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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020038 

ARTIGOS

O homem de Piltdown e o ceticismo organizado na ciência

Piltdown man and organized skepticism in science

Guilherme Brambatti Guzzo* 
http://orcid.org/0000-0001-6484-2547

Valderez Marina do Rosário Lima** 
http://orcid.org/0000-0002-2676-5840

*Doutor em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil (2018). Professor da Universidade de Caxias do Sul, Brasil. E-mail: gbguzzo@ucs.br

**Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil (2003). Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: valderez.lima@pucrs.br


Resumo

Em 1912, um conjunto de fragmentos de crânio, mandíbula e dentes foi apresentado na Inglaterra como pertencente a um ancestral do Homo sapiens. A nova espécie, batizada de Eoanthropus dawsoni – o “Homem de Piltdown” –, foi tratada como uma das descobertas mais extraordinárias da antropologia até então: finalmente, um hominídeo havia sido encontrado em solo inglês, e seu status era ainda maior por ser uma espécie da qual a nossa teria supostamente se originado. Quatro décadas depois, no entanto, a fraude foi exposta: os vestígios do Homem de Piltdown haviam sido montados a partir de um crânio humano com mandíbula e dentes de orangotangos. As razões para a aceitação imediata da espécie entre os ingleses foram, provavelmente, as expectativas e os desejos de cientistas em ter o seu país como o berço da humanidade, e também o fato de que o espécime de Piltdown corroborava ideias aceitas na época a respeito da evolução humana. Apesar disso, como, então, sabemos hoje que o Homem de Piltdown é uma fraude? Argumentamos que a resposta a essa questão está no conceito de ceticismo organizado. O ceticismo organizado é um dos componentes do ethos científico propostos pelo sociólogo Robert Merton, um elemento institucional que envolve procedimentos de avaliação e revisão da prática e das ideias científicas feitas a partir de uma comunidade de investigação. No presente artigo, examinamos como o trabalho de uma comunidade de investigação foi fundamental para o desnudamento da farsa do Homem de Piltdown e, em um segundo momento, discutimos o que o ceticismo organizado pode nos ensinar a respeito da natureza da ciência e de nossos próprios processos de raciocínio cotidianos.

Palavras-chave Ceticismo organizado; Natureza da Ciência; Fraude científica

Abstract

In 1912, a set of fragments of a skull, a mandible, and teeth was presented in England as parts of an ancestor species of Homo sapiens. The new species, named Eoanthropus dawsoni – the “Piltdown Man” –, was regarded as one of the most extraordinary discoveries in anthropology so far: a hominid had been finally found on English soil, and its status was even greater because it was a species from which our own species supposedly originates. Four decades later, however, the hoax was exposed: the rests of the Piltdown Man had been assembled with the use of a human skull with mandible and teeth from orangutans. The reasons for the rapid acceptance of the species by English scientists were probably their expectations and desire in having their own country as the cradle of humanity, and also the fact that the Piltdown specimen corroborated ideas about human evolution that were accepted at that time. In spite of that, how do we know now that the Piltdown Man is a hoax? We argue that the answer relies on the concept of organized skepticism. Organized skepticism is a component of the scientific ethos proposed by sociologist Robert Merton, an institutional aspect of science that involves procedures of evaluation and revision of scientific practices and ideas made by a community of inquiry. In the present paper, we examine how the work of a community of inquiry was essential for the debunking of the Piltdown Man hoax, and later we discuss what the idea of organized skepticism may teach us about the nature of science and our own daily reasoning processes.

Keywords Organized skepticism; Nature of Science; Scientific hoax

Introdução

Embora a definição do que é a ciência e a discussão de seu escopo sejam tópicos para os quais não exista um consenso claro entre historiadores e filósofos da ciência (ver, por exemplo, PIGLIUCCI; BOUDRY, 2013; BOUDRY; PIGLIUCCI, 2017), há um amplo entendimento de que uma das características fundamentais da ciência é o seu caráter social. Isso significa que hipóteses, teorias e conclusões propostas por um indivíduo ou um por um grupo de pesquisa devem ser apresentadas publicamente para que sejam, então, examinadas, revisadas, justificadas e, quem sabe, estabelecidas com o apoio da comunidade de especialistas da área.

“Um modo importante de pensar a respeito do que faz a ciência confiável envolve sua estrutura de controle social”, escreve Pennock (2019, p. 66). Por “controle social”, podemos entender processos que envolvem a apresentação pública de razões que sustentam alegações científicas e o escrutínio dessas razões por outros indivíduos que participam da comunidade. Assim, comunidades científicas são constituídas de forma a que métodos de investigação, resultados de pesquisas e interpretações de dados da ciência possam ser constantemente expostos a instâncias de revisão.

Um dos componentes do “ethos” da ciência – um conjunto de elementos normativos das atividades científicas –, segundo Merton (2013), é o ceticismo organizado, mandatório como aspecto metodológico e institucional da ciência. Em termos metodológicos, o ceticismo organizado implica a adoção de métodos de investigação e de análise de dados que possam controlar os vieses, desejos e expectativas dos pesquisadores, e assim gerar resultados de pesquisa que possam ser os mais confiáveis possíveis. Em outras palavras, quando aplicado a indivíduos, o ceticismo organizado envolve o emprego de salvaguardas contra o autoengano.

Mas, assumindo que nem sempre as medidas adotadas contra o autoengano individual funcionam, pois “enganar a si mesmo é mais fácil que enganar qualquer outra pessoa”, como lembra Feynman (2019, p. 391), o ceticismo organizado é melhor entendido como um elemento institucional na ciência que envolve procedimentos de avaliação e revisão da prática e das ideias científicas feitas a partir de uma comunidade de investigação. O ceticismo organizado pode estar na forma de processos de revisão por pares de artigos e livros, na replicação de experimentos e observações de fenômenos na natureza, na testagem de hipóteses ou teorias a partir de diferentes métodos, na reflexão sobre a razoabilidade de teorias e hipóteses, na produção de tecnologia a partir de pesquisas básicas, e assim por diante.

O ceticismo organizado permeia a prática científica, e à sua ação devemos aquilo que entendemos sobre o mundo natural. Toda a história de avanço científico, se quisermos fazer justiça a ela, deve ser contada a partir de um ponto de vista mais amplo do que a de um indivíduo que gerou ou testou insights. A ideia de evolução biológica é um exemplo óbvio disso: apesar de lembrarmos de Charles Darwin e de seu “A origem das espécies” como os pilares do pensamento evolutivo, sob um ponto de vista mais amplo, Darwin, no entanto, é uma peça (fundamental) entre tantas outras a contribuir para nosso entendimento de evolução. O que conhecemos atualmente sobre evolução é resultado da obra dele e de outros pensadores de sua época, das pessoas que os antecederam e cujo trabalho e ideias os influenciaram, e das gerações que se dedicaram ao estudo da evolução e de seus mecanismos depois de “A origem”. Todas essas pessoas investiram seu tempo e esforços cognitivos para avaliar as ideias de outras, testá-las, modificá-las, expandi-las, refutá-las, pensar em novas relações entre elas e o trabalho de pesquisadores de outras áreas, e assim por diante. Por isso, não é exagero afirmar que as ideias de Darwin sobre evolução por seleção natural estão sob revisão e em constante aprimoramento desde a publicação de sua obra pioneira, em 1859, e das cinco edições que a sucederam: essas ideias permanecem, portanto, sujeitas à influência do ceticismo organizado da comunidade científica desde então.

Além disso, o ceticismo organizado enquanto prática social funciona contra problemas de natureza diferente do autoengano, como fraudes deliberadamente elaboradas. Tratamos de uma delas neste artigo: a do Homem de Piltdown, apresentado como um possível ancestral humano a partir da descoberta de vestígios de um crânio e uma mandíbula na Inglaterra no início do século XX.

O objetivo do presente artigo é apresentar a história do Homem de Piltdown e, a partir dela, discutir os mecanismos de correção de ideias nas comunidades científicas resultantes do ceticismo organizado. Para isso, estruturamos o texto em quatro seções a partir desta Introdução. Na primeira, tratamos da história da apresentação e aceitação – pelo menos parcial – do Homem de Piltdown como um legítimo ancestral humano. Na segunda, discutimos como ocorreu a descoberta e a exposição da fraude. Na terceira, refletimos a respeito de como o a expressão do ceticismo organizado através da comunidade científica teve impacto na detecção da fraude do Homem de Piltdown. Na quarta, discutimos como a compreensão dos mecanismos sociais de revisão de ideias pode fazer com que entendamos melhor a natureza da ciência e possamos aperfeiçoar os nossos próprios hábitos de raciocínio.

O argumento que perpassa este escrito é que a ciência é mais adequadamente entendida como um empreendimento coletivo no qual razões são tornadas públicas e examinadas em comunidades de investigação formadas por especialistas. O trabalho dessas comunidades – formadas por indivíduos que não necessariamente existem no mesmo espaço e tempo em que uma ideia é apresentada – resulta no ceticismo organizado capaz de gerenciar vieses, desejos e expectativas dos pesquisadores, corrigir erros e detectar fraudes, como a do Homem de Piltdown.

O Homem de Piltdown: a ascensão...

Em fevereiro de 1912, Charles Dawson, um advogado e arqueólogo amador britânico, escreveu uma carta a Arthur Smith Woodward, um paleontólogo do departamento de Geologia do Museu Britânico de História Natural para informá-lo da descoberta de fragmentos de crânio e de maxila que pertenceriam a um hominídeo. Os fragmentos, recolhidos de uma pedreira próxima a Piltdown, na região sudeste da Inglaterra, haviam sido desenterrados quatro anos antes por pessoas que trabalhavam no local (FEDER; 2020; GOULD, 2004; LANGDON, 2016). A descoberta, continuava Dawson em sua carta, poderia ser muito importante, talvez mais significativa do que a do Homem de Heidelberg, um espécime de hominídeo encontrado na Alemanha em 1907 (FEDER, 2020).

Woodward não conseguiu ir imediatamente até a pedreira de Piltdown em busca de mais fragmentos, mas recebeu Dawson no Museu Britânico de História Natural em maio de 1912, e nessa ocasião pode conferir pessoalmente os vestígios dos quais havia sido informado na carta. Os fragmentos consistiam em uma mandíbula e dois dentes molares semelhantes aos de grandes primatas, mas desgastados pelo uso, e partes de um crânio “notavelmente moderno na forma, embora os ossos fossem vulgarmente espessos” (GOULD, 2004, p. 95). A espessura dos ossos, segundo Feder (2020), conferia um aspecto primitivo ao espécime, apesar de que sua morfologia craniana se assemelhasse a de um hominídeo moderno. Talvez Dawson e Woodward estivessem de posse de restos de um ancestral humano.

Além dos resquícios do hominídeo, Dawson também havia encontrado ossos de outros animais, e isso poderia ser um indício de que ancestrais humanos teriam habitado o local e praticado a caça. Woodward ficou animado com a possibilidade de finalmente encontrar um fóssil humano na Inglaterra, e em junho de 1912 foi a Piltdown com Dawson e o padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin – um estudioso das ciências naturais, especialmente interessado pela paleontologia – conferir pessoalmente o sítio. As escavações resultaram em mais um fragmento craniano, coletado por Dawson, e um dente de elefante, recolhido por Chardin (FEDER, 2020).

Nas semanas seguintes, Woodward e Dawson continuaram trabalhando no local, e lá encontraram novos pedaços de crânio com manchas escuras similares às dos fragmentos anteriores, alguns dentes de animais e pedras que poderiam ter servido de ferramentas para os hominídeos ancestrais. Entre os resquícios que puderam ser identificados estavam dentes de castores e elefantes que se supunha extintos entre 400 mil e 500 mil anos antes, e isso deu a Woodward e Dawson uma estimativa da idade do espécime hominídeo de Piltdown. Com cerca de 500 mil anos, ele seria o ancestral humano mais antigo conhecido até o momento (FEDER, 2020).

Ao final do verão inglês de 1912, Dawson descobriu o que parecia ser a metade da mandíbula pertencente ao crânio do hominídeo. Embora não fosse possível recuperar pedaços do queixo e do côndilo – região de conexão da mandíbula com o osso temporal do crânio –, o que teria facilitado a identificação da espécie a quem pertencia o osso, a mandíbula tinha um aspecto simiesco, e sua forma era mais primitiva do que a do crânio do espécime (FEDER, 2020).

Em um encontro da Sociedade Geológica de Londres em dezembro de 1912, Dawson e Woodward apresentaram ao mundo o “Homem de Piltdown”, um provável “elo perdido” entre a nossa espécie e os hominídeos ancestrais. Seu nome científico, Eoanthropus dawsoni, “o Homem do Alvorecer de Dawson”, era uma homenagem ao descobridor da espécie. A conclusão da dupla era que aquele representava o fóssil mais importante já achado em qualquer lugar do planeta, um ancestral humano que havia vivido na Inglaterra (FEDER, 2020).

De acordo com Stringer (2012), a descoberta chamou a atenção da comunidade científica em todo o mundo, mas, desde o início, a recepção aos fragmentos apresentados por Dawson e Woodward foi variada em círculos de profissionais da paleontologia e arqueologia. A maior parte dos cientistas britânicos da época aceitou integralmente a história sobre o Homem de Piltdown como ancestral humano (LANGDON, 2016; OAKLEY; HOSKINS, 1950). Outros pesquisadores britânicos, bem como investigadores estadunidenses e alemães que haviam ponderado sobre o espécime, estavam céticos quanto à descoberta, especialmente porque a associação entre as mandíbulas do animal e o seu crânio era muito diferente daquela de hominídeos conhecidos, o que sugeria que as peças do Homem de Piltdown pudessem pertencer a animais diferentes cujos ossos haviam sido misturados na pedreira.

As dúvidas de alguns dos paleontólogos céticos foram diminuindo à medida que novos fragmentos foram encontrados, como um canino direito descoberto por Teilhard de Chardin (FEDER, 2020). Outras peças foram desenterradas em um segundo sítio arqueológico perto de Piltdown, e elas eram compatíveis com as anteriores, o que indicava tratar-se de uma única espécie que havia habitado a região.

A calorosa recepção ao Homem de Piltdown por muitos estudiosos e outros membros da sociedade britânica se explica pela grandeza da suposta descoberta: enfim, uma espécie de hominídeo havia sido encontrada no solo daquele país – e não se tratava de qualquer hominídeo, mas de um possível ancestral humano que havia vivido há cerca de 500 mil anos. Descobertas antropológicas importantes haviam sido feitas em outros locais da Europa, como na Alemanha (o Homem de Heidelberg, Homo heidelbergensis) e na França (o Homem de Cro-Magnon, Homo sapiens) (FEDER, 2020; GOULD, 2004; LANGDON, 2016). Mas, com o Homem de Piltdown, era a Inglaterra o berço da humanidade.

Logo após 1912, uma das dificuldades encontradas para avaliar a posição do Homem de Piltdown na árvore evolutiva humana era a escassez de fósseis de hominídeos com os quais a espécie britânica pudesse ser comparada. Poucos anos depois, no entanto, uma série de descobertas de fósseis na Europa, África do Sul, China, Java e Israel começou a preencher as lacunas do registro fóssil dos hominídeos, e alguns antropólogos passaram então a desconfiar que não havia espaço para o Homem de Piltdown nele. Fósseis de Homo erectus encontrados na China, por exemplo, apontavam para “um ancestral com corpo do tipo humano e uma cabeça primitiva” (FEDER, 2020, p. 78), um animal muito diferente daquele desenterrado em Piltdown.

... e a queda de uma fraude científica

O entusiasmo com o Homem de Piltdown foi arrefecendo nos anos seguintes ao anúncio da descoberta da espécie. Pouco menos de duas décadas após Woodward e Dawson apresentarem o espécime, a maior parte dos cientistas britânicos e estrangeiros que estudavam evolução humana não aceitavam o Homem de Piltdown como um ancestral legítimo (FEDER, 2020; FRASSETTO, 1927; LANGDON, 1991; 1992; 2016). Langdon (2016, p. 30), com base na análise de 110 trabalhos publicados sobre o Homem de Piltdown entre 1913 e 1953 documenta o declínio da aceitação do espécime: se entre 1918 e 1929 cerca de 80% dos artigos produzidos por cientistas britânicos endossava a história como verdadeira, cerca de 15% o fazia no início dos anos 1950. Uma tendência parecida pode ser observada entre os cientistas não-ingleses: de pouco menos de 30% de artigos concluindo que o Homem de Piltdown era um fóssil legítimo entre 1913 e 1917 a nenhum assumindo o mesmo entre 1950 e 1951.

Até o início da década de 1950, no entanto, ainda não havia um consenso sobre o que significavam os fragmentos encontrados em Piltdown: uma hipótese considerada era a de um engano derivado da mistura de ossos humanos com os de algum outro grande primata. Em 1953, utilizando métodos de análise e datação que não estavam disponíveis poucos anos antes, Weiner e colaboradores publicaram os resultados de um minucioso estudo feito com os fragmentos dos sítios de Piltdown (WEINER et al., 1953). A partir dele, os detalhes da fraude começaram a ser desvelados.

Weiner et al. (1953) concluíram que os dentes molares e o canino do Homem de Piltdown haviam sido artificialmente trabalhados para que parecessem mais desgastados e antigos. Os ossos do crânio, da mandíbula e os dentes também haviam sido coloridos para que tivessem uma aparência correspondente à idade estimada do espécime. Além disso, testes de datação baseados no conteúdo orgânico e de flúor dos ossos indicaram que o crânio e a mandíbula não poderiam ter estado tanto tempo nos locais onde foram encontrados, e deviam pertencer a animais mais recentes do que aqueles que viveram há meio milhão de anos.

Considerando a análise das evidências apresentadas por Dawson e Woodward, Weiner et al. (1953) afirmaram que a conclusão mais plausível para explicar o Homem de Piltdown era a de uma fraude bem elaborada, difícil de ser detectada por aqueles que haviam examinado o material logo após o anúncio de sua descoberta:

A partir das evidências que obtivemos, está agora claro que os distintos paleontólogos e arqueólogos que fizeram parte das escavações em Piltdown foram as vítimas de uma fraude bastante elaborada e cuidadosamente preparada. Que seja dito, contudo, em defesa daqueles que assumiram que os fragmentos de Piltdown pertenciam a um único indivíduo, ou a quem, que ao examinar os espécimes originais, considerou a mandíbula e o canino como as de um primata fóssil ou então assumiram (tácita ou explicitamente) que o problema não era capaz de solução dadas as evidências disponíveis, que a falsificação da mandíbula e do canino era tão extraordinariamente habilidosa, e a perpetração da fraude parece ter sido inteiramente inescrupulosa e inexplicável, que não encontra paralelo na história das descobertas paleontológicas.

(WEINER et al., 1953, p. 145, tradução nossa).

Novas investigações sobre os vestígios indicaram que o Homem de Piltdown fora forjado a partir de um crânio humano e uma mandíbula pertencente a um orangotango, o que explicava as dúvidas iniciais de alguns pesquisadores céticos, que não concebiam como era possível que um animal com um crânio similar ao de humanos modernos tivesse mandíbulas de proporções simiescas. E, diferentemente do que afirmavam Weiner et al. (1953), autores contemporâneos consideram a fraude como algo simples, até grosseiro, e que pode ter sido perpetrada por apenas um sujeito como Dawson, alguém que não possuía formação técnica em antropologia ou paleontologia (DE GROOTE et al., 2016; HYMAN, 2005). Outros autores sugerem que a farsa pode ter mais de um mentor, e Gould (2004) implica Teilhard de Chardin como um provável candidato, considerando que ele tinha uma relação suspeitamente próxima com Dawson na época em que os restos ósseos foram encontrados, e pode tê-lo ajudado com o embuste.

Quem quer que tenha sido o responsável pelo Homem de Piltdown, a história da fraude tem aparecido em discussões sobre a natureza da ciência e sobre a maneira com que cientistas avaliam evidências. Gould (2004), por exemplo, escreve:

Se quisermos aprender alguma coisa sobre a natureza da investigação científica a partir do caso de Piltdown – em vez de apenas nos entregarmos aos prazeres da maledicência –, teremos de resolver o paradoxo de sua fácil aceitação. Penso poder identificar no mínimo quatro categorias de razões para as prontas boas-vindas concedidas a uma tal mistificação por todos os maiores paleontólogos ingleses. Todas as quatro contradizem a mitologia habitual acerca da prática científica – de que os fatos são duros e primários, e de que a compreensão científica aumenta à medida que se reúnem pacientemente esses pedaços objetivos de informação pura, submetendo-os a um exame minucioso. Em vez disso, essas razões mostram a ciência como uma atividade humana, motivada pela esperança, pelos preconceitos culturais e pela busca de glória, cambaleando na sua trajetória errática em direção a um melhor entendimento da natureza.

(GOULD, 2004, p. 103, tradução nossa).

Para Langdon (1992, p. 20), o fator mais importante para a rápida aceitação do suposto novo hominídeo entre os ingleses foi que “os espécimes de Piltdown pareciam dar suporte para várias hipóteses que tinham sido propostas e debatidas dentro da comunidade científica na época da descoberta.” Uma dessas hipóteses, segundo Feder (2020) e Gould (2004, p. 103), era a da “supremacia do cérebro” na evolução humana, que propunha que um cérebro grande devia ter aparecido cedo na história evolutiva de nossa espécie, e provocado outras alterações no corpo dos seres humanos e em sua forma de locomoção, como a capacidade de caminhar sobre as duas pernas. Possivelmente, a hipótese da supremacia do cérebro era um retrato da grande importância evolutiva que muitos cientistas da época davam à nossa capacidade cognitiva, mas essa tese foi sendo descartada à medida que o conhecimento sobre fósseis de hominídeos aumentou. Sabemos, hoje, que características como o bipedalismo já estavam presentes em espécies como o Australopithecus, ou seja, elas precedem a existência de um cérebro do tamanho do dos Homo sapiens atuais (FEDER, 2020).

Outro fator que contribuiu para a aceitação dos fragmentos do Homem de Piltdown como peças legítimas foi o fato de que eles haviam sido encontrados na Inglaterra. Ter no solo natal um ancestral direto do Homo sapiens era motivo de orgulho para alguns cientistas britânicos. Langdon (2016) descreve o ambiente cultural da época, e sintetiza a sua influência sobre os cientistas que consideraram o Homem de Piltdown um genuíno ancestral humano:

Uma grande contribuição para o sucesso da fraude foi o círculo acadêmico particular no qual ela apareceu. Todos os envolvidos, claro, estavam conscientes da reputação que um novo crânio de hominídeo conferiria. No contexto do nacionalismo crescente que levaria à Primeira Guerra Mundial, encontrar um ancestral antigo em solo inglês era especialmente bem-vindo para os cientistas do Museu Britânico. Além disso, a descoberta coincidentemente se encaixava perfeitamente em teorias previamente concebidas sobre a evolução humana. Tanto Smith quanto Arthur Keith estavam profundamente interessados na evolução do cérebro humano, e argumentavam que um cérebro grande, sendo o traço humano definidor, deve ter evoluído antes de outras características humanas. O achado de Piltdown parecia confirmar a sua predição.

(LANGDON, 2016, p. 28, tradução nossa).

A avaliação do mérito das alegações de Dawson e Woodward sobre o Homem de Piltdown foi dificultada devido ao fato de que o acesso aos fragmentos originais por outros pesquisadores interessados em investigar o caso era normalmente obstruído. Conforme Gould (2004, p. 105), “os curadores de Piltdown restringiram severamente o acesso aos ossos originais. Aos pesquisadores era frequentemente permitido olhar, mas não tocar; só o conjunto dos moldes de plástico podia ser manipulado.” A detecção da fraude, segue Gould (2004; ver também FEDER, 2020; LANGDON, 2016), demandava contato com os vestígios originais, pois detalhes importantes como as manchas artificiais nos ossos e o desgaste provocado nos dentes não podiam ser inferidos a partir dos moldes. Sem o material original, antropólogos e paleontólogos precisavam confiar na honestidade dos dois homens que haviam descoberto e anunciado as peças ao mundo.

O papel da comunidade científica e do ceticismo organizado na detecção da fraude

As ideias sobre como a evolução humana teria ocorrido – com o desenvolvimento de um grande cérebro como propulsor de outras características corporais – e o desejo e expectativa de ter em seu solo um hominídeo primitivo pareciam conduzir muitos cientistas britânicos a uma resposta óbvia: a de que os fragmentos encontrados nos sítios eram verdadeiros, e que constituíam forte evidência a favor da proposição de que ancestrais humanos habitaram a Inglaterra há centenas de milhares de anos.

As influências do ambiente histórico e cultural, e de outros fatores não epistêmicos – como o desejo de que uma determinada ideia seja verdadeira, a força da pressão social para que indivíduos pensem de modo semelhante, a busca pela fama e reconhecimento que uma grande descoberta científica daria, etc. – são conhecidas, e seu impacto na escolha de hipóteses e teorias científicas por parte de pesquisadores é um fato (HAACK, 2003; HARKER, 2015).

Além do impacto de fatores não epistêmicos na avaliação de ideias na ciência, o raciocínio dos indivíduos – sejam eles cientistas ou não – também é influenciado por uma série de elementos cognitivos que normalmente não são conscientes. Em termos gerais, podemos tratar esses elementos como “vieses cognitivos”, “estratégias de raciocínio intuitivo que podem levar a inferências e julgamentos ilógicos e mal fundamentados” (BAILIN; BATTERSBY, 2016, p. 271).

Um dos mais famosos e estudados exemplos de vieses cognitivos é o viés de confirmação. Esse viés é considerado um dos mais bem estabelecidos na literatura da psicologia cognitiva (HART et al., 2009; NICKERSON, 1998) e, também, um dos aspectos mais problemáticos de nossa forma de raciocinar e tomar decisões (na ciência e no cotidiano). Nickerson (1998, p. 175), por exemplo, afirma que “se tivéssemos que identificar um único aspecto problemático do raciocínio humano que mereça atenção acima dos outros, o viés de confirmação teria que estar entre os candidatos a consideração”. Shermer (2012, p. 274), por sua vez, trata o viés de confirmação como “a mãe de todos os desvios cognitivos”.

Em termos gerais, o viés de confirmação é a tendência que temos, geralmente de modo inconsciente ou pouco consciente, “a procurar e encontrar evidências que confirmem crenças já existentes e ignorar ou reinterpretar evidências que não as confirmem” (SHERMER, 2012, p. 274). O viés de confirmação aparece na forma de uma grande variedade de processos cognitivos que funcionam como uma espécie de linha de defesa de crenças e pontos de vista preestabelecidos, e essa defesa tende a ser mais forte quanto maior for o investimento e o apreço que tivermos por uma determinada ideia.

No caso do Homem de Piltdown, muitos cientistas não foram capazes de detectar a fraude simplesmente porque suas crenças fundamentais a respeito de evolução humana – cérebro grande primeiro, bipedalismo depois – foram confirmadas pelas “evidências” apresentadas por Woodward e Dawson. O desejo e a expectativa de alguns cientistas britânicos de ter um ancestral de nossa espécie em seu país também pode ter potencializado a ação do viés de confirmação: assim, ao ponderar sobre os vestígios de Piltdown, os pesquisadores tenderam a enxergar evidências e aceitar indícios favoráveis à veracidade do espécime que provavelmente não passariam pelo seu escrutínio se, por exemplo, os ossos tivessem sido encontrado na África ou na Ásia.

No entanto, apesar dos desejos, expectativas e vieses de cientistas ingleses da época, por que hoje em dia não aceitamos mais as alegações de Dawson e Woodward como verdadeiras? Por que lemos sobre o Eoanthropus dawsoni em obras sobre fraudes científicas e pseudociência (ver, por exemplo, FEDER, 2020; PRACONTAL, 2004), e não em livros de biologia evolutiva atuais? Por que, em resumo, a ação dos desejos, expectativas e vieses que provavelmente afetaram o raciocínio dos primeiros pesquisadores envolvidos com a história de Piltdown foi atenuada a ponto de descobrirmos a farsa?

Casos como o do Homem de Piltdown nos mostram que elementos não epistêmicos que influem na avaliação de ideias, como expectativas e desejos individuais, e os vieses cognitivos que afetam o raciocínio de indivíduos têm força limitada sobre a confiabilidade de proposições científicas, pelo menos a médio e longo prazo. Isso ocorre, especialmente porque o ceticismo organizado, de forma individual e, principalmente, social, funciona como um escudo que protege contra o autoengano e problemas mais graves, como fraudes deliberadas.

Na ciência, existem mecanismos de gerenciamento de vieses, desejos e expectativas que atuam em termos individuais. Testes duplo-cego, por exemplo, são um elemento de ceticismo organizado metodológico que tornam possível a um cientista ou equipe de pesquisa discernir entre os efeitos de um potencial fármaco daqueles de um placebo. No entanto, mecanismos de redução de erros na ciência são mais efetivos quando envolvem a comunidade científica e permitem que o ceticismo organizado possa se expressar na forma de exame, refinamento, estabelecimento ou eventual descarte de razões e evidências.

Autores como Longino (1990), Oreskes (2019), Pigliucci (2010) e Solomon (2001) entendem a prática científica como eminentemente social: avançamos no entendimento teórico e nas aplicações práticas da ciência quando contamos com o trabalho coletivo de diversas pessoas, que podem pertencer a gerações diferentes e estar muito distantes fisicamente, mas cujas contribuições intelectuais influenciam o trabalho de outras.

A investigação coletiva se sobressai à individual no gerenciamento de vieses, desejos e expectativas porque comunidades de investigação, como as científicas, são formadas por pessoas que não necessariamente compartilham das mesmas conclusões, não abraçam as mesmas visões de mundo, não têm exatamente a mesma rede de crenças e as mesmas motivações para aceitar certos pontos de vista e, por isso, são impactadas de modo diferente por vieses cognitivos.

No caso de Piltdown, por exemplo, a aceitação dos fragmentos do hominídeo por muitos cientistas ingleses nos anos subsequentes à apresentação dos vestígios provavelmente se deve, pelo menos em parte, à confirmação das expectativas deles em ter um ancestral humano em seu país. Tal expectativa não era compartilhada por pesquisadores de outras nacionalidades – e por alguns cientistas ingleses, certamente –, e o viés de confirmação provavelmente não teve no raciocínio deles o mesmo impacto que no dos paleontólogos e antropólogos que rapidamente decretaram o Eoanthropus dawsoni como uma espécie legítima. Em outras palavras, os vieses, expectativas e desejos dos cientistas que viam o Homem de Piltdown como um ancestral humano foram diluídos a partir do ceticismo organizado da comunidade científica à medida que mais investigadores examinavam o espécime.

O ceticismo organizado também se manifesta em comunidades de investigação através da apresentação de múltiplas perspectivas na construção e avaliação de argumentos científicos. Se em algumas ocasiões as pessoas não são capazes de, por si sós, avaliar apropriadamente razões, quando há um ambiente no qual ideias são apresentadas publicamente, é provável que os indivíduos consigam pensar melhor a partir de insights vindos de outras mentes. Assim, estamos em melhores condições para refletir se encontramos pessoas com quem possamos intercambiar razões. Heath (2014) escreve a respeito:

Com Aristóteles, encontramos uma ilustração dramática da ideia de que o progresso intelectual poderia ocorrer através da correção de erros dos outros, então ao invés de ter que confiar em oráculos, em homens sábios ou profetas que revelam a verdade para nós, nós poderíamos trabalhar nisso ao longo do tempo, argumentando uns com os outros. (...). Como indivíduos, temos enormes dificuldades de ver nossos próprios erros, muito menos os vieses que nos levam a eles. As pessoas têm uma inclinação poderosa a pensar que “o pensamento enviesado de sua parte seria detectado por introspecção consciente”, e não é. A introspecção é muito, muito menos poderosa que qualquer um de nós imaginaria. E, infelizmente, os limites da introspecção não podem ser descobertos através da introspecção. Assim, o fiscal mais poderoso que temos da nossa tendência ao pensamento enviesado é a boa vontade – talvez até a avidez – de outras pessoas nos corrigirem.

(HEATH, 2014, p. 143, tradução nossa).

Mercier e Sperber (2017, p. 333) afirmam que seres humanos são “mais exigentes e objetivos na avaliação do que na produção” de argumentos e razões, na ciência ou em raciocínios e tomada de decisão cotidianos. Por isso, tendemos a nos autoenganar com mais facilidade se não dispusermos de um escudo de ceticismo organizado a partir de uma comunidade de investigação. A participação de outros indivíduos, com perspectivas diferentes e distintos vieses, expectativas e desejos pessoais, e a interação desses múltiplos fatores pode refinar o que e como pensamos sobre um determinado tópico.

Comunidades de investigação, no entanto, não são perfeitas, e o efeito do ceticismo organizado no refinamento de alegações científicas pode não ocorrer a curto prazo. Como o caso do Homem de Piltdown nos lembra, em algumas circunstâncias a investigação coletiva pode ser lenta para encontrar problemas em ideias e, às vezes, não os encontra.

Além disso, os mecanismos de correção epistêmica advindos do ceticismo organizado são dependentes do tempo e da cultura em que seus indivíduos vivem e, por isso, limitados naquilo que conseguem fazer. A ausência de métodos adequados de datação de fragmentos, por exemplo, foi um dos fatores que contribuiu para a demora na exposição da fraude de Piltdown. Se esses métodos estivessem disponíveis a pesquisadores em 1912, é provável que a discussão sobre as peças ósseas se encerrasse em poucos meses e não ganhasse o destaque que teve nas décadas seguintes.

Há um problema adicional com comunidades de investigação que pode impactar negativamente o ceticismo organizado: o pensamento de grupo. Basicamente, o pensamento de grupo ocorre quando membros de uma comunidade “convergem para um conjunto de crenças em comum sem considerar completamente todas as alternativas possíveis” (ALCOCK, 2018, p. 188), o que acaba minando a possibilidade de discussões férteis entre seus integrantes. É inegável que a ciência – como qualquer outra atividade intelectual humana desenvolvida de forma social – é impactada pelo pensamento de grupo e pela conformidade de ideias derivado dele, mas a diversidade de pontos de vista, expectativas, desejos e vieses entre os indivíduos faz com que sempre existam aqueles que duvidem de certas conclusões, e se ponham à disposição para examiná-las.

Histórias como a do Homem de Piltdown nos mostram que a pressão do pensamento de grupo não é determinante para o estabelecimento ou rejeição de uma ideia pela comunidade de especialistas. Pennock (2019, p. 101), afirma que a ciência opera a partir do equilíbrio entre a cooperação de cientistas e a competição de ideias. Isso significa que a comunidade científica “deve trabalhar junta para progredir a partir do teste de variadas hipóteses, descartando as que falham”, e avisando os cientistas dos caminhos percorridos para isso, para que outros avaliem quais devem evitar. O fundamental, prossegue Pennock (2019, p. 101), é que entendamos que “os cientistas não deveriam estar sujeitos à competição, mas as hipóteses sim”.

A competição entre hipóteses e ideias promovidas por comunidades de investigação, como na ciência, não ocorre apenas no mesmo espaço e tempo em que essas ideias são tornadas públicas. Como exemplificado pela fraude de Piltdown, uma vez que uma proposição científica é exposta ao espaço público de razões, ela estará sujeita ao escrutínio do ceticismo organizado da comunidade. E, assumindo que a ciência incorpora a incerteza e a ideia de falibilismo como um de seus pilares epistêmicos, qualquer asserção pode precisar de reparos, e é papel da comunidade fazê-los quando houver razões para isso.

O que a investigação coletiva e o ceticismo organizado nos ensinam sobre a ciência e sobre os nossos próprios processos de raciocínio

A história de Piltdown tem sido apresentada por detratores da ciência e proponentes do criacionismo e do design inteligente como um exemplo de como a ciência, e a biologia evolutiva em especial, pode ser falha e não confiável (PIGLIUCCI, 2010). No entanto, é mais razoável extrair uma lição muito diferente da história. Sim, o caso nos mostra alguns dos problemas que eventualmente afetam a prática da ciência – como a desonestidade em apresentar evidências e a dificuldade em avaliar ideias –, mas, principalmente, destaca as suas grandes virtudes, como a capacidade de detecção e correção de erros a partir do trabalho da comunidade científica, ou seja, do ceticismo organizado sob o aspecto institucional.

Popper (2006, p. 103) escreve que o “cientista natural é tão parcial quanto qualquer outra pessoa e infelizmente [...] favorece, não raro, suas próprias ideias de maneira extremamente unilateral e parcial.” No entanto, como o próprio Popper reconhece, apesar dos desejos, expectativas e vieses individuais, nós temos avançado no entendimento de uma série de problemas e questões relacionados ao mundo natural. Hoje, sabemos muito mais sobre evolução humana do que no começo do século XX, e o mesmo pode ser dito sobre qualquer outra área da ciência. E sabemos mais porque não existe “palavra final” que seja dada por um único indivíduo ou trabalho na ciência. Ideias são expostas para que sejam escrutinadas por outros investigadores, em um processo de revisão ad aeternum. O estabelecimento ou descarte de proposições científicas não é um trabalho individual, mas coletivo. Esse fato, por si só, representa a importância do ceticismo organizado como um elemento institucional da ciência.

Ocasionalmente, observamos em livros didáticos – e até em livros e artigos acadêmicos – a apresentação de episódios da história da ciência que parecem narrar o desenvolvimento de ideias científicas como elas fossem derivadas de duelos pela busca da afirmação de uma teoria ou hipótese: Pasteur versus Pouchet, Darwin versus Lamarck, e assim por diante. É ingenuidade assumir que proposições científicas são estabelecidas, ou “comprovadas”, a partir da disputa entre dois indivíduos ou da realização de um ou dois experimentos: é o constante exame das ideias pela comunidade de especialistas que irá dar o veredito sobre a razoabilidade de cada uma delas.

E esse veredito nunca será final, o que significa que nunca haverá um decreto sobre A Verdade Absoluta, conhecida completamente em todos os seus detalhes. Mesmo quando sabemos algo – isto é, sabemos algumas verdades, como que o Homem de Piltdown é uma fraude – ainda assim pode haver questões adicionais a serem investigadas e respondidas: Quem o fez? Com que propósito?

Não saber da Verdade, no entanto, não é um problema. Sabemos verdades cujo status é provisório, o que sugere que elas estão constantemente sujeitas a revisão, e isso normalmente nos basta. Pennock (2019) escreve a respeito:

O ponto importante é que, quando os cientistas dizem que estão buscando verdades a respeito do mundo, eles não estão falando de verdade absoluta, mas de um tipo mais humilde de verdade empírica que nos ajuda a navegar pelo mundo e que necessariamente vem em graus – há sempre valores-p, intervalos de confiança, graus de probabilidade, e outros indicadores de acurácia anexados a todas as descobertas científicas.

(PENNOCK, 2019, p. 6, tradução nossa).

Além de tender a nos aproximar das verdades empíricas discutidas por Pennock (2019), o caráter social da investigação científica também faz com que possamos chegar mais próximos daquilo que se pode chamar de objetividade ou, talvez, de uma versão moderada de objetividade, que assume não ser necessário uma “visão a partir de lugar nenhum” ou “de um ponto de vista divino”, mas que concebe que podemos ter razões mais (ou menos) objetivas em suporte a uma alegação à medida que elas puderem ser examinadas e aceitas sob diversas perspectivas, e não somente a nossa. Nas palavras de Axtell (2016, p. 141), maiores graus de objetividade na ciência são possibilitados como consequência de interações sociais, e não apenas do trabalho de um ou de poucos indivíduos e, para Popper (2006, p. 103), “a objetividade da ciência não é um assunto individual dos diferentes cientistas, mas um assunto social de sua crítica mútua, da amistosa/hostil divisão de trabalho dos cientistas, de sua cooperação e também de sua competição.”

Em uma discussão a respeito do que distingue a ciência da pseudociência, McIntyre (2019) sintetiza a importância do caráter social da ciência e o associa à objetividade. Segundo esse autor (2019, p. 113), a “ciência como uma instituição é mais objetiva que os seus praticantes”. McIntyre segue:

Os rigorosos métodos de vigilância científica são um fiscal contra o viés individual. [...]. Mas, como vimos, a atitude científica é mais do que apenas uma mentalidade individual; é um ethos compartilhado que é adotado pela comunidade de pesquisadores encarregados de julgar as teorias uns dos outros a partir de critérios disponíveis publicamente. De fato, essa pode ser a maior distinção entre a ciência e a pseudociência. Não é que os pseudocientistas sofram mais com vieses cognitivos do que os cientistas. E nem que os cientistas sejam mais racionais (embora eu espero que isso seja verdade). Ao invés disso, é que a ciência tem feito um esforço comunitário para criar um conjunto de padrões de evidência que pode ser usado como um fiscal contra nossos piores instintos e fazer correções à medida que continuamos, para que assim as teorias científicas estejam justificadas para serem aceitas por outros além dos cientistas que as descobriram. A ciência é o melhor caminho para descobrir e corrigir erros humanos em matérias empíricas não por causa da honestidade incomum dos cientistas, ou mesmo pelo seu compromisso com a atitude científica, mas porque os mecanismos para isso (método quantitativo rigoroso, escrutínio por pares, a confiança no poder refutatório da evidência) são apoiados pela atitude científica no âmbito comunidade.

(McINTYRE, 2019, p. 112-113, tradução nossa).

Se a objetividade é melhor entendida como um contínuo, no qual métodos ou proposições científicas podem ser mais ou menos objetivos em comparação a outros, o grau de objetividade de asserções tende a aumentar à medida que mais pessoas as examinam utilizando estratégias de investigação adequadas. Assim, é seguro afirmar que a proposição “o Homem de Piltdown é uma farsa” tem um alto grau de objetividade, considerando que o espécime não passou pelo escrutínio crítico da comunidade de especialistas nas décadas subsequentes à sua apresentação.

Se na ciência o caráter social da investigação e o ceticismo organizado derivado dele nos ajudam a depurar más ideias e a atingir graus mais altos de objetividade na avaliação de alegações, o mesmo pode ocorrer com nossos processos de raciocínio cotidianos.

Autores como Sloman e Fernbach (2017) afirmam que ninguém “pensa sozinho”. Dependemos de outras pessoas para refinar nossas ideias, testá-las, contrapô-las, entendê-las mais profundamente e, quem sabe, descartá-las se encontrarmos razões suficientemente apropriadas para isso. Temos maior dificuldade de gerenciar nossos vieses, conscientes e inconscientes, quando não nos expomos aos argumentos e à forma de pensar de outros indivíduos. Assim como ocorre com a atividade científica, é no ceticismo da comunidade que a força de desejos, expectativas e vieses individuais se dilui:

A verdade é que, no mundo real ninguém opera no vácuo. Detetives têm equipes que vão a reuniões e agem como um grupo. Cientistas não apenas têm laboratórios com estudantes que contribuem com ideias críticas, mas também têm colegas, amigos e concorrentes que estão realizando um trabalho similar, tendo pensamentos semelhantes, e que sem eles os cientistas não iriam a lugar nenhum. E também há outros cientistas que estão trabalhando em problemas diferentes, às vezes em áreas diferentes, mas que mesmo assim preparam o terreno através de suas próprias descobertas e ideias. Uma vez que começarmos a entender que o conhecimento não está todo na cabeça, que ele é compartilhado em uma comunidade, nossos heróis mudam. Ao invés de focar no indivíduo, nós começamos a focar em um grupo maior.

(SLOMAN; FERNBACH, 2017, p. 17, tradução nossa).

A sabedoria popular nos encoraja a “pensar com a própria cabeça”, mas a literatura contemporânea em psicologia cognitiva nos sugere mais cautela: pensar por conta própria a partir da ajuda de outras pessoas. Isso quer dizer que a palavra final para aceitar ou rejeitar qualquer alegação sempre será do indivíduo (embora esse processo não seja necessariamente ou completamente consciente), mas antes disso ele deve buscar apoio em fontes externas para avaliar de forma mais apropriada e menos enviesada o tópico sobre o qual está refletindo.

Na ciência, assim como na vida pessoal, estamos sujeitos à “ilusão do conhecimento” (SLOMAN; FERNBACH, 2017): podemos ter a sensação de que estamos certos mesmo quando nossos processos de raciocínio estão influenciados por vieses e turvados por nossas expectativas e desejos de obter uma determinada resposta ou de chegar a uma determinada conclusão. E, como na ciência, uma das formas – mesmo que imperfeita – de tentar aprimorar o que pensamos é nos amparar na comunidade.

Em termos práticos, um indivíduo amparar-se na comunidade representa que ele deve interagir com outras pessoas para trocar razões, ter a mente aberta o suficiente para ouvir pontos de vista diferentes e relevantes sobre o tema deliberado – embora “não tão aberta a ponto de seu cérebro cair” (SAGAN, 1996, p. 187) –, e considerar mudar de opinião como resultado desse processo, considerando que existam boas razões para tal. A força da comunidade em processos de raciocínio fora do campo científico provavelmente não irá produzir um ceticismo organizado da mesma forma que há na ciência, mas o exame social de razões pode ser bom o suficiente para minar o impacto de vieses, desejos e expectativas individuais.

Considerações finais

Stringer (2012, p. 179) afirma que o caso do “Homem de Piltdown demonstra a força do método científico para expor a verdade, afinal”. Podemos discutir se há, de fato “um” método científico: inegavelmente as investigações científicas são elaboradas com o auxílio de certos procedimentos de pesquisa, que também funcionam como estruturas de ceticismo organizado metodológico, como discutimos anteriormente. No entanto, não há um único método, se por isso entendermos um método universal científico aplicável a qualquer área de pesquisa.

Mesmo assim, o elemento fundamental da história de Piltdown não é a força de um, ou de alguns métodos de investigação científica. O caso Piltdown é uma demonstração da força do processo social da ciência, e do ceticismo organizado que resulta dele, em depurar ideias. E essa é, possivelmente, a maior lição de Piltdown sobre a ciência (e a sua natureza): um empreendimento humano no qual razões são apresentadas publicamente e, a partir disso, erros individuais (intencionais ou não) são corrigidos com o trabalho de uma comunidade de investigação.

Em sua clássica obra a respeito da importância do ceticismo e do pensamento crítico – na ciência e na vida cotidiana – Sagan (1996) argumenta que a ciência é muito mais do que um conjunto de ideias: é também uma forma de pensar. Mas é possível afirmar que a ciência vai além disso. Ela envolve um conjunto de ideias, um conjunto de formas e estratégias de pensamento e de investigação, e também um conjunto de valores e atitudes compartilhadas entre os integrantes de sua comunidade. E é esse conjunto de valores e atitudes compartilhadas que resulta no ceticismo organizado que caracteriza o trabalho da comunidade de investigação científica.

A ciência não se refere apenas a fatos, afirma Pennock (2019, p. 337), seguindo o raciocínio de Sagan (1996). “É também a mentalidade que está envolvida em chegar aos fatos certos e se preocupar em fazer isso. Fatos têm valor. Se quisermos adquirir conhecimento científico, deveríamos desejar cultivar os traços que nos ajudarão a fazer isso.” Entre esses traços, como argumentamos neste artigo, está o ceticismo organizado derivado do caráter social do empreendimento científico. Entendê-lo nos faz compreender melhor a essência do trabalho da ciência. E, também, pode fazer com que percebamos a importância da avaliação social no gerenciamento de vieses que afetam as nossas próprias ideias e pontos de vista a respeito de qualquer assunto sobre o qual deliberamos.

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Recebido: 28 de Fevereiro de 2020; Aceito: 04 de Julho de 2020

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