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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020037 

ARTIGOS

A intuição doadora de sentido é o termo último da fenomenologia?

Is the sense-giving intuition the last term of phenomenology?

Est-ce que la intuition donatrice est le dernier terme de la phénoménologie ?

*Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista Capes/CNPq. Realizou, no interstício 2018-2019, com o apoio da bolsa PDSE-Capes, estágio doutoral nos Archives Husserl, na École Normale Supérieure de Paris (ENS-PSL), e na Université Paris I – Panthéon, Sorbonne. E-mail: felipebragagnolo.ufba@gmail.com

**Pós-Doutor em Filosofia Universidade de Lisboa. Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Professor no PPGFIL da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: ecescon@ucs.br


Resumo

O objetivo deste artigo é analisar quais são os pressupostos teóricos contidos na intuição doadora de sentido husserliana e na ontologia fundamental heideggeriana que possibilitaram a Marion pensar na fenomenologia da doação. Para tanto, retomamos a teoria da intuição de Husserl conforme a sua obra Investigações lógicas (1901); refletimos a partir dos Prolegômenos (1925) de Heidegger sobre uma possível crítica ao projeto de redução do ser à intuição categorial e de sua transposição à esfera da existência; e, em Marion, recorremos às obras Redução e doação (1989) e Sendo dado (1998) para discorrer criticamente sobre a tese de que Heidegger, ao mesmo tempo que volta ao estudo do ser, indica a possibilidade de pensar a doação como horizonte de pertencimento do próprio ser.

Palavras-chave Intuição doadora; A priori; Doação; Jean-Luc Marion

Abstract

The objective of this paper is to analyze what are the theoretical assumptions contained in the Husserlian donor intuition of meaning and in the Heideggerian fundamental ontology that enabled Marion to think about the phenomenology of donation. To do this, we returned to Husserl’s theory of intuition according to his work Logical investigations (1901); we reflected from Heidegger’s Prolegomena (1925) on a possible criticism of the project of reducing the being to categorical intuition and its transposition to the sphere of existence; and, in Marion, we used the works Réduction et Donation (1989) and Étant Donné (1998) to critically discuss the thesis that Heidegger, while returning to the study of being, would indicate the possibility of thinking of donation as a horizon of belonging to being itself.

Keywords Donor intuition; A priori; Donation; Jean-Luc Marion

ABSTRACT

L’objectif central de cet article est d’analyser quelles sont les hypothèses théoriques contenues dans l’intuition donatrice husserlienne et dans l’ontologie fondamentale heideggérienne qui a permis à Marion de proposer la phénoménologie de la donation. Afin de développer cett analyse, nous considérons la théorie de l’intuition dans les Recherches Logiques (1901) de Husserl ; dans les Prolégomènes à l’histoire du concept de temps (1925) de Heidegger nous avons réfléchi sur une éventuelle critique du projet de réduire l’être à l’intuition catégorique et sur la transposition de l’être à la sphère d’existence ; déjà avec Marion dans les œuvres Réduction et Donation (1989) et Étant Donné (1998), nous avons analysé la thèse, selon laquelle Heidegger en même temps qu’il revient à l’étude de l’être, il indiquerait la possibilité de penser la donation comme l’horizon d’appartenance de l’être lui-même.

Mots-clés Intuition donatrice; A priori; Donation; Jean-Luc Marion

Introdução

A questão apresentada no título deste artigo – a intuição doadora de sentido é o termo último da fenomenologia? – expressa o interesse do filósofo francês Jean-Luc Marion de pensar na possibilidade de introduzir um princípio incondicional de doação que anteceda àquele expresso pela consciência intencional. Dito de outro modo, a neutralidade metafísica almejada por Husserl nas suas Investigações lógicas (1900-1901) seria, em Marion, radicalizada, isto é, justificada a fundamentação da fenomenologia em uma filosofia primeira compreendida como doação (donation/Gegebenheit). Libertar a doação da redução fenomenológica, ou ainda, demonstrar a impossibilidade de redução da doação ao aspecto transcendental da consciência se torna o imperativo da proposta filosófica de Marion. A doação surge como princípio fundante da intuição doadora de sentido.

No entanto, surge a seguinte questão: Quais seriam as justificativas para aceitarmos a tese da possibilidade de doação com anterioridade àquela manifesta pela consciência intencional? Ao analisarmos o trajeto fenomenológico proposto por Marion, muitos parecem ser os obstáculos para o progresso de sua teoria. Por um lado, podemos questionar se a proposta de Marion, ao aparentemente subverter o privilégio da intuição doadora de sentido em Husserl,3 não deixaria de sustentar seu projeto no terreno fenomenológico para retornar ao espaço da teologia,4 ou ainda, explorar a possibilidade de uma fenomenologia do inaparente. Além disso, por outro lado, temos que nos questionar sobre o grau de influência na abordagem marioniana do projeto fenomenológico de Heidegger. Nesse aspecto, somos convidados por Marion, a não, necessariamente, pensarmos na sua proposta como uma superação daquelas que o antecederam, mas como uma tentativa de pensar com seus antecessores e para além deles.

Desse modo, Marion se confronta (i) com a fenomenologia husserliana, compreendida aqui como primazia epistemológica expressa pela intuição categorial; e (ii) com as estruturas de sentido ontológicas descritas por Heidegger. Diante desse contexto, parece-nos que Marion, mais do que apoio ou sustentação de sua proposta nas investigações realizadas por Husserl e Heidegger, depara-se com dois obstáculos teóricos difíceis de serem transpostos. No entanto, como ele mesmo escreve em Redução e doação (1989), seu interesse não seria, necessariamente, superar essas propostas, mas, a partir delas, pensar na possibilidade de um princípio incondicional de doação.

Outra questão que surge, dividindo espaço com aquela descrita em nosso título, busca indicar, com mais especificidade, o objetivo deste artigo: seria possível pensar a doação independentemente da esfera intuitiva como horizonte fundante de toda e qualquer proposta fenomenológica? Para respondermos a essa questão, conforme nos sugere Marion, devemos retornar à experiência originária do mundo e das coisas, isto é, ao momento do aparecer pré-objetivo que se dá no aqui e no agora, experiência essa passiva e antepredicativa que fundamentaria os pensamentos científico e filosófico. Como lembra Merleau-Ponty, experiência originária que é “a experiência pura e, por assim dizer, ainda muda” (1945, p. VI), que não faz nenhuma referência à esfera da doação de ser expressa na intuição categorial.

Desse modo, o princípio que orienta nossa reflexão pode ser assim descrito: a abordagem fenomenológica de Marion permitiria pensar numa distinção fundante entre aquilo que se dá (es gibt) e o modo como algo aparece. Em outras palavras, parece-nos que Marion compreende aquilo que se dá como um momento anterior de doação que fundaria aquele manifesto no âmbito da consciência intencional. Em suma, esse princípio poderia ser pensado pela tradição fenomenológica a partir de duas correntes centrais: a primeira, aquela proposta por Husserl, que privilegiaria, diante da esfera antepredicativa da consciência, o estudo da esfera ativa e predicativa da intencionalidade; e a segunda, de Heidegger, quando busca, na fenomenologia como também na ontologia, descrever as estruturas ontológicas da aparição do ser do ente, ou ainda, as estruturas existenciais de compreensão do ser-no-mundo. Torna-se o objetivo de Marion sugerir uma terceira via, de retorno à experiência originária da doação, isto é, de retorno ao dado que advém a partir de si mesmo e que independe de qualquer estrutura subjetiva para se dar.

Almejando refletir sobre a questão da doação como solo fundante de toda e qualquer proposta fenomenológica, decidimos percorrer o seguinte caminho de análise: (i) retomamos a teoria da intuição de Husserl com base nas Investigações lógicas (1901); (ii) a partir dos Prolegômenos (1925) de Heidegger, Capítulo 2, apresentamos uma possível crítica ao projeto de redução do ser à intuição categorial em Husserl e analisamos a possibilidade de pensar o ser como transposto à esfera da existência; (iii) com Marion, nas obras Redução e doação (1989), primeira e segunda partes, seguindo algumas considerações de Sendo dado (1998), refletimos sobre a tese de que, ao mesmo tempo que Heidegger volta ao ser e indica a possibilidade de pensar a doação por ela mesma, ele não assumiria uma postura radical de análise da doação como termo último da fenomenologia.

Destacamos que o nosso maior interesse em retornar ao pensamento de Husserl, como também ao de Heidegger, está em pensar nas possibilidades e nos limites que circundam a fenomenologia da doação de Marion. De imediato, assumimos a seguinte hipótese geral: a proposta de Marion, considerando a influência central que Heidegger exerce sobre ela, almejaria descrever a possibilidade da doação se dar com antecedência à manifestação do ser mesmo. Logo, surge a seguinte questão: Como e em que medida seria possível descrever o dar-se da doação com antecedência ao ser mesmo?5

§ 1 Intuição doadora de sentido

A fenomenologia husserliana almeja retornar às coisas mesmas. Tal retorno é considerado um dos princípios centrais que motivou os estudos desenvolvidos por Husserl. A sua proposta filosófica consistiria em romper com qualquer tipo de teoria que se sustentaria em leituras dualísticas de mundo, como, por exemplo, aquela sugerida por Kant, que propunha uma distinção entre noumenon e phenomenon. Para Husserl aquilo que pode ser conhecido se dá como objeto manifesto pela intuição doadora originária.6 O início da sistematização da intuição, como fonte originária de todo conhecimento, está presente nas Investigações lógicas (1901), de modo muito especial, na VIa investigação, denominada “Elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento”.

Husserl refere que podemos pensar na intuição como sendo composta de três momentos: intuição sensível; intuição categorial; e intuição eidética, todavia, essa repartição ocorre no âmbito do método fenomenológico, e não, da vivência intencional. Enfatizamos essa observação, para não se pensar, equivocadamente, que, a partir de análises fenomenológicas, encontraríamos uma compreensão do empírico ao modo da tradição clássica inglesa. Devemos recordar que é o aspecto da intencionalidade da consciência que constitui, de modo objetivo, aquilo que se dá como mundo e objeto. Desse modo, a fenomenologia ensina que nunca acessamos o mundo e os objetos de modo independente da consciência intencional, pois, sempre, estamos voltados ao mundo de um modo específico.

Para elucidar brevemente o aspecto intencional que constitui a consciência,7 podemos comparar o modo como um químico olha para um copo de água e como um maratonista faz isso. Hipoteticamente, se considerarmos que o químico está em seu laboratório, e não, com sede, e o maratonista, está na metade do percurso da corrida de São Silvestre e com muita sede, será que ambos visam ao copo de água do mesmo modo? Parece-nos que não, enquanto o químico olha para a água analisando sua base molecular, o maratonista vê na água a possibilidade de saciar sua sede. Em sendo assim, o que define como o copo de água aparece para o químico ou para o maratonista é constituído pelo modo como cada um deles está voltado a algo. O acesso que temos ao copo de água ocorre a partir de como estamos interessados ou dirigidos para determinada coisa. Nossa relação com o mundo sempre ocorre de um determinado modo, ou seja, mediado pelo modo como visamos intencionalmente a algo.

Para melhor compreendermos o papel exercido pela consciência intencional, entendida como constituidora daquilo que se dá, devemos retornar à descrição husserliana, apresentada na VIa Investigação Lógica, da intuição sensível e da intuição categorial. Husserl explica que, na intuição sensível, nós temos acesso aos dados que fundam a matéria intencional (hylé) da intuição categorial. Se estamos diante de um copo de água, a intuição sensível é responsável por nos fornecer os diferentes aspectos que compõem essa percepção simples, tais como: cor do copo, material de que é feito (plástico, vidro, porcelana, etc.), seu formato, sua posição espacial, suas dimensões, dentre outras características. Torna-se interessante notar que, na intuição sensível, nós temos acesso à apresentação do objeto como um idêntico, isto é, por mais que vejamos os diferentes aspectos do copo, sempre temos em vista o mesmo copo.

No entanto, Husserl esclarece que, por mais que tenhamos um processo de identificação na intuição sensível, essa, por si só, não oferece conhecimento objetivo do mundo e das coisas. Desse modo, podemos dizer que a intuição sensível nos coloca em relação direta e imediata com algo em sua corporeidade, todavia, ela não diz nada de modo objetivo sobre o objeto intencional, somente fornece dados simples que o fundam e o limitam. É por isso que Husserl denomina a esfera da intuição sensível como antepredicativa.

Já a intuição categorial é compreendida como a esfera predicativa e posicional do mundo e dos objetos. Através dela, temos acesso ao conhecimento de algo. Retomando o exemplo anterior, somente se tem acesso ao objeto “copo de água” porque a intuição categorial realiza a seguinte operação de síntese e de afirmação: “este copo é de água”. É, a partir da intuição categorial, que temos acesso a um objeto específico. Somente com base nela, podemos afirmar que o “copo é de água” e não é, por exemplo, um “copo de leite” ou um “copo de suco”. Diante dos elementos verificáveis como fundantes dessa afirmação categorial na intuição sensível (copo e água), a intuição categorial apresenta um objeto específico a partir da cópula é, ou seja, “este copo é de água”. Em resumo, podemos dizer que a afirmação ou negação do ser de algo é dado pela intuição categorial, pois cabe a essa ordenar e conformar logicamente os dados da intuição sensível.

Foi a partir desse estudo que Husserl conseguiu justificar, com algum êxito, sua teoria do conhecimento como pressuposta nos diferentes campos de estudo, desde as ciências humanas e biológicas até as exatas. Essa pressuposição não implica a redução das diferentes ciências ao campo da fenomenologia, entretanto, sugere que, na base dos diferentes modos de análise expressos pelas ciências, estão presentes juízos lógicos, que constituem uma ordenação de sentido daquilo que pode ser objetivamente dado como mundo e/ou objeto. Logo, podemos dizer que o caráter de ser de algo está relacionado com a estrutura de doação expressa pela consciência intencional. Se algo aparece de determinado modo e não de outro, isso ocorre em vista do modo como estamos orientados para um objeto e pelas leis que constituem o modo como esse objeto pode se dar. A aparição de algo se dá enquanto é visto como doação expressa pela consciência intencional.

Mas, como toda teoria que apresenta novos modos de pensar, as Investigações lógicas ocasionaram o surgimento de diferentes correntes fenomenológicas que, não necessariamente, seguiram o caminho assinalado por Husserl. Esse é o caso do filósofo Martin Heidegger, um de seus primeiros discípulos. Na obra Prolegômenos para uma história do conceito de tempo (1925), em seu primeiro e segundo capítulos, Heidegger realiza uma breve introdução crítica ao projeto husserliano das Investigações. Tal crítica não se proporia a romper com a abordagem iniciada pelo seu mestre, mas almejaria complementar e aprofundar alguns tópicos inexplorados por Husserl.

Para Heidegger desenvolver seu projeto de fenomenologia, como ontologia fundamental, ele não abandona a concepção epistemológica da intencionalidade como sendo o campo fundamental da doação e da aparição dos objetos do conhecimento, no entanto, ele sugere que a esfera da intuição categorial seria submetida, com anterioridade, ao a priori do mundo. Esse a priori constituiria o campo originário da manifestação do ser, revelando-se impossibilitado de redução ao âmbito da consciência intencional. Heidegger coloca em evidência que as categorias expressas na intuição categorial não são mais que categorias fundadas no âmbito ontológico, ou seja, ele prolonga a teoria da intuição categorial à ontologia fundamental dada no próprio mundo.

Uma das justificativas desse prolongamento está na reviravolta realizada pela fenomenologia diante da compreensão do conceito de a priori. Diferentemente de Descartes e de Kant que estabeleceram o a priori como traço específico da esfera da subjetividade, a fenomenologia possibilitou apresentar o a priori como uma estrutura anterior ao sujeito que fundamenta os conteúdos dos objetos (a intensidade, a extensão, a qualidade, as formas da geometria, etc.). O a priori, na fenomenologia, surge como o significado espontaneamente expresso no aparecer imediato do mundo e das coisas (DUFRENNE, 2009).

Desse modo, o a priori é deslocado da esfera subjetiva do sujeito que conhece para ser compreendido como estrutura fundante de qualquer tipo de doação. Para Heidegger o a priori é estruturalmente anterior àquilo que aparece como objeto para a consciência intencional. Logo, o a priori apresentaria algo de ser, mesmo que não ao modo de doação intuitiva. O a priori revelaria algo de ser como doação antepredicativa, independentemente da intuição categorial. É diante desse contexto que Heidegger (1925, p. 101, grifo do autor) escreve que a fenomenologia já permite entender o a priori como um “título para ser”.

Dito isso, podemos compreender o a priori como: (i) como independente do sujeito epistemológico, isto é, constituído de uma autonomia que lhe é própria; e (ii) como anterior à intuição categorial, fazendo-se manifesto em si mesmo e de modo direto na intuição simples. Destacamos, acompanhando Heidegger, que a concepção de anterioridade do a priori não faz referência à ordem sequencial ou cronológica do conhecimento, ou ainda, uma ordem de criação de algo a partir do a priori. Se Heidegger atenta ao a priori, é porque ele percebe, nessa estrutura, um caráter de ser do ente e sua impossibilidade de redução a qualquer outra esfera de sentido. O a priori se situa no horizonte que ele mesmo determina e se revela como sentido originário irredutível a qualquer esfera de doação transcendental.

Isso posto, a crítica que poderíamos realizar à fenomenologia husserliana seria que a análise por ela proposta do ser estaria centrada naquela manifesta pela intuição categorial e, desse modo, ela se voltaria ao estudo do ser a partir do ente, isto é, do ser como apresentação manifesta por essa intuição, e não, em seu aparecer originário. Marion (1989) sustenta essa classificação, apresentando a fenomenologia husserliana como a ciência do ser do ente, ou ainda, a ciência do ente em vista do ser. Como contraponto à abordagem husserliana, a fenomenologia de Heidegger caminharia, na esteira da existência, retirando o ser de sua redução expressa na intuição categorial, isto é, da redução do ser a um simples conceito ou a uma cópula manifesta pelos atos categoriais. Rompendo com a redução do ser ao campo da intuição categorial, a fenomenologia se abre à possibilidade de pensar o ser por ele mesmo. Para tanto, a fenomenologia alarga seu espaço de estudo, não mais priorizando a teoria do conhecimento, e passa a assumir uma perspectiva de análise das estruturas ontológicas do ser-no-mundo.

Almejando elucidar a transição da esfera epistemológica à esfera existencial, retomemos o exemplo do copo de água: ao percebermos um determinado copo de água, nunca temos acesso, na intuição simples, à sua percepção completa, pois aquilo que vemos é somente aquilo que está dado nos limites do meu “campo de visão”. Somente vejo a parte frontal do copo, e não, o seu todo. Sendo assim, cabe à consciência intencional prefigurar os demais lados do copo como vivência objetiva do objeto “copo de água”. Caso não ocorresse a prefiguração, teria dúvidas, por exemplo, sobre a possibilidade, ou não, de pegar ou manusear o copo. Desse modo, aquilo com o qual nós nos relacionamos objetivamente, como objeto dotado de sentido, não se restringe ao nosso “campo de visão”, pois, ao ver uma parte do copo de água, nós vivenciamos o todo que o compõe, mesmo que aquilo que nos seja dado com maior segurança seja uma parte. Logo, o modo como o copo se dá depende de um horizonte intencional que constitui suas diferentes possibilidades de doação.

No entanto, é necessário destacar que, ao girar no entorno do copo, nós podemos ser surpreendidos. Por mais que a intuição categorial apresente algo como sendo de determinado modo, a partir dos diferentes horizontes prefigurados, aquilo que advém do mundo pode se mostrar de modo distinto daquilo que é prefigurado intencionalmente. Ou seja, aquilo que advém do próprio mundo pode, de algum modo, corresponder ou frustrar uma intenção de significação prefigurada no horizonte intencional. Podemos dizer, em resumo, que a consciência intencional tem a pretensão de prever a totalidade de horizontes possíveis de sentido, enquanto o mundo exerce o poder de negação dessa pretensão, revelando-se como um horizonte inacabado de sentido. Isso ocorre porque o mundo e os objetos percebidos de modo imediato, na intuição sensível, não se reduzem aos aspectos de doação da intuição categorial e de seus diferentes horizontes de sentido intencionais (FERREIRA, 2015).

O sentido expresso pelo próprio mundo seria impossibilitado de redução em vista de constituir um a priori independente da intuição categorial. Isto é, o sentido do copo de água que agora percebo, que agora está diante de mim, somente se dá enquanto tal, em razão do horizonte ao qual ele pertence, horizonte, esse, que não está dado em sua totalidade na consciência intencional, mas nas relações conjunturais constituídas no e pelo próprio mundo. O copo que agora utilizo – de vidro, transparente, que é parte de um jogo de louças que me foi dado em meu casamento –, somente aparece como objeto dotado de sentido por se dar nesse horizonte, que possui relações aprioristicamente dadas em si mesmas, constituidoras de sentido pré-predicativo e independente da consciência intencional.

Por consequência, estaríamos autorizados a concluir que existiria uma oposição entre o a priori que constitui o mundo e a doação manifesta pela consciência intencional? Para Husserl (1936) não existiria uma oposição entre o a priori do mundo e a consciência intencional, pois ambos se relacionariam em função do a priori de correlação. Barbaras (2015) esclarece que a correlação é um a priori universal, ou seja, uma tal coisa somente se dá de um determinado modo intencionalmente em vista do a priori de correlação que constitui o mundo e da doação do objeto intencional. Distante de ser uma relação contingente, a correlação possui uma validade a priori, correspondente à essência daquilo que é dado pelo mundo e, por consequência, à essência da doação transcendental. Isso significa que aquilo que aparece do mundo e das coisas não pode ser outra coisa que o modo como algo se doa à consciência intencional. A fenomenologia husserliana negaria a posição de um em si estrangeiro à doação transcendental e aceitaria a irredutibilidade do mundo aos horizontes prefigurados pela consciência intencional.

Considerando as reflexões que expusemos, parece-nos possível aceitar certa complementaridade entre Husserl e Heidegger. Antes das divergências que no decorrer da produção filosófica heideggeriana serão acentuadas, teríamos este solo provável de compartilhamento entre ambos. No entanto, algumas questões aparecem: a) Seria possível definir a doação para além da esfera de manifestação expressa na consciência intencional?; b) Ou ainda, pretender tematizar a esfera da doação não implicaria recair no terreno da metafísica o qual a fenomenologia deseja superar? (RICARD, 2001). A resposta de Marion aos dois questionamentos é negativa, pois, em sua análise, a esfera da existência – como limite da doação de ser expresso na consciência intencional –, o permitiria pensar a doação como solo originário do próprio ser, isto é, como manifestação livre e autônoma do dar-se do ser. Nesse caso, Marion pretenderia radicalizar a fenomenologia de Heidegger e confrontar, com maior intensidade, a teoria da intuição doadora de sentido husserliana. Todavia, quais seriam os caminhos e os limites de uma tal proposta?8 Estaríamos, novamente, retornando ao solo da metafísica clássica?

§ 2 O acontecimento originário como doação última

Para Marion (2001) a doação pode ser pensada como precedendo à intuição doadora de sentido como acontecimento originário (Ereignis).9 O passo que Marion almeja dar direciona-se para pensar a doação como solo originário de manifestação do próprio ser. Desse modo, para conseguirmos compreender a radicalidade e os limites do pensamento de Marion, temos que assumir a seguinte tese fundamental: é possível pensar a manifestação do ser a partir de um solo originário e irredutível da doação.

Entretanto, a questão que agora nos inquieta é verificar a viabilidade de desenvolvimento de um tal princípio fenomenológico. Para Heidegger a fenomenologia husserliana oportunizou recolocar a questão do ser no centro da filosofia, retirando-a da esfera da intuição categorial. A sua reflexão atentou à esfera da existência diante da epistemológica priorizada por Husserl. A fenomenologia não seria, exclusivamente, uma teoria do conhecimento, mas um retorno à fonte de manifestação do ser. Originariamente, ela não resultaria da consciência intencional, mas mostraria que toda consciência intencional já é fenomenal em vista do ser que a antecede. Dito de outro modo, sem a vigência do ser, sem seu advento em sua verdade, não se dá, nem se podem dar a consciência e a intencionalidade.

Heidegger concorda com Husserl que a fenomenologia provenha e se constitua de um doar-se. No entanto, não concorda que essa doação ocorra única e exclusivamente através da consciência intencional. Para ele o conteúdo da intuição doadora de sentido já está dado ontologicamente no mundo, de um modo distinto, mas não contraditório daquele manifesto pela intuição categorial. Como esclarece Carneiro Leão, em seu artigo intitulado “A fenomenologia de Edmund Husserl e a fenomenologia de Martin Heidegger” (2006), o conteúdo da intuição sensível, dado com anterioridade à doação categorial, já antecede ontologicamente a toda reflexão e acontece como advento do ser.

Por isso, a fenomenologia não é para Heidegger, primordialmente, uma doação do objeto de conhecimento, mas uma experiência de pensamento que se pensa por si mesma no espaço do não pensado pela consciência intencional. “Se, para o conhecimento, esclarecer está em levar o obscuro para o claro, no pensamento se dá o contrário, esclarecer é levar o claro para o escuro, desmascarando o já sabido, ao revelar o não sabido” (CARNEIRO LEÃO, 2006, p. 15).

O fenômeno não se reduzira ao aspecto de ser dado pela consciência intencional, entretanto, o fenômeno se daria em sua autonomia, em sua liberdade.10 É ele que vem ao nosso encontro. Nós, ao tentar alcançá-lo, encontramos um passado, uma lembrança. O fenômeno grita por todos os lados, ele está presente em toda parte, “na sarjeta e no ferro velho, na vida e na morte, no monte de lixo e no monturo de estrume” (2006, p. 15). Ele se dá com toda sua claridade, plenamente, não precisando se submeter aos ditames da intuição categorial para ser ele mesmo. O ser não está atrás daquilo que é e está sendo. Por detrás do sendo, conforme destaca Carneiro Leão, “não há nada, nem ser, nem sendo, somente o Nada” (p. 15).

Parece-nos, desse modo, que Marion desejaria pensar naquilo que faz com que o ser se doe constantemente. No entanto, ao tentar realizar essa tarefa, perguntamo-nos: Seria possível tematizar o ser ao considerar que, por detrás dele, encontraríamos o nada? Ou ainda, opondo-se à leitura de Carneiro Leão, poderíamos pensar que é possível encontrar, por detrás do ser, a doação? Seguindo a análise que Marion realiza,11 tanto da obra Ser e tempo (1927) como de Tempo e ser (1962) de Heidegger, ambas lhe permitiriam pensar na doação como horizonte de manifestação do ser, pois o ser somente se daria e se manteria dando enquanto permanece no solo da doação. O horizonte da doação seria o espaço próprio, de pertencimento do ser. Logo, a doação sempre acompanharia o ser como garantidora de sua fenomenalidade.

Diante da leitura proposta por Marion, da doação como solo originário do ser, nós acompanhamos Hernán Inverso (2017), que sugere um vínculo de dependência entre doação e ser na obra marioniana. Em nossa análise, esse vínculo parece temerário ao considerarmos a interpretação de Heidegger que nos foi oferecida acima por Carneiro Leão. Pensamos que estaríamos autorizados a dizer que Marion almeja tematizar algo impossibilitado de tematização, todavia, parece que Marion nos contraporia dizendo que sua escolha pelo termo técnico da doação não fora aleatória. Para Marion (2012) o conceito de doação (Gegebenheit) está perpassado por uma polissemia que lhe permitiria fazer esse tipo de análise.

A fenomenologia da doação surgiria como uma teoria da revelação, ou seja, para algo se dar, algo deve se desprender da esfera própria da doação e aparecer como Ereignis, isto é, como acontecimento originário. Conforme Marion explicita em Figures de phénoménologie (2012), o Ereignis se constitui como a correlação fenomenológica que assegura o acesso ao não teórico. É a partir do acontecimento originário que temos acesso ao princípio da doação não submetido ao teórico expresso pela consciência intencional. Desse modo, o Ereignis revelaria o dar-se pré-teórico que resguardaria o caráter indeterminado daquilo que se dá.

Ao considerarmos que o acontecimento originário não pode ser reduzido ao âmbito da intuição categorial, Marion vê, nessa terminologia heideggeriana, o resguardo fenomenológico que lhe permite assegurar à doação pré-teórica seu local de origem. O Ereignis aparece como ponto paradoxal que paralisa a pretensão de doação da consciência intencional. Portanto, se almejamos descobrir como se constitui a fenomenalidade daquilo que se dá, devemos voltar o nosso olhar ao horizonte da doação como solo originário da manifestação.

Tal horizonte surge enquanto é algo enigmático, isto é, impossibilitado de tematização objetiva. A impossibilidade de definição da doação como uma potência indeterminada, uma causa eficiente, ou ainda, um ente supremo implica, em última instância, o resguardo da proibição de uma guinada metafísica a partir da fenomenologia. Para inviabilizar essa guinada metafísica, Marion sublinha que a doação deve estar posta sempre entre parênteses, ou seja, deve ser pressuposta, mas não definida. Colocar a doação entre parênteses não significa esquecê-la ou aceitá-la como simplesmente indeterminada, mas manter a indicação de Heidegger, que aquilo que se dá teria em vista o dar, ou seja, aquilo que se dá se revelaria como uma variação desenhada por e sobre a doação e apareceria como acontecimento originário.

É diante dessa sugestão de Heidegger – do se dá como uma variação desenhada por e sobre o fundo da doação12 – que Marion adentra e vincula ser à doação. Para esse filósofo não existe uma causa que precede ao efeito da aparição, mas o que se dá se dá como acontecimento originário sem causa. Gilbert (2003) comenta essa ideia de Marion dizendo que é somente do ponto de vista da razão que a causa pode ser pensada como precedendo o efeito. Como Marion está pensando a partir da esfera da experiência originária, esse tipo de compreensão não se sustenta. A experiência originária, vista como acontecimento originário, rompe com a doação da consciência intencional, não permitindo reduzir aquilo que se dá em sua autonomia, em seu tempo, ao objeto manifesto pela intencionalidade.

O objeto manifesto pela esfera predicativa da consciência sempre permanece atrelado ao horizonte da previsibilidade. A consciência intencional se relaciona com um mundo pré-visto, segundo um horizonte de sentido e de significação passível de redução transcendental. À vista disso, o mundo e as coisas estariam sempre, em algum grau, reduzidos ao horizonte intencional da intuição doadora de sentido. Para Marion (2001) nada de novo pode circunscrever o horizonte do objeto intencional, pois ele mesmo sempre aparece a partir de um olhar que o constitui, não permitindo o dar-se espontâneo do advir.

A doação como previsibilidade da aparição do objeto intencional, sempre teria prevalecido diante do fenômeno do acontecimento originário. Tal descrédito fenomenológico conferido à manifestação desse último estaria justificada em razão de o seu modo de doação não se restringir à esfera do conhecimento. O acontecimento originário se dá como fenômeno que impossibilita a doação intencional. Isso ocorre em vista de o dar-se acontecer como algo imprevisível, confuso, enfim, algo que está à margem do conhecimento, algo que se dá como insubmissão à esfera epistemológica da consciência intencional.

Marion reivindica a primazia e a liberdade do acontecimento originário, como sendo doado de modo saturado, isto é, doação liberta de qualquer condição a priori de apreensão ou de uma razão suficiente (Reddendae rationis). O fenômeno saturado excede a capacidade intuitiva de recepção, organização ou mensuração do dado. Ele é impossibilitado de ser objetivável em razão do seu caráter de imprevisibilidade. Os horizontes de sentido que constituem o campo de manifestação do objeto intencional não limitam a possibilidade de doação do fenômeno saturado. Esse fenômeno impossibilita “prever um agregado a partir da soma de suas partes” (MARION, 2010, p. 58).

Marion sugere que a tradição filosófica é permeada de diversos exemplos de fenômenos saturados, dentre eles relembra a Alegoria da Caverna, de Platão.13 O relato descreve a libertação de um dos prisioneiros do interior de uma caverna. Quando o prisioneiro se liberta, se depara com a luz do sol que ofusca seu olhar. A intensidade da luminosidade ofusca e intimida o prisioneiro, impossibilitando que ele fixe seu olhar naquilo que está sendo dado. A reação espontânea do prisioneiro é a de desviar o olhar da luz, voltar-se para aquilo que consegue ver. A partir desse relato, Marion sustenta a tese de que a relação do esplendor do dado, ou ainda, do seu deslumbramento, ocasiona a incapacidade da intuição de apreender aquilo que se doa por si e em si-mesmo.

Para Marion o fenômeno saturado é “‘difícil de ver’ não certamente por falta, uma vez que ela apresenta ‘o mais visível do ente’, mas antes por excesso – porque ‘a alma é incapaz de nada ver [...] saturada por um deslumbramento muito brilhante’” (MARION, 2010, p. 60 s, grifos do autor). Nesse relato, o fenômeno saturado aparece como doação excedente, pois outros fenômenos oferecem apenas variantes enfraquecidas dessa doação originária. O dar-se desse fenômeno, como acontecimento originário, se dá no presente de si mesmo, em sua individualidade e singularidade, revelando-se como permeado de uma hermenêutica sem fim, ou seja, impossibilitado de compreensão.

O tempo que rege o acontecimento originário é o seu tempo, não o da consciência intencional. Ele se impõe ao sujeito epistemológico como um fato que se dá, que aparece e que se retira conforme sua liberdade. Desse modo, podemos dizer que o tempo do acontecimento originário surge como indisponibilidade de acesso ao sujeito epistemológico, ele vem muito rapidamente em nossa direção, enquanto nós vamos ao encontro dele muito tardiamente. O sujeito epistemológico nunca o encontra; quem toma a iniciativa do encontro é ele.

Marion compreende o fenômeno que se dá como aparição de algo (i) que se impõe ao sujeito epistemológico e que emerge de si mesmo; (ii) que não se reduz à esfera da objetividade da consciência, doando-se sempre num agora que escapa de toda tentativa de constituição transcendental; e (iii) que é indescritível, pois o tempo de sua manifestação não é o mesmo da consciência intencional. O acontecimento originário se dá como fenômeno impossibilitado de mensuração ou de previsão das consequências de sua aparição.

Para Terzi (2017) os fenômenos saturados permitem constituir uma linha divisória entre o domínio dos fenômenos que se dão como acontecimentos e os fenômenos doados pela consciência intencional. Do lado dos fenômenos saturados, temos a primazia da imprevisibilidade e da invisibilidade, enquanto, do outro, teríamos os fenômenos marcados por uma fenomenalidade derivada e limitada pela consciência intencional. Desse modo, o acontecimento originário pode ser caracterizado pela sua autodoação específica. O modo como o acontecimento se dá impõe uma nova forma de pensar a doação do fenômeno, impossibilitada de qualquer tipo de condição ou redução.

A doação se dobra entre a articulação daquilo que foi dado e o resguardo do seu processo de advento. Segundo a leitura de Terzi (2017), o acontecimento originário se determina como um incidente que aparece apenas na consciência intencional de modo pobre, pois sua maior vivacidade é doada no momento presente de sua autodoação. Sua aparição é autônoma, contingente, singular e sem causa. Ele se impõe com uma efetividade autônoma à frente do conhecimento intuitivo, acontecimento que, ao se impor de modo inesperado e desconhecido, rejeita qualquer tipo de constituição que possa dominá-lo, tornando seu aparecer irredutível à intuição. Ele nos toca, no limite do que é possível, como um instante de abertura ao que, para nós, só aparece como impossibilidade de apreensão.

Considerações finais

O estudo por nós desenvolvido buscou demonstrar a possibilidade de se pensar na doação não reduzida ao âmbito da intuição categorial. Para isso, iniciamos nossa análise refletindo sobre a possibilidade de pensar na esfera da intuição categorial husserliana vista como doação de um aspecto de ser. Já com Heidegger, a partir da análise do a priori fenomenológico, refletimos sobre a possibilidade de pensar no ser como se dando com anterioridade à doação intuitiva, enquanto é ser-no-mundo. No decorrer deste estudo, apresentamos essas abordagens como não necessariamente se contradizendo, mas se complementando.

No tratar da relação de continuidade ou de fundamentação da proposta fenomenológica da doação de Marion a partir de Husserl e de Heidegger, alguns questionamentos surgiram como limitando nossa crença nessa possibilidade. Ao considerarmos a fenomenologia husserliana, em especial das Investigações lógicas, Marion parece conseguir avançar em suas análises sobre doação quando a contrapõe àquela da intuição categorial. No entanto, destacamos que a argumentação e os conceitos por ele utilizados, mostraram-se, excessivamente pautados pelo modo como Heidegger neles pensava. Somente para relembrar alguns, citamos: advento de ser; imprevisibilidade da doação de ser; acontecimento originário (Ereignis).

No que se refere à crítica de Marion a Heidegger, em especial à obra Ser e tempo, podemos afirmar, de modo propedêutico, que ela estaria direcionada aos aspectos de totalidade ou de redutibilidade da imprevisibilidade da doação de ser, ou ainda, enquanto a impossibilidade de algo se dar rompe com as estruturas pré-dadas das significações do mundo. Parece-nos que Marion almejaria destacar a ausência de estudo da manifestação em seu momento originário de doação, isto é, como doação em desconformidade com qualquer estrutura pré-dada do mundo. Entretanto, questionamos: Não seria essa sugestão de Marion aquela adotada e desenvolvida pelo Heidegger tardio?

Em vista disso – a questão por nós inicialmente apresentada – seria possível pensar a doação como horizonte fundante de toda e qualquer proposta fenomenológica? – revelou-se como possível de ser pensada quando analisada no horizonte de análise da fenomenologia husserliana. No tratar da filosofia heideggeriana, percebemo-nos concordando com a afirmação de Carneiro Leão (2006), quando diz que não existe nada atrás do ser, nem ser, nem sendo, somente o nada. Desse modo, consideramos que, a partir deste estudo, não foi possível verificar em que medida Marion conseguiria radicalizar a proposta de Heidegger; somente foi possível perceber a influência central que o filósofo alemão exerce na proposta da fenomenologia da doação marioniana.

Ao propor a possibilidade da doação como fenômeno não objetivável, Marion parece oportunizar o estudo daquilo que não pode ser apreendido, mas, em sua análise, pode ser percebido. Dentro dessa perspectiva, poderíamos inferir que uma leitura fenomenológica dela, mais do que apresentar uma abordagem distinta da doação, estaria ocupada em renovar a possibilidade metafísica teológica a partir de uma ‘metafísica-fenomenológica’, isto é, uma ciência que buscaria ir ao encontro do originário. (DEPRAZ, 2011).

Ainda assim, consideramos a proposta fenomenológica da doação de Marion bastante promissora quando pensada: i) no horizonte da fundamentação do ser sem se amparar numa metafísica clássica, isto é, sem justificar o ser a partir de uma potência indeterminada, de uma causa eficiente, ou ainda, de um ente supremo; ii) a partir da concepção de fenômeno saturado manifesto pela fenomenologia da revelação; e iii) como possibilidade de pensar numa certeza negativa, isto é, a certeza da impossibilidade de conhecer aquilo que se dá no instante da sua presença.

3Na obra de 1913, Ideias I, § 24, Husserl denomina como o princípio de todos os princípios a tese da intuição doadora originária de sentido.

5Essa questão foi formulada a partir das reflexões oportunizadas por Jean Grondin (2010), em seu artigo denominado “La tension de la donation ultime et de la pensée herméneutique de l’application chez Jean-Luc Marion”.

6Ver Ideias I, § 24.

7Para uma reflexão mais detalhada da intencionalidade da consciência, indicamos a leitura da V Investigação Lógica de Husserl (1901).

8Eduardo González di Pierro (2011) e Hernán Inverso (2017) sugerem que esse tipo de abordagem, tal qual foi adotada por Marion, não agrega nada ao pensamento fenomenológico de Husserl.

9Ereignis pode ser, aqui, traduzido como “acontecimento originário”, “evento” ou “advento”.

10Ver Heidegger, Ser e tempo, §7.

11Para uma análise mais aprofundada do modo como Marion se apropria dos conceitos es gibt e a Gegebenheit heideggeriana indicamos o artigo de Jorge Roggero, intitulado El problema de la donación en la fenomenologia de J.-L. Marion (2019).

12Para Courtine (1999, p. 34) o es gibt heideggeriano “aparece antes das últimas variações de Zeit und Sein em Sein und Zeit, para indicar [...] que o ser não é, senão o que se dá ser”.

13Segundo Marion (2010), outros exemplos de fenômenos saturados seriam: o evento histórico; o ícone; a carne; o eu e o outrem; o amor; Deus, dentre outros.

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Recebido: 18 de Março de 2020; Aceito: 11 de Julho de 2020

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