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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021022 

ARTIGOS

C. S. Lewis e uma crítica à educação promovedora de abolição do homem

C. S. Lewis and a critic for education promoting the abolition of man

João Batista Andrade Filho* 
http://orcid.org/0000-0002-1196-6711

Evanildo Costeski** 
http://orcid.org/0000-0001-8713-915X

*Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UEC). Especialização em Metodologias do Ensino de Filosofia pela Universidade Gama Filho – RJ. Professor de Filosofia associado à Rede Oficial de Ensino do Estado do Ceará – Secretaria da Educação Básica. Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestrando Profissionalizante em Filosofia (PROF FILO) pela UFC. Bolsista da Capes. E-mail: jbandradef@gmail.com

**Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Pós-Doutor pelo Centro de História e Cultura da Universidade Nova de Lisboa. Professor-Associado III na Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro correspondente externo do Instituto Eric Weil (IEW) da Université Charles-de-Gaulle Lille 3. Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Filosofia da UFC e do Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO). Coordenador-Adjunto de Programas Profissionais da área de Filosofia (2018-2021). Tem experiência na área de Filosofia, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Ensino de Filosofia, Filosofia Brasileira, Kierkegaard, Eric Weil, Violência, Religião e Relações Internacionais. E-mail: evanildoc@uol.com.br


Resumo

O presente artigo objetiva colocar em evidência as razões de uma crítica elaborada pelo escritor irlandês Clive Staples Lewis (1898-1963) aos rumos da educação da juventude na Europa, notadamente no Reino Unido, no século XX. Sua crítica ganhou como principal tese aquilo que o escritor chamou de “abolição do homem”, resultante de um sistema educacional promotor de uma pretensa racionalidade que impedia o desenvolvimento de um elemento intermediário no ser humano, entre o cerebral e o visceral. Para Lewis esse elemento intermediário são as emoções que, se forem bem-treinadas, dotam o intelecto com capacidades para lidar com o mero organismo animal. Para esse intento, nosso ponto de partida, neste nosso trabalho, foi delineado pelo recorte de um trabalho mais amplo, que consiste em uma exposição que, em linhas gerais, põe em relevo algumas diretrizes que apontam à composição de uma filosofia da educação em C. S. Lewis. Buscamos colher, inicialmente, os elementos de uma antropologia filosófica, colhidos diretamente, por um procedimento interpretativo, da vasta obra do autor em questão, particularmente: A abolição do homem. Cristianismo puro e simples. O peso da glória. Reflexões cristãs. Os quatro amores. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Deus no banco dos réus. Ética para viver melhor. Reflexões cristãs, dentre outras. Além desses textos utilizados como fonte direta, tomamos por orientação de nossa composição, também, o trabalho de Gabrielle Greggersen, intitulado: A antropologia filosófica de C. S. Lewis, no qual a autora faz uma incursão interpretativa nos textos de literatura ficcional do autor, bem como os trabalhos biográficos de Alister MacGrath: Conversando com Lewis e . vida de C. S. Lewis, nos quais são ricamente detalhadas a vida e a obra do filósofo irlandês.

Palavras-chave C. S. Lewis; Filosofia; Educação; Filosofia da educação; Antropologia filosófica

Abstract

This article aimed to highlight the reasons for a criticism by the Irish writer Clive Staples Lewis (1898-1963) towards the direction of youth education in Europe, notably in the United Kingdom, in the 20th century. His criticism gained as his main thesis what the writer called “the abolition of man”, resulting from an educational system that promotes an alleged rationality that prevented the development of an intermediate element in the human being between the cerebral and the visceral. For Lewis, that intermediate element is the emotions that, well trained, endow the intellect with capacities to deal with the mere animal organism. For this purpose, our starting point in this work was outlined by the cut of a broader work, which consists of an exhibition that, in general, highlights some guidelines that point to the composition of a Philosophy of Education in C. S. Lewis. We seek to collect, initially, the elements of a philosophical anthropology, collected directly, by an interpretative procedure, from the vast work of the author in question, particularly The Abolition of Man, Pure and Simple Christianity, The Weight of Glory, Christian Reflections, The Four Loves, Letters from a Devil to His Apprentice, God in the Dock, Ethics to Live Better, Christian Reflections, among others. In addition to these texts used as a direct source, we also take the work of Gabrielle Greggersen, entitled The Philosophical Anthropology of C. S. Lewis, where the author makes an interpretive incursion into the author’s fictional literature texts, as well as the works biographies of Alister MacGrath, Conversing with Lewis and The Life of C. S. Lewis, in which the Irish philosopher’s life and work are richly detailed.

Keywords C. S. Lewis; Philosophy; Education; Philosophy of education; Philosophical anthropology

1 O itinerário escolar de C. S. Lewis como contexto da formação de sua crítica educacional

Faz-se necessária uma apresentação, mesmo que breve, do itinerário formativo- escolar do autor tratado neste artigo, o escritor irlandês nascido em Belfast, batizado com o nome de Clive Staples Lewis (1898-1963), que, segundo Greggersen (2001, p. 11), é “considerado um dos maiores críticos literários, escritores de obras de ficção, filósofo e teólogo cristão do século XX”. É sabido que foi também professor universitário tanto em Oxford quanto em Cambridge, onde desenvolveu atividades como ensaísta e estudioso das literaturas medieval e renascentista.

Dentre as obras de ficção produzidas pelo autor em questão e que lhe garantiram fama mundial, figura a afamada Crônicas de Nárnia, escritas entre 1949 e 1954. Essa obra foi traduzida para mais de 40 idiomas, com um número aproximado de cópias vendidas na casa dos 120 milhões, de forma que tal produção recebeu (e recebe ainda hoje), adaptações para rádio, televisão, cinema e teatro. Comumente é pelas crônicas que Lewis é conhecido. Porém, foi também autor de inúmeras obras com conteúdos filosóficos e teológicos, todas muito bem-articuladas em termos argumentativos, tomando, como ponto de partida, problemas de sua própria contemporaneidade.

Dentre essas obras, podemos destacar, com o respectivo ano de publicação: Cristianismo puro e simples (1952); Carta de um diabo a seu aprendiz (1942); Reflexões cristãs (1967); Ética para viver melhor (1985); Os quatro Amores (1960); Alegoria do amor (1936); O peso da glória (1949); A abolição do homem (1943), Um experimento em crítica literária (1961), Como ser cristão (1967); A imagem descartada (1964); Anatomia de uma dor (1961); O problema do sofrimento (1940); Surpreendido pela alegria (1955) e outras mais.

Nascido como segundo filho do advogado Albert James Lewis (1863-1929) e da professora primária, filha de um pastor, Florence Augusta Lewis (1862-1908), o menino Lewis viveu no seio de uma família cristã,1 segundo McGrath (2013, loc. 691),3 com uma evidente sensação de estabilidade. Na sua primeira infância, mesmo que o próprio Lewis (1998, p. 17) tenha afirmado que ela sequer fora inventiva e que vivia em sua lembrança como um período de felicidade monótona e prosaica, não despertou nada da pungente nostalgia com que se recordava de sua não menos feliz meninice.

Pelo que se lê do breve e nostálgico relato acima e, malgrados os sentimentos negativos da infância, o pequeno Lewis procurou se cercar de elementos que o ajudariam a cultivar sua imaginação, que o tornaria o grande escritor ficcional que se tornou, ora apropriando-se de bons livros e boas leituras, ora degustando boas histórias e narrativas contadas principalmente por seu pai, e ainda compartilhando das brincadeiras com o irmão Warren Lewis (1895-1973). Esse deleite, em momentos raros, se firmou um pouco mais quando a família se mudou para outra residência, a afamada “casa nova”, pelos idos de abril de 1905. Segundo McGrath (2013, loc. 570), aí os “irmãos Lewis tinham toda a liberdade de vagar pela vasta residência e deixar que sua imaginação a transformasse em reinos imaginários e terras estranhas”. Mesmo assim, sentimentos de inquietante solidão eram experimentados por Lewis, que, mesmo vivendo cercado de pessoas amadas e com quem conversar, ouvindo boas histórias, alimentava intuitivamente a ideia de que, no mar de calmarias, havia a possibilidade de turbulências. Talvez já intuísse, enquanto era criança, o que,, posteriormente acabaria por entender em fase adulta, que, segundo ele, “não é a felicidade tranqüila, mas a alegria momentânea que glorifica o passado” (LEWIS, 1998, p. 16).

O primeiro exemplo da vulnerabilidade sentida por Lewis deu-se com a separação de seu irmão, enviado à escola, porque o pai, Alber, pleiteava, conforme afirma McGrath (2013, loc. 607), “garantir boas perspectivas para o futuro de seus filhos”. Outro acontecimento na vida de C. S. Lewis que lhe fez ter certeza da aludida instabilidade experimentada, já desde a mais tenra infância, foi a morte de sua mãe, em 1908, quando o pequeno contava apenas com 10 anos de idade.

Ao que se sabe, isso provocou ainda mais seu afundamento naquele estado de isolamento e solidão, conforme aludido acima. Como o próprio Lewis afirmara, “com a morte de minha mãe, toda a felicidade serena, tudo o que era tranqüilo e confiável, desapareceu de minha vida” (LEWIS, 1998, p. 28).

Tal situação de dor se agravou ainda mais pela iniciativa do pai de Lewis em enviá-lo ao internato. Sequer havia se recuperado do anterior tormento e foi forçado a viver uma experiência dolorosa, considerada por ele próprio, como Lewis, desastrosa, conforme atestada por Greggersen na citação que segue.

De fato, desde menino, Lewis teve sua vida marcada pela dor. A morte de sua mãe, quando ele tinha 10 anos de idade, não foi uma experiência realmente religiosa, mas certamente tão negativa que acabou infligindo nele um realismo cético, que o levou a abandonar o Cristianismo, depois de experiências escolares desastrosas sofridas num colégio interno da Inglaterra

(GREGGERSEN, 2001, p. 19).

Para Lewis a experiência de ser enviado à escola foi comparada àquela de ser enviado a um campo de concentração. É significativo que, em sua narrativa sobre as primeiras impressões do ambiente escolar para onde fora enviado, Lewis (1998, p. 33) tenha apontado que “[...] o único fator estimulante no sistema de ensino eram algumas varas já gastas, penduradas na verde cornija de ferro da lareira dentro da única sala de aula”.

O espírito de Lewis encarou essa passagem da vida escolar como desperdício de tempo, bem como de quase anulação dos pendores intelectuais que havia cultivado na casa de seus pais. O excerto seguinte nos dá o relato apropriado do autor.

Intelectualmente, o tempo que passei na escola do Velho foi quase desperdiçado por completo; se a escola não tivesse fechado, e se eu tivesse ficado ali mais dois anos, isso provavelmente teria selado para sempre meu destino de estudante. [...] Houve também uma grande decadência na minha vida imaginativa. Durante muitos anos a Alegria (na forma como a defini) não esteve apenas ausente, mas esquecida. Minhas leituras se restringiam a coisas imprestáveis

(LEWIS, 1998, p. 42).

Depois desse período traumático em uma escola inglesa, o pai de Lewis o transferiu para uma escola irlandesa na cidade de Belfast, um internato denominado Campbell College, que distava apenas uma milha de Little Lea. Em relação ao período em que ele ficou nesse estabelecimento de ensino, conforme relata McGrath (2013, loc. 804), “não foi um período infeliz para Lewis. De fato, ele parecia ter desejado que a nova escola fosse definitiva. Seu pai, porém, tinha outros planos”. Pelo recorte que segue, podemos comprovar isso com as próprias palavras do autor em questão.

Na metade do meu primeiro período letivo em Campbell, acabei adoecendo e fui levado para casa. Meu pai, por razões que não sei ao certo, ficara insatisfeito com o colégio. Também se deixara atrair por relatos sobre uma escola preparatória na cidade de Wynver, embora nada ligada ao Wynver College; mas o atraiu especialmente a conveniência de que, se eu fosse para lá, eu e meu irmão poderíamos fazer juntos o trajeto. Assim, tive um abençoado período de seis semanas em casa, [...] e, depois disso, uma nova aventura

(LEWIS, 1998, p. 61).

A nova aventura à qual Lewis se referiu foi sua ida à escola preparatória, entre os anos de 1911 e 1913, em Wynver – Inglaterra. Nesse período, Lewis conseguiu desfazer as primeiras impressões negativas que teve de suas experiências escolares e, por consequência, da nação inglesa como um todo. Mas, segundo ele mesmo afirmara, “foi a cidade de Wynver que pôs fim à rixa que eu tinha contra a Inglaterra” (LEWIS, 1998, p. 66). O trecho que segue informa como a nova escola mudou sua visão:

É aqui que começam de verdade os meus estudos. O diretor, a quem chamávamos Tubbs, era um professor inteligente e paciente; sob a orientação dele, rapidamente avancei no latim e no inglês, e até comecei a ser visto como um candidato promissor a uma bolsa de estudos no colégio secundário

(LEWIS, 1998, p. 65).

Porém, outro fato relevante marcou a vida de Lewis nesse período, algo que aconteceu a ele e que o mesmo considerou de muita importância. Conforme se expressou Lewis (1998, p. 65), “[...] ali, também, algo muito mais importante aconteceu comigo: deixei de ser cristão”. Mas o que aconteceu com Lewis no período da Escola de Chartres certamente tinha raízes anteriores, e ele sequer tinha condições de precisar suas origens, bem como suas possíveis causas.

A cronologia desse desastre é um tanto vaga, mas sei com certeza que não começara ainda quando fui para lá, e que o processo se completou pouco depois de eu deixar a cidade. Tentarei definir o que sei das causas conscientes, e aquilo que desconfio das inconscientes

(LEWIS, 1998, p. 65).

Para esclarecer tal situação, Lewis citou alguns fatores que ajudaram a desencadear todo o processo de sua apostasia, apesar de que ele se inclinava a achar que as sementes do pessimismo que o desorientava já tinham sido plantadas antes mesmo da morte de sua mãe (LEWIS, 1998, p. 70). Dentre os fatores que ele apontou na sequência da leitura de seu Surpreendido pela alegria, figuram conversas travadas com a inspetora da escola, denominada por ele de “Senhorita C”, que se debatia nos “labirintos da teosofia, das doutrinas rosa-cruzes, do espiritismo, enfim, mergulhada em toda a tradição ocultista anglo-americana” (LEWIS, 1998, p. 66).

Lewis viu desatarem-se, em definitivo, os frouxos laços de sua crença religiosa. Segundo afirmou, tudo passou a ser objeto de especulação e, paulatinamente, foi trocando o “eu creio” pelo “pensa-se que” (LEWIS, 1998, p. 67). Segundo ainda o autor de Crônicas de Nárnia, havia, nele, uma propensão a abandonar a fé religiosa porque algumas exigências tanto internas quanto externas, transformaram sua devoção em um fardo quase intolerável (LEWIS, 1998, p. 67). O trecho, na sequência, ilustra bem a situação e remete a outro fator da desestruturação da fé vivida por Lewis.

O ridículo fardo dos falsos deveres na oração, é claro, motivaram inconscientemente o desejo de me livrar da fé cristã; porém mais ou menos ao mesmo tempo, ou um pouco depois, surgiram causas conscientes de dúvida. Uma delas veio da leitura dos clássicos. Aqui, especialmente em Virgílio, o leitor se via diante de um amontoado de ideias religiosas; e todos os professores e editores assumiam como pressuposto básico o conceito de que essas ideias religiosas eram completa ilusão

(LEWIS, 1998, p. 69).

A leitura dos clássicos provocou diversas reflexões, notadamente no âmbito religioso, de forma que conduziu C. S. Lewis a questionar a posição central de sua religião. Encontrou um inconformismo ao analisar que, entre um milhar de religiões existentes, a sua se colocava como verdadeira e sequer dava oportunidades para o entendimento das outras. Como ele mesmo questionou: “Mas com base em que eu poderia crer nessa exceção? Ela obviamente era, num sentido mais geral, o mesmo que todas as outras. Por que, então, era tratada de modo tão diferente? Será, afinal, que eu precisava continuar tratando-a de modo diferente?” (LEWIS, 1998, p. 69).

Lewis observou que as ideias religiosas dos antigos eram tratadas pelos estudiosos e também pelos seus professores contemporâneos como “meras ilusões”. Que dizer então das ideias religiosas de hoje? Será que elas não eram simplesmente ilusões modernas, a contrapartida contemporânea de seus antepassados, “uma espécie de absurdo endêmico no qual a humanidade tendia a tropeçar?” o cristianismo era apenas uma dentre mil religiões, todas se proclamando verdadeiras. Nesse caso, por que ele deveria crer que esta era verdadeira, e as outras falsas?

(McGRATH, 2013, loc. 855-856).

Refletindo, posteriormente, sobre essa fase de sua vida, à qual ele denominou de “fase da meninice”, Lewis comparou-a a uma “idade das trevas”.3 Lembrando que o mesmo não se referia à forma preconceituosa como é encarada a fase medieval da história humana, conforme algumas visões historiográficas. Conforme foi definida pelo próprio Lewis (1998, p. 77-78), “a meninice se estende como um território estranho, no qual tudo (inclusive nós mesmos) é ganancioso, cruel, ruidoso e prosaico, no qual a imaginação dorme, e as sensações e ambições mais vulgares ficam incansavelmente, e até maniacamente, despertas”. Entretanto, descortinava-se, aos poucos, um conjunto de possibilidades que, gradativamente, iriam promover o que Lewis considerou o fim do longo e frio inverno em que sua vida havia mergulhado e que ele considerou o início de sua renascença.

Esse longo inverno se dissipou num único instante, mais ou menos no início do período que passei em Chartres. A primavera é a imagem inevitável, mas o processo não foi gradual como as primaveras da Natureza. Foi como se o próprio Ártico, todas as fundas camadas de gelo secular se transformassem numa paisagem de relva e lírios e pomares em flor, tomada pelo canto dos pássaros e empolgada pelas torrentes. Posso como tocar esse momento; não me lembro de nenhum outro fato que eu conheça tão bem, embora não possa datá-lo. Alguém deve ter deixado na sala de aula um periódico literário – The Bookman, talvez, ou o Times Literary Supplement. Meus olhos caíram sobre um título e uma ilustração, distraidamente, nada esperando. Um momento mais tarde, como diz o poeta: “O céu estava mudado”

(LEWIS, 1998, p. 78).

No extrato acima, Lewis se referia à leitura de trechos da peça O crepúsculo dos deuses, de Wagner, com ilustrações de Arthur Rackham. Conforme o próprio Lewis conta, fora “engolfado pela pura borealidade” (1998, p. 79), e, segundo ele mesmo, arrematou tal fato, despertou sua imaginação e o fez sentir algo que já experimentara a Alegria.4

[...] a visão de espaços imensos, claros, cobrindo o Atlântico no crepúsculo interminável do verão boreal; o afastamento, o rigor [...] e quase na mesma hora eu soube que já tinha visto isso antes, havia muito, muito tempo [...]. Nesse salto de volta ao meu próprio passado, despertou-se imediatamente, quase como dor profunda, a lembrança da própria Alegria, a consciência de que eu já vivia havia anos na ausência daquilo que tive um dia, de que estava voltando finalmente do exílio e das terras desérticas ao meu próprio país

(LEWIS, 1998, p. 79).

Ao final do verão do ano de 1913, Lewis viveu outro capítulo de sua vida escolar, pois fora agraciado com uma bolsa de estudos clássicos no Wyvern College, ou Malvern College, ou simplesmente Coll. Segundo McGrath (2013, loc. 881), “Lewis apresenta o Malvern College como outro desastre”. Na verdade, essa apresentação negativa se deu em virtude de alguns códigos de valores tanto formais quanto informais, aos quais nosso biografado não se adequava.

Lewis declara ter se tornado vítima do sistema conhecido como fagging, que determinava que alunos mais novos atuassem como serviçais dos alunos mais velhos (os “Bloods”). Quando um menino fosse detestado pelos colegas e pelos mais velhos, ele seria atormentado e explorado desse modo. Esse era um costume nas escolas particulares inglesas da época. O que a maioria dos meninos aceitava como parte de um tradicional rito de iniciação para a vida adulta era visto por Lewis como uma forma de trabalho forçado. Lewis sugeriu que os serviços que os meninos mais novos supostamente deviam prestar aos colegas mais velhos incluíam, segundo boatos (jamais comprovados), favores de ordem sexual, algo que ele considerava horripilante

(McGRATH, 2013, loc. 893-894).

Além disso, Lewis denunciou certa conivência do sistema com essas práticas e com esse, em geral, como promovedor de rivalidades, arrogâncias e fracassos. Para Lewis (1998) isso era fruto direto do chamado “esnobismo cronológico”, que tomou conta do sistema educacional e impôs um modismo cultural-intelectual em que valores e ideias antigos deveriam ser desprezados.

Pois bem, Lewis está dizendo que só ideias velhas são boas e que as novas ideias estão sempre erradas? Não. Ele está nos pedindo que sejamos críticos. As novas ideias precisam ser vistas com cuidado. Elas podem ser boas ou ruins. Mas as ideias não são automaticamente boas porque são novas. Da mesma forma, muitas – mas não todas – ideias antigas têm valor permanente. Elas se provaram através dos séculos e continuarão a ser importantes no futuro. Precisamos descobrir as ideias e os valores que têm importância duradoura e nos agarrar a eles.

(McGRATH, 2014, p. 140-141).

A citação seguinte ilustra bem essa condição e nos permite compor o relato de um jovem e angustiado estudante diante de uma experiência nebulosa em face de determinado modelo de educação.

Ficando cada vez mais cansado daquilo tudo, no corpo e na mente, passei a detestar o Wynver. Não notava então o verdadeiro mal que o colégio me fazia. Estava gradualmente ensinando-me a ser um jovem pretensioso; quero dizer, pretensioso intelectualmente – ou (no mau sentido), um intelectual

(LEWIS, 1998, p. 107).

Certo é que, para fugir disso, fez uma série de apelos a seu pai, conseguindo, posteriormente, a atenção devida, e o mesmo decidiu entregá-lo nas mãos de um tutor, o senhor Kirkpatrick, conhecido na família de Lewis pelo apelido de o “Grande Knock”, dado que fora professor de Albert Lewis e, posteriormente, de Warnie, o irmão mais velho, que, por esse tempo, já estava nas fileiras da escola militar.

O período em questão, em que Lewis fora viver na residência de Kirkpatrick, era 1914,5 mais precisamente, a partir do mês de setembro. Segundo McGrath (2013, loc. 903), quando o pai de Lewis persuadiu Kirkpatrick a se tornar o tutor pessoal de seu filho mais novo, o velho professor se sentiu lisonjeado pelo fato já aludido no parágrafo anterior. O relato de Lewis sobre seu tutor nos dá uma ideia da influência decisiva exercida no espírito daquele jovem prestes a completar 16 anos.

Num dia de setembro, depois de cruzar o mar até Liverpool e chegar a Londres, dirigi-me a Waterloo e viajei até Great Bookham. [...]. Em Bookham, fui recebido pelo meu novo professor – “Kirk” ou “Knock”, ou o “Grande Knock”, como eu, meu pai e meu irmão o chamávamos. Ouvíamos falar dele desde que nos conhecíamos por gente, e eu, portanto, tinha uma ideia bem clara daquilo que me esperava

(LEWIS, 1998, p. 137-138).

De acordo com McGrath (2013, loc. 1.003-1.011), “Kirkpatrick foi um homem extraordinário e merece o crédito da evolução intelectual de Lewis, particularmente do fomento de uma abordagem altamente crítica de ideias e fontes”. Dessa forma, desde seu primeiro encontro com seu professor, mesmo no mais informal dos diálogos que travava com o mestre, Lewis compreendeu que o tempo todo era forçado a desenvolver o pensamento crítico que, conforme McGrath (2013, loc. 1.011), era “baseado na razão e em provas, e não em intuições pessoais”. A respeito disso, segue um depoimento do próprio Lewis.

Se jamais um homem chegou perto de representar uma entidade puramente lógica, esse homem foi Kirk. Nascesse mais tarde um pouco, teria sido um positivista lógico. A ideia de que os seres humanos devessem exercitar o aparelho fonador por qualquer motivo que não fosse o de comunicar ou descobrir a verdade era para ele totalmente absurdo. O comentário mais inocente era tomado por chamamento ao debate. Logo percebi os valores distintos das suas três exclamações preliminares. [...] “Espere aí” – emitida a fim de interromper uma torrente verborrágica que não mais podia ser tolerada um momento sequer; [...] “Desculpe” – introduzia uma correção [...]. A mais encorajadora de todas era a “Entendo”. Significava que sua observação era significativa e requeria apenas a refutação

(1998, p. 140-141).

A respeito dessa postura intelectual de seu professor, que seguia sempre um grupo de questionamentos, Lewis (1998, p. 141) os descreveu na seguinte sequência: “Você leu isso? Estudou aquilo? Tinha alguma prova estatística? Que prova apresenta tirada de sua própria existência?” De acordo com o próprio Lewis (1998, p. 141), isso representou “carne boa e cerveja forte”. Segundo McGrath, a ação do mestre sobre o espírito do jovem pupilo extrapolava até mesmo esse jogo dialético, pois o ensinou a ler os clássicos na língua original.

O resumo que Lewis fez de seus mentores mais importantes merece análise: “Smewgy me ensinou Gramática e Retórica, e Kirk me ensinou Dialética”. Na visão de Lewis, ele estava aos poucos aprendendo como empregar as palavras e desenvolver argumentos. Mas a influência de Kirkpatrick não se limitou às habilidades dialéticas de Lewis. O velho mestre forçou seu pupilo a aprender línguas, vivas e mortas, usando o simples expediente de obrigá-lo a usá-las

(McGRATH, 2013, loc. 1.024).

A admiração de Lewis por Kirkpatrick foi se dando em escala sempre crescente, ainda mais quando o racionalismo do mestre alimentava o ateísmo que nele nascera em anos recentes. Segundo McGrath (2013, loc. 1.037), “Lewis tinha certeza de que seu ateísmo estava ‘plenamente desenvolvido’ antes de ir para Bookham; a contribuição de Kirkpatrick foi lhe proporcionar mais argumentos em defesa de sua posição”.

Por esse período, Lewis consolidou uma amizade com Arhur Greeves, que, posteriormente, exerceria muita influência na sua reconversão ao Cristianismo. No início da amizade, ficou registrado que Lewis colheu dele o gosto por bons e velhos livros, notadamente os romancistas ingleses clássicos, também pela mitologia, bem como o amor pela simplicidade. O conjunto de características, no próximo excerto, dá bem uma síntese do aprendizado colhido dessa amizade.

Foi com essa bagagem cultural e após esse tortuoso percurso formativo que Lewis, em 4 de dezembro de 1916, viajou para Oxford para fazer os exames de seleção. A partir daí, Lewis trilha com êxito o caminho da universidade até se tornar membro do corpo docente. Mas foi sua experiência escolar que lhe permitiu entender que educação é mudança, mas que essa deverá ser para melhor.

2 Uma antropologia filosófica abraçada por Lewis e a visada de sua crítica

Ainda no período enquanto esteve afastado da fé cristã, C. S. Lewis refletiu acerca da inquietante situação humana relacionada aos desejos e os diversos esforços por satisfazê-los. A partir disso, começou a reconsiderar a ideia de que o ser humano constitui-se, inevitavelmente, como um ser insatisfeito e, diante das efêmeras e ininterruptas satisfações mundanas, não chega a encontrar o contentamento pleno disso, e, portanto, a despeito do que escolha, tenderá a continuar na mesma situação. Não que Lewis tenha feito oposição a essas satisfações do plano terreno, no sentido de negar tal necessidade, pois, conforme declarou o próprio Lewis (2017b, loc. 2023), “tenho de cuidar, por um lado, para nunca desprezar ou ser ingrato por essas bênçãos terrenas e, por outro, nunca tomá-las equivocadamente por algo mais do que elas são: meras cópias, eco ou miragem”. Afinal, para reforçar o tratamento de não ingratidão a essas bênçãos, mais do que ninguém, Lewis demonstrava que apreciava bons vinhos, um bom chá, uma boa cerveja acompanhada de boas carnes, muitos bons livros e conversas agradáveis e alongadas com velhos amigos, entre tragos e boas baforadas.

Apenas o escritor tinha consciência do duplo erro que era, por um lado, negar as chamadas bênçãos terrenas e, por outro, a elas ficar adstrito e, assim, ficar impedido de enxergar uma necessária e urgente transcendência da angustiante condição humana. O que Lewis divisou bem foi a realidade dessa situação terrena da humanidade, capaz de envolver totalmente o ser humano, por seu próprio esquecimento, e a possibilidade real de recomposição daquilo que de divino há no ser humano, reavivado e resgatado pelo exercício da memória e imaginação.

Exemplificamos como Lewis demonstra a forma como opera a imaginação num esforço de rememorar a realidade.

Essas coisas – a beleza, a recordação de nosso próprio passado – são boas imagens daquilo que realmente desejamos, mas, se forem confundidas com a coisa em si, tornam-se ídolos mudos, partindo o coração de seus adoradores. Eles não são a coisa em si; são apenas a fragrância de uma flor que nunca encontramos, o eco de uma melodia que nunca ouvimos, notícias de um país que nunca visitamos

(LEWIS, 2017b, loc. 374).

Esse, aliás, é o ponto de partida de Lewis quanto à crítica à educação contemporânea, alimentada pelo materialismo e moldada por um ideal de razão que anula as outras faculdades humanas capazes de despertar o ser humano de seu adormecimento, principalmente no que diz respeito a questões de fé.

Quase todo o nosso sistema educacional tem sido direcionado no sentido de silenciar essa tímida e persistente voz interior; quase todas as nossas filosofias modernas têm sido realizadas para nos convencer de que o bom ser humano pode ser encontrado neste mundo

(LEWIS, 2017a, loc. 383).

De acordo com Davis (2006, p. 112), a crítica de Lewis ao modelo educacional de sua época dizia respeito ao seu principal produto, um mundo moralmente atrofiado, a exemplo daquele retratado em Crônicas de Nárnia, na descrição do Colégio Experimental.

O mundo moralmente atrofiado do Colégio Experimental não era uma fantasia louca inventada por Lewis para dar aos seus personagens algo a vencer. Era, isso sim, uma tentativa de reproduzir os resultados de anos de esforços mal dirigidos não só para levar “a sério” a ciência, mas também aceitá-la sem crítica como retrato final da realidade. No início da década de 1900, a civilização ocidental já vinha colhendo os frutos do progresso científico por mais de dois séculos. Para muitos, parecia que tudo seria, cedo ou tarde, explicado pela ciência. O sobrenatural podia ser dispensado, tido como material de fantasia infantil

(DAVIS, 2006, p. 112).

Reforça-se, assim, em Lewis, a compreensão de que, faça o que fizer ou aconteça o que acontecer, no âmbito do humano, persistirá, sempre nele, um sentimento de pertencer a algo mais. Isso que em Lewis indica a evidência de uma lei moral interna no indivíduo deveria ser alimentado por um modelo educacional, pois pensar diferente seria um grande equívoco.

Antes de a ciência ser elevada a uma posição de autoridade máxima, um dos principais objetivos da educação era o desenvolvimento moral: ajudar os alunos a se tornarem moralmente bons. O bem moral não tinha a ver apenas com as aparências das coisas, e sim com o modo como elas são de fato (ou não são no caso da maldade). Tornar-se bom significa adquirir virtudes como coragem, sinceridade e caridade

(DAVIS, 2006, p. 112).

Interpretando Lewis, Pipper (2017, loc. 382) afirmou que é esse sentimento de pertença a algo, para além do humano, que evidencia a partilha da Razão Absoluta pela própria racionalidade humana.

Sua experiência ao longo da vida, recorrente, com o anseio incapaz de ser explicado neste mundo, o levou além do mundo, até Deus e, por fim, a Cristo. E a sua experiência ao longo da vida com a razão e a lógica o levou a perceber que a verdade, a beleza, a justiça e a ciência não teriam validade alguma se não houvesse um Deus transcendente, a raiz de todas elas

(PIPPER, 2017, loc. 432).

As reflexões advindas da referida e inquietante condição citada acima conduziram Lewis, de forma gradativa e, depois mais fortemente, a compreender que, se a esses anseios profundos nada daqui poderia satisfazer em definitivo, então, seria plausível que nele se fortalecesse a convicção cristã de que a única explicação seria a da conexão do ser humano com Deus, conforme ele mesmo afirmou em seu Cristianismo puro e simples, de acordo com o este excerto.

Ao descobrir em mim um desejo que nenhuma experiência desse mundo poderia satisfazer, a explicação mais provável é que eu tenha sido feito para outro mundo. Se nenhum dos meus prazeres terrenos consegue me satisfazer, isso não prova que o universo é uma fraude. Provavelmente os prazeres terrenos nunca tivessem tido a intenção de satisfazer estes prazeres, mas apenas de despertá-los para levá-lo à coisa certa

(LEWIS, 2017b, loc. 2.023).

É essa a compreensão inicial que devemos seguir se quisermos colher uma antropologia filosófica a partir da obra de C. S. Lewis. Algumas ideias que a corroboram foram apresentadas a partir de alguns textos do próprio escritor em questão. Um deles é uma metáfora sobre o jardim, exposto no Capítulo 5 da obra Os quatro amores, intitulado Caridade, e outro, um texto sobre o Certo e o errado, componente da primeira parte do livro: Cristianismo puro e simples. Em ambos, Lewis compartilha as teses da filosofia cristã, notadamente da Patrística Agostiniana, na compreensão de que da Graça necessita a vontade para ser livre e de que, segundo Santo Agostinho (1995, p. 20), “na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna”. No primeiro texto, C. S. Lewis entende o ser humano como um jardim que necessita de cuidados, e que, portanto, não prosperará se for deixado a si mesmo. Um jardim necessita de um jardineiro. No segundo, ele argumenta, conforme reforçado por McGrath (2014, p. 26), sobre algumas de nossas experiências que estão cheias de pistas do significado do universo, apontando para além das fronteiras da razão, para os sinais da transcendência que Lewis chamou de “Alegria”. A primeira dessas pistas é o próprio Universo, do qual obtemos informações externas. Mas há uma segunda, a partir da qual colhemos informações internas, com um testemunho mais preciso, no próprio ser humano. Esta última, segundo Lewis (2017b, loc. 660), “é uma prova melhor do que a outra, porque se trata de informação interna”.

Há uma coisa, e somente uma, em todo o universo, sobre a qual sabemos mais do que poderíamos extrair da observação externa. Essa coisa é o ser humano. Não nos limitamos a observar os homens meramente de fora, nós somos seres humanos. Nesse caso temos, por assim dizer, informações internas; nós o conhecemos “por dentro”. Por esse motivo, sabemos que os homens estão debaixo de uma lei moral que não foi criada por eles e de que não conseguem esquecer, mesmo que tentem, e à qual sabem que devem obedecer

(LEWIS, 2017b, loc. 584).

Assim, entendeu Lewis (2017b) que o ser humano é o ser que precisa encontrar o “caminho de casa”, mas que não o encontrará sem, antes, resolver certas pendências urgentes e desenvolver as potencialidades da alma, plantadas em nós como nossa natureza, como a entendiam filósofos antigos e filósofos medievais, notadamente Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

Quando Deus plantou o jardim da nossa natureza humana, fez com que florescessem e frutificassem amores que nele crescessem, e também configurou nossa vontade para “vestir” esses amores. Comparado com eles, o jardim é seco e frio. E a não ser que a graça de Deus venha de cima, como a chuva e os raios do sol, usaremos essa ferramenta para um propósito muito limitado. Mas seus serviços laboriosos – em grande parte negativos – são indispensáveis. Se eles foram necessários quando o jardim ainda era um paraíso, quanto mais agora quando o solo se tornou amargo e as piores ervas daninhas são as plantas que melhor crescem nele? Contudo, que nunca nos seja permitido trabalhar com um espírito arrogante e estoico. Enquanto capinamos e cortamos, sabemos muito bem que aquilo que estamos arrancando e cortando está cheio de um esplendor e vitalidade que nossa vontade racional jamais poderia suprir de si mesma. Liberar esse esplendor, deixar que seja plenamente o que está tentando ser, ter árvores altas em lugar de arbustos retorcidos e maçãs doces em vez de frutas azedas é parte de nosso propósito

(LEWIS, 2017b, loc. 1.716).

A antropologia filosófica defendida por Lewis procura os elos do ser humano com o divino. Segundo Lewis, há muitas mensagens em muitos pacotes, mas, dentre eles, há um que somente o próprio ser humano está autorizado a abrir.

O único pacote que estou autorizado a abrir é o da humanidade. Quando faço isso, especialmente quando abro esse ser humano particular chamado Eu, descubro que não existo por mim mesmo, que estou debaixo da lei; que alguém ou alguma coisa deseja que eu me comporte de certa maneira. [...] Devo ter a expectativa de supor que haja um remetente em ambos os casos, um Poder por trás dos fatos, um Diretor, um Guia

(LEWIS, 2017b, loc. 601-609).

Portanto, o pensamento de Lewis expressa uma metafísica na melhor acepção da palavra; afinal, segundo ele mesmo, “tudo o que obtive até aqui é Algo que está dirigindo o universo e que aparece em mim como uma lei que me impele a fazer a coisa certa e que me faz sentir responsável e desconfortável quando ajo mal” (LEWIS, 2017b, loc. 609). Por conseguinte, o pensamento de Lewis se completa com a revelação de uma ética pautada pela objetividade da lei do “certo e do errado”, ou “Lei da Natureza Humana”, que, segundo o próprio escritor, versa sobre aquilo que o ser humano deve fazer a partir de um senso interno de obrigação moral de fazer a coisa certa.

Os seres humanos precisam ser treinados a obedecer às intuições morais antes de as terem e anos antes de adquirirem o raciocínio necessário para discuti-las, caso contrário se corromperão antes da época adequada à discussão. Essas intuições morais básicas são o único elemento da consciência que não se pode refutar, se a diferença de opinião não fizer de uma das partes um idiota moral, então, a questão não implica intuição. As intuições morais básicas são a preferência última da busca por amor em lugar de ódio e da felicidade em vez do sofrimento

(LEWIS, 2017b, loc. 106).

Os indícios expostos acima são apresentados por Lewis como os mais fortes a respeito de sua desconfiança de que há algo para, além de nós, que fundamenta a concepção de ser humano em Lewis e permite entender as diretrizes apropriadas para pensar numa concepção de educação contrária à abolição do ser humano.

3 A educação pensada por C. S. Lewis para fazer frente à abolição do homem

A ideia de uma educação pensada por C. S. Lewis está contida em diversos textos do escritor, notadamente no livro A abolição do homem, onde são tecidas críticas a algumas ideias, então em voga no século XX, cujos possíveis efeitos foram apontados por Lewis como danosos à educação dos jovens. Tais críticas partem da análise de um livro escolar cujos autores,6 sutilmente, procuram identificar, por exemplo, enunciados de valor a meras subjetividades, e não a tradução de uma objetividade que procura expressar o real. Também Lewis critica a promoção de uma linguagem pobre, pelos autores, incapaz de expressar emoção, admiração e prazer diante de certos eventos ou em certas experiências.

Até aqui, parti do pressuposto de que professores como Gaio e Tito, não têm uma visão geral do que estão fazendo, portanto, não pretendem que sua ação gere consequências de maior alcance do que de fato terá. É claro que há outra possibilidade. O que eu chamei (partindo do pressuposto de sua concordância com certo sistema tradicional de valores) de “primata civilizado” e de “homem urbano mesquinho” pode ser, precisamente, o tipo de pessoa que eles, de fato, querem produzir. Eles podem realmente querer defender que os sentimentos humanos comuns sobre o passado, ou animais, ou grandes quedas d’água sejam contrários à razão e desprezíveis, devendo ser erradicado

(LEWIS, 2017a, loc. 175).

O objetivo da educação para Lewis (apudMcGRATH, 2014, p. 144) reside numa ampliação de nossa visão, ou, de outro modo, no próprio resgate de nossas limitações, e o despertar das emoções faz parte disso. É por isso que, ainda com relação à crítica aos autores do “livro verde”, afirmou Lewis (2017a, loc. 193) que, na verdade, tais autores eram porta-vozes de uma tendência baseada em um senso comum racionalista que buscava menosprezar a emoção, promovendo aquilo que ele denominou de homens sem peito, ou seja, tolhidos de sua capacidade de se emocionar e de demonstrar sentimentos.

Para cada aluno meu que precisa ser protegido contra um leve excesso de sensibilidade, há três que precisam ser despertos do sono da fria vulgaridade. A tarefa do educador moderno não é derrubar florestas, mas irrigar desertos. A defesa certa contra sentimentalismos falaciosos é incutir sentimentos corretos. Quando ajudamos a sensibilidade dos nossos jovens a morrer de inanição, o que fazemos é só torná-los presas mais fáceis do propagandista. Pois a natureza faminta será vingada e um coração duro não é proteção infalível contra a insensatez

(LEWIS, 2017a, loc. 193).

Condizente com a visão dos filósofos clássicos, C. S. Lewis pensa na educação nesses termos, abrindo o leque das possibilidades metodológicas, descortinando alternativas para a melhor maneira de redirecionamento do olhar. Assim, ele vai na direção de que a literatura, como recurso imaginativo, é elemento de experiências e reflexões, abre nossos olhos, oferecendo-nos novas perspectivas sobre coisas que podemos avaliar e adotar (MAcGRATH, 2014, p. 144). Segundo o próprio Lewis (apudMcGRATH, 2014, p. 144) havia afirmado, “meus próprios olhos não são suficientes para mim, vou ver por meio de outros. Lendo grande literatura, eu me torno mil homens e ainda permaneço eu mesmo”.

Lewis compreendeu a educação como transcendência, no sentido de ir além da forma de pensar, ou do olhar, a que estamos habituados. Lewis foi um crítico do rígido e formalista sistema escolar britânico de sua época, o que justifica sua busca por métodos não convencionais para o sistema, como é o caso do uso de obra de ficção.

Para Lewis, “o melhor método de ensino não é o dos nomes e das formalidades, mas dos exemplos, que deve ser aplicado como princípio comum unificador dos contos de fadas, mitos, parábolas, provérbios etc.” (GREGGERSEN, 2001, p. 41). Ainda segundo o filósofo relatado, “a educação consiste em promover mudanças e ajudar-nos a perceber que nem sempre estamos certos e que podemos obter uma compreensão da realidade mais profunda e melhor, experimentando o mundo da maneira dos outros” (McGRATH, 2014, p. 146). Ainda segundo o mesmo autor, “embora Lewis veja isso como característica do bom processo educacional como um todo, também o vê como importante para a educação dos cristãos, que precisam ir mais fundo e mais longe na fé” (McGRATH, 2014, p. 146).

A educação, para Lewis, sendo necessidade de ir mais fundo e ampliar nossa visão da realidade, é a possibilidade de experienciar maneiras de pensar e viver que as coisas nos proporcionam. Ele afirmou em A abolição do homem que “o dever do educador moderno não é o de derrubar florestas, mas o de irrigar desertos” (LEWIS, 2017a, loc. 196). Optando por um modelo educativo propagador de valores, sentimentos e emoções, em detrimento de um modelo propagandista de ideologia de uma suposta racionalidade, que alega estar “cortando pela raiz o crescimento parasitário da emoção, da autoridade religiosa, de tabus herdados, para que os valores ‘verdadeiros’ ou ‘autênticos’ possam emergir” (LEWIS, 2017a, loc. 283), Lewis apontou, como mencionado, que as obras literárias desempenham papel importante e funcionam como meio de descobertas de novos referenciais e de novos horizontes, inclusive no campo da Filosofia.

Para Lewis, o elemento sentimental é intermediário, aquilo que torna possível o homem enquanto tal, pois, segundo o próprio filósofo discorreu, na seção do livro referenciado, intitulada homens sem peito, o sentimento é indispensável dignitário de ligação entre o homem cerebral e o homem visceral. Segundo Lewis (2017a, loc. 306), “pode-se dizer que é por esse elemento intermediário que o homem é homem, pois pelo seu intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal”. Podemos reforçar a tese, então, de acordo com Mathis (2017, loc. 143), da insistência de Lewis de que o pensamento rigoroso e a afeição profunda não se contradiziam de fato, pelo contrário, apoiavam-se mutuamente.

Da mesma forma, segundo Macgrath (2014, p. 125), “Lewis vê a razão e a imaginação como existindo em uma relação colaborativa, não competitiva”. Ainda de acordo com o mesmo autor, “o explícito apelo de Lewis à razão envolve um apelo implícito à imaginação”. Para Lewis, a incapacidade racional de entender uma teoria possa residir na incapacidade imaginativa de captar o significado dela (MAcGRATH, 2014). O raciocínio imaginativo de Lewis preenche o abismo entre a modernidade e a pós-modernidade, insistindo que a razão e a imaginação têm força argumentativa porque ambas são parte de um todo maior.

4 Conclusão

Inicialmente, a partir das leituras das obras ficcionais de C. S. Lewis, foi possível perceber um direcionamento que apontava para a composição de uma filosofia da educação. Posteriormente, com a leitura de obras não ficcionais, daquelas que chamamos em seu conjunto de teológicas e filosóficas, foi possível uma aproximação maior, se não do intuito do escritor, pelo menos daquilo que fora revelado nas referidas obras, percebendo-se, nelas, uma metafísica e uma filosofia moral, salientando-se que muitas das questões aí pautadas e debatidas pelo escritor constam da tradição filosófica desde a Grécia. Tais obras revelaram, também, a filosofia da tradição cristã, seja em Santo Agostinho, seja em Santo Tomás de Aquino.

Segundo o próprio Lewis, essa tradição foi rompida em algum momento da história humana de modo que impactou a forma de pensar e de agir da humanidade. Lewis compreendeu que naquilo em que acreditamos (ou que nos ensinam a acredita) tem enorme impacto sobre nossos valores e nossas ações, sobre nossa vida e na vida da sociedade. Consequentemente, modificaram-se os processos de educação e, com essa mudança, alguns elos que não deveriam, nem mesmo poderiam ser rompidos, foram negligenciados.

Isso levou Lewis a refletir sobre o chamado “esnobismo cronológico”, alimentado por uma mentalidade que acreditava que toda ideia nova era automaticamente boa. Exemplo disso foi a adesão, no século XX, à eugenia, tida como progressista e científica.7 Lewis procura mostrar que ideias velhas não são boas apenas por serem velhas. Da mesma forma, não são boas pelo simples fato de serem novas, muito menos, ruins, por essa característica. Ele alerta que as ideias precisam ser vistas com cuidado, daí alertava para a necessidade de criticidade, que consistia em descobrir, nas ideias, os valores duradouros aos quais pudéssemos nos agarrar. Daí Lewis entendeu a educação como a expansão de nossa mente, e, não à toa, Lewis apostou no resgate dos valores da tradição.

De maneira geral, Lewis defendeu a recomposição de uma educação integral, no sentido de aliar a razão a outras prerrogativas da mesma forma humanas. Perguntar pelo propósito da educação é uma questão sobre a qual nossa vida e a vida da sociedade descansam. Por isso, Lewis rejeitou a tese de que a educação deve servir apenas a propósitos instrumentais. Para ele educar não é simplesmente ensinar aos estudantes certas habilidades.

No livro A abolição do homem, Lewis reforçou a tese do risco mortal que corria a própria natureza humana na era contemporânea, porque o modelo de educação advindo e instituído pelas matrizes modernas, inverteu e elevou os “valores da ciência” acima dos da moral, rejeitando, portanto, os valores morais objetivos, instalando a era científica em detrimento da era sapiente. Nesta última, a pergunta norteadora se dava em torno de como encontrar conformidade da alma com o mundo de modo a elevá-la à vida divina, cuja resposta seria por meio da oração, da virtude e do conhecimento.

Enquanto na primeira, a preocupação é em como adaptar a alma à realidade, e a pergunta central se dá em torno de conformar o mundo com meus próprios desejos e ambições, a resposta não poderia deixar de envolver o domínio total sobre a natureza e sobre os seres humanos, tomando a ciência, a tecnologia e o Estado como formas refinadas de mecanismos de poder e manipulação e, consequentemente, de perpetuação do domínio referido.

Seguindo algumas dessas diretrizes que apontavam ao caminho de uma filosofia da educação na obra de C. S. Lewis, colhemos, inicialmente, elementos da antropologia filosófica defendida pelo autor, colhidos diretamente da vasta obra com destaque para os textos da filosofia lewisiana, notadamente a partir dos livros A abolição do homem; Cristianismo puro e simples; O peso da glória; Reflexões cristãs; Os quatro amores; Cartas de um diabo a seu aprendiz; Deus no banco dos réus; Ética para viver melhor;, dentre outros.

Percebemos que a obra de Lewis está inserida na educação e, por isso, é possível também colher metodologias de ensino a partir de certas categorias utilizadas pelo autor em questão. Tema que ficará para ser delineado em trabalhos posteriores.

1Apesar dessa informação, deve-se entender que Lewis não viveu sob um puritanismo rígido (LEWIS, 1998, p. 15).

2O termo em abreviatura loc., na citação, deve-se ao fato de a mesma ter sido retirada de livro eletrônico no formato kindle, cuja formatação se dá por location (posição, em português) e não por página.

3Segundo Lewis, o uso do termo refere-se à forma como é “representada em relatos históricos curtos e ruins”. O sentido próprio dado por Lewis ao conceito “idade das trevas” referindo-se à “meninice” está associado a “um completo deserto arenoso”. (LEWIS, 1998, p. 77).

4Lewis se refere sempre à Alegria, grafada com maiúscula. Segundo ele, a “Alegria lembra algo. Nunca é uma posse, sempre um desejo por algo remoto no tempo ou no espaço, ou ainda, ‘prestes a vir a ser’” (LEWIS, 1998, p. 84).

5O ano de 1914 já despontava como época de tensão na Europa, pois ali estava sendo gestada a Primeira Guerra Mundial. “No dia 28 de junho, o arquiduque da Áustria, Franz Ferdinand, foi assassinado em Sarajevo, criando ondas de tensão e desconfiança que aumentaram gradativamente. Grandes alianças se estabeleceram. Se uma das grandes nações partisse para a guerra, todas as outras a seguiriam. Um mês mais tarde, em 28 de julho, a Áustria lançou um ataque contra a Sérvia. A Alemanha imediatamente lançou um ataque contra a França. Era inevitável que a Inglaterra fosse forçada a entrar no conflito. A Grã-Bretanha acabou declarando guerra contra a Alemanha, e o Império Austro-Húngaro, no dia 4 de agosto.” Ver: McGrath (2013, loc. 975).

6Para preservar o anonimato dos autores, Lewis chamou o livro de “livro verde” e seus autores foram cognominados de Tito e Gaio.

7

Na metade de 1920, “a elite cultural britânica era fascinada por eugenia.

A eugenia era uma ideia de Francis Galton, primo de Charles Darwin, e foi desenvolvida em resposta à teoria da seleção natural do primeiro. Em vez de deixar o futuro da raça humana ao acaso, os defensores da eugenia tinham como meta substituir a seleção natural por uma planejada e deliberada. O planejamento genético foi visto como algo simples, natural e importante para as sociedades futuras, como as cidades planejadas. [...] Ela rapidamente se tornou a coisa politicamente correta de se pensar para britânicos socialistas das décadas de 1920 e 1930.” O número de membros da Sociedade de Eugenia atingiu o pico na década de 30. George Bernard Shaw afirmava que “a criação seletiva do homem” era essencial para o futuro da sociedade. H. G. Wells foi ainda mais enfático e entusiasta. “[...] Foi só quando Adolf Hitler passou a defender a eugenia que os pensadores progressistas ocidentais começaram a perceber que alguma coisa havia dado terrivelmente errado. Mas, a essa altura, já era tarde demais.” (MAcGRATH, 2014, p. 141-142).

Referências

SANTO AGOSTINHO, Bispo de Hipona. O livre-arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995 (Coleção patrística). [ Links ]

DAVIS, B. Extreme Makeover: reforma total: desenvolvimento moral e o encontro com Aslam. In: BASSHAM, Gregory; WALL, Jerry L. (ed.). As crônicas de Nárnia e a filosofia: o leão, a feiticeira e a visão do mundo. Trad. de Marco Malvezzi. São Paulo: Madras, 2006. p. 111-122. [ Links ]

GREGGERSEN, G. A antropologia filosófica de C. S. Lewis. São Paulo: Editora Mackenzie, 2001. [ Links ]

LEWIS, C. S. Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998. [ Links ]

LEWIS, C. S. A abolição do homem. Trad. de Gabriele Greggersen. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017a. (Edição no formato Kindle). [ Links ]

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MATHIS, D. Introdução: meio século após C. S. Lewis. In: PIPPER, J.; MATHIS, D. (org.). O racionalista romântico. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017. (Edição no formato Kindle). [ Links ]

McGRATH, A. A vida de C. S. Lewis: do ateísmo às terras de Nárnia. São Paulo: Mundo Cristão, 2013. (Edição no formato Kindle). [ Links ]

McGRATH, A. Conversando com C. S. Lewis. São Paulo: Planeta, 2014. [ Links ]

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Recebido: 06 de Maio de 2020; Aceito: 22 de Julho de 2020

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