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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 01-Jun-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021042 

DOSSIÊ: RELIGIÃO E POLÍTICA: PERSPECTIVAS, TRADIÇÕES E DESAFIOS

Religião e educação: elementos para a autotransformação do ser humano

Religion and education: elements for self-transformation of the human being

Amarildo Trevisan* 
http://orcid.org/0000-0002-3575-4369

Gary Camargo da Luz** 

*Professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Professor colaborador no PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Pesquisador PQ-1D – CNPq. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Imaculada Conceição. (Fafimc). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-Doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III (UC3M), da Comunidade de Madri. E-mail: amarildo1.trevisan@gmail.com

**Acadêmico no curso de Licenciatura em Ciência da Religião da UFSM. E-mail: garydoc@hotmail.com.br


Resumo

Esta ilustração tem por objetivo apresentar as contribuições da religião, como alerta, para o distanciamento dos diversos tipos de criminalidade. Identifica quais são os benefícios que a experiência religiosa – mais especificamente, os sentimentos de fé e religiosidade – traz para a pessoa que se encontra em situação de conflito com a lei e à margem da sociedade devido a atos cometidos contra as normas estabelecidas para a convivência harmônica da sociedade. Além disso, procura apresentar fatores sociais imbricados com a situação delituosa, ou seja, elementos que podem contribuir para que o indivíduo se incline para a desventura. Na execução do presente estudo, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, a partir da consulta a livros e artigos científicos, teses e monografias afins sobre o tema. Além disso, buscou-se problematizar tais situações a partir das ilustrações do francês René Girard (1990), que apresenta suas teorias do desejo mimético e do bode expiatório. Há, também, respaldo em outros autores, entre eles Friedrich Nietzsche (2014), Karl Marx (1983) e Jessé Souza (2018). Por conseguinte, apresenta várias contribuições que a religião pode promover a pessoas que se encontram em situação de criminalidade, como também procurou identificar o papel da religião dentro de uma sociedade. Dessa forma, o texto visa a expor algumas das contribuições da religião que foram encontradas na pesquisa bibliográfica realizada, a fim de compreender como o sentimento de fé e religiosidade pode beneficiar as pessoas, de modo geral, mas também àquelas que hoje, por determinados motivos, encontram-se em situação desfavorável, ou seja, em situação de delinquência e também aqueles que podem estar inclinados a atos considerados antissociais.

Palavras-chave Religião; Criminalidade; Fé; Religiosidade; Fatores sociais

Abstract

This illustration aims to present the contributions of religion, as an alert, to the distancing from different types of criminality. It identifies which benefits the religious experience, more specifically, the feelings of faith and religiosity. It brings to the person who is in a situation of delinquency and the margin of society, due to his acts committed against the norms established for the harmonious coexistence of society. In addition, it seeks to present social factors intertwined with the criminality situation, that is, elements that can contribute to the individual’s inclination towards disgrace. Therefore, in the execution of the present study, bibliographic research was used, based on books and scientific articles. In addition, theses and similar monographs were also consulted, whose main bases are the illustrations of the Frenchman, René Girard (1990), who presents his theories of mimetic desire and scapegoat. There is also support from other authors, among them, Friedrich Nietzsche (2014), Karl Marx (1983) and Jessé Souza (2018). Consequently, it presents several contributions that religion can promote to people who are in a situation of criminality, as well as sought to identify the role of religion within a society. Thus, the text aims to expose some of the contributions of religion that were found in the bibliographic research carried out, in order to understand how the feeling of faith and religiosity can benefit people in general, but also those who today, for certain reasons, are in an unfavorable situation, that is, in a situation of delinquency and also those who may be inclined to acts considered anti-social.

Keywords Religion; Crime; Faith; Religiosity; Social factors

1 Introdução

A predileção sobre esse tema tem seu caráter voltado a questões sociais, surgindo pelo interesse sobre o descaso e o abandono de grande parcela populacional destituída das condições sociais mínimas, como moradia, alimentação, saneamento básico e educação, além de uma verdadeira sabotagem que é feita com essa classe, mais conhecida como classe baixa ou como a ralé, termo provocativo e usado por Jessé Souza, em seu livro A ralé brasileira (2018). Dessa forma, se pode entender por que alguns, para não dizer a maioria, já nascem destinados ao fracasso social, ao fracasso educacional e, com isso, acabam, por vezes, pendendo para a marginalidade e o crime individual e/ou organizado.

Assim, uma grande parte da população não tem condições de competir por melhores oportunidades de vida de maneira igualitária. Cita-se o caso da educação pública, que tem o escopo muitas vezes de formar pessoas para o mercado de trabalho, ou seja, para o serviço braçal explorado. Entende-se que, para essa aprendizagem ser efetiva, necessita de condições que passem por uma alimentação adequada, por um ambiente familiar estruturado, pois a afetividade advinda dos pais ou responsáveis é essencial no desenvolvimento do autocontrole que, por sua vez, beneficia a aprendizagem.

Portanto, esses, sabotados pelo Estado, que são veladamente mandados por um outro poder que domina a sociedade, desapropria-os das condições básicas para poder viver, e, com isso, compreende-se que alguns desses fatores influenciam para o caminho da criminalidade. Entende-se que, para eles, talvez, essa, seja a única forma de ascensão em seu mundo, e, assim, talvez tenha sido a única oportunidade que tiveram ao seu alcance, devido ao ambiente e a outros fatores, nos quais estiveram imersos durante sua formação, nas esferas sociais, éticas e morais. Também despertou o interesse em saber como e, de que maneira, a religião poderia contribuir para uma mudança de vida dessas pessoas que, por motivos variados, acabaram na vida marginalizada. Ademais, é importante salientar que o termo religião, nesse sentido, é entendido como a fé, a religiosidade e as práticas religiosas, não se tratando, especificamente, de instituições religiosas, ou seja, o estudo não tem por incumbência privilegiar algum tipo de crença, mas o poder da fé e da espiritualidade na modificação positiva das ações humanas.

A partir de uma pesquisa através da base de dados do Google Scholar, SciELO, Fundação Getúlio Vargas: portal FGV, Portal-Periódicos Capes, Athena-Unesp, utilizando-se palavras-chave como “violência, criminalidade, fé, religião e fatores sociais”, procurou-se relacionar os termos e palavras que tivessem compatibilidade com a temática. Inicialmente, foram selecionados vinte e seis trabalhos, os quais tinham relação com as palavras-chave pesquisadas, entre eles, teses, monografias, dissertações e artigos. Não obstante, dessas obras, foram lidos resumos e conclusões a fim de ratificar se os mesmos iam ao encontro do que se pesquisava, isto é, as contribuições da religião para a mudança de comportamentos e distanciamento da violência da criminalidade. Dessa maneira, apenas 15 trabalhos, todos artigos científicos, foram entendidos como propícios para execução de sua leitura. Ademais, posteriormente a essa leitura exploratória, também foram realizados mais três tipos de leitura: seletiva, analítica e interpretativa, tendo por intuito aprofundar o conhecimento sobre o assunto. Além disso, buscou-se problematizar tais situações a partir das ilustrações do francês René Girard (1990), o qual apresenta suas teorias do desejo mimético e do bode expiatório, buscando respaldo em outros autores, como Friedrich Nietzsche (2014), Karl Marx (1983) e Jessé Souza (2018).

Assim, a ideia do presente estudo tem como intuito debater o modo como a religião pode contribuir para o distanciamento da criminalidade. A pesquisa tem por escopo compreender de que forma a religião possibilita mudanças de comportamento do sujeito em conflito com a lei, ou que se encontra inclinado ao desvio das normas sociais e o que ela introduz para sua mudança de visão da realidade.

2 O crescimento da violência e o sistema prisional brasileiro

Observa-se que a criminalidade no mundo, bem como no Brasil, vem crescendo a cada dia, causando medo e insegurança a toda sociedade. São percebidos os mais variados tipos de delito cometidos, desde os mais simples até os mais complexos e, na maioria das vezes, utilizando de violência para obter aquilo que se deseja. Entre esses atos antissociais, podemos citar os furtos simples e qualificados, os roubos, os sequestros e homicídios que, na maioria das vezes, são cometidos por motivos fúteis devido à posse de armas sem qualquer tipo de legalidade, ou seja, sem o porte e sem o seu devido registro. Segundo informações da Organização Não Governamental “Viva Rio”, no ano de 2005, obtidas através do estudo Religião e criminalidade: da cultura de morte à cultura de paz e do perdão” (2005), de autoria de Robson Sávio Reis Souza, no Brasil existiam em torno de 8 milhões de armas de fogo e que 3 milhões eram ilegais. Dessa maneira, ocorre uma facilitação para o cometimento de homicídios e outros que façam uso de arma para intimidação de vítimas.

Além disso, em consulta realizada no site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no Atlas da violência, pôde-se obter dados que confirmam um crescimento muito alto da violência no Brasil. Foi feita uma comparação entre os anos de 2007 a 2017, a fim de constatar essa elevação. Observou-se que o número de homicídios, nesse interstício, foi de 48.219 em 2007 para 65.602 no ano de 2017. E homicídios por arma de fogo, em 2017, chegou a 47.217, se comparado a 2007, quando foram registrados 34.147 casos. Nesse período, constatou-se que os maiores índices de homicídios no Brasil foram registrados no Estado da Bahia com 7.487. Já, onde ocorreu o maior crescimento de assassinatos foi no Estado do Acre, com elevação de 276%. Além dos assassinatos, também se observou uma ampliação nos crimes, envolvendo estupros, pois, no ano de 2011, os casos encontravam-se na casa dos 12.087 e, no pequeno intervalo de 4 anos, até 2016, ocorreu o aumento para 22.918.

Com efeito, a sociedade cansada pelo medo e movida pela indignação acaba legitimando as ações do Estado que, por sua vez, usa de métodos repressivos para coibir e retirar, do seio da comunidade, aqueles identificados como perigosos ao bom convívio social, e a maneira mais conhecida por todos, para isolar esses indivíduos é o cárcere. Esse tipo de punição pode ser entendido como uma espécie de sacrifício, o qual pune uma minoria para que seja mantida a convivência harmônica entre todos em uma sociedade, freando seus desejos violentos que podem se originar em tensões internas, rivalidades e em toda forma velada de violência: “Uma verdadeira operação de transferência coletiva, efetuada à custa da vítima, operação relacionada às tensões internas, aos rancores, às rivalidades e a todas as veleidades recíprocas de agressão no seio da comunidade” (GIRARD, 1990, p. 20).

A prisão por sua vez é propagada como uma das formas mais efetivas de ressocialização sendo o Estado o responsável por essa mudança comportamental do sujeito, porém, para Souza (2018, p. 458), esse tipo de propaganda já implantada no inconsciente da população, que afirma que a prisão é um local em que o ser humano irá passar por um processo de mudança e, assim, ser reintegrado novamente à sociedade, não passa de um “consenso inarticulado” ou falsa propaganda que, na verdade, encobre a verdadeira intenção do Estado para com esses indivíduos que vivem à margem da delinquência. Isto é, na verdade, o real objetivo, que é etiquetar e segregar esses sujeitos dos demais, a fim de manter uma suposta ordem social e, consequentemente, perpetuar ciclos que desencadeiam a inclinação à criminalidade e à geração de mais violência.

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (atualização de junho de 2016), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, revela que, no ano de 2016, a população prisional em nosso País alcançou, pela primeira vez em sua história, o número de 700 mil presos, isto é, um aumento de 70% se comparado ao total registrado no início dos anos 90. E, assim, chegando ao status de ser a terceira maior população carcerária do mundo, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. Além disso, o levantamento mostra o perfil carcerário de nosso país, que é composto, em sua maioria, de jovens de 18 a 29 anos de idade, correspondendo a um total de 55% da população carcerária. Também essa mesma é, em sua maioria, de cor negra, 64%, e seu nível de escolaridade é de Ensino Fundamental incompleto (51%).

Compreende-se que a instituição prisional, no Brasil, não oferece as mínimas condições para que o sujeito possa passar por um processo de mudança comportamental, pois estes encontram-se em situações desumanas e circunstâncias insalubres, devido à exposição a péssimas condições de higiene, local inadequado para dormir, alimentação totalmente inapropriada, más condições de trabalho, falta de equipes técnicas e materiais de trabalho que comprometem a ressocialização. Como também, há ausência de compreensão dos servidores penitenciários com relação ao papel da instituição prisional e também há falta de preparo. Além de uma redução do atendimento de forma integral ao que diz respeito à saúde, à educação, ao aspecto psicossocial e a outros que se fazem importantes no processo de mudança do indivíduo e que, na maioria das vezes, não são atendidos devido à superlotação, que é um problema de âmbito geral, não dando conta da demanda. Também há a presença constante da violência nesses locais devido a rebeliões e motins, o que alimenta, ainda mais, os ciclos de selvageria e, assim, coloca em xeque a ideia de recuperação.

Uma vez que não se têm as mínimas condições de assistência para desenvolver um bom trabalho de ressocialização, os ciclos de delinquência tendem a se reproduzir, gerando reincidência e retorno ao cárcere, pois as políticas públicas não atendem em nada (ou quase em nada) às assistências previstas no art. 10, da Lei de Execução Penal que trata sobre o objetivo de prevenir o crime e orientar o retorno à sociedade.

Dessa forma, de acordo com o relatório final do mutirão carcerário que foi realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 2010), no Estado do Pará, conforme citado por Galúcio (2012, p. 1221), pode ser entendido como uma realidade geral, e, assim, ratificar o supracitado.

As atividades educacionais e laborativas ou inexistem ou são em número insuficiente, incapazes de atender à demanda [...]. Praticamente, não há atendimento médico e odontológico nas unidades prisionais [...]. Houve muita reclamação por parte dos apenados no que diz respeito à alimentação em todos os estabelecimentos visitados. Realmente, foi constatado que a quantidade é pequena e sem variedade. No mais, além da superlotação, constatou-se, de maneira geral, que o número de presos provisórios é alarmante. Em praticamente todas as unidades inspecionadas foram encontrados presos recolhidos provisoriamente por tempo superior ao que se poderia considerar razoável.

Portanto, observa-se que o sistema prisional não apresenta condições para a recuperação de seus apenados, pois trata-os de forma desumana e com más condições de existência, ou seja, o Estado não cumpre sua função que é a de ressocializar aquele que se encontra em situação delinquente. Não obstante, o sistema prisional cumpre uma função que é velada e encoberta pelo discurso da transformação que nada mais é que segregar uma parte da população que é considerada como perigosa para a convivência equilibrada entre todos seus pertencentes, porém grande parcela dessa população sacrificada é a mesma que se encontra desassistida pelas políticas públicas e, com isso, esse abandono acaba reproduzindo ciclos de violência e criminalidade.

2.1 Fatores que contribuem para o crescimento e a manutenção da criminalidade

O vocábulo criminalidade pode ser compreendido como um evento repetitivo de atos que são enquadrados como transgressões de determinadas leis e normas que norteiam a vida de uma sociedade para o pleno convívio harmonioso. Com efeito, as infrações das normas agridem a vida de uma determinada comunidade, causando, dessa forma, um choque à ordem pública estabelecida. Essa comportamento infracional de um indivíduo acaba, por vezes, causando consequências negativas, tanto ao ambiente quanto a si próprio.

Segundo Marx, o crime exerceria uma função importante dentro de um contexto social, o qual, na verdade, tanto a delinquência como o crime, seriam produtos do sistema capitalista e, assim, acabaria fazendo com que diminuísse a competição entre os labutadores, excluindo do mercado de faina a parte considerada inútil aos propósitos da produção: “ O crime tira do mercado de trabalho uma parte supérflua da população, e, assim, reduz a competição entre os trabalhadores até o ponto em que previne os salários de caírem abaixo de um mínimo, e a luta contra o crime absorve uma outra parte dessa população” (MARX, 1983, p. 281).

Portanto, os fatores que desencadeiam ações criminosas e delinquentes são muitos, podendo variar de pessoa para pessoa e de crime para crime, não tendo exatamente uma única causa geradora destas ações, pois a criminologia, que etimologicamente provém do latim crimino (crime) e do grego logos (estudo ou tratado), é uma ciência que estuda o crime dentro dos âmbitos social e humano. Essa ciência, por sua vez, não tem como intenção apenas estudar o crime, mas também analisar a conjuntura que engloba o criminoso, a vítima e o próprio ato infracional. Desta forma, entende-se que são múltiplas as gêneses que levam à vida do crime, porém vale a pena procurarmos observar algumas delas para tentar compreender o quanto podem influenciar o desenvolvimento e a formação do sujeito.

Assim, diante da pesquisa realizada, serão apresentados alguns fatores que podem contribuir para diminuir os índices absurdos de criminalidade e violência que assolam o Brasil, que parecem não ter fim. Não obstante, não sendo os únicos que desencadeiam esses atos e, dessa feita, não se esgotando nos itens apontados, porém são os que contribuem para um aumento considerável da criminalidade e violência. Portanto, dessa forma, podemos citar:

Sistema econômico: a situação de cunho financeiro é uma das que mais exercem poder de influência para a geração de atos de criminalidade, porque essa agrega várias causas que inclinam muitas pessoas ao caminho da criminalidade as quais vão desde salários precários, fechamento de indústrias devido às crises, baixo poder aquisitivo da massa popular como também as injustiças.

Pobreza e miséria: a pobreza age de maneira indireta aniquilando os sentimentos dos indivíduos. Pois esses, por sua vez, são destituídos de condições educacionais, pois poucos têm uma formação de valores morais e éticos íntegra, considerados como a escória e, assim, absorvem todo o ódio contra aqueles que possuem grandes bens materiais, criando um sentimento de violência em seu íntimo. Já a miséria é o nível mais alto da pobreza, pois ela acaba gerando condições de existência praticamente nulas. Essas pessoas se tornam alvos fáceis do mundo do crime, pois elas já não possuem, em si, um alto nível de dignidade que funciona como um fator inibidor da delinquência, e isso ocorre pela ausência de condições decentes para se manter.

Ambiente familiar: o espaço familiar, na maioria dos lares brasileiros, não é o modelo de família a ser seguido, porque, em suma, nesses locais existe uma ausência muito elevada de afetividade e acolhimento e são destituídos de valores morais que são repassados de forma consciente e inconsciente através de exemplos e atitudes. Sem contar com a violência que, muitas vezes, ronda esses locais e que se faz presente tanto na esfera doméstica como na violência com a forma de abusos sexuais. Também ocorre, aí, muitas vezes, o abandono dos filhos devido às necessidades que os pais têm para sair para o trabalho, para prover o sustento de sua família. E, assim, acabam deixando sozinhas suas proles, pois não têm com quem deixá-las, e, com isso, ficam expostos aos apelos da rua, que, aos poucos, são levados a praticar atos infracionais devido à falta de observância.

Política: a organização política de um país também exerce forte poder influenciador sobre as atitudes da população. O grupo social tende a ser um reflexo do que é o seu governo agindo de forma semelhante, usando as mesmas artimanhas para obter aquilo que deseja, isto é, há uma imitação da elite que governa determinada nação. Destarte, isso ocorre devido ao cidadão assistir a atos não compatíveis com as leis e formas ilícitas de adquirir um acúmulo opulento de bens e não sendo por vezes responsabilizados, acabam gerando, nessas pessoas um esquecimento ou a não observância de valores morais e éticos passando a cometer atos antissociais, pois compreende que esse é o caminho mais fácil e que muitas vezes pode compensar.

Além desses fatores que contribuem para a inclinação à vida delinquente, listam-se outros que foram encontrados na literatura pesquisada, tais como: diferenças étnicas e culturais; fatores de personalidade e motivacionais; desamor; drogas; privação da liberdade; civilização; cultura; educação; analfabetismo; profissão; guerras; urbanização; industrialização; migração; imigração; e más companhias.

Portanto, esses são alguns dos fatores que podem contribuir para o aumento da violência, porém, como citado, não são os únicos e exclusivos. Existem várias teorias que abordam a origem desses problemas, cada uma à sua maneira, como, por exemplo, o pensador francês René Girard e suas teorias sobre o desejo mimético e do bode expiatório, as quais nos fazem refletir sobre o porquê de tantos atos violentos entre os seres humanos, como também a violência justificada pelo Estado que pune os estigmatizados em nome do bem-estar de uma coletividade, servindo uma minoria.

2.2 René Girard: desejo mimético e bode expiatório

A violência é algo que vem crescendo em nosso país de forma espantosa, como relatado anteriormente. Não obstante, ela está presente desde tempos idos em nossa história e sociedade a qual acabou por se concretizar de diversas formas como guerras, torturas e mortes. Muitos desses atos violentos são proclamados em nome de uma coletividade, a fim de manter uma coesão social segura, eliminando aqueles considerados como os causadores das mazelas que assolam determinada comunidade.

Dessa forma, para o pensador francês René Girard (1923-2015), a gênese de todo ato de violência – a qual envolve a humanidade – se daria não diante de um olhar filosófico e político, os quais entendem que a manifestação de violência se dá devido às opressões e desigualdades dentro de uma sociedade, como também não compactua com a ideia de que essa pulsão à agressividade seja biológica, e sim, que ela se manifesta devido ao ato de imitar o seu objeto de desejo.

Há duas aproximações modernas à violência. A primeira é política e filosófica, ela considera o homem naturalmente bom e atribui tudo o que contradiz esse postulado às imperfeições da sociedade, à opressão das classes populares pelas classes dirigentes. A segunda é biológica. No seio da vida animal, que é naturalmente pacífica, apenas a espécie humana é verdadeiramente capaz de violência. Freud falava de uma pulsão de morte. Atualmente, procuram-se os genes da “agressividade”. Essas duas aproximações permanecem estéreis. Há anos venho propondo uma terceira, que é ao mesmo tempo muito nova e muito antiga. Quando falo dela, desperto certo interesse, imediatamente substituído pelo ceticismo quando pronuncio a palavra-chave de minha hipótese: imitação

(GIRARD, 2011, p. 33).

Com efeito, entende-se que tal inclinação para a violência não é algo inato ao ser humano que já venha concretizado em seu DNA, mas sim, algo construído devido às relações sociais estabelecidas. Para Girard, o ser humano só tem seu desejo despertado por um objeto porque um outro o tem também e, dessa maneira, entende-se que o escopo por si só não vem chamar a atenção e sua cobiça; portanto, o ser humano só deseja o que os outros desejam e a isso, Girard chama de “desejo mimético”.

Destarte, esse desejo é construído e baseado em algo que queremos ser e nos espelhar moldando nosso comportamento e, quanto menor forem as chances de colisão com esse modelo, maiores serão as chances de permanecer apenas um protótipo a ser imitado por nós. E essa distância pode ser física, espiritual, temporal, hierárquica e outras. Assim, não corre o risco de eclodir uma rivalidade ou conflito entre o imitador e o mediador devido ao desejo pelo objeto a ser obtido por ambos, pois os dois estão distantes um do outro em suas variadas formas e a isso Girard nomeia de mediação externa.

Não obstante, quando não existe tal distância ou ela é minimizada, surge uma mudança no comportamento que antes era baseada na admiração, transformando-se em rivalidade e iniciando um conflito entre ambos, podendo levar a atos violentos, e a essa forma de conflito Girard chama de “mediação interna”. Nesse tipo de mediação, o imitador e o modelo não são figuras estáticas, pois um tende a imitar o outro, porque quanto mais próximos, mais aumenta o desejo e os obstáculos para que ambos adquiram o objeto desejado. Além de que esse perde sua centralidade nessa situação de conflito, no qual o desejo de um superar o outro é maior do que a própria conquista: “A mediação interna, portanto, é um processo que deixa a vítima cega e seus próprios efeitos: os indivíduos que desejam passam a crer na autonomia dos próprios desejos, e, ao fazê-lo, negam a importância do mediador. Por fim, os próprios mediadores são suprimidos” (GIRARD, 1990, p. 33).

Por conseguinte, compreende-se que todo conflito gerado é iniciado no desejo por algo que alguém também deseja, e quanto menor for a distância entre um e outro, maior é a probabilidade de se desencadear uma batalha por aquilo que ambos têm por objetivo.

Ademais, com a iniciação dessa rivalidade, engendra-se o que Girard chama de “crise mimética”. Em outras palavras, essa crise é entendida como uma batalha ou guerra que envolve a todos, levando os mesmos a se digladiarem entre si, pois os seres humanos têm relações fundadas no conflito, que envolve sempre a busca de superar o outro, atingir o melhor lugar, movido pela desconfiança e pela ganância material. E, assim, entende-se que essa crise mimética ou guerra geral entre todos coloca em risco a paz e a harmonia social de determinada comunidade ou sociedade, como também impede qualquer forma de ascensão coletiva e também o desenvolvimento de outras áreas.

Para René Girard, esse ciclo vicioso de violência só se encerraria ao se iniciar outra forma de violência, porém legitimada como sagrada e unificadora, ela teria por desígnio sacrificar uns em detrimento de outros para que, então, a coesão social funcionasse como mecanismo de deslocamento da violência desordenada para a violência ordenada. Girard dá o nome a esse fenômeno de “mecanismo do bode expiatório”.

Dessa forma, esse engenho busca responsabilizar um indivíduo ou determinado grupo pelos males que são percebidos em uma comunidade. Alguém eleito para ser sacrificado e que esteja à margem da sociedade, que não tenha nenhum vínculo social e que poucos deem importância à sua existência. Assim, isso faria com que o desejo de violência coletiva fosse saciado e infinitamente renovável, ludibriando a fome da violência.

Assim, o sacrifício aparece como um jeito de lidar com a violência, um modo de controlá-la e enganá-la. [...] A substituição sacrificial não passa pela moral do culpado e do inocente, como pensou Joseph de Maistre, o deslocamento de uma vítima para outra sugere um desvio para proteger os membros da comunidade da violência que poderia se abater sobre seus pares, com o objetivo de enganar a violência oferecendo uma vítima sacrificável, pois é preciso dar algo para a violência engolir

(GIRARD, 1990, p. 16).

Portanto, diferentemente dos sacrifícios primitivos que se elegia para alguém, para que sua vida fosse ceifada em nome da paz e de uma ordem espacial, pode-se entender que, nos dias atuais, as formas de sacrifício ainda se mantêm para aqueles que estão estigmatizados e excluídos da convivência social. Esses são as vítimas prediletas do sistema de sacrificação para a harmonia social e o controle do desejo intenso por violência.

Podemos, então, considerar que o sistema jurídico penal seja aquele que tem por incumbência sacrificar os culpados pelas mazelas da sociedade. E essas formas de sacrifício podem ser entendidas como a exclusão do meio social através da privação de liberdade àqueles que são abandonados pelas políticas públicas e jogadas ao próprio azar e, assim, sempre reproduzindo vítimas para saciar a fome de violência e manter o ritual de sacrifício. Portanto, o encarceramento de uma parcela da população, que é totalmente desassistida e imersa num ciclo profundo de exclusão é compreendida como aqueles que são preteridos pelas práticas sacrificiais em nome da lei, para que seja mantida a manutenção da ordem e que o restante da sociedade não seja sucumbido por si mesmo através da violência.

3 Religião e seu papel na sociedade

Cada sociedade ou comunidade é regida por normas de convivência e valores que têm por objetivo orientar o modo de participação de cada pessoa dentro delas, para que seja mantida a ordem social e, assim, a crise mimética não se manifeste. Atualmente, essas normas são conhecidas por leis que cumprem a finalidade de dar limites a todo ato e, assim, caso seja descumprida, o infrator poderá responder à mesma de maneiras diversas, dentre elas a privação de sua liberdade tanto provisória quanto definitiva.

Com efeito, esse modelo de regras à manutenção da ordem tem sua gênese no léxico grego, a partir do vocábulo ethos. Conforme Boff (2000), esse, por sua vez, teria o sentido e a definição de dois termos: um com relação aos modos de conivência e costumes escrito com a letra “E” em tamanho grande e, outro, aethos, escrito com a letra “a” em tamanho menor seria relativo à moradia, ao local de vivência ou ao lugar onde se vive. Além disso, também indica o modo de ser e se comportar regido por determinados valores e normas de cada civilização.

Outrossim, o que se verifica, na sociedade moderna, é a falta ou o esquecimento desse ethos que dá sustento a uma convivência pacífica entre os pertencentes de uma mesma comunidade, causando danos à ordem social. E a falta desse ethos pode ser entendida, nos dias de hoje, como o desrespeito com o próximo, a desvalorização da vida, a falta de amor, a empatia, o egoísmo, isto é, a falta de valores básicos em relação ao bom convívio entre as pessoas. Dessa forma, procura-se compensar essa falta encontrando, periodicamente, “bodes expiatórios”, como nos adverte Girard, para que se efetive uma harmonização que seja estendida a toda sociedade, a fim de manter o mínimo de tolerância e funcionamento da convivência entre todos. Portanto, fica nítido que a falta de um consenso, o estabelecimento de valores e normas que sejam universais a todos acarreta grandes e terríveis consequências para o mundo em que vivemos.

Porém, para que essa forma de convivência harmônica se efetive de maneira positiva, é necessário recorrer a algo que tenha um apelo forte baseado em valores e mobilização de pessoas em prol de um bem comum. E se entende que nenhuma outra instituição tenha tal poder de ação quanto a religião, pois essa é dotada de um ethos próprio, entendido um como ethos religioso que nada mais é do que um conjunto de valores e práticas cujo objetivo é orientar o modo de ser e proceder do sujeito em meio aos demais e ao ambiente em que se encontra como também ser o elo com o transcendental e o divino.

Destarte, observa-se que a religião tem, em sua gênese, o intuito de aproximar os seres humanos entre si e, também e principalmente, de uma força superior divina entendida como Deus, através de suas práticas, as quais podem orientar seus comportamentos diante dos demais através de suas normas e valores, e, assim, revelar propósitos de nossa existência, mantendo vivos tais valores através de ritos, mitos e símbolos.1

Ademais, a religião, como citado anteriormente, é dotada de méritos, e esses méritos, por sua vez, formam o modo de ser humano, ou seja, ocorre uma educação baseada em seus ritos, mitos e valores próprios que tem por objetivo servir como elementos norteadores de comportamentos. Para que isso ocorra, é necessário entender que há uma força transcendental que nos move, que está acima de todos nós e que atinge todo o grupo social, fazendo com que cada indivíduo procure agir de maneira sensata e harmoniosa com os demais no seu modo de proceder.

Indo ao encontro da reflexão sobre religião e atos antissociais, Jensen (1998, p. 309) nos lembra o pensamento de Durkhein de que “a ordem social só poderia ser mantida se as pessoas tivessem crenças comuns em algo maior do que elas”. Em outras palavras, a religião contribui de modo geral com a sociedade, porque ela trabalha para a manutenção do bom convívio social nos aconselhando em nossas maneiras de agir, atentando sobre o que é certo e errado, o permitido e o proibido. Assim, desenvolve princípios que levaremos para o convívio com os demais, evitando que ultrapassemos os limites impostos pela sociedade e suas leis e com isso refutando conflitos maiores.

A religião, assim como o apoio de diversos grupos religiosos, cada um desempenha um papel fundamental àqueles e àquelas que se encontram em privação de sua liberdade, ou seja, pessoas que se encontram nos presídios e penitenciárias pelo cometimento de delitos contra a ordem social. Ressalta-se que esse público que ora é simplesmente esquecido pelas políticas públicas e apartado dos demais, sendo sacrificado em nome da paz, como nos lembra Girard (1990), é um dos que mais carecem de apoio emocional e espiritual, pois, além da privação de liberdade, os mesmos se encontram com seus laços familiares rompidos, e isso interfere, e muito, no comportamento dos apenados.

Destarte, a religião e as práticas religiosas podem contribuir tanto para a convivência em ambiente prisional quanto para a saúde mental e também mudanças de comportamento, assim como outras contribuições importantes. E essa assistência religiosa é direito do apenado conforme a Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, que institui a lei de Execução Penal, em seu art. 24 que trata de assistência religiosa:

Art. 24. A assistência religiosa, com liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo-se a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa.

§ 1º - No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos religiosos.

§ 2º - Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa.

(BRASIL, 1984, Acesso em: 15 set. 2020).

Há, também, um estudo realizado por Melo et al. (2013), intitulado “Influência da religiosidade e sintomas de desesperança em mulheres prisioneiras, pertencentes à Penitenciária Feminina do Estado do Rio Grande do Sul, em regime fechado”, que entrevistou 287 mulheres, a fim de identificar se as apenadas que praticavam alguma religião ou carregavam sentimentos de fé sofriam com sintomas de desesperanças, ou seja, com sentimentos de depressão. O estudo verificou que as mulheres que participam de rituais religiosos como também têm alto nível de fé tendem a apresentar menos características depressivas do que aquelas que não participam ou que não proferem nenhuma religião.

A presença de religião, espiritualidade e fé, nos sistemas prisionais, contribui para o apenado despertar o sentimento de esperança em sua mudança comportamental, ou seja, faz com que o indivíduo se sinta mais entusiasmo no seu processo de ressocialização e com isso seu retorno à sociedade, obtendo 94% de respostas satisfatórias a essa temática. Além do que, o estudo também apontou que 77% dos apenados afirmaram que a espiritualidade pode ajudar no enfrentamento da adversidade advinda da privação de liberdade. Essa conclusão foi obtida na pesquisa de Márcio Antônio Neves, em sua pesquisa de campo com o título “A importância da espiritualidade na ressocialização dos apenados em regime fechado da penitenciária Odenir Guimarães” (2020), a qual contou com a participação de 168 presidiários da referida penitenciária.

Ademais, a religião se mostra muito importante na mudança de comportamento dos seres humanos, pois ela é entendida como um porto seguro àqueles que estão em situação adversa e sem saber o que fazer da vida, depositando nela sua última esperança para que possa, então, haver um acontecimento diferente. Porém, para que essa transformação ocorra, é necessário que o sujeito esteja disposto a mudar, reconhecer seus equívocos e se propor uma nova vida, ou seja, antes de tudo, é preciso que haja o desenvolvimento da resiliência por parte dele.

Quando o homem encontra sentido de vida, a partir de sua religiosidade e fé, isso faz com que haja uma mudança de comportamento para melhor, pois, como diz Nietzsche (2014, p. 10), “Ao se ter o porquê da vida, então se suporta quase qualquer como”. Dessa forma, entende-se que a religião, a fé ou a religiosidade contribui para a idealização de propósitos que terão como meta ajudar a se manter firme, apesar do momento desfavorável pelo qual se passa.

Ademais, a pessoa religiosa tem uma maior tendência a ter um bom convívio com os demais, a desenvolver um poder de comunicação mais aberto ao diálogo e agradável em seu modo de agir, preceitos esses fundamentais para a manutenção do Ethos e, é claro, um dispositivo importante para a prevenção de atos antissociais os quais a religião procura trabalhar para que haja um bom convívio entre todos. Portanto, bem-entendida, a religião tem o poder de exercer o desencorajamento de atitudes vistas como delinquentes e criminosas.

Conclusão

A ilustração visou apresentar a contribuição da religião para com aqueles que se encontram à margem da sociedade, ou seja, em situação de inclinação à criminalidade e ao tolhimento da liberdade. Dessa forma, o artigo buscou ter como base a teoria mimética de René Girard, no que diz respeito à gênese da violência e à forma como ela é mantida sob controle, para que não haja uma verdadeira selvageria entre grande parte dos indivíduos componentes de uma sociedade.

Sua teoria nos apresentou que os conflitos entre os indivíduos são iniciados pela mimésis, ou seja, pela imitação daquele que temos como modelo e, consequentemente, desejo pelo objeto que o outro também deseja. E, a partir de uma maior proximidade entre sujeito cobiçador e protótipo, desencadeia-se uma crise mimética onde um se digladia com o outro.

E, para que cesse essa guerra geral, Girard apresenta sua segunda teoria, a do “bode expiatório”, que nada mais é que a substituição de uma violência desordenada para uma violência ordenada, a qual é respaldada pelo bem comum, ou seja, em nome da lei. E suas vítimas preteridas são aquelas sem vínculos sociais que se encontram distante da realidade e das políticas públicas. Desse modo, ele nos faz entender que o sacrifício contemporâneo nada mais é que a segregação dos estigmatizados e excluídos de nossa sociedade, isto é, o cárcere, hoje, funciona como um mecanismo no qual se sacia a sede de violência dos demais.

Além disso, conclui-se que a religião, primeiramente, exerce uma função de coesão social em nossa sociedade, porque ela dita e incute formas de se comportar em meio aos demais para que, então, possa haver um convívio salutar entre todos, respeitando as diferenças. E, essas formas de comportamento são guiadas por valores baseados em suas doutrinas e crenças como ritos, mitos e símbolos que têm, em comum, a manutenção da fé, primeiramente, e também a harmonia entre os pertencentes a uma mesma sociedade primando pelo respeito à vida.

A religião, a prática religiosa, sentimentos de religiosidade e fé, como também a presença de grupos religiosos em estabelecimentos penais, contribuem para uma mudança de comportamento e uma saúde mental de qualidade, levando a esses indivíduos conforto espiritual, preenchimento de vazios relacionados a distância familiar, despertando sentimentos de esperança e sentido para sua vida e, assim, diminuindo atos agressivos, bem como atos suicidas. Porém, entende-se que o assunto não se esgota aqui e nem poderia, pois é um assunto muito complexo que envolve sentimentos e pessoas distintas, que variam de caso a caso, além do grau de comprometimento o do indivíduo com a mudança de atitude.

Por fim, sugere-se mais pesquisas que envolvam essa temática, a fim de propiciar um melhor capital de conhecimento e base para futuras obras, pois se notam poucos estudos que se aprofundam nesta questão e que se mostrou no decorrer da pesquisa essencial para a vida de pessoas de um modo geral. A religião se mostrou um mecanismo importante de ajuda para aqueles esquecidos pelas políticas públicas as quais não lhe oferecem a oportunidade para que possam procurar uma mudança comportamental, e sim, faz com que se perpetuem ainda mais os ciclos de violência e criminalidade em sua vida.

1Porém, faz-se interessante ressaltar que nem todas as religiões buscam um convívio harmonioso com os demais e assim usam do pretexto religioso para propagarem discursos de ódio e atos violentos contra aos que deles são distintos e até declarando guerra em nome de seu Deus e sua religião. Por conseguinte, a religião pode também respaldar protestos e resistências contra situações de injustiça, fazendo com que mobilize um número grande de pessoas para se solidarizar na causa que em suma vise o bem comum, como por exemplo, leis que não atentem contra a integridade humana, como penas de morte e torturas.

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Recebido: 31 de Dezembro de 2020; Aceito: 03 de Março de 2021

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