Considerações iniciais sobre a infância emigrante
A partir do último quartel do século XIX, o imigrante italiano passou a desempenhar um papel cada vez mais relevante na história de São Paulo. Condições objetivas favoreceram a emigração da Península Itálica, determinadas e, muitas vezes, acompanhadas de um conjunto bastante complexo de transformações que ocorriam na Europa:
As transformações de caráter sociodemográfico que desembocaram no que se convencionou chamar de “transição demográfica”, as provocadas pela expansão do capitalismo na Europa e em outras regiões do mundo e as mudanças políticas que se operaram em muitos países dos continentes europeu e asiático. Todos esses processos, interagindo entre si, em muitos momentos, geraram excedentes populacionais em várias regiões, que foram conduzidos às emigrações oceânicas, entre elas as dirigidas ao Brasil, facilitadas, então, pelo desenvolvimento das comunicações e barateamento do transporte
(BASSANEZI et al., 2008, p. 18).
Vários foram os motivos do que ficou conhecido como a “Grande Emigração Italiana” ocorrida entre as datas-marco da Unificação Italiana (1861) e do final da Primeira Guerra Mundial (1918), ganhando contornos a partir do fim dos anos 70, tornando-se um fende massa entre 1887 e 1902ômeno.2 Trento (1988, 2000) e Cenni (2003) apontam a miséria como a principal delas.
Os impostos sobre as propriedades e sobre o patrimônio, somados às altas taxas sobre a moagem de grãos agravaram a miséria em que já viviam os camponeses. As condições de vida dos operários eram marcadas por padrões bastante precários de sobrevivência.
Nessas condições, segundo Alvim (2000), a emigração italiana se constituiu em um fenômeno importante de equilíbrio socioeconômico, por aliviar a pressão e as reivindicações sobre as cidades e a indústria nascente, mas também, porque os expatriados enviavam dinheiro aos parentes o que, em certa medida, contribuía minimamente para afastar ou postergar uma rebelião social.
A emigração na Itália se intensificou a partir de 1866, sobretudo nas duas décadas subsequentes, para países do continente europeu, e, a partir de 1887, para países da América do Sul. Depois de 1900, se tornou bastante relevante a emigração das províncias meridionais da península italiana rumo aos Estados Unidos. Entre 1869 e 1900, seis milhões de pessoas deixaram a península. Entre 1901 e 1914, mais oito milhões emigraram, sendo metade desses através do oceano (BELLO; NUTI, 2001; CARPI, 1874).
De acordo com o Anuário estatístico da emigração italiana3 (1926), no ano de 1900, a emigração de homens oscilou entre 65% e 72% do contingente total, sendo que desses entre 19% e 24% eram menores de 14 anos. No ano de 1913, a maior parte dos emigrantes era constituída por homens, algo em torno de 80% do total, e a emigração feminina atingiu os demais 20%. Ao se considerar a idade, não ultrapassavam os 12% os que tinham menos de 15 anos.
Muitos desses emigrantes eram crianças. Algumas vieram acompanhados de suas famílias, e outras como relatam Bello e Nuti haviam sido cedidas por seus pais a adultos que da península emigraram:
[...] a criança está presente na emigração seja em companhia da sua família constituída em geral de pais que trazem os filhos mesmo de pouca idade, às vezes recém-nascidos ou prestes a nascer, seja acompanhados de adultos a quem os pais os deram, por uma taxa, ou em confiança (2001, p. 8-9).4
No livro de Ostuni e Stella (2005), são muitas as imagens de famílias inteiras se deslocando nos trens que ligavam pequenas cidades aos locais de embarque, sentadas no chão, já que, na maioria das vezes, não dispunham de dinheiro para se hospedar em hotéis enquanto aguardavam o momento de embarque nos navios. A esse respeito, os autores apresentam o relato do Padre Pietro Maldotti:
Não era incomum ver centenas de famílias deitadas promiscuamente no chão úmido, ou em sacos ou nos bancos, em salas compridas, no porão, ou sótãos miseráveis, sem ar e sem luz, não apenas à noite, mas também durante o dia. Os alimentos vendidos a preços fabulosos não alimentavam os infelizes (2005, p. 32).
As crianças compuseram um grupo social que, sozinhas, acompanhadas por adultos ou juntamente com seus pais, saíram da Península Itálica, na maioria das vezes, em meio à fome e à miséria; enfrentaram, além das agruras e penúrias da travessia do oceano Atlântico, as condições climáticas, a falta de condições higiênicas, as moléstias, a alimentação desbalanceada e pouco nutritiva e naufrágios para, enfim, aportar no Brasil (OSTUNI, STELLA, 2005).
O presente texto tem por objetivo investigar o cotidiano marcado pelo trabalho vivido pelas crianças italianas, sobretudo, das camadas menos favorecidas, desde antes do embarque até a chegada em São Paulo, entre as décadas finais do século XIX e o início do século XX.
Ancorado nos referenciais da História Cultural e na História da Infância e tendo a análise documental como procedimento adotado, o presente texto tem como fontes:5 jornais, relatórios consulares, anuários da instrução pública e publicações. Toma-se de empréstimo a conceituação de infância, de Kuhlmann Júnior e Fernandes (2004), sobre a qual afirmam ser uma “concepção ou a representação que os adultos fazem sobre o período inicial da vida” (p. 15) e que, portanto, deve ser investigada considerando os limites que ampliam e restringem a abrangência desse conceito “sob os aspectos de sua duração, da sua dominação, de sua universalidade e das suas particularidades geográficas, sociais, culturais e históricas” (p. 15).
Tomando a História da Infância como sendo a história da sociedade, da cultura, dos adultos com relação à criança, ainda de acordo com Kuhlmann Júnior e Fernandes (2004) a infância precisa ser investigada a partir dos contextos histórico e social, tendo como premissa que ela “não é a mesma coisa, aqui e lá, ontem e hoje, sendo tantas infâncias quantas forem as ideias, as práticas e os discursos que, em torno dela e sobre ela se organizem” (LAJOLO, 2001, p. 231), ainda que sejam muitas as permanências ao longo de diferentes tempos históricos e distintos espaços geográficos.
Para realizar esta investigação, o recorte temporal incide sobre as duas últimas décadas do século XIX e as duas primeiras do século XX, período de expressiva emigração da península e da chegada de imigrantes italianos em São Paulo. Dessa forma pergunta-se: Como teria sido a vida das crianças italianas antes mesmo de suas famílias decidirem pela emigração. Teriam sido inseridas como mão de obra? E no Brasil as condições de vida mudaram? Melhoraram? Haveria tempo e recursos econômicos para que frequentassem escolas italianas em São Paulo?
O texto está organizado em duas seções: na primeira, são apresentados os elementos da vida cotidiana das crianças antes de emigrarem; na segunda seção, a inserção das crianças como mão de obra e suas principais ocupações em São Paulo; e, por fim, algumas considerações sobre o acesso à educação formal nas escolas italianas.
Mesmo antes de emigrar: uma vida árdua, de labuta e penúria
Data de 11 de fevereiro de 1886, a primeira lei sobre o trabalho infantil na península, ou seja, a Lei n. 3.657,6 que proibia meninos e meninas, menores de 9 anos, de trabalharem em fábricas e pedreiras, e menores de 10 anos, em minas. Estabelecia, em seu art. 1º, a obrigatoriedade de apresentação de um certificado médico que atestasse “que sejam [eram] saudáveis e adequados para o trabalho para o qual se destinam [se destinavam]”7 (BELLO; NUTI, 2001, p. 55); limitava, no art. 3º, em oito horas de trabalho diário, o emprego de crianças entre 9 e 12 anos; e, no art. 2º, proibia aos menores de 15 anos trabalhar em local perigoso ou insalubre.
Interessante é notar que, em outro ordenamento legal, desta feita, na lei sobre a emigração, publicada no ano de 1888, apenas um único artigo referia-se às crianças, indicando ser passível de perder a licença para conduzir a embarcação, aquele que permitisse o embarque de criança destinada à mendicância e à prostituição. O sucessivo regulamento para a execução da lei de 30 de dezembro de 1888,8 asseverava que a autoridade de segurança pública do porto de partida e dos postos fronteiriços é obrigada a assegurar que não emigrem os menores destinados ao comércio errante, em contravenção à lei de 21 de dezembro de 1873, ou à prostituição, e ordenar o repatriamento do mesmo onde a suspeita é bem fundamentada e seus acompanhantes não apresentam documentos ou outras evidências suficientes para excluí-la (1888, p. 54).9
Ao que parece, o problema não era o trabalho infantil em si, mas determinadas ocupações a serem desempenhadas no país para o qual imigravam. Poucos anos depois, uma nova lei de emigração, a Lei de 1901, se propôs tutelar os emigrantes e, em particular, “defender aqueles jovens aliciados com artes ilícitas a se profanar no Exterior em profissões errantes, para desvanecer em indústrias insalubres com empregos precoces [...]” (BELLO; NUTI, 2001, p. 57).10
De acordo com o art. 2º, seria estabelecida uma pena para “qualquer pessoa que recrute, que conduza ou mande para o estrangeiro, para fins de trabalho, menores de 15 anos, sem terem sido submetidos a exame médico e munidos do livro fornecido pelo prefeito”11 (BOLLETTINO DEL MINISTERO DEGLI AFFARI ESTERI, 1901). Novamente a questão central não parece ser o trabalho infantil, mas a falta de exame médico e do livro de trabalho, algo como uma carteira de trabalho assinada pelo prefeito.
Esses ordenamentos apontam para uma realidade em que o trabalho das crianças era bastante comum, usual, talvez considerado, inclusive, esperado. Bianchi (2009), em estudo sobre o trabalho de meninas e adolescentes no período de crise econômico-social deflagrada após a Unificação Italiana, relata que uma das principais ocupações era a de cantor e tocador de instrumentos, tais como pequenos órgãos à manivela, ocupação que iniciou na península e foi levada para o Exterior, juntamente com o processo emigratório.
A questão dos “pequenos cantores” mereceu atenção de parlamentares, como, por exemplo, dos deputados Giuseppe Guerzoni e Antonio Oliva, que, após a publicação de um relatório da Sociedade Italiana de Beneficência de Paris, manifestaram incômodo e vergonha com o comprometimento da dignidade nacional maculada pelo trabalho dos pequenos ambulantes, atribuindo a responsabilidade à população meridional, por “sua ignorância e brutalidade” (apudBIANCHI, 2009, p. 356).
Aos problemas econômicos se somavam os maus-tratos e a violência sexual. O relato de Ricorda Ortensia, nascida em 1903, é um exemplo da vida das famílias e de seus filhos em meio à miséria e aos abusos:
Minha família é numerosa, dez filhos um após o outro, uma grande miséria. Aos nove anos me venderam a um mascate, me venderam por cinco liras, mas ele me usou como escrava. No primeiro dia ele me disse: T’se ti fè i basin? [Você sabe beijar?]. No dia seguinte, ele fez amor comigo e quis que eu o fizesse com outras pessoas. Fugi, fui empregada em fazendas, vivi assim até os vinte anos
(apud BIANCHI, 2009, p. 356).12
Outro trabalho realizado pelas crianças era vender estatuetas de gesso confeccionadas, por exemplo, na Província de Lucca, na região da Toscana. Ainda que exigisse das crianças muitas horas de trabalho, além do peso excessivo das peças e ficar até à noite na rua, era considerado por muitos, à época, um trabalho honroso e honesto (BIANCHI, 2009; BELLO; NUTI, 2001).
No Piemonte e no Valle d’Aosta, duas regiões do Norte da Itália, muitas crianças foram recrutadas para trabalhar como limpadores de lareiras e de chaminés em outros países da Europa. O mesmo deputado Guerzoni, severo crítico do trabalho das crianças-cantoras, afirmou ser o trabalho dos pequenos meninos e meninas limpadores, uma profissão honesta e honrosa (BIANCHI, 2009; BELLO; NUTI, 2001).
Em sua importante obra intitulada Fam, füm, frecc: o grande romance dos limpadores de chaminé,13 Mazzi apresenta um comovente relato de um menino, que, em meio à fome, ao cansaço, ao medo e ao frio, ainda era submetido, como tantas e tantas outras crianças, aos maus-tratos de seus patrões:
Eu tinha apenas oito anos, mas nunca poderei esquecer a primeira experiência dramática. Estávamos em Cossato, onde era necessário limpar a chaminé de uma padaria. O padeiro tinha acabado de assar o pão e disse que poderíamos começar depois de três horas, quando o forno esfriasse. Então ele foi dormir. O patrão não perdeu tempo: ele me jogou na lareira dentro de um quarto de hora, apesar de meus protestos tímidos. Foi terrível. A fuligem ainda estava brilhando e eu temia que pegasse fogo quando caísse lá embaixo. Consegui resistir e terminei o serviço em meia hora, mas no final meu corpo estava todo dolorido pelas queimaduras (2000, p. 31).14
No início do século XX, o trabalho das crianças, como limpadores de chaminés e lareiras, passou a receber críticas por ser muito perigoso e pesado, mas sobretudo, por ser considerado uma atividade similar à vagabundagem e mendicância. Lino Ferriani, um magistrado da cidade de Como, no artigo intitulado “Os dramas das crianças”15 denuncia que as que trabalhavam como limpadoras de chaminés, muitas vezes, se transformavam em mendigos. Segundo o autor, ao invés de ser um trabalho, tal ocupação era, em verdade, uma ameaça ao futuro trabalhador. Fortemente impactado por sua atividade de magistrado, e muito provavelmente pelos estudos de Cesare Lombroso, que via, na venda dos filhos pelos pais, uma atitude considerada ociosa e preguiçosa da maioria dos patrões, quase uma preparação para as crianças se transformarem em futuros criminosos (BONGARZONE, 2017; BIANCHI, 2009; BELLO; NUTI, 2001).
As crianças trabalharam também, conforme relata Bianchi (2009), como pedreiros, cortadores de pedras, mineiros, fazendo escavações, dentre tantos outros trabalhos, que, provavelmente, fossem, à época, considerados honestos e honrosos, mas que, sem dúvida, eram insalubres e inadequados para meninas e meninos que os desempenhavam.
Havia ainda outro trabalho, menos visível, em casa, ajudando as mães na lida com a arrumação, preparo de alimentos, limpeza, e com os pais, auxiliando no trabalho com o plantio, cuidando dos animais, etc. De toda forma, sempre trabalho, no mais das vezes, cansativo, perigoso, que minava a saúde das crianças e o direito de usufruir o tempo da infância sem as obrigações e os deveres dos adultos.
Esses meninos e meninas, provavelmente, pouco puderam usufruir da “Lei Casati”, de 1859, e da “Lei Coppino”, de 1877, que asseguravam a instrução pública obrigatória na Itália. Ao invés de ocuparem os bancos escolares, ou ao menos ali permanecerem durante o período da escola elementar, estavam trabalhando e, na maioria das vezes, sendo explorados. Segundo afirma Salvetti (2014), a evasão escolar era muito alta, e a taxa de analfabetismo, em 1901, girava em torno de 32,6%, o que indica que o direito das crianças à educação levaria ainda um bom tempo para se concretizar.
A vida das meninas e meninos, em fins do século XIX, foi marcada por precariedade, exploração, trabalho insalubre e inadequado às condições etárias e pela quase ausência de políticas voltadas à tutela deles referente ao trabalho infantil. A fome, a precariedade, os abusos e o trabalho das crianças estiveram presentes na vida daqueles que, do lado de lá do Atlântico eram chamados de emigrantes, mas que, ao desembarcarem no Porto de Santos, passaram a ser denominados de imigrantes ou de italianos.16 A substituição da letra inicial da palavra, de e para i pouco ou nada impactou, ao menos nos primeiros anos, a vida da maioria das crianças, dos homens e mulheres, que partiram e chegaram no Brasil em busca de uma vida melhor.
Al di qua dell’Atlantico:17 a vida das crianças em São Paulo
Ao longo das três últimas décadas do Oitocentos e das duas primeiras décadas do Novecentos, as mudanças pelas quais São Paulo passou, deixando, no dizer de Morse (1970), de ser o burgo de estudantes para se transformar em metrópole do café, se refletiram no incremento de atividades comerciais e industriais, que foram exercidas algumas vezes exclusivamente, e outras não, pelos imigrantes italianos adultos e por seus filhos.
Na Capital São Paulo, muitos imigrantes italianos se dedicaram ao comércio ambulante. Assim, lado a lado com as velhas quitandeiras com tabuleiros em mãos, deslocadas de um canto para outro pelo poder municipal, talvez porque atrapalhassem o trânsito, era comum, segundo relata Bruno (1991), ver adultos italianos andando pelas ruas “negociando com flores, com frutas, com hortaliças, com peixe e camarão trazidos do litoral” (p. 1.131-1.132). E, ao lado desses ambulantes, crianças italianas vendiam jornais. Segundo relata o autor, a venda avulsa de jornais pela rua foi iniciada em 1876 e, em 1890, os jornaleiros já eram, em sua maioria, italianinhos entre 10 e 14 anos de idade, que buscavam os jornais nas muitas tipografias espalhadas pela cidade e os distribuíam pelos distritos de São Paulo:
Era realmente divertido – escreveu Raffard – ver sair das tipografias esses “bambini” que haviam monopolizado a venda de jornais, cujos títulos apregoavam com pronúncia fortemente italianizada. Nesse tempo ou antes um pouco, aliás haviam surgido os primeiros engraxates ambulantes: menores italianos imigrantes que percorriam as estações da estrada de ferro e as ruas e os largos da cidade. Tinham, em geral, de dez a catorze anos de idade e recebiam pelo seu serviço três vinténs. Esses meninos, que eram em número diminuto – segundo as notas de Antonio Egídio Martins – percorriam todos os dias quase todos os largos e ruas de São Paulo
(BRUNO, 1991, p. 1.137-1.138).
Muitos italianos dedicaram-se à abertura de suas próprias oficinas, que funcionavam, no mais das vezes, quase exclusivamente, com mão de obra familiar, inclusive das crianças pequenas. Muitas foram as pequenas oficinas que funcionavam nos fundos de armazéns e estalagens, segundo descreve Bruno (1991): “sapatarias, marcenarias, fábricas de massas, de graxa, de óleo, de tintas de escrever, fundições, fábricas de calçados, manufaturas de roupas e chapéus” (p. 1.182).
Muitos se dedicaram à abertura de suas próprias fábricas de massas, de óleos, de tintas para escrever, olarias, fundições, confecções de roupas e chapéus, que funcionavam, na maioria das vezes, com a mão de obra familiar.
Para além de suas próprias pequenas oficinas e fábricas, a presença italiana foi muito expressiva no interior das indústrias cujos proprietários poderiam, ou não, ser italianos, constituindo um contingente de operários superior a 60% dos trabalhadores entre 1900 e 1915. Um exemplo é a expressiva presença de crianças na indústria têxtil de São Paulo:
Levantamentos estatísticos realizados pelo Departamento Estadual de Trabalho de São Paulo a partir de 1894 demonstram que a indústria têxtil foi a que mais recorreu ao trabalho de menores e mulheres no processo de industrialização do país. Em 1894, 25% do operariado proveniente de quatro estabelecimentos têxteis da capital eram compostos por menores. Em 1912, de 9.216 empregados em estabelecimentos têxteis na cidade de São Paulo, 371 tinham menos de 12 anos e 2.564 tinham de 12 a 16 anos. Os operários de 16 a 18 anos eram contabilizados como adultos. Do número total de empregados, 6.679 eram do sexo feminino. Em levantamento realizado em 194 indústrias de São Paulo em 1919, apurou-se que cerca de 25% da mão-de-obra era composta por operários menores de 18 anos. Destes, mais da metade trabalhava na indústria têxtil
(RIZZINI, 2000, p. 377).
As condições de trabalho dos imigrantes eram similares a dos brasileiros e muito se assemelhavam às vividas nos primeiros anos da Revolução Industrial nos países europeus, entre os séculos XVIII e XIX, conforme descreve Trento (2000, p. 82): “Jornadas de trabalho intermináveis, demissões arbitrárias, pagamento por peça, disciplina rígida, baixos salários e ampla utilização do trabalho de mulheres e crianças com remunerações inferiores às dos homens adultos.” Tais condições, amplamente apresentadas e discutidas na imprensa que circulava à época, tanto em língua portuguesa como em italiana, apontavam para as péssimas condições laborais das fábricas, bem como para os baixos salários, como se lê no excerto a seguir:
Como havemos de alcançar isso, quando os ordenados que nos dão apenas chegam para pagar um quarto estreito, sem luz nem ventilação, numa forçosa promiscuidade com seres racionais e irracionais, e para comprar alimentos que nos forçam a ser vegetarianos, visto que os outros mais nutritivos não se acham ao alcance do nosso dinheiro
(O TRABALHADOR GRAPHICO, 5 maio 1904. p. 1).
As crianças começavam muito cedo a enfrentar as agruras do trabalho, algumas como afirmou Maram (1979), em torno dos 7 ou 8 anos, outras, conforme Bruno (1991), antes ainda, por volta dos 5 anos e, invariavelmente, recebendo salários menores dos que os minguados recebidos pelos adultos. A esse respeito o autor afirma:
Como era considerável o número de menores, a contar de cinco anos, ocupados em serviços fabris, percebendo salários que começavam por duzentos réis a diária. Não só a maioria de operários, como a maioria de industriais, era constituída de elementos italianos
(BRUNO, 1991, p. 1.182).
O jornal A Terra Livre, em edição de 7 de fevereiro de 1906, discutia o quão perversa era a exploração do trabalhador de modo geral, e ainda mais agravada quando se tratava de criança, que, ao começar a trabalhar precocemente, tinha a possibilidade de estudar comprometida, ou inviabilizada, e, assim, segundo o redator, “não poderá instruir-se e nunca sairá do torpor que desde a infância a traz abatida no sofrimento e na ignorância” [...]. (A TERRA LIVRE, 7 fev. 1906, p. 2).
O jornal socialista Avanti!, em matéria denominada “Istruzione e lavoro” seguiu nessa mesma direção, denunciando que, embora a lei admitisse o direito de todos à educação, tal direito não se estendia aos trabalhadores e a seus filhos, que não conseguiam “frequentar a escola pelas más condições econômicas de sua família; por esse motivo, ele não pode frequentar a escola regularmente, tendo também de realizar tarefas domésticas” (AVANTI!, 29 jan. 1902, p. 1).
Deixaram a Itália a fim de fare l’America, expressão amplamente utilizada pelos imigrantes italianos, que traduzida literalmente, significa “fazer a América”, e que semanticamente, indicava o desejo de uma vida melhor, com condições de trabalho e moradia dignas. Segundo Petrone (1990, p. 607-608), havia “uma valorização quase religiosa do trabalho e, numa postura pragmática que as necessidades imediatistas estimulavam”. Em meio a tantas adversidades e às indispensáveis condições materiais para conseguir frequentar a escola, muitos pais enfrentaram árduos sacrifícios para que seus filhos estudassem, preferencialmente, em uma escola italiana, ou ainda, em escolas públicas paulistas.
Considerações finais
Na segunda metade do século XIX, as desigualdades sociais e econômicas em muitas regiões italianas foram determinantes para o crescente fluxo emigratório. Ao chegar em São Paulo, encontraram uma cidade que vivia entre as décadas finais do século XIX e as iniciais do século XX, um tempo de crescimento das cidades, de diversificação das ocupações e de efervescência industrial.
Dentre os muitos imigrantes italianos que vieram para São Paulo, alguns, apesar de todas as dificuldades econômicas enfrentadas, conseguiram matricular seus filhos em escolas italianas, provavelmente sonhando com uma vida melhor, com condições mais dignas para viver e sobreviver.
No ano de 1898, o Almanaco del Fanfulla publicou uma matéria intitulada “As escolas italianas de São Paulo”,18 afirmando serem essas escolas numerosas e deixadas quase inteiramente à iniciativa privada. Até o ano de 1898, já estavam em funcionamento 29 escolas privadas na cidade. Panizzolo (2019b) também identificou, no ano de 1898, a existência desse total de escolas italianas, número que aumentou para 60 em 1906 e passando a 156 em 1916.
O ensino oferecido nas escolas italianas em São Paulo era denominado de “Curso Elementar”, organizado em duas seções: a inferior composta pela 1ª., 2ª. e 3ª. classes, e pela superior, constituída pela 4ª. e 5ª. classes, sendo que mais da metade das escolas em funcionamento até 1905, ofereciam, exclusivamente, o Curso Elementar inferior até a 3ª. classe (ELENCO DELLE SCUOLE ITALIANE NELLO STATO DI SAN PAOLO NEL 1905; APPENDICE 1 – NOTIZIE PARTICOLARI INTORNO ALLE SCUOLE ELEMENTARE ITALIANE DA ME VISITATE NELLO STATO DI S. PAULO, 1907.
É provável que grande parte das crianças estudasse somente até a 3ª. série e depois ingressasse no mundo dos adultos, ou melhor, no mundo do trabalho. Compreender os motivos que ocasionavam o fim dos estudos de modo tão precoce requer considerar que a situação econômica da maioria dos imigrantes era de penúria, de exploração no trabalho e de condições bastante adversas de sobrevivência.
Com relação à idade das crianças que frequentavam escolas italianas durante o dia, o documento “Estatística por Idade – escolas italianas em S. Paulo e entorno”,19 embora não se refira a todas as 156 escolas que funcionaram até a primeira década do século XX, e trate especificamente do ano de 1906, oferece uma primeira aproximação do número de crianças que frequentavam escolas italianas. Ao que parece, as crianças que frequentavam essas escolas iniciavam os estudos com menos de 6 anos, e somente 0,91% das que estavam nessa faixa etária cursavam o único jardim de infância existente no Istituto e Giardino d’Infanzia, pois todas as demais ingressavam no Curso Elementar. Das 3.195 crianças matriculadas nesse ano, 73,61% tinham até 10 anos e cursavam o Elementar Inferior. Após os 10 anos, havia uma evasão ou repetência enorme. Do total de matriculados, 14,33% tinham entre 10 e 12 anos e, 12,05%, mais de 12 anos, o que permite inferir que, ultrapassada a ‘linha de corte’ dos 10 anos, ou do Elementar Inferior, muitos dos que permaneciam cursavam o Elementar Superior, ao que parece em sua integralidade (STATISTICA PER ETÀ DELLE SCUOLE ITALIANE IN S. PAULO E CIRCONDARIO).
Panizzolo (2018b) no texto “O processo escolar entre italianos e seus descendentes: a escola italiana em São Paulo, no século XIX e início do século XX”, encontrou dados sobre anos posteriores. Segundo a autora, em 1908 passaram, pelos bancos escolares das escolas italianas, 6.547 crianças. Esse número representa 16,26% do atendimento total de toda a população em idade escolar, que era de 40.256 crianças. No ano de 1910, havia 43.905 crianças em idade escolar e, dessas, 6. 282 em escolas italianas, ou seja, em torno de 14,30% das vagas oferecidas pelo governo de São Paulo (SÃO PAULO, 1908; 1910).
As fontes estudadas referem que, com o passar dos anos, ao menos uma parte das crianças italianas ou descendentes começaram a frequentar a escola, o que pode indicar um ingresso mais tardio ou menos precoce no mundo do trabalho para muitas, ou pode indicar que para muitas dessas crianças o tempo tenha sido ocupado, simultaneamente, pelas atividades da escola e do trabalho.
A história das crianças (e)imigrantes italianas ou descendentes reitera a história de tantas outras que viveram em diferentes lugares e tempos históricos, como bem retratou Heywood (2004) em sua obra Uma história da infância. Da mesma forma se assemelha com a história das crianças nascidas no Brasil naquela época (e de muitas até os dias atuais). Uma história de lá e de cá do oceano Atlântico, marcada por privação, abandono, fome e exploração da mão de obra infantil, uma história de cor pálida, esmaecida, indigente e com gosto de fome.