Introdução
Quando estudamos a agroecologia e a formação de agroecólogos desde uma perspectiva do poder, usando ferramentas arqueogenealógicas, emerge um campo de tensões que precisa ser devidamente tematizado. Tal premissa pode ser extrapolada à área da Educação Ambiental toda vez que tanto as práticas pedagógicas da agroecologia como da Educação Ambiental derivam de um processo de recontextualização originado no saber ecológico (BERNSTEIN; DÍAZ, 1985, p. 16). As práticas agroecopedagógicas tratam da forma como a natureza é ocultada ou develada, que a coloca em relações de poder-saber, daí que, cada vez mais, essas formas ganham um lugar instigante no contexto do biopoder. Do que se trata é de práticas de assujeitamento que criam identidades pessoais e profissionais em diferentes espaços e níveis da Educação. Chamamos de agroecopedagogia ditas práticas agroecológicas (ZÚÑIGA, 2018) e, para este trabalho, a (agro)ecopedagogia concentra tanto as práticas pedagógicas da agroecologia como da Educação Ambiental na sua delimitação ecopedagógica. Como todo processo de recontextualização, a formação veiculada pela (agro)ecopedagogia não procura, simplesmente, dotar de novos conceitos, novas ferramentas didáticas ou criar um maior nível de conscientização, pois trata-se de colocar em diálogo direto o indivíduo com o que pode ser dito e visibilizado no campo pedagógico, com objetivos políticos definidos, e nós suspeitamos que ditos objetivos podem estar vinculados a uma governamentalidade planetária (FOUCAULT, 2008b; ZÚÑIGA, 2018).
Na dimensão epistemológica, a (agro)ecopedagogia materializa uma crítica à ciência convencional, instituindo-se como novo paradigma dentro do campo da complexidade, veiculando os dispositivos de assujeitamento presentes no sujeito ecológico. Por conta desse movimento, ela visibiliza conceitos fundadores para um olhar mais apurado dos processos nos sistemas produtivos, com os quais, por exemplo, os agroecólogos adquiririam uma visão de totalidade diferenciada dos outros profissionais das ciências agrárias formados sobre o paradigma convencional (CAPORAL; COSTABEBER; PAULUS, 2009; KHATOUNIAN, 2001). Na procura dessa complexidade, a (agro)ecopedagogia articulou uma estratégia transformadora na formação de profissionais, amparada na integralidade das Ciências Naturais e na emancipação das Ciências Humanas. Não obstante, no inovador que isso pode resultar no campo das Ciências da Natureza e Agrárias, a fórmula, no próprio campo da Filosofia da Educação é alvo de tensões. Se bem é certo que às humanidades tem se autoconferido um poder tal de libertação, nelas existe um singular eixo articulador do saber-poder.
À vista disso, a leitura arqueogenealógica propõe descentrar tanto os lugares nos quais a natureza é vetorizada nas relações de poder, como as formas em que vêm sendo colocados, distribuídos, controlados os corpos. Isso abre outro percurso, uma outra trilha conhecida como biopolítica. De maneira global, a biopolítica é um campo em discussão que envolve, no mínimo, quatro questionamentos: i) sobre sua condição de categoria; ii) como uma noção histórica, ou iii) de uma época e, também, iv) a relação entre os dois termos, bio e política, e ainda o que pode ser entendido por bios nessa relação. Aqui o debate gira em torno de tentar explanar como o uso de Foucault sobre a biopolítica tem sido elaborado por alguns desses comentadores.
Finalmente, cabe destacar a relação entre biopolítica e biopoder. O surgimento da biopolítica é a extensão do Estado sobre a vida mesma, e a população e seus processos biológicos se convertem em alvo, não só de curiosidade, mas de interesse por parte do Estado para manter o controle e permitir, assim, um equilíbrio, uma homeostase, desde a qual uma ordem estabelecida pode se manter (ZÚÑIGA, 2018). Mas, para que a biopolítica funcione, é preciso um poder, já não do soberano sobre o território, sobre a vida mesma, a tal ponto que a vontade de poder já não está atrelada ao morrer, senão à necessidade de deixar viver. Assim, tudo aquilo que coloque em risco a vida das populações e sua produtividade será alvo de interesse do poder, a fim de os riscos serem controlados ou neutralizados, as vulnerabilidades mitigadas e as perturbações acopladas, adaptadas (FOUCAULT, 2008a). Em nome da defesa da sociedade é que o biopoder instalará o racismo dentro do Estado, alicerçando a permissão de matar.
Advirtamos o que está em jogo aqui. Recentemente, estudos vinculados aos temas agroalimentários vêm fazendo uso da noção de biopolítica que, a nosso ver, reduzem a força da analítica do presente. De um lado, é usada para denunciar os abusos do Estado (capitalista) em relação com a produção familiar e, de outro, curiosamente, se fala de um biopoder camponês. Parece que Foucault foi suficientemente contundente ao advertir acerca dos perigos do presente. Dito de outra forma, se bem o Estado nazista representou, exemplarmente, o biopoder, não podemos limitar tal poder a tal Estado dado o risco de não escavar nas problematizações. Daí que
tal jogo está efetivamente inscrito no funcionamento de todos os Estados. De todos os Estados modernos, de todos os Estados capitalistas? Pois bem, não é certo. Eu creio que justamente – mas essa seria uma outra demonstração – o Estado socialista, o socialismo, é tão marcado de racismo quanto o funcionamento do Estado moderno, do Estado capitalista. Em face do racismo de Estado, que se formou nas condições de que lhes falei, constituiu-se um socialracismo que não esperou a formação dos Estados socialistas para aparecer
(FOUCAULT, 1999, p. 312).
Trata-se de uma questão ainda mais antiga que a biopolítica e o biopoder. Dessa forma, ao tensionar, renovamos a inquietação sobre os limites de nossas próprias formas de ver o mundo, às vezes limitadas na complexidade, mas ambiciosas na sua vontade de verdade. Tentar enxergar o ponto cego do olho que olha, mas não se olha, dos micropoderes que veiculam o mesmo germe que se pretende combater, das verdades inquestionáveis, é o florescer de um cuidado que nos leva pelos territórios de uma formação humana pautada pela dimensão ético-política da existência.
1 Esposito: governo da vida e governo sobre a vida
O trabalho do filósofo italiano Roberto Esposito situa a noção biopolítica como possível de ser apreendida segundo duas vias: de um lado, a vida governando a política, isto é, um governo da vida e, de outro, a política administrando a vida, governo sobre a vida. Para o governo da vida, o filósofo retoma três autores que se debruçaram sobre a noção de biopolítica antes da já conhecida obra sobre o tema de Michel Foucault. Três enfoques sobre a biopolítica: organicista, antropológico e naturalista. Destacaremos, aqui, as leituras organicista e naturalista, toda vez que, a nosso ver, elas tramam uma maior complexidade em relação às tensões que as pedagogias vinculadas à ecologia podem ter para orientar formas de agir na sociedade.
Na corrente organicista, inicialmente, o representante mais destacado é Rudolph Kjellen a quem se atribui a noção de biopolítica. É na leitura de Staten som livs form, texto clássico sobre o tema escrito por Kjellen, que o pensador italiano decifra a figura-chave da biopolítica e o Estado é entendido como uma forma vivente equipada de instintos e pulsões naturais. Na leitura organicista do Estado, o Barão Uexkull estende os trabalhos de Kjellen, destacando o papel da patologia sobre a anatomia e a fisiologia na representação do Estado. O Barão Uexkull abre uma série de questões ao colocar a figura do patológico sobre o Estado onde, por exemplo, seria legítimo perguntar-se quais são as doenças ou os perigos que atacam o corpo do Estado? Assim, nessa patologização, nosso autor italiano acredita ver o início de uma discriminação preventiva sobre os inimigos do Estado, tais como o sindicalismo, a democracia eleitoral e o direito a greve.
Nesta linha de interpretação construída pelo filósofo italiano, um terceiro autor que compõe a biopolítica como representação orgânica é Morley Roberts, especificamente, em sua obra Bio-politcs, na qual a proximidade entre biologia e Estado tem marcado interesse com a medicina; em resumo, o Estado de Roberts é um organismo que, para ser guiado, devem ser estudadas suas doenças tanto atuais como aquelas potenciais que colocariam em risco sua vitalidade, fazendo surgir o sistema imunológico como elemento-chave do próprio Estado. Dessa forma, a biopolítica diagnostica os riscos do corpo político, enquanto elabora estratégias de individualização para evitar ou tratar a doença através do sistema defensivo do Estado, que opera como sistema imunitário (ESPOSITO, 2006, p. 31).
A biopolítica, de cujo naturalista emerge nos anos 1970, coloca como condição da existência da política a própria natureza. Num acentuado darwinismo social, aqui a natureza é um plano vital que serve como fundamento da política e à qual sempre deve voltar para ser interpelada. A datar desse paradigma da biopolítica se estabelece a ideia de que a sociedade é uma comunidade na qual o comportamento dos indivíduos da espécie humana se encontra direitamente ligado aos comportamentos instintivos (sejam cooperativos, sejam agressivos) de outras espécies animais. Assim, a noção de biopolítica fica esclarecida como um enfoque em que os cientistas sociais, usando todo um arcabouço teórico-metodológico da biologia, conseguiriam “estudar, explicar, predizer e, às vezes, inclusive, prescrever o comportamento político” (ESPOSITO, 2006, p. 38). Adicionalmente, o filósofo italiano destaca a função normativa subjacente na biopolítica. Tratase de um fundamentalismo biológico sobre a política, isto é, o comportamento das instituições surge da existência de uma natureza humana. Portanto, o que se observa, com base na genealogia apresentada aqui, é uma complexa relação entre política, natureza e história na modernidade. Até aqui, uma política da vida, a vida governando a política.
Esposito apresenta, seguidamente, a outra via de apreender a biopolítica, isto é, uma política sobre a vida. No percurso de seu texto, é recorrente a afirmação de que a política sobre a vida se realiza embasada num forte vínculo com a morte, mais especificamente, com uma modernidade projetada na negação da vida. Eis o paradoxo que os acontecimentos do século XX tem colocado ao espírito, e a vida tem um poder que se exerce contra ela mesma a ponto de se tornar tanatopolítica, que surge, segundo o autor, do “problemático ponto de cruzamento entre soberania e biopolítica”, como se essa não tivesse substituído a primeira ou, em todo caso, complementado o projeto do biopoder. Destarte, a biopolítica (entendida como uma política sobre a vida) leva a marca da complexa relação com a soberania em que nem é superada, nem é simples complemento; trata-se é de uma relação em que projetos se encontram fugazmente numa temporalidade epocal da humanidade.
Así como el modelo soberano incorpora en sí mismo el antiguo poder pastoral – el primer incunable genealógico del biopoder –, el biopolítico lleva en su interior el acero afilado de un poder soberano que a un tiempo lo hiende y lo rebasa. Si se toma en consideración el Estado nazi, puede decirse indistintamente, como hace Foucault, que fue el viejo poder soberano el que utilizó en su favor el racismo biológico surgido inicialmente en su contra; o bien, por el contrario, que el nuevo poder biopolítico se valió del derecho soberano de muerte para dar vida al racismo de Estado. Ahora bien: si se recurre al primer modelo interpretativo, la biopolítica se torna una articulación interna de la soberanía; si se privilegia el segundo, la soberanía se reduce a una máscara formal de la biopolítica
(ESPOSITO, 2006, p. 67).
Ante essa dificuldade apresentada nos trabalhos sobre biopolítica em Foucault, o professor italiano tentará articular o paradigma da imunização. Falando de outro modo, o paradigma da imunização é a noção através da qual Esposito tenta resolver a bifurcação criada por Foucault em relação à biopolítica. Apelando a uma raiz comum entre imunidade e comunidade, operamos com a proposta, segundo a qual, a vida não está só relacionada ao poder, mas à imunidade, o que exemplifica, claramente, uma biopolítica conservadora da vida. Em palavras do autor, a “política não é mais que a possibilidade, ou o instrumento, para manter com vida a vida” (p. 67). Por conseguinte, esse autor acredita ter encontrado uma articulação interna para os dois sentidos em que Foucault tem deixado a biopolítica, a destruição é uma dobra na conservação da vida, uma destruição da própria vida para se conservar sem ser intermediada por um poder externo a ela.
La negación no es la forma de sujeción violenta que el poder impone a la vida desde fuera, sino el modo esencialmente antinómico en que la vida se conserva a través del poder. Desde este punto de vista, bien puede aseverarse que la inmunización es una protección negativa de la vida. Ella salva, asegura, preserva al organismo, individual o colectivo, al cual es inherente; pero no lo hace de manera directa, inmediata, frontal, sino, por el contrario, sometiéndolo a una condición que a la vez niega, o reduce, potencia expansiva
(ESPOSITO, 2006, p. 74-75).
O modelo lembra a ideia de Matrix, dos irmãos Wachowski, em que mínimas quantidades do mesmo agente patogênico que ataca o corpo (político) são introduzidas para ativar o mecanismo de defesa e, assim, controlar uma possível eliminação do organismo/corpo. Efetivamente, a sociedade e a diferença são visibilizadas e representadas através de toda uma medicalização do corpo social. Essa medicalização permite projetar as estratégias cada vez mais antecipadas desde onde o biopoder tentará controlar os corpos estranhos ou malformados que obstaculizam o funcionamento eficiente da produção. Se colocada de forma abrangente em termos de civilização, os dispositivos de saber e poder, como a Educação, corresponderiam a uma estratégia de autoconservação imunitáriocivilizatória. Diga-se que é essa inovação cultural que, no século XX permitiu entender o negativo não só como intrínseco à humanidade, mas como seu próprio impulso produtivo. Para o professor italiano, a imunidade é possível de ser identificada como autorrepresentação moderna a partir das linhas hermenêuticas traçadas tanto por Freud como por Norbert Elias ao se referir à incorporação da violência pelos indivíduos. Mas o que tem de instigante a leitura particular de Esposito é a relação entre imunidade e comunidade:
Mientras la communitas es la relación que, sometiendo a sus miembros a un compromiso de donación recíproca, pone en peligro su identidad individual, la immunitas es la condición de dispensa de esa obligación y, en consecuencia, de defensa contra sus efectos expropiadores
(ESPOSITO, 2006, p. 81).
A relação pode ser colocada em vista da fórmula na qual a imunidade liberta o indivíduo de sua obrigação com o comum. A obrigação de uma doação constante e recíproca, em função daquilo que deve ser comum para sobreviver no espaço humano, outorga certa função de reconhecimento ao indivíduo na negação do comum e se faz em razão da supervivência do próprio comum. Assim, a negação da comunidade é a imunidade, isto é, ser imune é não ser ou não ter nada em comum com aquela da qual necessita para existir e não se fechar sobre ela mesma asfixiando toda possibilidade de autotransformação, como uma forma de sobrevivência da própria comunidade. A imunidade é o avesso, a dobra da comunidade, de tal forma que quem aspire a viver em comunidade deverá aprender a viver com o incomum, com a incomunidade.
Mais adiante, o pensador do incomum colocará o problema em relação à temporalidade da biopolítica. Até agora, ela só contava com dois tempos abertos por Foucault: de um lado, a biopolítica como superação da soberania colocando-se no limiar da modernidade/pós-modernidade e, de outroo, a biopolítica como uma tonalidade específica da soberania, como um desdobramento que surge de forma epocal cada vez que ela precisa se adaptar a novos desafios, mas cuja existência podia remontar ao período clássico de uma paideia, por exemplo. Sendo assim, a necessidade de novo espaço de reflexão, como o que foi aberto por Foucault, só tem sentido se acionar a biopolítica como imunidade, isto é, uma forma de poder não existente na Antiguidade agrária egípcia ou na política romana.
Indo além de análises conservadoras, em que toda civilização levaria consigo um aparato de exclusão que tivesse, como finalidade, sua autoconservação, o que caracterizaria o período moderno seria, precisamente, ser uma invenção bastante sofisticada da vida para se autoconservar.
Incluso cabría afirmar que no fue la modernidad la que planteó la cuestión de la autoconservación de la vida, sino que esta última plasmó, es decir, “inventó” la modernidad como aparato históricocategorial capaz de resolver esa cuestión. En definitiva, lo que denominamos modernidad, en conjunto y en lo esencial, podría entenderse como el metalenguaje que durante algunos siglos ha dado expresión a un reclamo proveniente de lo recóndito de la vida, mediante la elaboración de una serie de relatos capaces de responderle de maneras cada vez más eficaces y sofisticadas
(ESPOSITO, 2006, p. 88).
Sem dúvida, essa leitura da biopolítica abre desafios no uso da noção retomada por Foucault, sendo mais preciso, no desdobramento que faz da imunidade e de sua relação com a comunidade e ainda mais quando ao lembrar que a própria ideia de comunidade surge como noção alterna que tenta fugir das relações de poder.
2 Agamben: o campo como paradigma biopolítico
Nesse percurso dos usos da biopolítica, trazemos o filósofo Giorgio Agamben. O autor problematiza o uso destes dois termos: bio e política na Grécia clássica. O que sempre predominou no pensamento filosóficopolítico foi o uso do termo bios pelo fato da zoé ser a parte da existência humana que era semelhante aos outros animais.
Os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bios, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo
(AGAMBEN, 2007, p. 9).
Em Agamben, a noção de biopolítica tem o mesmo tempo de existência que o do poder soberano. Sendo assim, o surgimento, na modernidade, do uso das condições vitais dos indivíduos por parte do Estado se deve compreender como uma reutilização da “vida nua” por parte do poder de forma paradoxal, pois entanto que é excluída, ela, a vida, é incluída no circuito do poder, e
a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – do poder soberano [...]. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanta a exceção soberana. Colocando a vida bio1ógica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua
(AGAMBEN, 2007, p. 14).
Assim, a dupla categoria fundadora da política no Ocidente é, para Agamben, a de zoé/bios, vida nua/vida política. Dita duplicidade permite colocar na cena da política moderna o homo sacer que tem, na condição de vida nua, o paradoxo de ser matável e, ao mesmo tempo, insacrificável. Não deixa de ser paradoxal, que a vida se constitui como valor e desvalor da política moderna; paradoxal porque é precisamente essa valorização da vida que foi condição de possibilidade do surgimento de políticas de extermínio como o nazismo e o fascismo. O paradoxo também acompanha o fato que o poder soberano estabelece uma relação paranoica com a ordem jurídica, uma relação de ubiqüidade, ao mesmo tempo, dentro e fora dela. Dentro porque ele, o poder, é a lei e fora porque assim ele pode criar a exceção de quem está dentro da lei. É sobre essa leitura que se reelaborará a tese foucaultiana sobre biopolítica na qual a zoé é incorporada no espaço político. Além disso, sinaliza Agamben, que
decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção
(2002, p. 16).
O Estado de Exceção é uma noção-chave para compreender a forma como Agamben articula a zoé, poder soberano e biopolítica. Utilizado no regime nazista, o Estado de Exceção passou a ser entendido como técnica de governo no qual o soberano exclui o bios do homem para governá-lo desde sua básica condição de zoé, isto é, da sua vida nua. Mas, para que esta técnica seja aplicada, é preciso destacar duas coisas. O Estado de Exceção no princípio é i) um perigo, um risco às vezes eventual, às vezes latente e, ao mesmo tempo; e ii) o alvo ao qual o Estado aplica todo seu interesse a fim de proteger ou conservar a vida biológica. Assim, em vista de proteger a vida, o poder soberano coloca em suspensão o regime jurídico que, durante anos, foi a razão de sua existência. Por essa via, Agamben comprova que levando em consideração a estrutura política que o identifica, a de incluir excluindo, o Estado de Exceção se tornou a regra no modo de governo, um paradigma que permitiu ao poder incluir toda forma de existência que, no fundo, é ilógico incluir sobre o risco de colocar em perigo a própria existência do poder soberano.
Com essa nova técnica de governo, o que se pretende é neutralizar “aquilo que não pode ser, em nenhum caso incluído, [pelo qual] vem a ser incluído na forma da exceção” (AGAMBEN, 2007, p. 32). A estrutura da lei entendida como chave soberana envolve por parte do poder soberano uma operação dinâmica e, portanto, não rígida que permite traçar uma fronteira difusa entre exclusão e inclusão. Agamben identifica essa fronteira pela qual o soberano age como exceção permanente, e, por conta disso, a soberania não pode ser entendida nas formas política, jurídica ou legalista; ela é, precisamente, “a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão”, colocando o sujeito na condição de abandono, de tal forma que a relação do soberano com a vida é, fundamentalmente, uma relação de abandono.
Retomando a figura do homo sacer, o filósofo faz perguntas ao espírito político sobre o sentido do humano no ser ou até que ponto a existência do homem está garantida sobre toda uma construção histórica e fantasiosa do direito, das leis, do sagrado. A sacralidade é essa condição estrutural, materializada no corpo, da impunidade da matança que se conjuga com a exclusão do sacrifício. Igual ao paradoxo da soberania, no qual algo é e não é ao mesmo tempo, no homo sacer sua condição de não sacrificável funciona precisamente porque para o poder ele é matável; uma violência que opera na fórmula: ele nem é sacrificável, e precisamente por isso, ao ser morto, não é homicídio o que se comete contra sua humanidade.
Assim como na exceção soberana, a lei se aplica de fato ao caso excepcional desaplicando-se, retirando-se deste, do mesmo modo o homo sacer pertence ao Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra [...]. O caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência a qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio
(AGAMBEN, 2007, p. 80. Destaque do autor).
Com essa tríade de noções, soberania-sacralidade-homo sacer, Agamben interpela a política contemporânea. Especificamente a natureza do Estado moderno no qual a linha tanatológica que separa a vida da morte é uma linha cada vez mais flexível, deslocando-se a zonas mais amplas da vida social através da maior inserção ou mistura do soberano com outros atores da sociedade que aparecem hoje ligados a isso e que se chama vida: desde o médico e o cientista até o perito e o sacerdote. Assim, operando sobre a ideia que o direito de morte dos corpos dos súditos se constitui no corpo político do Ocidente, são legalmente aplicados por mecanismos como as declarações de direitos que fundam a soberania nacional e o direito à morte por parte do Estado sobre a figura de cidadão. Mas, agora, o cidadão é colocado como imagem virtual do homo sacer num moderno espaço cuja dinâmica é muito mais desterritorializada, flexível e difícil de identificar como circulando, aparecendo e desaparecendo da vida cotidiana dos cidadãos. Esse novo espaço, Agamben identifica como o campo, especificamente o “campo como paradigma do biopolítico moderno” no qual a forma de regulação do corpo responderá à tentativa de solucionar uma crise de administração do poder sobre os súditos. A imagem mais próxima e também a mais errada que se tem de campo, no universo político, é a dos campos de concentração famosos durante a Segunda Guerra Mundial. Errada porque a imagem remete, primeiro, a um momento histórico superado e, segundo, a uma tecnologia localizada espacialmente. O campo, segundo Agamben, deve ser entendido como uma localização deslocante que coloca qualquer vida na possibilidade de ser capturada, uma materialização permanente do Estado de Exceção sobre o qual a política encenará no homo sacer uma vida com dignidade, com valor, com direitos. Comentada pelo próprio autor, ele dirá sobre o campo:
Ele se produz no ponto em que o sistema político do Estado-Nação moderno, que se fundava sobre o nexo funcional entre uma determinada localização (o território) e um determinado ordenamento (o Estado), mediado por regras automáticas de inscrição da vida (o nascimento ou nação), entra em crise duradoura, e o Estado decide assumir diretamente entre as próprias funções os cuidados da vida biológica da nação. Se a estrutura do Estado-nação é, assim, definida pelos três elementos território, ordenamento, nascimento, a ruptura do velho nómos não se produz nos dois aspectos que o constituíam segundo Schmitt (a localização Ortung, e o ordenamento, Ordnung), mas no ponto que marca a inscrição da vida nua (o nascimento que, assim, torna-se nação) em seu interior. Algo não pode mais funcionar nos mecanismos tradicionais que regulavam esta inscrição, e o campo é o novo regulador oculto da inscrição da vida no ordenamento – ou, antes, o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem transforma-se em uma máquina letal
(AGAMBEN, 2007, p. 181-182).
Sem dúvida, o desdobramento agambeniano da biopolítica aporta elementos instigadores para uma arqueogenealogia da (agro)ecopedagogia e, de forma geral, para amplificar as problematizações que uma analítica do poder desenvolve nos estudos ambientais. Retomando o nosso enunciado inicial nesse percurso da biopolítica, isto é, uma noção em discussão, podemos subtrair o questionamento sobre se ela é uma noção histórica ou de uma época. Parece-nos, portanto, que, enquanto para Foucault a biopolítica é um acontecimento moderno que opera a priori, como resultado da evolução da própria vida e, segundo, para preencher os vazios que o poder soberano já não consegue dominar, para Agamben se bem a biopolítica é o acontecimento fundador da modernidade, não é possível afirmar que seja exclusivo dela. Isso coloca também sobre o problema da soberania. Enquanto Foucault vê nas formas de biopoder dispositivos que superam o poder soberano, Agamben entende que o biopoder está estruturalmente vinculado à soberania. Tentemos exemplificar as conclusões de Agamben e tirar a possível consequência de sua análise.
Articulemos duas noções apresentadas por Agamben com o tema ampliado da ecogovernamentalidade ou das condições de possibilidade para um governo na contemporaneidade. O homo sacer e o campo. Nessa visão, as práticas pedagógicas atreladas a um saber ambiental, isto é, no nosso caso biarticulado a uma agroecopedagogia, a tentativa de salvar (via ecologização) os camponeses colocando-os seja em territórios agroecológicos, seja em territórios rurais, seja, nos mapas de vulnerabilidade das mudanças climáticas, pode ser analisada como a tentativa de incluir, novamente como disse Agamben, “aquilo que não pode ser, em nenhum caso incluído, [pelo qual] vem a ser incluído na forma da exceção”; o que não pode ser incluído, sob o risco de romper a comunidade.
O camponês é aquele sujeito que resiste ao poder e que, por conta disso, se constitui numa vida nua, num homo sacer que é “matável” sem ser sacrificável. O camponês resiste a ser incluído como bem tem sido exemplificado pelas gestas heroicas dos movimentos de insurreição emergentes nas montanhas e nas selvas da América Latina, como o evidenciam os movimentos indígena-camponeses, como o comprovam os inúmeros projetos de desenvolvimento rural fracassados e as desgastadas vozes de milhares de técnicos desestimulados com a “falta de participação” das comunidades, da “apatia dos camponeses”, da “preguiça das comunidades rurais” que não querem progressar ou ser sustentáveis. É uma vida nua como tristemente as estatísticas dos organismos de direitos humanos e o silêncio ensurdecedor do Estado o corroboram: o camponês pode ser assassinado de tal forma que sua morte não se conta em indivíduos, mas em massacres, porque o poder tem estabelecido que não representa um sacrifício para a sociedade. De outro lado, o camponês vira interesse de uma política salvadora. Se não fosse assim, primeiro, não seria alvo de processos organizativos, identitários e emancipatórios, pois, precisamente ele é alvo porque é desorganizado, antiecológico, ineficiente ou alienado. Ele precisa ser colocado num território organizado pelo próprio poder, isto é, ele precisa ser localizado em um campo, pois, concordando com Agamben, campo e biopolítica formam uma simbiose.
3 Considerações finais
Das diversas formas de estar presente, o tensionar talvez seja a mais agonística de todas. Tensionamos aquilo que nos interessa, aquilo que deu forma à existência e que no nosso existir formalizamos em resistência. Tensionamos para nos libertar do impasse da vida nua, para desterritorializar nossas ações dos modelos que codificam e assim, no cultivar a presença, adubamos o florescimento de potencialidades que partilhamos. Disso se trata a indagação pelos usos da biopolítica.
Tensionando a (agro)ecopedagogia, encontramos mais inquietações que respostas. Esposito evidencia uma bifurcação foucaultiana em relação com o bios: ora é entendida como subjetivação, ora como dispositivo que acompanha toda vitalidade até a própria morte. Ambas existem, mas não coexistem, pelo menos pacificamente, levando a problematizações não só diferentes, mas opostas, que se projetam nas possíveis alternativas construídas. Tal bifurcação se traduz em duas figuras claramente estabelecidas: ou a biopolítica se entende como uma política da vida, ou seu contrário mortal, uma política sobre a vida. Uma política da vida se afasta da soberania demarcando, em relação a ela, uma absoluta incompatibilida, como, por exemplo, o dispositivo disciplinar, no qual são os corpos e seu fazer o alvo do poder e não, como na soberania, o poder sobre a terra e as mercadorias. O filósofo nos oferece uma saída; pensar a imunidade dentro da comunidade. Dito por outras palavras, é voltar à diferença, viver com o incomum como forma de reconstruir o comum.
Igualmente, esse percurso pela biopolítica em Agamben permite tirar conclusões importantes sobre o homo sacer e o campo como paradigma biopolítico. O argumento de Agamben nos coloca numa situação tensa explicitada nas análises do próprio Foucault, isto é, enfrentamos um tipo de poder que opera como uma cadeia da qual é impossível fugir. Para o paradigma agroecológico-ambiental se trata de refletir sobre os projetos identitários e a própria concepção de democracia. A nossa reflexão é que a noção de Estado de Exceção veicula uma atual questão aos movimentos engajados em questões de sustentabilidade, do ambiental e do campo, toda vez que recentemente se expandiu a convicção de que se tinha uma democracia, e essa foi usurpada ou destruída, contudo, o que nos fala Agamben é de uma democracia que vivenciamos como privilégio dentro dos mundos limitados que ocupamos, nos lugares privilegiados de quem não é negro, índio, pobre, favelado, mulher, LBGT.
Por fora dessas esferas, a democracia nunca esteve presente: nas favelas, nas comunidades do interior, na pobreza, os seres são naturalmente violentados, excluídos de qualquer direito. Por conta disso, destacamos como parte de um processo (trans)formativo, a importância de renovar a inquietação sobre os limites do mundo, especificamente, de nosso mundo.
Materializada assim, a leitura da biopolítica, destaquemos o seguinte. Se, na sociedade atual opera o poder disciplinar e regulador, que já não administra publicamente a morte, mas a vida, especificamente, a forma correta de viver, exercendo no biopoder o racismo, nós nos perguntamos o seguinte: “Os enunciados que, operabilizam o saber ecológico correm o risco de se constituir como novas formas de racismo?” Racismo exemplificado em quem não assume uma vida sustentável, não consome ecológico, aqueles que resistem a se adaptar às mudanças climáticas ou a adquirir um tipo de produção que seja responsável com o meio ambiente; pecadores que se afastam dos mandamentos constituídos a partir de um saber-poder. Em definitivo, a questão levantada na transversalidade deste texto é se quem não declara sua adesão-adição a salvar o Planeta será alvo do ecoracismo?
Destarte, ao tensionar a (agro)ecopedagogia, acreditamos que outras inquietações surgirão e com elas novas formas de resistência, não obstante, se nos negamos a repensar os referentes históricos com os que atuamos, podemos nos condenar a repetir os modelos daquilo que se combate.