teoria crítica da tecnologia. O reconhecimento desta situação implica vincular que “toda a tecnologia aponta para um operador, por um lado, e para um objeto, por outro lado. Quando tanto o operador como o objeto são seres humanos, a ação técnica é um exercício de poder”, na sociedade. (FEENBERG, 2017, p. 178). Como resultado desse fenômeno social, cujo poder tecnológico evoca e dirige a vida, realizam-se projetos para a redução do “leque de interesses e preocupações e que podem ser representados pelo funcionamento normal da tecnologia e das instituições dependentes. Este estreitamento distorce a estrutura da experiência e causa sofrimento humano e danos ao ambiente natural”. (FEENBERG, 2017, p. 178). No entanto, a resistência ao sistema unidimensional se dá pela abertura da tecnologia aos limites e poderes humanos e naturais, a partir de uma transformação democrática, que pode reduzir os ciclos da retroalimentação patológica da esfera técnica.
O quinto capítulo intitulado Da informação à comunicação: a experiência francesa com videotexto situa a questão vinculada aos conceitos da primeira rede de computadores doméstica bem sucedida, as lições e os resultados da experiência do sistema francês Minitel. O percurso realizado para o desenvolvimento da tecnologia de videotexto foi modificado pela própria experiência, em um cenário amplo e em formação, da partilha e do enfrentamento dos limites, para adotar um procedimento situado nas fronteiras da proliferação epistemológica.
O capítulo sexto aborda o debate contemporâneo da Tecnologia num mundo global e apresenta o caso da experiência do Japão, como o primeiro país não ocidental a modernizar-se, “através da análise de vários exemplos de transferência de tecnologia [que] assume formas complexas que são culturalmente relativas”. (FEENBERG, 2017, p. 156). Ao tentar reconciliar tecnologia e cultura aos modos de vida, desvela-se a contingência sociocultural da tecnologia que cerceia a capacidade de reinterpretar a própria racionalidade. Por isso, são muitas as perplexidades que consolidam os aspectos técnicos e sociais que envolvem a tecnologia e o desenvolvimento econômico para a autocompreensão moderna, pois não conseguimos romper o risco de regressão do projeto dos artefatos técnicos em relação às dicotomias rígidas e enganadoras do acesso e uso, bem como dos perigos e das injustiças sociais. Nesse contexto, as conclusões dos estudos de Feenberg apontam para a confrontação contemporânea da tecnologia com os seus próprios limites, responsabilidades, poderes insuspeitos e pressupostos óbvios, de modo que o “crescimento de uma esfera técnica pública abre novas possibilidades para intervenções democráticas no desenvolvimento tecnológico”. (FEENBERG, 2017, p. 236).
A terceira parte da obra trata da Modernidade e racionalidade, chegando ao nível filosófico da tecnologia, que não pode ser considerada separadamente da compreensão normativa e histórica da tecnologia. Deste modo, Feenberg (2017) afirma que somos guiados a compreender que essa relação tem fracassado na comunicação entre razão e a experiência institucionalizada das tecnologias nos sistemas sociais.
Nesta perspectiva, o capítulo sete parte da Teoria da modernidade e estudos tecnológicos: reflexões sobre como as aproximar, tendo em vista o processo instituído globalmente de racionalização e desconexão da relação compreensiva entre a teoria da modernidade e os estudos tecnológicos. O debate aponta que essa desmundialização não se opõe à cultura isolada ou à ordem social, mas aparece como uma expressão diferente (cultura mais ou menos criativa) e com uma grande variedade de valores. “A pobreza da tecnocultura atual deve ser reconstituída não a partir da essência da tecnologia, mas sim de outros aspetos da nossa sociedade, tais como as forças econômicas que dominam o desenvolvimento tecnológico, o projeto e os meios de comunicação.” (FEENBERG, 2017, p. 278).
No capítulo oitavo, Da teoria crítica da racionalidade à crítica racional da racionalidade, Feenberg aborda e explora o sentido e a tentativa de justificar que as sociedades modernas são racionais. Nessa parte, o autor esboça as adaptações da teoria da instrumentalização, as formas modernas de racionalidade social, que respondem aos enviesamentos que vão desde a ideologia do mercado-livre até a legitimação tecnocrática das sociedades “desenvolvidas” em relação à tecnologia. Com a argumentação produzida em torno da teoria da instrumentalização e das noções de código técnico, o autor defende que os sistemas racionais precisam ser reconstruídos em favor de uma agenda de investigação dos diferentes contextos de ciência, tecnologia e jogos de forças da modernização burocrática e do mercado.
Finalmente, no capítulo nono, Entre a razão e a experiência, o autor traz uma reflexão sobre a relação entre a experiência cotidiana e a racionalidade tecnológica. Nesse sentido, a conclusão é uma abertura, uma diferenciação aos conceitos de essência, racionalidade científica, técnica e experiência cotidiana, agora dimensões fragmentadas de significação, que ofuscam os domínios vitais à reconciliação crítica e de sentido mediador de interpretação da experiência. O autor também busca recuperar o debate sobre a normatividade da técnica que não brota de um simples ato da vontade, pelo menos, “as normas só podem emergir a partir da experiência partilhada por uma comunidade com o seu mundo. Os mundos [...] devem ser entendidos como domínios de prática, mais do que como uma natureza observada passivamente à qual são atribuídos valores”. (FEENBERG, 2017, p. 362). Feenberg (2017, p. 362) lança ainda uma questão que está por “trás de nós”, isto é: “Qual poderia ser a fonte desses significados hoje em dia?”
Por fim, compreendemos que Feenberg (2017) nos fornece uma reflexão crítica sobre a técnica que nos qualifica para a participação ativa no processo social, político e cultural das descobertas de mundos, em permanente (re)construção do sentido das tecnologias. Este processo dentro do qual as ações e os objetos assumem significado não nos coloca, necessariamente, do lado oposto à técnica, mas nos revela o seu potencial presente nas reconfigurações educativas postas em ação pela força dos atores sociais, que conseguem se fazer ouvir no seu projeto de formação, curiosidade e estranhamento epistemológico. Certamente esta obra provoca o reconhecimento das dimensões interdependentes entre técnica, ciência, linguagem, poder, cognição, ideologia e vida social, cujas apropriações exigem debate político e esforço para transformar a tecnologia em potencial emancipador da experiência, para além das ambições humanas subdeterminadas pela eficiência técnica.