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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 03-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021033 

ARTIGOS

Espólios filosóficos na Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio: a dimensão ética

Philosophical spoils in the Common National Curriculum Base - High School: the ethical dimension

Restos filosóficos en la Base Nacional Común Curricular de Enseñanza Media: la dimensión ética

*Professora Associada no Centro de Ciências Humanas e Sociais, Filosofia da Unioeste. Graduada em Filosofia (Licenciatura - 1998) e mestre em Educação nas Ciências, área Filosofia (2002), pela UNIJUÍ e doutora em Educação, linha de pesquisa Filosofia da diferença e educação (2008), pela UFRGS. E-mail:esterheu@hotmail.com

**Graduada e Mestra em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Professora de História e Filosofia na Rede Pública Estadual do Paraná. E-mail: filoadri2008@hotmail.com


Resumo

Este artigo considera a marcante instabilidade da Filosofia nos currículos da educação brasileira, assim como o seu desaparecimento como disciplina, na versão aprovada da Base Nacional Comum Curricular. Apresenta as prováveis alterações que esse documento promoverá na educação, referente à formação dos professores, ao impacto político e à autonomia docente na criação de aulas, para, então, dedicar-se aos espólios filosóficos restantes na Base, sobretudo àqueles relativos à .tica. Mostra que a dimensão ética atravessa o documento e está presente nas “Competências Gerais” a serem desenvolvidas ao longo da Educação Básica, sendo, portanto, uma preocupação de todas as áreas do conhecimento, sobretudo no que se refere às tecnologias digitais de informação e comunicação e à sustentabilidade ambiental. Volta-se à definição de ética do documento e a suas bases, a saber, justiça, solidariedade e livre-arbítrio; problematiza seus sentidos e marca algumas incoerências. Evidencia que o documento, apesar de incentivar que a educação dos jovens esteja, de um lado, voltada para aquilo que fizemos e sabemos do mundo, por outro, para o aberto e indeterminado, dá ênfase excessiva à busca de soluções e ao aprendizado de respostas, dando prioridade, no que respeita à Filosofia, à resposta socrática para a questão “O que é o ser humano?”. Destaca a ideia apresentada no documento de que o nosso tempo requer uma “nova mentalidade”, regida por uma “ética diferente”, e defende que é por meio do contato com modos de pensar filosóficos, presentes nos textos primários de Filosofia, trabalhados por professores habilitados para isso, que os estudantes tornar-se-ão competentes e hábeis nos dois principais sentidos éticos da Base – 1) da nossa relação com a natureza, com o planeta e seus bens finitos; e 2) da relação consigo mesmo, o modo de ser. Afirma, por fim, que, apesar da espoliação sofrida pela Filosofia na Base, nenhum projeto de Educação pode ser sustentado sem ela.

Palavras-chave BNCC; Filosofia; Ética; Ensino de Filosofia

Resumen

Este artículo considera la notable inestabilidad de la Filosofía en los planes de estudio de la educación brasileña, así como su desaparición como disciplina en la versión aprobada de la Base Curricular Nacional Común. Presenta los probables cambios que este documento promoverá en la educación, refiriéndose a la formación de los maestros, el impacto político y la autonomía de la enseñanza en la creación de clases, para luego ocuparse de las sobras filosóficas que quedan en la Base, especialmente las relacionados con la ética. Muestra que la dimensión ética atraviesa el documento y está presente en las “Competencias Generales” que se desarrollarán a lo largo de la Educación Básica, y por lo tanto es una preocupación de todas las áreas del conocimiento, especialmente en lo que respecta a las tecnologías digitales de la información, la comunicación y la sostenibilidad ambiental. Vuelve a la definición de la ética del documento y sus bases, a saber, la justicia, la solidaridad y el libre albedrío; problematiza sus sentidos y marca algunas inconsistencias. Muestra que el documento, a pesar de alentar que la educación de los jóvenes se centre, por un lado, en lo que hemos hecho y sabemos del mundo, y por otro lado, en lo abierto e indeterminado, da excesiva importancia a la búsqueda de soluciones y al aprendizaje de respuestas, dando prioridad, en relación con la filosofía, a la respuesta socrática a la pregunta “¿Qué es el ser humano?” Destaca la idea presentada en el documento de que nuestro tiempo requiere una “nueva mentalidad”, regida por una “ética diferente”, y defiende que es a través del contacto con las formas de pensamiento filosófico, presentes en los textos primarios de la Filosofía, trabajadas por profesores calificados, que los estudiantes se harán competentes y hábiles en los dos principales significados éticos de la Base - 1) nuestra relación con la naturaleza, con el planeta y sus bienes finitos; y 2) nuestra relación con nosotros mismos, nuestro modo de ser. Por último, afirma que, a pesar de la expoliación sufrida por la Filosofía en la Base, ningún proyecto educativo puede sostenerse sin ella.

Palabras clave BNCC; Filosofía; Ética; Enseñanza de la Filosofía

Exórdio

Espólios são patrimônios ou uma reunião de bens e propriedades que alguém deixa de herança; também são considerados legados; como espoliação, é aquilo que é tomado ao inimigo; enquanto despojos, são ação ou consequência de roubo; ou é o conjunto que restou daquilo que se finou

(CORAZZA, 2020, p. 9).

O ano de 2015, com a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2015b), poderia ter sido um marco positivo para a Filosofia como componente curricular obrigatório no Ensino Médio, de forma mais estável, afastando o espectro de exclusão que sempre o rodeou na história da educação brasileira e das lutas curriculares que a marcam, como relatado na “Conversa-viagem: entre o passado e o futuro do ensino de Filosofia” (LANGON et al., 2013). Depois de muitas críticas e sugestões de acréscimos em torno da Filosofia no currículo, diretamente no Ensino Médio e, indiretamente, na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, a segunda versão da proposta de Base (BRASIL, 2016), com o dobro de extensão da primeira, dentre outras coisas, explicitou a importância de que o trabalho com a disciplina seja feito por profissionais com formação filosófica específica, garantindo o adequado tratamento filosófico no que se refere aos procedimentos metodológicos e críticos próprios, bem como à abordagem dos seus conteúdos e matérias, expressas nos textos que compõem o que costumamos chamar de História da Filosofia. Nessa versão, a experiência do pensar filosoficamente ganhou maior destaque:

Trata-se, para o estudante, de fazer a experiência de questionamentos explicitamente filosóficos, ora a partir da discussão filosófica de assuntos de interesse, ora por meio do contato direto com textos filosóficos, seja, ainda, no enfrentamento de temáticas filosóficas ligadas aos campos da ontologia, da lógica e da retórica, da epistemologia, da ética, da política e da estética, os três últimos campos, não por acaso, usados como balizadores dos direitos gerais de aprendizagem e desenvolvimento que estruturam toda a BNCC. Tem-se aí uma boa medida da importância da Filosofia no projeto integral de formação básica ora proposto [...]. Enfim, na medida em que deve contribuir para a formação de estudantes capazes de estranhar e colocar consistentemente em questão não só a realidade em que vivem, mas os saberes que nela encontram constituídos, é de fundamental importância que a Filosofia lhes seja apresentada, não só de início, mas ao longo de todo o Ensino Médio, como experiência conectada com sua vida e problemas escolares, existenciais, políticos. Viabiliza-se assim, entre outras coisas, a contribuição da Filosofa para a formação de estudantes emancipados e capazes de atribuir real significado à palavra “cidadania”

(BRASIL, 2016, p. 167, 168).

Ocorre, entretanto, que, na sequência da publicação da segunda versão, a maior crise política brasileira recente teve consequências várias, comprometendo também o lugar da Filosofia nos currículos. Uma presidenta caiu e, com ela, dentre muitas conquistas da educação nacional em vigor ou em fase de implementação – conforme as criticáveis políticas da chamada “Pátria educadora” (BRASIL, 2015a; LOCKMAN; MACHADO, 2018) –, caiu, inclusive, a Filosofia como componente curricular obrigatório. No final de 2016, uma Reforma do Ensino Médio foi anunciada, por meio de Medida Provisória, e tornada lei no ano seguinte (13.415/2017), com a flexibilização curricular e a instituição de “Itinerários formativos”, que ainda não se sabe como funcionarão. A Filosofia, ao lado de outras áreas de formação, deixou de ser disciplina obrigatória, mas teve resguardado nos currículos o desenvolvimento das “competências e habilidades” que lhe são próprias, com seus estudos e práticas. Por ora, nos parece que retornamos ao “empoeirado discurso” dos anos 90 (SILVA, 2018), em que a Filosofia era supostamente desenvolvida nos “Temas transversais”.

Nesse contexto, a versão oficial da Base para o Ensino Médio foi publicada (BRASIL, 2018). Nela, a espoliação da Filosofia é incontestável1: restaram alguns poucos traços mencionados de temáticas que lhe são próprias, mas não exclusivas, tais como política, estética, lógica, epistemologia e metafísica. Entre os espólios, a ética, que requer, necessariamente, uma abordagem filosófica, aparece no documento, entre variações, mais de 50 vezes. Este artigo se dedica a apresentar e discutir os despojos éticos. Tem ainda em perspectiva dois movimentos: de um lado, contribuir para a atualização da temática junto aos professores de Filosofia que estão atuando nas escolas, inventando suas aulas, e que, espera-se, participarão da reformulação das Diretrizes Curriculares estaduais, bem como dos currículos das escolas; de outro, participar da revitalização do debate político acerca do ensino de filosofia, para que a comunidade filosófica brasileira retome a mobilização, a exemplo daquela criada no início dos anos 2000, como o “Fórum Sul-Brasileiro de Filosofia e Ensino” que mostrou grande capacidade de convocação e mobilização, tanto para estudar e discutir o que e como fazer com a Filosofia na escola – a [extinta] Coleção Filosofia e Ensino, da Editora UNIJUÍ, testemunha isso –, quanto para criar estratégias de pressão junto a órgãos deliberativos, como o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Senado Federal2. Para tanto, o artigo está assim organizado: 1) apresenta as prováveis alterações que a Base promoverá na educação, referente à formação dos professores, ao impacto político e à autonomia docente na criação de aulas; 2) mostra que a dimensão ética atravessa o documento e está presente nas “Competências Gerais” a serem desenvolvidas ao longo da Educação Básica, sendo, portanto, uma preocupação de todas as áreas do conhecimento, sobretudo no que se refere às tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs) e à sustentabilidade ambiental; 3) volta-se à definição de ética do documento e a suas bases, a saber, justiça, solidariedade e livre-arbítrio; problematiza seus sentidos e marca algumas incoerências; 4) evidencia que o documento, apesar de incentivar que a educação dos jovens esteja, de um lado, voltada para aquilo que fizemos e sabemos do mundo, por outro, para o aberto e indeterminado, dá ênfase excessiva à busca de soluções e ao aprendizado de respostas, priorizando, no que respeita à Filosofia, a resposta socrática para a questão “O que é o ser humano?”; 5) destaca a ideia apresentada no documento de que o nosso tempo requer uma “nova mentalidade”, regida por uma “ética diferente”, e defende que é por meio do contato com modos de pensar filosóficos, presentes nos textos primários de Filosofia, trabalhados por professores habilitados para isso, que os estudantes tornar-se-ão competentes e hábeis nos dois principais sentidos éticos da Base – a) da nossa relação com a natureza, com o planeta e seus bens finitos; e b) da relação consigo mesmo, o modo de ser; 6) afirma, por fim, que, apesar da espoliação sofrida pela Filosofia na Base, nenhum projeto de Educação pode ser sustentado sem ela.

BNCC e prováveis alterações no amplo campo da educação brasileira

A publicação da BNCC implicou expressivas mudanças no campo da educação nacional. Ultrapassou o âmbito dos currículos escolares da Educação Básica, que recém começam a sentir suas mudanças, uma vez que há um extenso caminho de alterações de documentos oficiais até que ela se torne presente nas aulas. Antes de nos dedicarmos aos despojos filosóficos do documento, pomos em relevo algumas das alterações mais gerais que poderão decorrer no amplo campo do sistema brasileiro de educação. Tais alterações foram mostradas por pesquisadores, das áreas de Currículo e de Políticas públicas para a Educação, que participaram intensamente do processo de elaboração do documento. Algumas delas podem ser conferidas no “Histórico” oficial do processo, constante no site do MEC3.

Mencionamos as alterações que nos parecem mais relevantes do ponto de vista da formação dos professores, do impacto político e da autonomia docente, na criação de suas aulas. Para aprofundamento dessas questões, sugerimos a investigação nas referências em que nos baseamos: a) além das escolas de Educação Básica, as Universidades, em seus cursos de Licenciatura, terão que reformular seus currículos e práticas. Das Licenciaturas foi exigida, pelo CNE (CNE/CP N.º 2), drástica alteração que dividirá o currículo em partes que, na sua execução, dissocia teoria e prática, apesar de o chamar de “dimensões fundamentais e interdependentes”, a saber: “I - conhecimento profissional; II - prática profissional; e III - engajamento profissional” (CNE/CP N.º 2, p. 2). A Resolução corta – pela metade – o tempo do curso para o estudo específico da área. Em síntese, em um curso de Filosofia, por exemplo, apenas 50% do tempo será dedicado para estudar Filosofia4; b) o caráter público e democrático da educação está em xeque, sobretudo porque o setor empresarial5 foi investido de prerrogativas de governo para realizar ações coordenadas que foram preponderantes na versão final do documento da BNCC, apesar das consultas pulverizadas e on-line, em exíguo tempo, nas quais as posições dos educadores e das universidades foram pouco ou nada consideradas – com tal preponderância está em “disputa o conteúdo da educação”, que será parametrizado “por meio de instrumentos de avaliação, de modelos de formação de professores e da produção de materiais didáticos” (ADRIÃO; PERONI, 2018, p. 52); e c) o trabalho inventivo e produtivo do professor tende a ser substituído por um processo submisso e reprodutivo de “apostilagem” – diante das contratações de fundações privadas que vêm sendo feitas, por gestores públicos municipais e estaduais, “para indicar aos professores como devem atuar, a partir de períodos curtos de formação, com a criação de material didático que devem seguir à risca – o que dar em que dia, em que hora, ou seja, verdadeiras ‘apostilas’ – e com um controle do que fazem em sala de aula” (ALVES, 2018, p. 45).

Passemos à Base, sobretudo aos espólios filosóficos nela restantes, especialmente os relativos à ética.

A dimensão ética em uma formação para o desenvolvimento de competências

A BNCC orienta que os currículos sejam construídos com vistas à “formação e o desenvolvimento humano global” (BRASIL, 2018, p. 16). Para tanto, a ética está ao lado das dimensões intelectual, física, afetiva, social, moral6, simbólica. Dimensões a serem consideradas com vistas a “atender às necessidades de formação geral indispensáveis ao exercício da cidadania e responder à diversidade de expectativas dos jovens quanto à sua formação” (BRASIL, 2018, p. 464). Objetivo em conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases, que, no seu artigo 35, inciso terceiro, preceitua que a formação ética está associada ao “aprimoramento do educando como pessoa humana” (apud BRASIL, 2018, p. 464), capaz de “construir e realizar seus projetos de vida, em consonância com os princípios da justiça, da ética e da cidadania” (BRASIL, 2018, p. 470) – inclusive esse foi um dos argumentos usados no início dos anos 2000, durante a luta pela inclusão da Filosofia nos currículos, para defender tempos e professores próprios para uma abordagem especificamente ética-filosófica.

Bastante semelhante com o que se passou nas políticas da educação nacional dos anos 90, a Base tem em vista o desenvolvimento de competências. Como mostra Mônica Ribeiro da Silva (2018, p. 11), tais noções estão próximas de ideias de competição e competitividade, agora associadas ao discurso muito difundido de que as mudanças no mundo do trabalho e as inovações organizacionais da sociedade e das tecnologias exigem que a escola a elas se adeque. Em poucas palavras, mais uma vez, a escola deve adaptar-se às exigências das engrenagens do Mercado que serve ao Capital, o que implica uma “formação administrada” e sujeita ao controle – o que está óbvio na própria estrutura da BNCC, na qual as competências e habilidades específicas estão organizadas por códigos que, certamente, serão correspondentes às questões e gabaritos das provas nacionais, interessadas no produto e pouco ou nada preocupadas com os processos das aprendizagens. Trata-se, pois, de adaptar as escolas e os jovens, embora, como mostraremos, o documento diga mais do que isso e muitas vezes se contradiga.

Tem-se o costume de pôr ao lado do termo competência a palavra habilidade. No entanto, pela definição sucinta do documento, a última é uma das componentes da complexa noção de competência. Vejamos: “competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8, grifos nossos). Embora algumas hipóteses para tal simplificação possam ser levantadas, inclusive relacionadas com a lógica da educação orientada pela métrica dos seus resultados em avaliações nacionais, incapazes de medir o aprendizado de atitudes e valores, nos interessa marcar a finalidade da noção de competência: ao pôr sua complexidade em movimento, se está apto a “resolver demandas”. Ou seja, apesar de todas as considerações feitas em torno da autonomia e do protagonismo dos jovens, que apresentaremos, para a BNCC cabe aos estudantes aprenderem a resolver – o que é diferente de inventar soluções criativas e muito distante de levantar, quiçá, formular problemas para lidar com o mundo.

Nos atenhamos ao espólio ético contido nas “Competências Gerais da Educação Básica”. São três – em que a ética, seus temas e problemas mais diretamente relacionados aparecem:

5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.

6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.

[...]

10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários

(BRASIL, 2018, p. 9, 10, grifos nossos).

Como mostraremos, esses aspectos éticos atravessam o documento em múltiplas perspectivas e circunstâncias.

As tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs) são um dos focos principais do documento. A cultura digital, que se produz ao lado da cultura impressa, requer “novos letramentos”, que não são exclusivamente da competência do componente curricular Língua Portuguesa. Embora o uso de diferentes linguagens seja uma das competências específicas daquele componente, para ser desenvolvida e avaliada por ele, o apelo à ética e, necessariamente, à Filosofia, é explícito. Tais usos requerem, além da técnica, “visão crítica, ética e estética [...] para selecionar, filtrar, compreender e produzir criticamente sentidos em quaisquer campos da vida social” (BRASIL, 2018, p. 489).

As TDICs, com a abundância de informações e produções, implicam “novas práticas sociais e de linguagem” – visuais, sonoras, verbais e corporais –, por meio das quais, em ritmo de “pós-verdade”, também correm notícias falsas e discursos de ódio. Em nota de rodapé, o documento considera que essas novas práticas “operam a partir de uma nova mentalidade, regida por uma ética diferente (BRASIL, 2018, p. 478, nota 60, grifos nossos). Essa nota marca uma indeterminação, ao menos aparente: não se sabe que nova mentalidade é essa, nem a ética que a rege, uma vez que, por ser qualificada como “diferente”, sugere não se referir a nenhuma ética pertencente ao amplo repertório filosófico. Nem mesmo se sabe, para o documento, objetivamente, qual é a ética que “rege” a cultura do impresso, a qual parece ser insuficiente para “dar conta” dessa nova cultura. Para tempos de incertezas e de indeterminação, essa nota pode funcionar como uma linha de fuga para a criação de/nas aulas.

Algumas páginas adiante, contudo, a ética é qualificada com diferentes adjetivos. Ora ela é solidária, ora da responsabilidade, ora diretamente ligada ao bem comum. Esta última ligação é, talvez, a mais abrangente, não só porque se repete nas diferentes áreas, mas porque se refere a modos de pensar: “criativos, analíticos, indutivos, dedutivos e sistêmicos e que favoreçam a tomada de decisões orientadas pela ética e o bem comum” (BRASIL, 2018, p. 535, grifos nossos). Ainda no contexto dos usos das diferentes linguagens, uma competência requerida do estudante é que ele assuma “uma ética solidária que respeite as diferenças sociais ou individuais e promova os Direitos Humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional e global” (BRASIL, 2018, p. 485, grifos nossos). A ética da responsabilidade é referida quando o documento aborda a atuação na vida pública relativa a “questões de interesse coletivo e público e compreensão do contexto de promulgação dos Direitos Humanos, do Estatuto da Juventude e das políticas afirmativas, como forma de valorizar a democracia e uma atuação pautada pela ética da responsabilidade” (BRASIL, 2018, p. 503, grifos nossos).

Não se sabe, entretanto, se essas qualificações dizem respeito àquela ética diferente constituída por uma nova mentalidade. Imaginamos que não, pois bem comum, solidariedade e responsabilidade são componentes de várias e diversas perspectivas e sistemas éticos existentes. Aliás, a maior parte do documento se refere à ética como se ela fosse a “coisa” mais bem distribuída, como Descartes disse ser o bom senso. Parece, assim como acontece com as noções de cidadania, democracia, liberdade, autonomia, responsabilidade e consciência crítica, que o sentido de ética no documento é unívoco, que todo mundo sabe o que ele é e o concebe como sendo único, o Mesmo. Em suma, essa noção abstrata, pré-definida e pré-adquirida da ética ressoa por todo o documento como um significante vazio.

A ética e suas bases: justiça, solidariedade e livre-arbítrio

A ética ganha uma definição quando o documento apresenta a área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas como aquela que orienta para uma educação ética que “reconhece as diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos”. Ética é definida “como juízo de apreciação da conduta humana, necessária para o viver em sociedade, e em cujas bases destacam-se as ideias de justiça, solidariedade e livre-arbítrio” (BRASIL, 2018, p. 547, grifos nossos).

Sabemos, finalmente, o que é ética para o documento. Na condição de um “ser falante”, que escolhe determinadas palavras, e não outras, para compor os conceitos com os quais lida, a BNCC “quer” algo quando diz o que diz. E nós podemos interrogar: – O que a BNCC quer dizer com isso que está dizendo que é ética? – O que você quer, BNCC, quando defende, por exemplo, a ideia de livre-arbítrio como uma das bases da noção de ética? Ideia estranha a nossos ouvidos – o que não aconteceu com as ideias de justiça e de solidariedade, ainda que elas, assim como aquela, também sejam plurívocas.

Claro que, como um “ser falante” regido pelo funcionamento da linguagem, aquilo que a BNCC enuncia não é a última palavra e é feita de uma cadeia incompleta de significantes, sempre à espera de um novo enunciado. É sua própria condição linguajeira que permite que façamos outros enunciados a partir dela. Entretanto, considerando que, “ao falar, um currículo é levado além de si próprio, pois o sentido do que diz encontra-se na linguagem de sua época e lugar, na qual está enredado” (CORAZZA, 2001, p. 11), a ideia de livre-arbítrio, em filosofia, ao menos, parece ser de outra época, não do século XXI, salvo raras exceções, que requer, como a própria BNCC afirma, “nova mentalidade” e uma “ética diferente”.

O leitor pode interrogar: – Mas por que, então, não dar o mesmo tratamento para as ideias de justiça e solidariedade? Respondemos rapidamente: – Porque, apesar de serem filhas de outras épocas e lugares, no século XXI elas estão presentes, atualizadas, com novos componentes ou não, nas filosofias contemporâneas que se ocupam de problemas de nosso tempo. O que, em geral, não se passa com a ideia de livre-arbítrio, que, ou ficou no passado da filosofia em geral, não ganhou atualidade e/ou está ligada à religião, à moral ou restrita à Filosofia da Religião7 – o que a BNCC parece não querer tratar.

De forma alguma nos opomos ao ensino da Filosofia de um ponto de vista Medieval, ou da Filosofia da Religião, que poderia, tranquilamente, lidar com a ideia de livre-arbítrio – desde que não ensinada como catequese. Ocorre, entretanto, que essa noção restringe a própria concepção de liberdade. Esta pode conter aquela, mas aquela não garante as possibilidades de abordagens desta. O que pode impedir perspectivas filosóficas de professores “desalinhados” com a noção de liberdade como livre-arbítrio. Ou seja, se, ao invés de livre-arbítrio, estivesse escrito, ao lado de justiça e solidariedade, liberdade, não nos teria soado estranho e o que desenvolvemos a seguir não teria razão de ser.

Não se trata, contudo, apenas de uma questão de troca de palavras. Avaliamos que há um problema do ponto de vista da ética como espólio filosófico que restou da Filosofia na BNCC: a noção de livre-arbítrio. Essa dádiva de Deus, como pensou Agostinho, tem muitas outras implicações, dentre elas as de transcendência, de sobrenatural e sobre-humano, de Bem e Mal como valores absolutos, o que leva facilmente para abordagens moralizantes e religiosas, diversas dos modos filosóficos de pensar, que, necessariamente, são plurais. Para Spinoza, do século XVII, por exemplo, como compila Victor Delbos (2016), a vontade livre chamada livre-arbítrio – o poder sobrenatural que o homem se autoatribui “capaz de produzir indiferentemente, seguindo unicamente sua vontade, uma determinada ação” (DELBOS, 2016, p. 93) – é a mais enganosa das ilusões, ser imaginário, abstração, uma faculdade inventada para fazermos de nós mesmos a razão de nossa conduta. Exatamente o que permitirá medir os homens conforme o seu valor: julgar e louvar, ou julgar e condenar as condutas. Afinal, cada um de nós, por meio dessa força, pode suspender ou modificar o curso dos julgamentos ou condutas: basta representar para si as possibilidades e julgar antes de agir. Se necessário, conforme nosso juízo, essa nossa vontade tem o poder de frear o ímpeto de nossos desejos e cercear o ardor de nossas paixões, como se tivéssemos a “capacidade de criá-los” e de “anulá-los” (DELBOS, 2016, p. 97).

Sendo assim, “o governo de nossa vida nos pertence”. Podendo ir ao Bem ou ao Mal, escolher viver e andar entre luzes ou trevas, somos absolutamente responsáveis por nossa conduta. Daí concluir-se: “é nosso livre-arbítrio que nos faz pessoas morais” (DELBOS, 2016, p. 94). Mas não só seres morais. Também faz de nós seres divinos, sobrenaturais, pois crer no livre-arbítrio põe aquele que crê em “completa contradição com a nossa natureza real”, implica negar o inegável das nossas existências individuais: o fato de, por elas estarem “contidas na existência do universo, [...] as tendências que nos levam a agir [serem] determinadas em nós não apenas pela nossa potência, mas também pela potência das coisas externas” (DELBOS, 2016, p. 97).

Exposto isso, perguntamos: qual ideia de justiça pode acompanhar a de livre-arbítrio, essa ilusão que faz os homens imaginarem-se superiores, diferentes do que são em sua natureza? Temos a impressão de que não pode ser outra que não a justiça instauradora de um tribunal moral. Tribunal que, tendo o Bem e o Mal como critérios absolutos emanados do alto, pede explicações, pelas faltas e vícios, àquele que, supostamente, é a razão total da própria conduta; julgando e determinando punições8. Uma ideia de justiça que repousa sobre o livre-arbítrio “deve recorrer às sanções que exprimem uma potência sobrenatural e sobre-humana, às sanções cuja autoridade é transcendente” (DELBOS, 2016, p. 101). Em suma, essa ideia de justiça que ladeia a de livre-arbítrio lida com uma imagem transcendente da lei, que assume o papel de representante do Bem no mundo sensível (DELEUZE, 2009).

O resultado dessa ideia de justiça associada à de livre-arbítrio é um rebaixamento do homem, um desprezo pelo real, a negação da vida em nome de valores superiores a ela. Aqueles que têm o poder do martelo nas mãos, os que dão ao homem o livre-arbítrio, lhe dizem: “Tu és livre, a fim de poder gritar: Tu és um criminoso. Eles forjam um ídolo para se dar o prazer de quebrá-lo” (DELBOS, 2016, p. 85). Para isso é preciso outra ilusão: colocar-se “fora do real para descrever um ideal pelo qual [se pretende] julgar o real” (DELBOS, 2016, p. 86).

De nossa perspectiva (HEUSER, 2019), estão preparadas as condições para a instauração do tribunal, sobre o qual o juízo estará pronto para, a partir de valores transcendentes, transformar a existência em um pesado fardo de ideais criadores de imagens idealizadas de Aluno, Professor, Escola, Aula, Currículo, Conhecimento, Diretor, Pedagogo, etc.. Imagens que nunca serão atingidas por aqueles seres compostos de mente e corpo, hormônios, desejos – bem ou mal coordenados –, paixões, necessidades e relações múltiplas que ocupam os corredores, as quadras, as salas, as aulas, os pátios, os laboratórios e as bibliotecas das escolas reais. Trazendo a percepção de Spinoza acerca daqueles que escreveram sobre os afetos e os modos de vida dos homens para o campo da educação, podemos afirmar que quem expôs a perspectiva ética da BNCC, em sua definição orientada por um juízo de apreciação guiado pela ideia de livre-arbítrio9. parece “ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela. Ou melhor, parecem conceber o homem na natureza como um império num império” (SPINOZA, 2007, EIII, prefácio, p. 161).

Por que um império dentro de um império, “que não é determinado por nada mais além de si próprio”, seria solidário? Quem quer limitar as razões das ações humanas unicamente à vontade livre, terá que negar, de início, que haja uma “estrita solidariedade que liga todos os objetos do universo material [e a consequente] perpetuidade de suas ações e reações recíprocas” (BERGSON, 1999, p. 246); em seguida, recusará a solidariedade social. A própria “educação ética”, preconizada pela Base para o Ensino Fundamental, fica prejudicada, uma vez que ela

se concentra no processo de tomada de consciência do Eu, do Outro e do Nós, das diferenças em relação ao Outro e das diversas formas de organização da família e da sociedade em diferentes espaços e épocas históricas. Tais relações são pautadas pelas noções de indivíduo e de sociedade, categorias tributárias da noção de philia, amizade, cooperação, de um conhecimento de si mesmo e do Outro com vistas a um saber agir conjunto e ético

(BRASIL, 2018, p. 547, grifos nossos).

Ou retira-se a ideia de livre-arbítrio como orientadora da noção de ética, e o que ela pressupõe, ou suspende-se a proposta de a Base querer que, por meio dela, as escolas reais tornem os educandos capazes de tomar “decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (BRASIL, 2018, p. 10). Simplesmente porque há uma gritante contradição, sobretudo com os valores de solidariedade e sustentabilidade (inclusive a ambiental), assim como com as ideias de justiça social e de pluralidade, também defendidas em várias partes do documento.

Evidenciadas essas incoerências10 de base, presentes nos espólios filosóficos, exploraremos a ética na BNCC diretamente vinculada à Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Ciências humanas e a tradição socrática: a resposta à questão “O que é o ser humano?”

À Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas cabe contribuir para o “protagonismo juvenil e para a construção de uma atitude ética pelos jovens”. Tal contribuição se dará orientada por “categorias fundantes” próprias da área, a saber: “tempo e espaço; territórios e fronteiras; indivíduo, natureza, sociedade, cultura e ética; e política e trabalho” (BRASIL, 2018, p. 549, grifos nossos).

O documento insiste que as categorias não podem ser confundidas com temas ou propostas de conteúdo, mas concebidas como aquilo que a tradição da área “utiliza para a compreensão das ideias, dos fenômenos e dos processos políticos, sociais, econômicos e culturais” (BRASIL, 2018, p. 550). Afirma que “os materiais e os meios utilizados podem ser variados”11, razão pela qual inferimos que a Base sugere que os conteúdos e a forma de abordar, inclusive os referenciais teóricos, fiquem a cargo do professor escolher, desde que o “eixo de reflexão” esteja concentrado no “conhecimento do Eu e no reconhecimento do Outro, nas formas de enfrentamento das tensões e conflitos, na possibilidade de conciliação e na formulação de propostas de soluções” (BRASIL, 2018, p. 549).

Dito isso, interpretamos e defendemos que, para a Filosofia, se trata de voltar-se para aquilo que a tradição nomeou “História da Filosofia”, na qual está contida a herança filosófica, em forma do que costumamos chamar de “textos primários”, escritos pelos filósofos, recebida como legado pelos professores e que merece ser “passada adiante” aos novos que estão sob a sua responsabilidade. Contínuo jogo de passa-anel. Desse modo, serão os professores que preencherão de conteúdos e sentidos isso que o documento chama de ética e que, como está posto, aparece como abstrato e vazio.

A base do esclarecimento teórico daquelas categorias fundantes é a “resposta” à questão “O que é o ser humano?”, proveniente da tradição socrática (BRASIL, 2018, p. 553). Compreendemos que há evidente coerência entre essa escolha, com aquilo que é afirmado ser o interesse central da Área, o eixo acima referido: o Eu e o Outro. Supõe-se que o Eu está constituído, que é dado, basta tomar ciência dele, assim como o Outro que é, para si, também um Eu pronto, à espera do reconhecimento daquele que é o seu Outro. Essa coerência mostra que a imagem de pensamento que orienta a BNCC é a da recognição, a qual supõe que, por meio de uma boa vontade, seguindo um método, alcança-se a verdade, já existente, à espera de seu desvelamento, como é o caso da ideia de ser humano (DELEUZE, 1988). Basta um passeio de olhos nas listas de competências e habilidades da BNCC, para ver a presença massiva do ato de reconhecer, em todas as áreas, como prioritário na aprendizagem.

Diante disso, questionamos: se o Eu existe e está à espera de autoconhecimento e o Outro de reconhecimento, qual o sentido de afirmar a necessidade de “assegurar aos estudantes uma formação que, em sintonia com seus percursos e histórias, faculte-lhes definir seus projetos de vida, tanto no que diz respeito ao estudo e ao trabalho como também no que concerne às escolhas de estilos de vida saudáveis, sustentáveis e éticos [?]” (BRASIL, 2018, p. 463).

É porque se trata de um processo de constituição do ser humano que a educação existe, que falamos em, por exemplo, “formação continuada” de professores. É porque estamos em contínuo processo de invenção de si, de nós e do Outro, que não se trata meramente de conhecer e reconhecer, de voltarmo-nos unicamente à resposta socrática para a pergunta “O que é o ser humano?”. Esta é uma das respostas entre muitas já elaboradas e outras que ainda serão criadas, mobilizadas não necessariamente pela forma da questão “O que é?”, que busca por uma essência. Aliás, não é possível ignorar que os próprios diálogos socráticos, cujo privilégio é dado à forma dessa questão, são aporéticos, isto é, produzem situações de impasse, às vezes sem saída; nem esquecer que, ao insistir no “O que é?”, Sócrates lança seus interlocutores em contradições embaraçosas, assim como acontece com seus leitores.

Dar prioridade às respostas da tradição socrática implica ignorar ou reduzir a importância de uma outra perspectiva presente no documento. Quando a BNCC situa o contexto e o público predominante do Ensino Médio na Educação Básica, considera que, para acolher a juventude, “as escolas devem proporcionar experiências e processos intencionais que lhes garantam as aprendizagens necessárias”. Para tanto, afirma que é preciso ultrapassar a pretensão de que os jovens estejam limitados a aprender o já sabido. Se faz necessário apresentar-lhes o mundo “como campo aberto para investigação e intervenção quanto a seus aspectos sociais, produtivos, ambientais e culturais” (BRASIL, 2018, p. 463 [grifos nossos]). Ou seja, esse contexto não ignora o mundo como está nem o mundo que se sonha. Trata-se, pois, de lidar com um duplo do mundo: de um lado, aquilo que dele fizemos e já sabemos; de outro, como um “campo aberto”, indeterminado. Aqui cabe recuperar a ideia da nota que afirmamos poder ser a pista para a criação contida na Base: é necessário que operemos com uma “nova mentalidade”, regida por uma ética que ainda não se sabe exatamente qual é, simplesmente diferente daquelas que temos, uma vez que o próprio mundo ultrapassou as mentalidades existentes e as éticas por elas constituídas (BRASIL, 2018, p. 478, nota 60).

Portanto, a resposta socrática para a questão “O que é o ser humano?”, uma vez produzida nas circunstâncias gregas de uma antiga sociedade, excludente e escravocrata, em que apenas cerca de 10% de seus habitantes homens eram cidadãos, é uma das respostas para, no XXI, ajudar a pensar nossa condição humana. Assim como a forma da questão também é uma, dentre várias. Deleuze (2006), por exemplo, ao propor o Método da dramatização, sugere que, no encontro com um texto filosófico, se considere que ele é expressão de uma experiência produzida em meio a dinamismos espaço-temporais, os quais são constituídos em função de uma tipologia (quem?), de uma topologia (onde?), de uma posologia (quando?), de uma casuística (em que caso?), que determinará as condições em que seus pensamentos foram produzidos. O filósofo considera esses dinamismos transcendentais, por se ocuparem das condições de tal produção.

Em nossa interpretação, a resposta à questão “que é?” nos dá apenas o produto, elemento que favorece a recognição, não o processo do pensar. Dirigir-se às condições da produção de um pensamento filosófico pode favorecer que os estudantes aprendam possibilidades de modos de pensar e, então, realizarem aquilo que, à Base, é essencial para o desenvolvimento da “autonomia dos sujeitos diante de suas tomadas de decisão na vida”, a saber: “aprender a indagar, ponto de partida para uma reflexão crítica”, uma vez que “a pergunta bem elaborada e a dúvida sistemática contribuem igualmente para a construção e apreciação de juízos sobre a conduta humana, passível de diferentes qualificações” (BRASIL, 2018, p. 549).

Competências e habilidades específicas para a formação de um cidadão ético

A filosofia é pródiga em recursos que permitem avaliar as condições daquilo que se apresenta. Recorrer a eles diminuirá as chances de tomar por verdade as nefastas fake news, pois poderão ser instrumentos para “desvendar e reconhecer os sujeitos, os sentidos obscuros e silenciados, as razões da construção de uma determinada informação e os meios utilizados para a sua difusão” (BRASIL, 2018, p. 548). Compreendemos, como Kant (1992), que é o contato com modos de pensar filosófico que permitirá aos estudantes fazerem um uso livre de sua razão, de seu pensamento. Defendemos que são os modos de pensar que permitirão aos estudantes tornarem-se competentes e hábeis, no sentido que a Base propõe.

São seis as competências específicas da Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Para as quatro primeiras, o quadro de habilidades específicas refere seis em cada uma e, para as duas últimas, quatro. Para nós, todas elas merecem uma abordagem filosófica nos seus diferentes campos, entretanto, no campo específico da ética, avaliamos que aquelas enumeradas por três e cinco estão diretamente relacionadas e serão as que apresentaremos.

COMPETÊNCIA ESPECÍFICA 3 Contextualizar, analisar e avaliar criticamente as relações das sociedades com a natureza e seus impactos econômicos e socioambientais, com vistas à proposição de soluções que respeitem e promovam a consciência e a ética socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional, nacional e global

(BRASIL, 2018, p. 562, grifos nossos).

Para alcançar essa competência, o documento propõe que sejam analisados “os paradigmas que conformam o pensamento e os saberes de diferentes sociedades e povos”. Para tanto, orienta que se leve em consideração: 1) as formas com as quais essas sociedades e povos se apropriam da natureza, como a transformam e comercializam os recursos naturais; 2) como elas se organizam social e politicamente; 3) como são estabelecidas as relações de trabalho; e 4) como elas significam sua produção cultural – material e imaterial –, assim como suas linguagens. Na medida em que são analisados os paradigmas que dão forma ao pensamento e saberes de diferentes culturas, devido à presença da cultura de massa e importância, para os jovens, das culturas juvenis, recomenda que se dê atenção aos “objetos derivados da indústria cultural, os instrumentos publicitários utilizados, os papéis das novas tecnologias e os do consumismo”, a fim de que seus significados sejam compreendidos (BRASIL, 2018, p. 562).

As habilidades a serem mobilizadas, em seus aspectos prático, cognitivo e socioemocional, referentes a essa competência, vinculadas à ética, contêm alguns dos seus sentidos já apresentados, sobretudo os de responsabilidade e sustentabilidade, são:

(EM13CHS301) Problematizar hábitos e práticas individuais e coletivos de produção e descarte (reuso e reciclagem) de resíduos na contemporaneidade e elaborar e/ou selecionar propostas de ação que promovam a sustentabilidade socioambiental e o consumo responsável.

(EM13CHS302) Analisar e avaliar os impactos econômicos e socioambientais de cadeias produtivas ligadas à exploração de recursos naturais e às atividades agropecuárias em diferentes ambientes e escalas de análise, considerando o modo de vida das populações locais e o compromisso com a sustentabilidade.

(EM13CHS304) Analisar os impactos socioambientais decorrentes de práticas de instituições governamentais, de empresas e de indivíduos, discutindo as origens dessas práticas, e selecionar aquelas que respeitem e promovam a consciência e a ética socioambiental e o consumo responsável

(BRASIL, 2018, p. 562, grifos nossos).

Nesse bloco de habilidades parece estar mais acentuadamente o desenvolvimento do sentido mais antigo de ética, relacionado à morada, ao lugar onde se habita, usado antes mesmo da filosofia ser criada, em poesia, com referência aos animais, em alusão aos lugares onde os filhotes eram criados, bem como a seus pastos e lugares de proteção e encontro. Em suma, se trata de ocupar-se com a nossa relação com a natureza, com o planeta e seus bens finitos.

A próxima competência específica selecionada por nós e seu conjunto de habilidades se refere à ética como o “lugar” que o humano porta em si mesmo, de sua relação, primeiro, consigo mesmo, de “sua atitude interior”, em seguida em relação aos outros e ao mundo. Ou seja, a ética no sentido que se costuma chamar de caráter, ou modo de ser (ARANGUREN, 1972).

COMPETÊNCIA ESPECÍFICA 5 Reconhecer e combater as diversas formas de desigualdade e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos. O exercício de reflexão, que preside a construção do pensamento filosófico, permite aos jovens compreender os fundamentos da ética em diferentes culturas, estimulando o respeito às diferenças (culturais, religiosas, étnico-raciais etc.), à cidadania e aos Direitos Humanos. Para a realização desse exercício, é fundamental abordar circunstâncias da vida cotidiana que permitam desnaturalizar condutas, relativizar costumes, perceber a desigualdade e o preconceito presente em atitudes, gestos e silenciamentos, avaliando as ambiguidades e contradições presentes em políticas públicas tanto de âmbito nacional como internacional

(BRASIL, 2018, p. 564, grifos nossos).

Entendemos que a dimensão filosófica e a compreensão dos “fundamentos” da ética são impossíveis de serem abordados, estudados, compreendidos, aprendidos – processos pelos quais serão produzidos sentidos pelos jovens – sem um tempo regular para a Filosofia no currículo escolar, com um professor-pesquisador, preparado e dedicado a trabalhar com os textos dos filósofos e lidar com seus dinamismos espaço-temporais. Sem essas condições, não se realizará aquela que é a grande meta da BNCC e da LDB: “formação humana integral” e “construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2018, p. 7). Filosofia e ética são produções humanas, conhecimentos formalizados e componentes da construção histórica, insubstituíveis por outros conhecimentos ou opiniões. Dessa competência decorrem as seguintes habilidades:

(EM13CHS501) Compreender e analisar os fundamentos da ética em diferentes culturas, identificando processos que contribuem para a formação de sujeitos éticos que valorizem a liberdade, a autonomia e o poder de decisão (vontade [estaria aqui o livre-arbítrio presente?]).

(EM13CHS502) Analisar situações da vida cotidiana (estilos de vida, valores, condutas etc.), desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade e preconceito, e propor ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às escolhas individuais.

(EM13CHS503) Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas causas, significados e usos políticos, sociais e culturais, avaliando e propondo mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos.

(EM13CHS504) Analisar e avaliar os impasses ético-políticos decorrentes das transformações científicas e tecnológicas no mundo contemporâneo e seus desdobramentos nas atitudes e nos valores de indivíduos, grupos sociais, sociedades e culturas

(BRASIL, 2018, p. 564, grifos nossos).

Considerações finais: criar aulas, inventar didáticas, produzir currículos com a Filosofia

Apesar de a Base multiplicar sentidos da ética, mesmo depois de defini-la de modo a pôr em contradição vários dos sentidos nela presentes, sobretudo na parte em que apresenta suas “ideias de base” (justiça, solidariedade e livre-arbítrio), o tom preponderante é o de que a ética está pronta em algum lugar; que é externa à pessoa, ao seu modo de vida e ao meio em que vive; que precisa ser simplesmente assimilada e “usada”, como um instrumento, pelos estudantes, colaborando para que possam desenvolver habilidades e competências, previamente determinadas como boas e necessárias, a fim de que “resolvam demandas” da vida e se tornem pessoas plenamente desenvolvidas (BRASIL, 2018, p. 10). Ainda que não se possa dizer “a ética da BNCC é...” ou “para a BNCC ética é…”, o tom de seus usos nos sugeriu que se trata de uma concepção que se aproxima mais de um código de conduta a ser aprendido, do qual decorrerão as ações, bem como servirá de base para julgar as maneiras de viver dos outros, aceitando, respeitando e convivendo com as diferenças, como se elas fossem somente naturais e não produzidas.

Compreendemos que ao filósofo e à Filosofia e, portanto, ao professor de Filosofia, não cabe dizer, menos ainda prescrever o que se deve fazer. Isso é próprio de quem assume “partido” religioso e/ou moral e/ou legal. No que respeita às maneiras de viver, a Filosofia pode “inspirar” uma gestualidade ética, estética e política, por isso propomos que a ética, na condição de uma área, um campo, da Filosofia, seja desenvolvida como experimentação (DIAS, 2017). Outras tantas perspectivas podem ser inventadas, nas quais os professores, com as devidas competências constituídas em Licenciaturas de Filosofia, assumem a dupla responsabilidade ética, com seus estudantes e com a herança filosófica que receberam, e afirmam a posição de autores. Posição que os autoriza a criarem suas aulas, inventarem didáticas e produzirem currículos, nascidos do dia a dia da escola em que trabalham e vivem. Afinal, o porvir é aberto, o Eu e o Outro, assim como a verdade, estão em construção. A Filosofia é uma das principais expressões do que nos trouxe até aqui, ao lado das Ciências e das Artes, é o ponto de partida do que está por ser construído. Dar aos estudantes esse espólio é um dever nosso e do Estado, e um direito inalienável dos estudantes.

Apesar da espoliação sofrida pela Filosofia na Base, mostramos que ela está fortemente presente, prova de que não é possível ter um projeto de Educação para o país sem ela. Criemos experiências de pensamentos, nos espaços que temos. Afirmemos o poder inventivo que nos foi dado pela natureza, em favor da vida que é, por princípio, diferença (DELEUZE, 2001).

1A palavra “Filosofia” aparece no documento apenas três vezes, duas delas para informar que é uma das componentes das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; a outra quando menciona que o tempo é “matéria de reflexão” também dela (BRASIL, 2018, p. 30, 121, 125). Acerca da dimensão filosófica do pensamento, há cinco menções que duas vezes se repetem em termos de sentido: em torno de sua importância para a reflexão crítica, inclusive da categoria “trabalho”, como sugestão de usos de textos e fontes filosóficas para o desenvolvimento da compreensão discursiva e, também, sobre a origem da política como um problema filosófico.

2Detalhes desse movimento podem ser encontrados em Langòn et al. (2013)

3Disponível em <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/historico>. Acesso em 20 jun. 2020.

4Destacamos e recomendamos a leitura do texto “Uma formação formatada” em que a ANPEd, em 9/10/2019, apresenta sua posição cuidadosa e crítica sobre o “Texto referência - Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica”. Nele são evidenciados os elementos que põem a posição do CNE na contramão das preocupações dos movimentos de educadores e das entidades científicas da área e solicitao arquivamento do documento. O que não se concretizou, pois o CNE publicou, em 20/12/19, a Resolução (CNE/CP N.º 2) que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), praticamente não dando atenção alguma à crítica da ANPEd, mantendo a formatação única, em um modelo de formação técnico-instrumental, baseado na prática, com vistas a resolver problemas, dissociada da formação teórica no que respeita aos fundamentos da educação e da área que é objeto de estudo. A formação teórica, que, por excelência, é problematizadora, foi reduzida pela metade do tempo do curso. Ademais, tal Diretriz não leva em conta a extensão, que deveria estar associada ao ensino e à pesquisa. Disponível em <http://www.anped.org.br/news/posicao-da-anped-sobre-texto-referencia-dcn-e-BNCC-para-formacao-inicial-e-continuada-de>. Acesso em 17 jun. 2020.

5 Elizabeth Macedo (2014) fez um mapeamento dos “sujeitos” da construção da BNCC e, para além de agentes públicos, encontrou uma rede de “parceiros privados” advindos de “grandes corporações financeiras que deslocam impostos para suas fundações, produtores de materiais educacionais vinculados ou não às grandes empresas internacionais do setor, organizações não governamentais” (p. 1540). Não por acaso, esses parceiros advogam, em uníssono, por um currículo nacional, centralizado e homogêneo, capaz de passar por processos de avaliação com as mesmas características, permitindo, assim, controlar o que é ensinado e aprendido. Isso, segundo a autora, com a firme intenção de conter o que ela chama de “imponderável”, “aquilo que dá sentido à educação de qualidade. Uma educação que permite ao outro ser um outro singular” (p. 1553), capaz de inventar o que não foi inventado, o que sempre implica insegurança e medo, próprio da profissão docente que não é mera reprodutora, mas criadora de didáticas peculiares a cada docente que se inventa entre o intraduzível – de “imagens impensadas, signos desconhecidos, lugares inexistentes, tempos indefinidos, ideias inominadas, assinaturas, nomes próprios, poemas e sonhos” e o traduzido das matérias com as quais lida (CORAZZA, 2020, p. 7). Os “sujeitos” docentes da educação, aqueles que inventam e fazem a Aula, com suas matérias e seus alunos, sabem, porém, que a “docência dispõe-se a um cumprimento cujo fim é não sair a contento” (CORAZZA, 2020, p. 8).

6Para nós, foi curioso notar que o termo “moral” aparece uma única vez em todo o documento. Talvez isso sugira que a Base não se quer moralizante, no sentido de que não tem em perspectiva noções exatas de certo e errado, bem e mal, relativas a determinados princípios, costumes, normas e leis que seriam orientadores e regulativos dos comportamentos e dos modos de ser e viver dos estudantes (e professores) brasileiros. Entretanto, sabemos que não é pelo fato de a palavra não ser recorrente que seus sentidos e variações não estejam presentes. Essa quase-ausência não significa que a Base não prescreva, de diferentes modos, inclusive quando se refere à ética, uma educação moral, sobretudo se a ética for tratada como algo abstrato, externa ou transcendente à vida. Em suma, não se está autorizado a afirmar que a BNCC não tem “moral’, que não indique o que é bom e o que é mau dizer, pensar, sentir, fazer e daí estabeleça bases para julgar condutas e, assim, moralizar os “sujeitos” da educação. Afinal, um currículo nacional é uma das formas privilegiadasque o Estado tem para controlar e regular grande parte de sua população, assim como conduzir ascondutas humanas (CORAZZA, 2001). A “moral” da BNCC pode ser objeto de outra investigação, que, por ora, não nos interessa nessa busca por espólios éticos, os quais, talvez, tenham um fundo moralizante, como tantos sistemas éticos têm.

7Agradecemos ao amigo Dr. Marciano Spica, pela interlocução a respeito dos usos contemporâneos da noção de livre-arbítrio na Filosofia da Religião e na Filosofia da Mente. Indicamos um artigo de Filosofia da Mente que discute a noção de livre-arbítrio vinculada à inteligência artificial, tematização que pode ser interessante no âmbito das TDICs: “A questão do livre-arbítrio em John R. Searle: uma contraposição do naturalismo biológico ao fisicalismo e ao funcionalismo”. Disponível em <https://revistas.pucsp.br/cognitio/article/view/21883/18979>. Acesso em 23 jul. 2020. Reconhecemos, ainda, a presença da discussão em torno da noção de livre-arbítrio do ponto de vista jurídico, sobretudo para determinar o fundamento da culpabilidade e a consequente imputabilidade e responsabilidade jurídicas, o que, nos parece, deveria estar bem distante daquilo que cabe à educação em uma sociedade.

8Por que essa ideia não poderia muito bem subsidiar aqueles que defendem a redução da menoridade penal? E fortalecer as teses educacionais dos que defendem que as crianças aprendem só pela dor?

9A título de informação: a palavra “livre-arbítrio” simplesmente não aparece nas duas versões anteriores da BNCC, sendo que a segunda, com 652 páginas, previa a Filosofia e o Ensino religioso como componentes curriculares – nos quais seria legítimo, do ponto de vista da construção histórica do conhecimento nesses campos, abordar tal conceito – incluiu muitas sugestões dos participantes da consulta pública. Na Apresentação assinada pelo Ministro da Educação da época da publicação da versão final, Mendonça Filho, há a informação de que ela “é fruto de amplo processo de debate e negociação com diferentes atores do campo educacional e com a sociedade brasileira” (BRASIL, 2018, p. 5, grifos nossos). No entanto, considerando que, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a bancada evangélica do Congresso ganhou força, com as chamadas “pautas conservadoras”, nos assuntos de política educacional, avaliamos que não se trata apenas de um acaso que a palavra livre-arbítrio tenha aparecido no documento e que ela poderá ter seus sentidos mais fortalecidos, uma vez que recentemente os nomeados para o Conselho Nacional de Educação e o Ministro da Educação são assumidamente “conservadores nos costumes”, alguns deles diretamente ligados a igrejas evangélicas, que acabam misturando laicidade com uma única perspectiva religiosa.

10Mendonça Filho, também na Apresentação, afirma que a BNCC está “organizada em um todo articulado e coerente” (BRASIL, 2018, p. 5). Apresentamos, porém argumentos, apenas relacionados a poucos conceitos, evidenciando que não se trata de um documento tão coerente quanto se pretendeu. Outras incoerências já foram mostradas por outros pesquisadores, inclusive relativas ao seu processo de elaboração e aprovação, algumas estão em nossas referências. Supomos que, se mais professores pesquisarem e analisarem as partes específicas de suas áreas, encontrarão outras. Não vemos tais incoerências como um defeito, uma falha, um erro. Compreendemos que é impossível haver incoerências em um texto que é resultado de negociações “com diferentes atores do campo educacional e com a sociedade brasileira”, atores que, sabemos, são antagônicos, alguns posicionados em extremos inconciliáveis. Por isso, pomos em dúvida a suposta necessidade e urgência com que foi aprovada a versão final do documento, inclusive no CNE, como tão minuciosamente relata a conselheira Márcia Aguiar (2018). Assim como questionamos a necessidade da existência de uma Base Comum, talvez uma das coisas mais difíceis de se fazer na vida de um país, bem como a possibilidade de realização daquilo a que se propõe: “ser um todo articulado e coerente”.

11O documento insiste que, quanto aos recursos didáticos, se mobilizem “diferentes linguagens (textuais, imagéticas, artísticas, gestuais, digitais, tecnológicas, gráficas, cartográficas etc.) e formas de registros”, estimulando que se recorra a “práticas de cooperação” e a “trabalhos de campo (entrevistas, observações, consultas a acervos históricos etc.)” (BRASIL, 2018, p. 549). Portanto, o documento encoraja os professores para que não fiquem presos às salas de aulas, como é o costume na maior parte das escolas em que atuamos no interior do Paraná, nas quais trabalhamos como docentes, orientadoras de estágios e pesquisadoras.

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Recebido: 01 de Agosto de 2020; Aceito: 10 de Novembro de 2020

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