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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 05-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021013 

ARTIGOS

O governo de si, dos outros e das almas: um breve estudo sobre técnicas disciplinares

The government of itself, the others and the souls: a brief study about disciplinary techniques

Jéssica Erd Ribas** 
http://orcid.org/0000-0001-8249-1963

Elisete Medianeira Tomazetti* 
http://orcid.org/0000-0002-4979-7415

Gilberto Oliari*** 
http://orcid.org/0000-0003-3102-8383

**Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM. E-mail: erd. jessica@gmail.com

*Licenciada e Mestra em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora no Departamento de Metodologia do Ensino. Atua no Curso de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM. E-mail: elisetem2@gmail.com

***Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSM. E-mail: gilba@unochapeco.edu.br


Resumo

O presente artigo propõe uma análise dos estudos foucaultianos acerca do tema técnicas disciplinares e sua relação com o governamento de condutas individuais e coletivas. Para tal, concentra-se em demonstrar, a partir das obras Vigiar e punir: nascimento da prisão (2008), A ordem do discurso (2010) e Microfísica do poder (2013), como a disciplina (entendida como uma tecnologia do poder), opera na condução de práticas dos sujeitos (governamento de condutas). Assim, se percorrermos um caminho analítico de diferenciação dos dois usos do termo disciplina, encontrado nas teorizações de Michel Foucault: um no âmbito do saber, a partir do controle da formação dos discursos (hierarquização e pedagogização dos conhecimentos) o qual configura a atuação de um poder que se exerce agindo como um limitador discursivo a partir da regulação e do controle daquilo que pode ser dito e pensado em determinada época. Outro uso, constituído no âmbito do poder, no qual o poder disciplinar atua especificamente no corpo como um conjunto de técnicas engendradas na fabricação de sujeitos. Desse modo o objetivo principal delineia-se em apresentar a disciplina como uma tecnologia de poder que funciona como maquinaria de governamento das condutas, evidenciando suas formas de operação nos domínios empreendidos por Foucault, do saber e do poder, seguindo sua tríade genealógico-filosófica de investigação. O artigo ainda explora o entendimento foucaultiano de que a disciplina e as técnicas disciplinares se configuram como uma engenhosa máquina que se articula na fabricação do humano, sendo necessário compreendê-las não apenas a partir de categorias de repressão, opressão e alienação como muito se fez e ainda se faz. Assim, o filósofo francês nos fornece uma compreensão dessa tecnologia do poder como maquinaria produtiva que diz sim muito mais do que diz não (2013, p. 350).

Palavras-chave Disciplina; Michel Foucault; Poder disciplinar; Técnicas disciplinares

Abstract

The present article proposes an analysis of the foucauldians studies concerning the disciplinary techniques and its relation with the government of individuals and collectives conducts. To this end, this article focus in demonstrated, throughout the works “Discipline and Punish: The birth of the prison (2008)”, “The order of discourse (2010)”and “Micro-physics of Power (2013)”, how the discipline, understood as a technology of power, operates in the conduct of the subject practices (government of conducts).Thus, we will follow an analytical path of differentiation of the both uses of the term discipline found in the theorizations of Michel Foucault: one in the way of the knowledge, thenceforth the control of the discourses formation (hierarchy and pedagogy of the knowledge’s) which configures the acting of a power that exercises itself as a discursive restrictor in order to maintain the regulation and control of what can be said and though in certain time. The other use, constituted in the scope of the power, in which the disciplinary power acts specifically in the bodies as a group of techniques engendered in the subjects’ fabrication. Therefore, the main objective outlines in present the discipline as a technology of the power the works as an machinery of the government of conducts, highlighting its forms of operation in the fields undertaken by Foucault, of the know and the power, following his genealogic triad of investigation. The article still intends to explore the foucauldian understanding that the discipline and the disciplinary techniques are configured as an ingenious machine that come together in the fabrication of the human, being required to understand them not only through the repression categories, oppression and alienation, like much has been done and continues to be made. Accordingly, the French philosopher will provide us an understanding of this technology of power as a machinery that productive says yes, much more than it says, no (2013, p. 350).

Keywords Discipline; Michel Foucault; Disciplinary power; Disciplinary techniques

Considerações Iniciais

Em primeiro lugar, é válido fazer um esclarecimento a respeito dos usos dos termos governo/governamento nos estudos foucaultianos. Eles correspondem tanto a governo das práticas – e aqui podemos pensá-lo como um termo correlato à condução de condutas – quanto a exercícios de uma razão política. Desse modo, ao tratar, neste artigo, das técnicas disciplinares como maquinaria de governamento das condutas, o conceito em questão não estará sendo tematizado no âmbito dos estudos empreendidos por Foucault, nos quais realiza uma genealogia do Estado e demonstra o aparecimento de um conjunto de técnicas e procedimentos que permite o exercício de uma forma de poder, que tem por objeto principal o governamento da população, a partir de uma mentalidade de governo, a saber, a emergência da governamentalidade.

Embora localizados esses dois usos do conceito, é possível dizer que governamento das condutas é algo que se faz presente em todas as formas de poder analisadas por Foucault: pastoral, soberano, disciplinar e biopoder. Nesse sentido, o termo não se refere especificamente à sua noção de governo como uma razão política que emerge no fim do século XVIII, que está imbricada no surgimento do Estado moderno e da sociedade governamental, cuja necessidade se concentra em administrar dispositivos de segurança e criar mecanismos reguladores da vida social, de modo a exercer uma biopolítica que possibilite o governamento das populações.

Considerando o exposto, o mote de investigação deste estudo concentra-se em demonstrar de que modo a disciplina, vista como uma tecnologia do poder, opera na condução de práticas dos sujeitos, isto é, no governamento de suas condutas. Contudo, encontramos, também em Foucault, dois usos acerca do termo disciplina: um no âmbito do saber, a partir do controle da formação dos discursos (hierarquização e pedagogização dos conhecimentos) e, portanto, na atuação de um poder que se exerce agindo como um limitador discursivo a partir da regulação e do controle daquilo que pode ser dito e pensado em determinado tempo histórico. E outro, no âmbito do poder, no qual o poder disciplinar atua especificamente nos corpos como um conjunto de técnicas engendradas na fabricação de sujeitos.

Ao pensar no estatuto dos saberes pedagógicos, Varela (2002) mostra a emergência, a partir do Renascimento, de um processo de pedagogização dos conhecimentos que, classificando, dividindo e hierarquizando os saberes, fez erigir formas específicas de instituições educacionais. Essas instituições, por sua vez, acompanham, na modernidade, o aparecimento de uma concepção de infância que produz “uma separação cada vez mais marcada entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças” (2002, p. 87). Surge, dessa separação, então, a necessidade de se pensar nas instituições educacionais para que se ocupem da formação dos infantes, sobretudo, no que concerne à sua educação moral. Não por acaso, esse lugar de formação foi ocupado pelos colégios jesuítas.

[...] foram precisamente os jesuítas que retomaram as definições que moralistas e humanistas fizeram da infância e puseram em ação uma maquinaria escolar que não apenas contribuiu para dotar as crianças de um estatuto especial, mas que também converteu seu sistema de ensino, nos países católicos, num sistema-modelo para as demais instituições

(VARELA, 2002, p. 88).

A maquinaria escolar que, inicialmente, operou no governo das condutas da nova geração para a formação de bons cristãos, teve a necessidade de organizar a educação em espaços fechados (colégios) e de controlar os saberes de modo que esses fossem organizados em diferentes níveis de dificuldade e selecionados de tal forma que seus conteúdos atendessem aos estatutos católicos. Dialogando com Michel Foucault, chamaremos esse processo de governo dos saberes, governo das condutas e governo das almas. Tal processo se capilariza, se intensifica, se remodela e se atualiza chegando até os dias atuais.

Com auxílio dos estudos foucaultianos, podemos compreender que as tecnologias do poder, na medida em que se reconfiguram e se engendram, articulam, entre si, relações e técnicas disciplinares que atuam sobre os sujeitos e exercem sobre eles dispositivos de governamento: dos corpos, dos indivíduos e das populações, de modo que se tenha, assim, um governamento de condutas individual e coletivo. Assim, ao tematizarmos a disciplina como uma tecnologia de poder que funciona como uma maquinaria de governamento das condutas, estabelecemos sua relação e sua operação nos domínios do saber e do poder.

O primeiro domínio, o âmbito do saber, refere-se à atuação da maquinaria disciplinar na hierarquização dos conhecimentos e na produção de estatutos pedagógicos dos saberes. O segundo domínio, no âmbito do poder, corresponde aos engendramentos do poder disciplinar atuando no corpo dos indivíduos, moldando-os, fabricando-os e produzindo-os.

Com Foucault (2008, 2010, 2013) dizemos, então, que a tecnologia disciplinar, ao pôr em funcionamento suas técnicas disciplinares, se configura como uma maquinaria articulada no âmbito do poder e do saber, e, na medida em que ela exerce um poder, produz um saber. Nomeamos os efeitos desse processo de “governamento de si, dos outros e das almas”. A seguir tratamos de demonstrar como a tecnologia disciplinar opera como maquinaria discursiva – domínio do saber – e, como produção de individualidades – domínio do poder.

1 A tecnologia disciplinar no âmbito do saber: uma maquinaria discursiva de limitação do discursivo

Em A ordem do discurso (2010), Michel Foucault descreve três mecanismos internos de limitação dos discursos: a disciplina, o comentário e o autor. Sendo “a disciplina uma forma discursiva de limitação do discursivo” (CASTRO, 2009, p. 111), ela exerce na episteme “uma relação de poder que opera como uma teratologia do saber” (FOUCAULT, 2010, p. 33). Isto significa dizer que a disciplina age simultaneamente, como um delimitador de conhecimentos e produtor de regimes de verdade, à medida que se estabelece “por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos” (FOUCAULT, 2010, p. 30).

Esse mecanismo interno de limitação dos discursos está imbricado nos procedimentos externos de controle e delimitação do discursivo que, por sua vez, “funcionam como sistemas de exclusão” (FOUCAULT, 2010, p. 21), sendo eles: a palavra proibida/interdição: “não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, do mesmo modo que qualquer um não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2010, p. 9); a segregação da loucura: o discurso do louco não pode circular como o dos outros, pois ele não possui um corpus de razão, de verdade e de legitimidade; e, finalmente, a vontade de verdade: o modo pelo qual o saber é aplicado em uma sociedade, como ele é distribuído, repartido, valorizado (FOUCAULT, 2010, p. 70).

No âmbito do saber, portanto, a disciplina exerce uma disciplinarização dos saberes e pertence a procedimentos que “funcionam, sobretudo, a título de classificação, de ordenação e de distribuição” (FOUCAULT, 2010, p. 21) do discurso. Desse modo, ele

[...] determina as condições que uma determinada proposição deve cumprir para entrar no campo do verdadeiro: estabelece de quais objetos se deve falar, que instrumento conceituais ou técnicas há que utilizar, em que horizonte teórico deve inscrever-se

(CASTRO, 2009, p. 111).

É a disciplina, nesse domínio, uma maquinaria que se ocupa em delimitar regimes discursivos responsáveis por estabelecer e distinguir o verdadeiro do falso, governando/conduzindo, portanto, o que é estar no verdadeiro, bem como fixando legitimidade àquilo que pode ser dito e pensado em determinada época. É importante destacar que, no pensamento foucaultianos, não existe “a verdade”, visto que verdade é sempre histórica, territorializada, construída e produzida dentro dos limites e possibilidades de enunciação do discurso.

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ele acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro

(FOUCAULT, 2013, p. 35, grifo nosso).

No final do século XVIII, com a emergência do capitalismo e com o processo de estatização da sociedade, Foucault (2008) descreve que há a necessidade de governar os indivíduos e os saberes de tal modo que esses correspondam às exigências econômicas e políticas que estavam emergindo na época. Isto é, o filósofo escreve que houve, nesse período, o “aparecimento correlato de duas novidades modernas fortemente conectadas uma à outra: no plano dos indivíduos, o poder disciplinar; no plano do coletivo, a sociedade estatal” (VEIGA-NETO, 2007, p. 63).

O poder disciplinar surge para substituir, embora sem nunca abandonar, o poder pastoral e o poder de soberania. Enquanto o primeiro se exercia no governo das almas, segundo um conjunto de princípios que requer: 1) a verticalidade (emana de um pastor); 2) a sacrificação e a salvação (no poder pastoral é necessário sacrificar-se pelo rebanho e, então, salvá-lo); e 3) a individualidade e o detalhe (o pastor deve conhecer cada ovelha detalhadamente para governá-la); o segundo constituiu-se fora do campo religioso, e o poder político é exercido por um soberano, que se vale, em parte, da lógica do pastoreio, mas que, ao contrário dela, não pode ser salvacionista, nem piedoso e nem individualizante (VEIGA-NETO, 2007, p. 68). Nesse sentido, o poder soberano possui um défice em relação ao poder pastoral, e a solução moderna para esse défice foi o advento do Estado com o poder disciplinar (VEIGA-NETO, 2007 p. 69).

No decurso da estatização da sociedade, Foucault (2013) explica o processo de lutas político-econômicas em torno da disciplinarização dos saberes em que o Estado intervira para disciplinar os conhecimentos mediante quatro operações estratégicas, a saber: a) eliminação e desqualificação dos saberes inúteis, economicamente custosos; b) normalização dos saberes: ajustá-los uns aos outros, permitindo que se comuniquem entre eles; c) classificação hierárquica: dos mais particulares aos mais gerais; e d) centralização piramidal (CASTRO, 2009, p. 111).

O dispositivo disciplinar, como uma tecnologia de poder que age no âmbito dos saberes, opera mecanismos de regulamentação cujos efeitos são a delimitação, limitação e produção discursiva de regimes de verdade. Nas palavras de Foucault (2013, p. 51), não existe verdade fora do poder, ou verdade sem poder. Há sempre um jogo de forças em combate pela verdade, em torno de um estatuto do verdadeiro e do papel econômico-político que os regimes de verdade desempenham. E, no quesito delimitação dos regimes discursivos, a disciplina exerce um papel fundamental, sobretudo a partir de um instrumento disciplinar que ela comporta: o exame.

O exame opera mecanismos de seleção, separação e classificação dos discursos desenvolvendo hierarquias e estatutos pedagógicos aos saberes e pondo em circulação regimes de verdade. Em um regime discursivo de produção de verdades, no entanto, o que existe são vontades de verdade, isto é, um desejo de saber o que circula nos discursos. Desse modo, a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a produzem. Regimes da verdade (FOUCAULT, 2013, p. 55).

Diz Foucault,

[...] que a verdade como relâmpago, não nos espera onde temos paciência de emboscá-la e habilidade de surpreendê-la, mas que tem instantes propícios, lugares privilegiados, não só para sair da sombra como realmente se produzir. Se existe uma geografia da verdade, é a dos espaços onde reside, e não simplesmente a dos lugares onde nos colocamos para melhor observá-la. Sua cronologia é a das conjunções que lhe permitem se produzir como acontecimento, e não a dos momentos que devem ser aproveitados para percebê-la, como por entre nuvens. Poderíamos encontrar na nossa história, toda uma tecnologia da verdade: levantamento de suas localizações, calendário de suas ocasiões, saber dos rituais no meio dos quais se produz

(2013, p. 192).

Em face do exposto, dizemos que a disciplina possibilita a emergência discursiva de um conjunto de regras, de estratégias, de procedimentos e de articulações que permitem, a partir de rituais da palavra, a produção do acontecimento verdade.

Apresentamos, até aqui, formas de atuação da disciplina no domínio do saber, como máquina capaz de controlar e de pôr em circulação regimes discursivos e regimes de verdade. De agora em diante, nos ocupamos em tratar da ação da disciplina no domínio do poder, tomando como foco central os estudos realizados pelo filósofo francês na terceira parte de sua obra Vigiar e punir (2008).

2 A tecnologia disciplinar no domínio do poder: a fabricação de individualidades

Se no âmbito do saber a disciplina exerce o papel de uma teratologia discursiva, no domínio do poder, ela desempenha a função de uma “anatomia política e uma mecânica do poder” (FOUCAULT, 2008, p. 143), que tem, no corpo dos indivíduos, seu objeto principal de atuação, com vistas à fabricação de individualidades e o governamento de comportamentos e condutas. E, como bem lembra Veiga-Neto (2007), sendo o corpo alvo de técnicas ortopédicas desempenhadas pelo dispositivo disciplinar, é necessário que se compreenda que para Foucault “é por intermédio do corpo que se fabrica a alma” (VEIGA-NETO, 2007, p. 70).

A alma é, portanto, e “ao mesmo tempo, o produto do investimento político do corpo e um instrumento do seu domínio” (EDWALD, 1993, p. 51 apudVEIGA-NETO, 2007, p. 70). Com isso, podemos dizer que a disciplina, enquanto tecnologia do poder exerce-se, como sugerimos no título deste trabalho, num processo de governamento de si, dos outros e das almas.

Ao realizar uma genealogia da sociedade disciplinar, em Vigiar e punir: história das prisões (2008), o filósofo se ocupa em demonstrar que, durante os séculos XVII e XVIII,

[...] nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna obediente quanto mais é útil, e inversamente

(FOUCAULT, 2008, 119).

Essa arte, que tem em seu horizonte a docilização dos corpos, exerce-se a partir de uma microfísica do poder por considerar e se concentrar nas minúcias, nas pequenas coisas, no minúsculo. “A disciplina é uma anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, p. 2008, p. 120).

Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se o compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos de Estado. E são eles justamente que vão pouco a pouco invadir essas formas maiores, modificar-lhes os mecanismos e impor-lhes seus processos

(FOUCAULT, 2008, p. 143).

Foucault descentraliza o poder em seus estudos, passando a compreendê-lo sempre, como uma relação, localizando-o não como algo absolutamente negativo, visto que as relações de poder sempre possuem dimensões positivas em suas técnicas de produção de individualidades e saberes. O filósofo se opõe, justamente, às correntes de pensamento que compreendem o poder como algo centralizado, puramente repressivo e negativo. Por isso, se empenhou em demonstrar a força produtora das tecnologias e dos dispositivos de poder que, ao produzir discursos e singularidades, produzem sujeitos, conduzindo suas ações e formas de pensar, o que resulta na produção da própria realidade. Desse modo, tomar o poder, como algo estritamente negativo, é nutrir por ele uma noção esquelética, cujos efeitos dizem sempre não.

Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisa, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social muito mais que uma instância negativa que tem por função reprimir (FOUCAULT, 2013, p. 45).

A disciplina, ao controlar o corpo, fabrica individualidades: ela produz singularidades, fabrica sujeitos. O poder disciplinar, essa “arte de talhar pedras” (FOUCAULT, 2008, p. 120) age sobre os corpos como um poder modesto, “que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’ para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 2013, p. 142).

Para o filósofo francês essas individualidades/singularidades são dotadas de quatro características fundantes: celular, orgânica, genética e combinatória.

Em resumo pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos mecanismos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes, uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo de repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E para tanto utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar uma combinação das forças, organiza táticas

(FOUCAULT, 2008, p. 141).

Cada uma dessas quatro características (celular, orgânica, genética e combinatória) está correlacionada com exercícios produzidos por técnicas do poder disciplinar. Quanto a isso, diz Foucault (2008) que, em primeiro lugar, a disciplina procede em relação à distribuição dos indivíduos no espaço (p. 121), utilizando procedimentos de clausura, quadriculamento e localizações funcionais. A noção de clausura refere-se à necessidade de manter os indivíduos em espaços fechados – a “disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 122). Da técnica disciplinar que procede com o princípio da clausura, vimos emergir instituições como as prisões e os manicômios – a necessidade “do grande encarceramento dos vagabundos e dos miseráveis” (FOUCAULT, 2008, p. 122) – as escolas, pela necessidade de educar pelo internato; e os quartéis, com o controle dos exércitos.

Colégios – O modelo do convento se impõe pouco a pouco; o internato aparece como o regime de educação senão o mais frequente, pelo menos o mais perfeito; torna-se obrigatório em Louis-le-Grand quando, depois da partida dos jesuítas, fez-se um colégio modelo.

Quartéis – é preciso fixar o exército, essa massa vagabunda; impedir a pilhagem e as violências; acalmar os habitantes que suportam mal as tropas de passagem; evitar os conflitos com as autoridades civis; fazer cessar as deserções; controlar as despesas

(FOUCAULT, 2008, p. 122).

A técnica de quadriculamento, por sua vez, opera com mecanismos de localização imediata: “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo” (FOUCAULT, 2008, p 123).

Evitar as distribuições por grupo; decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quantos corpos ou elementos há a repartir [...], tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar comunicações úteis, interromper as outras, poder, a cada instante, vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimentos, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza em um espaço analítico

(FOUCAULT, 2008, p. 128).

A organização desse espaço analítico “conta com velho procedimento arquitetural e religioso: a cela dos conventos. Solidão necessária do corpo e da alma, dizia certo ascetismo [...]” (FOUCAULT, 2008, p. 123). É preciso controlar o corpo, e, para tal, é fundamental governar a alma. Por fim, a terceira técnica de controle dos corpos exercida pela tecnologia do poder disciplinar, as localizações funcionais, corresponde à criação e à organização arquitetônica de um espaço útil e pronto para vários usos.

Nessas três técnicas de distribuição dos corpos, os elementos são intercambiáveis,

[...] pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é, portanto, nem o território (unidade de dominação), nem o local (unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha ou coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica de transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações

(FOUCAULT, 2008, p. 125).

Após descrever as técnicas disciplinares de distribuição dos corpos no espaço, Foucault se ocupa em descrever as técnicas disciplinares de controle das atividades; de organização das gêneses; e da combinação das forças. Passamos, agora, a tratar de cada uma delas.

A técnica de controle das atividades exerce procedimentos de elaboração de horário; elaboração temporal do ato; correlação entre corpos e gestos, articulação do corpo com objetos e utilização exaustiva do tempo. Controlar horário significa “garantir a qualidade do tempo empregado” (FOUCAULT, 2008, p. 128), estabelecendo sequências ordenadas de tempo, regulamentando ciclos de repetição e controlando a conduta dos sujeitos de acordo com as divisões de tempo. Para tal, é necessária a chamada elaboração temporal do ato a qual define “uma espécie de esquema anatomocronológico do comportamento” (FOUCAULT, 2008, p. 129). Trata-se de elementos que definem o ato: a posição do corpo, dos membros, das articulações. A determinação dos gestos, para cada movimento é prescrita uma direção, duração e ordem de sucessão. “O tempo penetra o corpo, e, com ele, todos os controles minuciosos do poder” (FOUCAULT, 2008, p. 130).

A técnica disciplinar de correlação entre corpos e gestos refere-se à delimitação da “melhor relação entre um gesto e a amplitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e rapidez [...], um corpo bem disciplinado é a base de um gesto eficiente” (FOUCAULT, 2008, p. 131). E, nesse sentido, é preciso que a disciplina defina cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula. Isto é, é necessário que haja também articulação entre corpo e objeto.

No que tange à utilização exaustiva do tempo, há o princípio que Foucault (2008) chama de “não-ociosidade”, que, basicamente, significa “extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante mais forças úteis” (p. 131). A disciplina organiza, portanto, uma economia de tempo que conduz as práticas dos sujeitos à execução de tarefas com o máximo de rapidez possível e o máximo de eficiência. Desse modo, o filósofo francês entende que uma vez que o corpo se pretende dócil, apresenta funcionamentos próprios de um organismo – “o poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e “celular”, mas também natural e orgânica” (FOUCAULT, 2008, p. 133).

Outra técnica disciplinar exercida, como vimos, é a organização da gênese. Essa técnica corresponde à divisão do tempo em segmentos; serialização de atividades e exercícios como técnicas que impõem tarefas repetitivas ao corpo. Dividir o tempo em segmentos implica decompor a duração desse tempo em sequência de modo que cada segmento chegue a um fim específico. No caso da formação de soldados, por exemplo, “deve-se ensinar sucessivamente a postura, depois a marcha, depois o manejo das armas, depois o tiro, e só passar a uma atividade se a anterior estiver completamente adquirida” (FOUCAULT, 2008, p. 136). Do mesmo modo, as atividades devem ser divididas em séries de séries e distribuídas por níveis. O exercício aparece, nessa maquinaria de organização da gênese, como “uma tecnologia política do corpo e da duração” (FOUCAULT, 2008, p. 137). Ele impõe ao corpo maneiras de realizar atividades, moldando-o, governando-o.

E, por último, a técnica de composição das forças faz do corpo singular um corpo-elemento, isto é, manipulável, “que se pode mover, colocar, articular com outros” (FOUCAULT, 2008, p. 138). Assim, se deve ajustar o corpo-singular (corpo de um) ao corpo-elemento (corpos de outros) e, para isso, é preciso a organização de séries cronológicas de tempo e de sistemas precisos de comando. “O corpo se constitui como uma máquina multissegmentar” (FOUCAULT, 2008, p. 140). E o tempo de um deve também ser ajustado ao tempo de outros, para que, dessa forma, se possa extrair a maior quantidade de forças de cada indivíduo, combinando-as em um resultado excelente. Ajusta-se corpo e tempo para a composição das forças. Governam-se condutas individuais e coletivas em uma função corpo-tempo-segmento.

Foucault irá demonstrar, ainda, que são três os instrumentos utilizados pelas técnicas disciplinares na fabricação de individualidades, a saber: vigilância hierárquica; sanção normalizadora; e exame. Diz Foucault (2008, p. 145) que “as instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento”. Essa maquinaria tem por função a vigilância, cada vez mais detalhada, do comportamento individual dos sujeitos. A vigilância, portanto, “é uma engrenagem específica do poder disciplinar” (FOUCAULT, 2008, p. 146). Diferentemente das outras formas de poder analisadas por Foucault, na qual a vigilância se exercia desde o espaço do “fora”, no poder disciplinar, ela se efetua desde o espaço do dentro, nos hospitais, nas escolas, nas fábricas, nos quartéis, etc. Assim, a vigilância deve ser hierarquizada, contínua e funcional. São necessárias as hierarquias: um sujeito vigiando o outro, ao mesmo tempo que é vigiado, com uma continuidade ininterrupta no tempo. A vigilância:

Organiza-se como um poder múltiplo, automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre os indivíduos, seu funcionamento é uma rede de relações de alto a baixo, mas também de baixo para cima e lateralmente; fiscais perpetuamente fiscalizados. O poder na vigilância hierarquizada das disciplinas não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina. E se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo

(FOUCAULT, 2008, p. 148).

Havendo, pois, o instrumento vigilância, é necessário o instrumento punição para exercer práticas de correção dos desvios, das práticas inadequadas às regras. No entanto, para haver punição, é preciso que exista um conjunto de mecanismos que estabeleça as normas que devem conduzir as condutas. É nesse ponto, que Foucault descreve o instrumento disciplinar chamado, sanção normalizadora, em que a punição se exerce como um duplo sistema: sanção-gratificação.

Esse mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar. Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal; em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre polo positivo e polo negativo; todo o comportamento cai no campo de boas ou más práticas

(FOUCAULT, 2008, p. 151).

É interessante notar que a punição no poder disciplinar irá se diferenciar da punição jurídica. Foucault faz a diferenciação entre as noções de norma e lei, pois, uma vez que a lei se exerce e pune, classificando, hierarquizando e separando, a norma pretende a homogeneidade. Ela busca normalizar as condutas que estão inadequadas ou afastadas da normalidade. Assim, a norma requer a homogeneização das práticas, uma vez que estabelece as boas e as más condutas e delimita fronteiras entre o que é normal e o anormal, por exemplo. Para tal, as punições se exercerão através de mecanismos reguladores do comportamento e exercícios de correção: os castigos, as recompensas, as táticas delimitadoras de aptidões, etc. Contudo, a norma homogeniza na medida em que ela “compara, diferencia, exclui [...]; em uma palavra, ela normaliza” (FOUCAULT, 2008, p. 153).

Em certo sentido, o poder da regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade formal, pois dentro de uma homogeneidade que é a regra, ele introduz, como um imperativo útil e resultado de uma medida, toda a geração das diferenças individuais

(FOUCAULT, 2008, p. 155).

Encontramos, nos estudos foucaultianos, um terceiro instrumento disciplinar, qual seja, o exame. Esse instrumento, de acordo com nosso filósofo, tem por função realizar um escrutínio do sujeito. E é dele que emergem diversos saberes da medicina, sobretudo, aqueles ligados a revelar as verdades dos sujeitos; de conhecer a alma: os saberes que emergem da psicologia, psiquiatria, psicanálise, etc., a conhecida “emergência da função-psi” descrita por Michel Foucault.

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos da disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos e como objetos e as objetivação dos que se sujeitam. A superposição das relações de poder e das de saber assume, no exame, todo seu brilho visível

(FOUCAULT, 2008, p. 154).

Se a vigilância hierárquica pressupõe sanção normalizadora, essa, por sua vez, para exercer suas práticas de sanção e normalização, necessita de mecanismos e táticas que revelem “a verdade do sujeito”. É necessário, senão sujeitos que confessem, ao menos que deixem mostrar a verdade de si, e, nesse fundamento, o exame exerce um papel fundamental.

O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinado com a vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. Com ele se ritualizam aquelas disciplinas que se pode caracterizar com uma palavra dizendo que são uma modalidade de poder para qual a diferença individual é pertinente

(FOUCAULT, 2008, p. 160).

É assim, portanto, que Foucault descreve a disciplina como uma tecnologia do poder, nas suas formas de produção de individualidades e nas suas técnicas e instrumentos disciplinares. Na introdução da versão brasileira de Microfísica do poder (2013), Roberto Machado esboça um resumo a respeito das características básicas do poder disciplinar:

Em primeiro lugar, a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. Isola em um espaço fechado, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo específico que dele se exige. Mas, como as relações de poder disciplinar não precisam necessariamente de espaço fechado para se realizar, essa é sua característica menos importante. Em segundo lugar, e mais fundamentalmente, a disciplina é um controle do tempo. Isto é, ela estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Neste sentido não é basicamente o resultado de uma ação que lhe interessa, mas seu processo, seu desenvolvimento. E esse controle minucioso das operações do corpo ela o realiza por meio da elaboração temporal do ato, da correlação de um gesto específico com o corpo que o produz e, finalmente, por meio da articulação do corpo com o objeto a ser manipulado. Em terceiro lugar, a vigilância é um dos seus principais instrumentos de controle. Não uma vigilância que reconhecidamente se exerce de modo fragmentar e descontínuo; mas que é ou precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como contínua, perpétua, permanente; que não tenha limites, penetre nos lugares mais recônditos, esteja presente em toda a extensão do espaço [...]. Finalmente, a disciplina implica um registro contínuo de conhecimento. Ao mesmo tempo que exerce um poder, produz um saber

(2013, p. 22-23).

Em funcionamento, todas essas técnicas e instrumentos põem em ação um conjunto de mecanismos, táticas e estratégias que organizam, ordenam, combinam, compõem e decompõem, limitam e delimitam, controlam, moldam, posicionam, ajustam, e realizam uma economia político-cronológica dos comportamentos. A disciplina, vista como tecnologia do poder, fabrica uma anatomia política e uma ortopedia moral, as quais produzem processos de governamento dos sujeitos, no âmbito do corpo (condução de comportamentos) e das almas (condução da moralidade).

Considerações Finais

Após seus estudos sobre o poder disciplinar, Foucault tematizou sobre outro tipo de poder: o biopoder, cuja emergência se dá com a sociedade estatal. Essa nova forma de poder “tem na população seu objeto, na economia, seu saber mais importante e, nos dispositivos de segurança, seus mecanismos mais básicos” (VEIGA-NETO, 2007, p. 72). Há, portanto, uma mudança de ênfase: o biopoder, diferentemente do poder disciplinar, irá se ocupar da vida humana em vez de do corpo dos indivíduos. Desse modo, “se o poder disciplinar fazia uma anatomia política do corpo, o biopoder faz uma biopolítica da espécie-humana” (VEIGA-NETO, 2007, p. 75).

O foco não se concentra mais nos corpos em sua individualidade, visto que, na medida em que se tomam corpos em coletividade, nasce um novo tipo de corpo: a população. Nesse sentido, para governar as condutas desse corpo com múltiplas cabeças, o Estado cria mecanismos regulamentadores da vida social e de condução das práticas individuais e coletivas, vindo a emergir a sociedade governamental/estatal. Contudo, importa destacar que o poder disciplinar não deixa simplesmente de existir; pelo contrário, ele se ramifica, e suas técnicas, formas e instrumentos continuam como a se exercer com outras roupagens no domínio do biopoder.

Nesse sentido, enfatizamos que o dispositivo disciplina, com suas táticas, mecanismos e estratégias específicas, assim como já esteve presente em maior ou menor grau na sociedade pastoral e de soberania, remodela-se e se espraia na tecnologia da biopolítica, produzindo estratégias de convencimento e governamento das condutas da população. Na maquinaria disciplinar, há o controle de todos e de cada um; não é possível escapar da condução, ela é parte da produção do humano. O governo dos outros, de si e das almas é o pressuposto fundamental que movimenta as engrenagens de tal maquinaria.

Buscamos apresentar, neste breve estudo, como a máquina disciplina se articula no domínio do saber e do poder e produz discursos, singularidades e realidades a partir da organização do tempo e do espaço, do controle das atividades, do esquadrinhamento dos corpos, do escrutínio dos sujeitos, e de um micropoder que é celular, orgânico, genético e combinatório.

O dispositivo disciplina é, portanto, desde a Antiguidade, uma maquinaria de condução das condutas humanas. Um poder que, a partir de sua microfísica, produz. Dessa maneira, buscamos apresentar que os estudos foucaultianos nos ensinam que o poder não é algo centralizado e que emana somente da dominação e da repressão. Poder é sempre uma relação que produz saberes, sujeitos, práticas, instituições.

A disciplina sempre conduziu e sempre conduzirá as práticas dos sujeitos. Contudo, ainda no tempo presente, urge a compreensão de que essa engenhosa máquina se articula na fabricação do humano. Ainda não conseguimos superar o complexo de negação, que postula à disciplina somente categorias de repressão, opressão e alienação. Foucault, contudo, nos apresenta ideias-forças para pensarmos a disciplina como uma máquina que diz sim muito mais do que diz não.

Referências

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FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros: cursos no Collège de France (1982-1983). Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. [ Links ]

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VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

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