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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 10-Jan-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021008 

DOSSIÊ: FILOSOFIA E NEUROCIÊNCIAS: INTERSECÇÕES ENTRE AS CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

Pragmática em Marcelo Dascal: a relevância da controvérsia

Pragmatic in Marcelo Dascal: the relevance of the controversy

*Doutora em Filosofia pela Uni. Professora-Pesquisadora nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e em Letras da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: jaquelinestefani@yahoo.com.br

**Doutora em Letras. Professora-Pesquisadora nos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: carina.nider@gmail.com


Resumo

Este estudo tem por objetivo discutir a crise em que se encontra a filosofia da ciência a partir do enfraquecimento da lógica-positivista, tendo como base o proposto por Marcelo Dascal, que defende a ideia de que um estudo mais atento da controvérsia poderia colaborar no processo de evolução de questões científicas. Para tanto, o filósofo sugere um olhar pela perspectiva da pragmática, isto é, pela perspectiva da língua em uso. Em vista disso, são abordadas: a relação entre linguagem e ciência, as polêmicas geradas pela ciência e a relação entre pragmática e controvérsia. Esta investigação possibilita demonstrar a solidez dos fundamentos utilizados por Dascal, o que autoriza dar à controvérsia e à pragmática lugar de destaque na filosofia da ciência, orientando as modernas filosofias da linguagem na direção do uso da linguagem e da controvérsia como um espaço aberto para o novo, para o mundo real, cotidiano.

Palavras-chave Filosofia da ciência; Dascal; Controvérsia; Pragmática

Abstract

This study aims to discuss the crisis in which philosophy of science finds itself from the weakening of positivist logic, based on Marcelo Dascal’s proposal that defends the idea that a closer study to the controversy could collaborate in the process of evolution of scientific questions. For this purpose, the philosopher suggests a pragmatic perspective, that is, the perspective of the language in use. Therefore, the relationship between language and science, the controversies generated by science and the relationship between pragmatics and controversy are addressed. This investigation, allows to demonstrate the solidity of the foundations used by Dascal, which authorizes to give controversy and pragmatics a prominent place in the philosophy of science, guiding the modern philosophies of language towards the use of language and controversy as an open space for the new, for the ‘real world’, every day.

Keywords Philosophy of science; Dascal; Controversy; Pragmatics

Introdução

Com o declínio da filosofia lógico-positivista, a epistemologia e a história da ciência veem-se diante de um novo obstáculo que para Dascal (1994) está relacionado à ausência de estudos consistentes sobre a controvérsia por parte da filosofia da ciência, que, ao ignorá-la, desconsidera sua relevância para o avanço de questões científicas.

Não se pode ignorar que o avanço das ciências depende, exatamente, disso, das possibilidades de controvérsias que gera. É preciso admitir que toda teoria pode ser posta em xeque, o que não invalida seus méritos, pois, em razão dos questionamentos que provoca, faz a ciência progredir incessantemente.

Nas palavras de Popper, todo aquele que conhece, com propriedade, a técnica apropriada, deve poder colocar à prova um enunciado científico, no entanto não basta apenas falar sobre suas percepções e crenças, é preciso que formule “uma asserção que contradiga a nossa, fornecendo-nos indicações para submetê-la à prova”. (2007, p. 106).

Por óbvio, o pensamento de Popper gera controvérsias, como, por exemplo, as críticas feitas a ele por Kuhn, que rejeita sua ideia de falsificacionismo. Para Kuhn (2006) uma teoria (paradigma) somente poderia ser abandonada quando absolutamente enfraquecida, tornando-se incapaz de solucionar os problemas que se propõe investigar, momento em que, então, levaria a uma “revolução” da teoria, ignorando, completamente, a possibilidade de uma teoria ser falseada.

Diante disso, Dascal (1994) admite que a disputa entre normativismo e descritivismo apenas alimenta uma discussão árida e improdutiva. Para ele estaria na controvérsia uma possibilidade de conciliação entre a norma e a descrição, visando à produtividade das teorias científicas. Nesse sentido, o modelo que melhor se aplicaria, para servir como instrumento de análise da controvérsia, seria a pragmática, isto é, uma teoria pautada pelo uso da linguagem, não a restringindo apenas a seus aspectos semânticos e sintáticos. A linguagem, nessa perspectiva, deixa de ser vista apenas como um instrumento, pois passa a ser entendida como essencial para o desenvolvimento da ciência. O normativismo é falho, porque “sua noção principal, a de ‘justificação’ de uma teoria, essencialmente indutivista, e baseada em sua noção de ‘confirmação’, é insustentável”, ao passo que o problema do descritivismo é que a noção de que a ciência progride por meio de acúmulo de proposições de observação singulares é falho” (DASCAL, 1994, p. 74). Assim, o positivismo na ciência é problemático tanto em seu aspecto descritivo quanto normativo.

Difícil é definir a noção dascaliana de controvérsia sem antes compreender o contexto em que está inserida. Não obstante, a título introdutório, pode-se afirmar que a controvérsia é um tipo de polêmica em que há divergências não apenas no que tange às preferências e ao modo de pesquisar dos contendentes, mas igualmente acerca da metodologia empregada na resolução de problemas científicos. Chega-se a bom termo na controvérsia sempre por meio do uso de argumentação racional, no ajuizamento acerca de razões que acabam por fazer com que a tese de um dos contendentes prevaleça como a mais razoável. A controvérsia é um tipo dinâmico de polêmica que requer, continuamente, abertura por parte dos contendentes para poderem questionar os pressupostos epistemológicos por meio da própria característica hermenêutica que compõe a controvérsia. Apesar de ter a abertura, como característica central, a controvérsia não permite total arbitrariedade do desenvolvimento discursivo, pois segue alguma ordenação e regramento, para que possa chegar a bom termo.

A partir do exposto, este estudo busca trazer à discussão a importância de se considerar a controvérsia, na perspectiva de Dascal, para o processo de evolução de questões científicas. Para atender a esse objetivo, inicia-se por apresentar a relação entre linguagem e ciência. Na sequência, abordam-se as polêmicas presentes na ciência e, por fim, discute-se a relação entre pragmática e controvérsia.

1 Linguagem e ciência

Em Epistemologia, controvérsias e pragmática (1994), Dascal apresenta uma proposta diante do impasse em que, atualmente, se encontram a epistemologia e a história da ciência após a derrocada da filosofia lógico-positivista. A tese apresentada é que o impasse se deve ao esquecimento de um estudo aprofundado das controvérsias no seio da filosofia da ciência, posto que se negligenciou a função essencial da controvérsia na formação e evolução de questões científicas, principalmente à luz de um modelo pragmático de linguagem.

O fracasso da filosofia da ciência lógico-positivista ocorreu tanto no plano normativo quanto no descritivo. Popper foi o principal crítico, no que diz respeito ao plano normativo, ao afirmar que toda teoria científica deve ser considerada uma conjectura refutável; esse critério tem por consequência uma mudança na atitude do cientista, que deve estar disposto a abandonar uma teoria assim que essa tiver sido refutada. Para Popper (2007) o traço característico da ciência se encontra na possibilidade de se provar que uma teoria está errada e de corrigi-la ou substitui-la por outra melhor. O ponto central está na possibilidade de que provas empíricas falseiem enunciados científicos, e não, no acúmulo de observações singulares que comprovem experimentalmente teorias científicas. A observação é incapaz de provar que uma teoria é verdadeira, mas capaz de provar que uma teoria está errada.

No falsificacionismo popperiano, há que se identificar, inicialmente, problemas, lacunas no conhecimento ou fatos que ainda não encontram respostas na literatura atual; depois, hipóteses são propostas como respostas possíveis para esses problemas (quanto mais falseável é uma hipótese, mais científica ela será); após, são feitos críticas e experimentos intersubjetivos na tentativa de falsear as hipóteses propostas (o próprio cientista tentará falsear suas hipóteses); se elas resistirem aos testes, então se diz que a hipótese foi corroborada. O conhecimento científico progride por um processo de substituição ou renovação de suas teorias, e não, pelo acúmulo de certezas, segundo Popper (2007).

Se Popper foi o maior crítico da filosofia da ciência lógico-positivista, no que se refere ao plano normativo, no plano descritivo, o maior crítico foi Kuhn que, contrariamente aos positivistas, afirmava o crescimento do saber, não de forma progressivo-linear, mas “em ziguezague”.

Para Kuhn (2006) a progressão do conhecimento científico não se dá por acumulação da ciência. Se é possível falar em progresso científico, ou aprimoramento do saber, em Kuhn ele seria fruto não de um crescimento linear e gradual, mas de um movimento que ocorre por alternância entre crise/revolução/novo paradigma. É como se houvesse, sempre, um movimento de alternância de paradigmas na história da ciência, que criaria picos altos, em um gráfico ziguezague, e picos baixos, representando as crises e revoluções responsáveis pela queda de um paradigma vigente e a subida de um paradigma novo, levando em conta fatores sociológicos. Paradigmas, segundo Kuhn (2006), são suposições teóricas mais técnicas (metodologia) adotadas por uma comunidade científica específica. O que distingue a ciência daquilo que não é ciência é a existência de um paradigma que a sustente.

Os cientistas procuram resolver os problemas e desenvolver o potencial de suas teorias e, assim, comprovar que estão corretas, conforme o paradigma vigente. Kuhn discorda da teoria popperiana, pois fatos, provas e casos novos que conflitam com as teorias vigentes do paradigma, tendem a ser ignorados pelos cientistas. Somente em casos críticos, quando os problemas se acumulam e viram anomalias, que não encontram solução (momentos de crise/revolução), é que podem abandonar uma teoria (paradigma), substituindo-a por outra melhor. Somente quando uma anomalia atacar resistentemente os fundamentos mais básicos de um paradigma é que a confiança nesse paradigma pode ser solapada (ou quando a anomalia for importante para alguma necessidade social urgente). Detectar uma crise na ciência depende da análise de psicólogos e historiadores. Quando um paradigma é enfraquecido, e seus seguidores perdem a confiança nele, chega à revolução.

Tanto Kuhn quanto Lakatos rejeitam o falsificacionismo popperiano. Para Lakatos (apudCHALMERS, 2000), a ciência cresce por superação de teorias ou programas de pesquisa. Um programa de pesquisa é científico apenas se: a) é coerente; e b) leva à descoberta de fenômenos novos. A heurística positiva de Lakatos indica como o núcleo irredutível (hipótese básica) pode ser suplantado, aparado pelo cinturão. O paradigma de Kuhn (teoria mais metodologia) equivale ao núcleo irredutível de Lakatos. O núcleo irredutível de um programa de pesquisa é a característica que o define. Se as observações contrariarem o núcleo (hipótese básica), esse não deve ser abolido, uma vez que observações não derrubam teorias, mas auxiliam em seu progresso por possibilitarem reformulações e modificações no cinturão protetor.

De outro lado, a heurística negativa serve para preservar o núcleo irredutível (hipótese básica), estando ele protegido por um cinturão protetor composto por hipóteses secundárias. A impossibilidade de falsear o núcleo irredutível é opção de uma determinada comunidade científica. De acordo com Chalmers (2000), confirmações são mais relevantes para Lakatos do que falsificações. O progresso na ciência ocorre quando um programa de pesquisa degenerescente é trocado por um mais progressivo.

Feyerabend (2007), por sua vez, pôs em xeque qualquer metodologia normativa, o que levou à negação da possibilidade de elaborar quaisquer critérios universais de legitimação do conhecimento científico, salienta Dascal (1994). Consoante Feyerabend (2007), na ciência, não há regras que estabeleçam padrões universais que devam ser seguidos como metodologia da pesquisa. Nenhuma das metodologias da ciência que foram propostas foram bem-sucedidas; elas fracassaram em fornecer regras para orientar as atividades dos cientistas. O fazer científico não deve ser restringido por regras de procedimentos a priori. Portanto, não se pode insistir que um cientista adote, obrigatoriamente, certo procedimento metodológico.

O que se observa, historicamente, é que toda regra que foi proposta para ser seguida foi desrespeitada. No início de uma investigação, cada pesquisador faz aquilo que mais lhe agrada. Para a produção do conhecimento científico vale tudo. O que, de fato, existe na produção científica é um anarquismo metodológico. Não há regra por mais alicerçada que esteja uma teoria do conhecimento, que não tenha sido violada em uma ocasião ou outra. Tais violações são necessárias para o progresso da ciência e do conhecimento científico.

Para Feyerabend (2007), diferentemente de Lakatos, a ciência não é, necessariamente, superior a outras formas de conhecimento. Para afirmar tal coisa, é preciso conhecer, a fundo, os objetivos e métodos de outras formas de saber. O que distingue o cientista do charlatão é que esse adota uma posição pacífica ante o que existe, enquanto aquele investiga as dificuldades do conhecimento, as objeções às suas teorias, tentando adaptá-las, corrigi-las, atualizá-las, etc.

Os sentidos e interpretações de conceitos dependem do contexto em que ocorrem. Em alguns casos, é quase impossível comparar ou escolher entre duas teorias, pois seus princípios fundamentais são radicalmente diferentes (assim como entre dois paradigmas de Kuhn). Nesse caso, as duas teorias são incomensuráveis. Porém, ainda que duas teorias sejam incomensuráveis, elas podem, de acordo com alguns critérios, ser comparadas. Os critérios são: linearidade da teoria, coerência e segurança.

Em último caso, a escolha entre critérios e teorias incomensuráveis é subjetiva, tais como: julgamentos estéticos, de gosto, preconceitos metafísicos, etc. Feyerabend encoraja a liberdade dos indivíduos de optar entre ciência ou outras formas de conhecimento, assim como encoraja a remoção de todas as restrições metodológicas. “A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordem” (2007, p. 20).

De acordo com Dascal (1994), ambas as faces do fracasso positivista, tanto em sua forma normativa quanto descritiva, estão ligadas intimamente. O impasse fundamenta-se em que, até então, não se encontrou uma base de harmonização entre o normativismo e o descritivismo, posto que sempre se tendeu a subordinar, ora um, ora outro. Vemos isso, por exemplo, em Lakatos cujo aspecto normativo da filosofia é o fator determinante, ou em Kuhn que, ao contrário de Lakatos, outorgou prioridade ao descritivismo em face da natureza débil da normatividade. O grande problema apontado por Dascal (1994) é que sempre se opôs norma a descrição; colocou-se, de um lado, uma racionalidade de caráter puramente formal e, de outro, uma descritividade anterior a qualquer normatividade.

O que Dascal (1994) propõe é superar esse impasse diminuindo essa suposta distância abissal que separaria descrição de norma, através de uma inclusão dos conteúdos sensíveis na forma vazia da norma, reconhecendo uma racionalidade mais branda. Além disso, reconhecer que a prática científica não pode ser descrita de forma aleatória e independente do papel constitutivo dessas razões.

Em A polêmica na ciência (1999b), Dascal afirma que uma troca em que estejam presentes os objetivos de convencimento e persuasão, seja do oponente, seja de um público em geral, só pode ocorrer numa instância retórica, e esse é o caso da história da ciência. Nesse sentido, para Dascal, o conhecimento científico não prescinde da persuasão. Além disso, para que se estabeleçam novas teorias, há que se convencer o oponente e o público culto, ainda que não especializado, fato que pode ser observado, por exemplo, na ciência clássica dos séculos XVII e XVIII.

2 Polêmicas

Segundo Dascal (1999b), seja por meio das disputas, das discussões ou das controvérsias, as polêmicas não só estiveram sempre presentes na história da ciência, mas também tiveram papel fundamental na formação, evolução e avaliação das teorias científicas. Isso devido ao caráter dialógico da ciência, cujo desenvolvimento foi e é permeado, até hoje, por trocas de ideias entre os pares e o público em geral, seja num teor mais cooperativo, seja num tom mais polêmico.

Três seriam os pontos essenciais atribuídos às polêmicas por Dascal ao longo da história da ciência: 1) as críticas elaboradas levam o autor a explicitar o que estava implícito, além de alterar as teses de modo a superar as objeções; 2) as polêmicas ditam o que é pressuposto e o que deve ser justificado; e 3) é por meio das polêmicas que emergem a “natureza e os limites da racionalidade tal como é posta em ação” (DASCAL, 1999b, p. 69), tendo em vista que elas dão os critérios históricos e geográficos do que distingue o que pode ser considerado válido daquilo que não pode.

As polêmicas, igualmente, dividem-se em três tipos: 1) a disputa; 2) a controvérsia; e 3) a discussão. Conforme Dascal (1999b), as polêmicas que ocorrem e ocorreram na história da ciência, na sua maioria, aparecem com traços das três instâncias apresentadas e não de forma pura. Inclusive entre matemáticos, as polêmicas que, em rigor, poderiam ser enquadradas na discussão, cujo resultado se dá pela prova ou demonstração, quase sempre acabam tendo traços discursivos próprios à controvérsia ou à disputa. Disso se conclui a necessidade e a presença de argumentos, para além da prova objetiva, no intuito de convencer seus oponentes.

O quadro comparativo que segue ilustra as diferenças e semelhanças entre essa tripartição proposta por Dascal:

Quadro 1 Tripartição proposta por Dascal 

DISPUTA (dialética) CONTROVÉRSIA (retórica) DISCUSSÃO (analítica)
Diferença de atitude ou de gosto; Não é decidível como a discussão, nem indecidível como a disputa; Os métodos, pressupostos e objetivos são comuns;
Não há verdadeiro esforço de persuasão do adversário; Inicia em um ponto, mas se estende rapidamente a outros;
A oposição de atitudes oblitera o fundo comum; As opiniões diferem muito no que tange à interpretação, aos fundamentos, ao sentido e à força dos argumentos, métodos, objetivos etc.;
Se decide por intervenção externa (sorteio, tribunal); Tendem a ser longas;
A decisão é imposta; não é necessária mudança na opinião inicial; Nenhum argumento é decisivo, apenas inclina a “balança da razão” para um ou outro lado; A decisão se dá pela apresentação de demonstrações ou provas;
Seu objetivo estratégico é vencer através de estratagemas; Seu objetivo estratégico é convencer através do argumento; Seu objetivo estratégico é determinar a verdade através da prova;
O estratagema não respeita, necessariamente, as leis da lógica, e sua meta é reduzir o oponente ao silêncio; O argumento tende a persuadir racionalmente; A prova apoia-se na lógica e na evidência experimental;
Dirige-se à crença; Dirige-se à crença; Dirige-se à verdade;
Motivos razoáveis e aceitáveis; Motivos evidentes e incontestáveis;

Fonte: Elaborado pelas autoras.

3 Controvérsia, disputa e discussão

Para Dascal (1994) o que possibilita a aproximação entre norma e descrição, racionalidade e realidade é a controvérsia, posto que é indispensável na formação, evolução e avaliação das teorias científicas, por conter, em seu cerne, a possibilidade de uma crítica séria, método que permite engendrar e controlar a estrutura (forma) e o conteúdo das teorias científicas. Uma pesquisa das controvérsias faz-se necessária na constituição adequada da história e do fazer científico. Em síntese, as controvérsias fazem parte da história da ciência no seu exercício de atividade crítica, constituindo, de forma dialógica, o sentido das teorias, possibilitando mudanças e inovações.

A controvérsia só é possível se houver, ao menos, duas pessoas em um diálogo vivo, real e ativo, fazendo uso da linguagem, dirigindo-se uma a outra, confrontando opiniões, teorias, argumentos... A controvérsia contém a importante característica da imprevisibilidade, da abertura ao novo, propiciando esclarecimentos que podem levar à inovação. Dentro do conjunto denominado por Dascal (1994) de polêmicas, a controvérsia encontra-se entre a discussão e a disputa; essas três formas de polêmica são tomadas de modo ideal, para que se possibilite a análise, elaborando suas diferenças e semelhanças, porém, como o próprio autor esclarece, no cotidiano, as três formas aparecem misturadas não sendo possível, à primeira vista, a identificação do modo dominante, requerendo, para tanto, uma análise pormenorizada e atenta do diálogo.

A discussão caracteriza-se pela raiz do problema que é, frequentemente, um erro relativo a algum conceito; sua solução, portanto, estaria na correção desse erro. A disputa, por sua vez, caracteriza-se pela diferença de atitudes, sentimentos ou preferências entre os contendentes; é, assim, insolúvel. Já a controvérsia é uma polêmica que envolve “tanto atitudes e preferências opostas como desacordos sobre os métodos vigentes para solucionar os problemas” (DASCAL, 1994, p. 79). A oposição, na controvérsia, não é uma simples questão de erro, tampouco se reduz a conflitos insolúveis de sentimentos e preferências; seu procedimento alcança êxito não quando a controvérsia se soluciona ou se dissolve, mas se resolve quando há argumentos que inclinam a “balança da razão” em favor de algum dos contendentes.

Algumas características aparecem como necessárias à controvérsia: a) não se limita ao problema inicial que a moveu, mas se amplia em extensão e profundidade; b) durante a ampliação das problemáticas, os contendentes questionam os pressupostos que se encontram na base do discurso do adversário, sejam eles metodológicos, factuais, ou conceituais; c) o aspecto hermenêutico é de suma importância, posto que, a cada momento, questiona-se a interpretação correta dos dados, da linguagem, das teorias, da metodologia, etc.; d) a abertura contida na controvérsia é, talvez, sua característica mais importante e provém do caráter dinâmico da problemática, do questionamento contínuo dos pressupostos e da liberdade hermenêutica; e) vinculada à abertura está a característica do fechamento das controvérsias, pois esse sempre é um poder de decisão contingente, provisório; é um encerrar sem fechar; e f) a abertura, mesmo que não seja regida por regras codificadas, manifestam alguma forma de ordem ou sistematicidade, regras débeis que não suprimem a abertura essencial, porém, suficientes para que não tornem o desenvolvimento totalmente arbitrário.

Elucidadas as controvérsias, Dascal (1994) afirma que nem as formas de normativismo nem as formas de descritivismo conhecidas permitem a existência de controvérsias na filosofia da ciência em seu papel de formação, evolução e avaliação das teorias. Isso se deve ao fato de que as posições clássicas de normativismo e descritivismo não permitem uma ou mais dessas características essenciais das controvérsias descritas acima, deixando espaço apenas àquela polaridade estéril: discussão e disputa. Enquanto o descritivismo falha por minimizar a autonomia dos processos internos de evolução da ciência, o normativismo falha por exagerá-la; em ambos os casos há um fechamento do espaço da crítica legítima; essa tese aplica-se à Kuhn, Popper, Lakatos e Kant.

O erro das teorias vigentes no tocante à controvérsia, apontado por Dascal (1994), é a dicotomia com que reduzem a totalidade das polêmicas (discussão e disputa); por um lado, há a polêmica estritamente racional, que pode ser solucionada por meio de regras rígidas e, por outro, há as polêmicas insolúveis, aporéticas, irracionais. A tese de Dascal (1994, p. 90) é encontrar o meio- termo, um ponto intermediário entre ambas, ou seja, uma terceira alternativa que “mostre que entre a racionalidade dura (puramente ‘calculativa’ ou ‘lógica’) e a arbitrariedade existe a possibilidade de uma racionalidade ‘soft’, e que as controvérsias pertencem a esta esfera”.

Para Dascal, em entrevista dada a Pondé e publicada na Folha de S. Paulo, nos anos 2000, dado que o conhecimento científico é resultante de interações argumentativas, analisar a ciência por meio da argumentação e do que Dascal chama de controvérsias é fundamental, pois a controvérsia “é a crítica dialógica de todo e qualquer critério: podem-se questionar todos os árbitros e, com essa recusa, estabelece-se dentro do diálogo a pressão em busca de parâmetros mais fortes com relação às refutações” (DASCAL, 2000). Na mesma entrevista, Dascal afirma que sua teoria é, em certo sentido, uma correção das teses de T. Kuhn:

Ele [Kuhn] diz que o meio do qual surgem as hipóteses anormais e dissonantes é da ordem, de certa forma, do acaso. Não haveria como estabelecer nenhum padrão de racionalidade no processo de produção dessas teorias anômalas. Aí é que se encontra o importante papel do percurso histórico que buscamos fazer ao estudar empiricamente o século XVII, momento dominado pela prática da controvérsia em todos os níveis do saber

(2000, s/p).

Dascal ilustra sua teoria com a controvérsia entre Leibniz e Newton acerca do cálculo infinitesimal, afirmando que a descoberta de tal cálculo configura-se, “de fato, como [...] resultado da controvérsia entre os dois pesquisadores, e não algo que tenha simplesmente surgido do nada e que, portanto, só a partir desse ‘surgimento do nada’ ter-se-ia transformado em objeto ou causa de disputa entre paradigmas” (2000, s/p). Assim, na própria reconstrução da controvérsia entre Leibniz e Newton, é que surge, posteriormente, o objeto que será tido como desencadeador da controvérsia ela mesma.

4 Pragmática e controvérsia

O modelo proposto por Dascal (1994, p. 92), para servir de instrumento na análise das controvérsias, é a pragmática, a teoria dos usos da linguagem, pois “nenhum ato de linguagem num contexto polêmico pode ser interpretado somente com base na sua semântica e na sua sintaxe”. Essa proposta implica admitir o papel essencial da linguagem não apenas na ciência, mas também no pensamento, posto que a linguagem não é um mero instrumento utilizado para expressar o pensamento ou o conhecimento, já adquiridos anteriormente, mas a própria condição de possibilidade desse conhecimento.

Dascal (1994) entende que certos aspectos da pragmática fazem dela um modelo adequado para a análise da controvérsia, tais como: a) a pragmática coexiste com a semântica; enquanto essa lida com a codificação dos significados num sistema de regra, a pragmática serve-se desse sistema de forma flexível; pragmática e semântica combinam fechamento e abertura sem prejuízo da eficácia do sistema; b) a pragmática é regida por normas de natureza heurística, suas conclusões são aceitas se não houver razões mais fortes para deixá-las de lado; assim, a pragmática é um bom modelo de normatividade não rígida, de racionalidade soft; e c) a interpretação pragmática consiste em atribuir a um falante (embasada no seu comportamento linguístico e no contexto) uma intenção comunicativa, que seria a própria causa desse comportamento. Em síntese, a pragmática é “um exemplo da possibilidade de um sistema normativo não arbitrário, contingente e variável, cuja não arbitrariedade, contudo, não necessita ser garantida por uma Razão universal imune à mudança e à crítica” (DASCAL, 1994, p. 94).

Uma controvérsia, normalmente, surge a partir da discordância de diferentes tópicos que gravitam em torno de uma divergência central. Nessas situações, um debate fundamentado se estabelece, no qual a posição dos opositores tende a tornar-se mais polarizada e visceral.

Dascal (2003) destaca que controvérsias literárias, científicas e filosóficas ocorrem em textos escritos, nos quais tanto a crítica quanto a resposta, em geral, têm por característica o diálogo, como se os interlocutores estivessem um diante do outro. De fato, não se pode pensar nesse diálogo no sentido strito, pois, mesmo que mantenham traços de diálogo, há diferenças significativas.

Embora seus estudos sobre a controvérsia tenham se voltado muito mais à filosofia, Dascal (2003) acredita que podem ser aplicados em diferentes classes de controvérsia.

Segundo o filósofo, sua aplicação unicamente pragmática dos diálogos às controvérsias se deve ao fato de a semântica não ter uma abordagem capaz de apreender as propriedades das controvérsias. A semântica, no máximo, caracterizaria uma controvérsia pela presença de determinadas relações lógicas diante das asserções feitas pelos litigantes.

Para que fosse possível uma análise lógica e semântica da controvérsia, explica Dascal (2003), seria necessário identificar o que há de substantivo nas declarações dos oponentes, requerendo, ainda, uma dupla abstração. Em primeiro lugar, os possíveis problemas de interpretação dos significados pretendidos, em textos ou expressões da controvérsia, devem ser solucionados. Em segundo lugar, devem ser abstraídos elementos da controvérsia que possam ser considerados apenas retóricos ou externos ao núcleo da questão. Seu entendimento é o de que

uma controvérsia real nunca é uma questão de uma única diferença de opinião sobre qualquer questão. Para provocar uma controvérsia, a discordância geralmente se manifesta em vários tópicos, que se agrupam em torno de alguma suposta divergência central3

(DASCAL, 2003, p. 281).

Mas como a pragmática atua no sentido de compreender as especificidades das controvérsias? Inicialmente, é preciso ter presente que se trata de uma teoria dos usos sociais da linguagem. No caso específico de controvérsia, não se está diante de uma conversa, em que as partes alternam seus enunciados; trata-se de uma sequência de textos que podem ser mais ou menos extensos, podendo conter respostas não apenas a um, mas a vários aspectos do texto anterior do contendor.

Dascal (2003) defende a tese de que a estrutura de uma controvérsia é essencialmente pragmática e, em comparação com a conversa, o que é essencial da controvérsia é que essa se desenvolve como um padrão cruzado de demandas que, primeiramente, se identifica para, depois, seguir processos consecutivos, que acabam por requerer novas demandas, etc. Assim, a semelhança entre conversas e controvérsias está no julgamento de cada movimento dos interlocutores e dizem respeito, antes de tudo, às interpretações como práticas pragmáticas.

Observe-se que outra distinção pragmática entre a conversa e a controvérsia, referida pelo filósofo, é que aquela, no mais das vezes, ocorre de maneira implícita, atenuada, enquanto essa se dá de forma explícita e problematizadora. Uma conversa é um jogo de cooperação e, por isso, há uma série de restrições que é imposta, entre elas, a necessidade de o orador primar pela clareza de suas contribuições, bem como de o destinatário esforçar-se para compreender o que o orador objetiva, supondo que o princípio da cooperação esteja sendo respeitado. Esse princípio seria o que possibilitaria a interpretação pragmática de enunciados que o subvertem, revelando significados indiretos.

De acordo com essa suposição, cada nova contribuição em uma conversa seria relevante para o objetivo em questão, respeitando a máxima da relação de Grice,4 respondendo a uma contribuição anterior (DASCAL, 2003). Percebe-se que, na perspectiva de Dascal (2003), a estrutura sequencial de uma conversa é essencialmente pragmática, dado atender às noções pragmáticas de relevância e demanda conversacional.

Em suma, a concepção pragmática proposta por Dascal (1999a) permite explicar não só a comunicação comum, mas também a flexibilidade da linguagem que, por meio de modelos convencionais disponíveis a todos e de intenções comunicativas, assegura algo novo e inesperado. Para ele a pragmática não consiste apenas em recomendações para a vida prática, uma vez que pode atingir níveis de abstração teórica como de qualquer outra ciência, revelando-se, verdadeiramente, um instrumento de análise de controvérsias existentes na ciência.

5 Considerações finais

Dascal (1994) parte de um problema: engendrar uma tese que possibilite sair da crise em que se encontra a filosofia da ciência. Ao término do artigo, temos alguns pontos importantes para enumerar referentes à tese principal: ampliar o espaço da crítica séria na filosofia da ciência, entrelaçar abertura caótica com fechamento rígido, mediar norma e descrição, desenvolver uma racionalidade mais soft, ou seja, mais ampla, mais flexível, pesquisar o produtivo papel da controvérsia na ciência por uma via de análise pragmática: tal é o projeto do autor.

Dascal utiliza fundamentos sólidos em uma tentativa de ampliar o âmbito da razão (em sua moderna versão), dando à controvérsia e à pragmática lugares centrais na filosofia da ciência. Tal proposta tende a direcionar as hodiernas filosofias da linguagem ao mundo real, cotidiano, do uso da linguagem e da controvérsia como um legítimo e profícuo espaço para o surgimento do novo.

A argumentação está presente em todas as relações humanas. Nessa relação contínua intersubjetiva, sempre há alguém querendo dizer alguma coisa, e alguém tentando compreender um argumento. Uma análise da pragmática obtém maior sucesso quando é operada, interdisciplinarmente, pela linguística, pelo Direito e pela filosofia, tomando em conta sua relação com a retórica, a metáfora, a arte e a hermenêutica. O encontro entre semântica e pragmática é complementar e não combativo, pois mesmo as elocuções literais ou transparentes precisam de uma análise pragmática, para que sejam entendidas como literais ou transparentes.

A importância do contexto, em todo ato compreensivo, é requerida tanto no nível semântico quanto no pragmático; afinal, sem informação contextual, uma sentença não pode expressar condições de verdade.

3No original: “[...] an actual controversy is never a matter of a single difference of opinion on any issue. In order to give rise to a controversy, disagreement generally manifests itself in a range of topics, which cluster around some presumed central divergence” (DASCAL, 2003, p. 281).

4Certamente foram imprescindíveis as contribuições de Grice para a pragmática e a teoria da controvérsia dascaliana. Contudo, abordar tais contribuições excederia o escopo do presente artigo.

Referências

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Recebido: 18 de Maio de 2020; Aceito: 20 de Julho de 2020

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