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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.26  Caxias do Sul  2021  Epub 02-Jan-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v26.e021049 

DOSSIÊ: RELIGIÃO E POLÍTICA: PERSPECTIVAS, TRADIÇÕES E DESAFIOS

As religiões e o modus operandi neoliberal: A fé como produto à la carte1

Religions and the neoliberal modus operandi: faith as an à la carte product

Jovino Pizzi* 

*Doutor em em Ética y Democracia pela UJI (Espanha, 2002). Professor na UFPel. E-mail: jovinopiz@bol.com.br


Resumo

A lascividade dos discursos religiosos engendra uma capacidade estupefata de atrair e perverter os fiéis. Como únicos intérpretes do texto sagrado, a versão ortodoxa se apoia em um fundamentalismo que entorpece a capacidade crítica. Quem se atrever a dar outra interpretação passa a ser apontado como satânico. Uma das referências do fundamentalismo religioso está no pietismo europeu que, aos poucos, migra para os Estados Unidos. Mais recentemente, esse fundamentalismo religioso chega na América Latina. No Brasil, ele aparece sob a denominação de “igreja”, com distintas e variadas denominações. Atualmente, a noção de fundamentalismo abarca outros setores da vida social, política, cultural e econômica. No horizonte de uma economia neoliberal, “tudo”, ao menos implicitamente, se transforma em mercadoria. O triunfalismo do mercado passa a considerar a fé também um produto à la carte. O neoliberalismo é, então, a prospectiva para a concentração cada vez maior da riqueza, tornando a fé um instrumento que favorece uma minoria, cada vez mais avantajada. No caso do Brasil, a proliferação de “igrejas” consolida ainda mais as desigualdades sociais e econômicas.

Palavras-chave Religião; Sagrado; Fé; Empreendedorismo; Neoliberalismo

Abstract

The lasciviousness of religious discourses engenders an astonished capacity to attract and pervert the faithful. As the only interpreters of the sacred text, the orthodox version relies on a fundamentalism that dulls critical capacity. Anyone who dares to give another interpretation is considered satanic. One of the references of religious fundamentalism is European pietism, which gradually migrates to the United States. More recently, this religious fundamentalism has arrived in Latin America. In Brazil, it appears under the name “church”, with different and varied denominations. Currently, the notion of fundamentalism encompasses other sectors of social, political, cultural and economic life. On the horizon of a neoliberal economy, “everything”, at least implicitly, becomes a commodity. The triumphalism of the market now considers faith in an à la carte product. Neoliberalism is, then, the prospect for the increasing concentration of wealth, turning faith into an instrument that favors a minority, which is increasingly more advantageous. In the case of Brazil, the proliferation of “churches” further consolidates social and economic inequalities.

Keywords Religion; Sacred; Faith; Entrepreneurship; Neoliberalism

Introdução

A leitura do livro O sagrado e o humano (1996), de Ricardo Salas Astrain, significou o começo de um processo que redesenhou a compreensão dos “símbolos religiosos”, abrindo o caminho para uma discussão que hoje, alguns anos mais tarde, é tema de muitas outras discussões. Durante a tradução do livro (2018), fui percebendo como o tema parecia já ter esgotado todas as análises, porque o tema era um debate restrito a especialistas da área. Todavia, também fui me dando conta que a religião era pauta de eventos e seminários, bem como de publicações dos mais variados tipos. Embora não haja espaços seguros, a fé passou a ser um tema que despertava a atenção, mas fora do âmbito acadêmico.

O foco do texto nasce da indagação a respeito do avanço do neoliberalismo e, se tal avanço não foi crucial para a disseminação de movimentos neopentecostais e/ou carismáticos. De certa forma, o tema pode ser analisado e, ao mesmo tempo, estudado a partir dos vínculos com o processo de um capitalismo financeiro e mundial, no qual a fé também passou a ser um produto à la carte. Então, se, por um lado, ela conserva o seu foco e preserva o modelo de uma teologia fundamentada nos dogmas historicamente sistematizados, por outro, existe um mercado da fé à la carte, oferecendo uma quantidade enorme de produtos por atacado.

Com o fim de aprofundar a análise, este texto retoma a ambivalência entre o sagrado e o religioso, rediscutindo a questão, a partir do livro de Ricardo Salas, no horizonte do neoliberalismo atual. O novo viés coloca em evidência o modus operandi de fundamentalismos que abarcam não apenas as religiões, pois conjuga o fideísmo com o mercado financeiro e a concentração da riqueza. Em vista disso, o objetivo principal pretende salientar o novo mercado da fé, uma espécie de empreendedorismo à la carte, cujo cardápio tem como produto principal a própria fé. Nesse processo, a religião reassume não apenas uma aproximação com a política, conjugando militância religiosa com exercício político, pois faz parte de um negócio que garante que esses grupos se adonem de atividades e serviços de diversos ramos e especificidades, sem qualquer preocupação com a democracia, os direitos sociais e a ecologia. Em outras palavras, nada de governos representativos, porque toda e qualquer reivindicação social não passa de “uma forma de corrupção” (SANDEL, 2012, p. 37).

Fundamentalismos e a transformação da fé à la carte

Para entender a vinculação entre os movimentos neopentecostais e/ou carismáticos, essa está ligada ao tema do fundamentalismo. Essa expressão está ausente em grande parte dos dicionários especializados e, por isso, a temática desliza “por um território escorregadio” (DREHER, 2002, p. 79). O seu aparecimento está ligado a movimentos que aparecem na modernidade europeia, alguns deles como reação ao racionalismo ilustrado, ou seja, à Aufklärung, sem compartilhar “com ela esperanças e objetivos comuns” (BOUREL, 2002, p. 336).

Ao mesmo tempo, há outras reações que protestam e promovem uma renovação do espírito religioso como tal. No caso, haveria um aspecto externo – por assim dizer – à própria noção de religião e outro interno, ou seja, “disputas religiosas” no interior das próprias religiões organizadas. Nesse caso, a dissidência apresenta um caráter doutrinal, cujas controvérsias teológicas dão origem a divisões e separatismos de diferentes denominações.

O dicionário (eletrônico) Houaiss mostra que a origem do vocábulo fundamentalismo acontece no início do século XX, referindo-se ao movimento religioso e conservador, nascido entre os protestantes dos Estados Unidos. A ênfase tem como base uma interpretação literal da Bíblia, essencial à vida e à doutrina cristãs (HOUAISS, 2001). À sua vez, Martin (1996) também aponta os Estados Unidos como lugar desse movimento. De modo geral, o início coloca em evidência a variante do “protestantismo conservador”, que foi ampliando seu escopo, para incluir elementos diversificados “do islamismo e do judaísmo conservadores, e deveria abranger o tipo de catolicismo militante e dogmático encontrado no movimento Opus Dei” (MARTIN, 1996, p. 328).2 Embora integrante das diferentes denominações de igreja ou credo, não se trata de movimento unificado, pois acaba referindo-se a diferentes tendências religiosas do século que, no século XX, apresenta um enorme leque de variantes.

Considerando a reação dos movimentos religiosos ao racionalismo ilustrado e, ao mesmo tempo, o espírito moderno da ciência e da tecnologia, é possível encontrar no pietismo, por exemplo, uma vertente inspiradora para os movimentos fundamentalistas. Nesse caso, o contexto europeu do século XVII seria o berço de movimentos de resistência a absolutismos e do processo de transformação social do capitalismo industrial, esse movimento propaga uma reinterpretação da doutrina cristã com base em uma espiritualização da fé.

No campo religioso, o fundamentalismo se aproxima, portanto, do pietismo, uma corrente religiosa que nasce no seio do “luteranismo alemão da segunda metade do século XVII, com uma forte progressividade no século XVIII, inclusive fora da Alemanha” (GARZANTI, 1981, p. 702). Desse modo, o aspecto transconfessional passa a ganhar esferas transnacionais, estendendo-se para a Prússia, a Inglaterra e, aos poucos, aos Estados Unidos apenas para enumerar alguns.

Se, por muito tempo, o fundamentalismo era implícito ao contorno religioso, com o decorrer do tempo, sua noção passou a indicar qualquer corrente, movimento ou atitude de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos. Ou seja, trata-se de uma reação diante da ortodoxia unilateral e reducionista das interpretações vigentes no contexto europeu. Embora sua aplicação apareça vinculada, originalmente, à interpretação bíblica, há tendências culturais, ideológicos, étnico-raciais, entre outros, que passaram a receber a designação de fundamentalistas. Nesse sentido, dever-se-ia, então, falar de fundamentalismos; e não, simplesmente, de fundamentalismo religioso.

Na verdade, o fundamentalismo bíblico-cristão “é apenas um elemento em um movimento maciço no sentido das versões conservadora e evangélica da fé” (MARTIN, 1996, p. 329). A sua designação a outras esferas advém da caracterização desses movimentos, cuja característica básica é a militância e o fanatismo. Desse modo, “todos os fundamentalistas se parecem: os religiosos e os do mercado” (DREHER, 2002, p. 11). Nesse sentido, haveria também fundamentalismo político, filosófico e acadêmico que enfatizariam uma “única verdade” e, portanto, incitam a “atrocidades” contra os que se afastam do paroquialismo ortodoxo e fundamentalista.3 A perspectiva Pluribus unum ratifica a ortodoxia fundamentalista, sem conservar a diversidade, isto é, a defesa sistemática e ostensiva dos pressupostos de um monolinguismo paroquialista. Em se tratando de movimentos neopentecostais e/ou carismáticos, não há nenhum compromisso com a democracia, muito menos com os direitos e a equidade sociais, pois são organizações e entidades geridas monocraticamente. A ideia fulcral evidencia a compreensão reduzida, de modo a incentivar um conservadorismo moral e a defesa de valores extremamente intransigentes, na busca de uma unidade interpretativa e na coesão no comportamento dos seguidores.

Na sua organização interna, o pietismo desenvolveu atividades beneficentes e, pouco a pouco, passou a controlar setores essenciais de diferentes cidades. A área de ensino foi, sem dúvidas, uma das principais. Mas houve outras fundações, como o setor da saúde, o gráfico, na formação profissional etc., destacando também o êxito econômico (BOUREL, 2002, p. 338). No conjunto da obra, esses movimentos foram desenvolvendo um tipo de empreendedorismo ligado também ao setor imobiliário, promovendo edificações cada vez mais suntuosas. Desse modo, o empreendedorismo não trata apenas de templos para os cultos, pois também investiu em áreas de setores estratégicos, da burocracia, da gestão estatal, do ensino, etc.4

Nesse sentido, a militância caritativo-beneficente requer um complexo cada vez maior de lugares, serviços e controles, de modo que alguns movimentos foram se tornando verdadeiros impérios, com uma enorme diversidade de produtos e serviços. Ou seja, a renovação religiosa promoveu também uma rede de serviços, envolvendo “militares, funcionários, pastores [...] e escriturários do Estado”, reunindo também intelectuais e artesãos, que passam a fazer “parte de uma mesma comunidade” (BOUREL, 2002, p. 338).

No decorrer do tempo, esses movimentos passaram a criar redes, inicialmente ligadas às comunidades locais, mas, também, aos poucos, foram ampliando sua abrangência com o fim de consolidar “alianças inéditas”, passando do campo da fé para o horizonte dos serviços, da política e da própria economia. Nesse processo, tais movimentos e “igrejas” foram controlando setores e territórios, dividindo áreas – uns mais setorizados e de baixa escala; outros, como verdadeiros impérios – de forma a dominar espaços e regiões sob seu controle e poderio. Em outras palavras, o mecanismo é similar ao modelo neoliberal, seja através de shoppings da fé ou lugares públicos ou, então, a um tipo de feira, onde se realizam negócios vinculados ao produto “fé”. O rol de produtos relacionados à fé é bem variado, com receitas para todos os gostos, inclusive na área medicinal e psicossomática. Na expressão de Sandel, trata-se simplesmente de “concierge medicine, ou medicina de butique” (2012, p. 29).

No Brasil, o exemplo contundente dessa conjugação é a atual bancada evangélica, no Congresso e na Câmara dos Deputados brasileiros. Essa bancada atua não apenas em vista de suas “igrejas”, mas também nas áreas da política e da economia. Aos poucos, esses grupos vão construindo “conventículos” – para utilizar a expressão de Dreher (2002, p. 16) –, uma espécie de ecclesiola in ecclesiae (a igrejinha na Igreja) e, com o tempo, alguns deles se transformam em verdadeiros impérios. Ao mesmo tempo, existe também uma repartição do território das cidades, com sedes a cada esquina. Ou seja, são lugares, isto é, boutiques “em que as relações sociais são reformatadas à imagem do mercado” (SANDEL, 2012, p. 16).

Aos poucos, essa mercantilização vai mostrando o rosto de um fideísmo à la carte, isto é, em transformar a fé em produto comercial e, inclusive, no uso da fé como barganha política e, por fim, utilizando a própria fé como insígnia para seus negócios particulares. A conjugação desses elementos indica a tentativa de transformar o Brasil em um laboratório ou república fundamentalista terraplanista e/ou negacionista.

A discussão destoa daqueles que sustentam que o sagrado e a religião são temas ligados apenas ao campo sociológico ou às Ciências Sociais. Em uma sociedade de mercado, o “refinamento das necessidades” nada mais serve a não ser para afiançar “invejas geradas artificialmente” (HONNETH, 2011, p. 78). O mercado de bens simbólicos favorece os grupos privilegiados, cujo processo de decantação exclui a grande parcela da população. Nesse sentido, o argumento de autorrealização individual promove a “corrupção das virtudes públicas”, garantindo a “soberba, o cotejamento e a hipocrisia”; enfim, uma “propensão individual à ostentação” (HONNETH, 2011, p. 79).

A alternativa do sagrado diante do religioso

Na versão brasileira do livro O sagrado e o humano (2018), o prólogo salienta um aspecto importante: a ambivalência entre o sagrado e o religioso. Em suas diferentes versões a respeito do mundo religioso chileno, o autor do livro menciona os relatos Tué-Tué, da animita, do sentimento popular de Violeta Parra, da homenagem dos cantores a Lourdes para, então, entrar na ressignificação do simbolismo Mapuche. A proposta remete aos modos de religião tradicional, do cristianismo e da identidade cultural. Esse é, em poucas palavras, o roteiro do livro que, através da hermenêutica dos símbolos religiosos, “nos abre a uma realidade sagrada” como elementos “fundamentais” do que foi denominado “núcleo da cultura tradicional” (SALAS ASTRAIN, 2018, p. 183).

O autor do livro salienta, pois, uma insinuação entre o religioso e o sagrado, cujas “dimensões cósmicas, psíquicas e poéticas” articula um “sentido real”, cuja compreensão envolve não apenas a filosofia, mas as “diversas ciências humanas, em especial a antropologia, a história, a semiótica, a sociologia e, inclusive, a fenomenologia da religião e a psicanálise” (2018, p. 184). Para Salas Astrain, a reinterpretação encontra sua base na semântica, de modo especial ao modelo de Paul Ricoeur, sem, no entanto, precaver-se do giro linguístico. Por isso, o texto do livro se ressente de um aspecto pragmático, sem, portanto, uma análise pragmático-comunicativa do tipo habermasiano, por exemplo.

De qualquer modo, a institucionalização da religião e seu viés relativo à instituição são um fenômeno típico da cultura ocidental. A cristandade favoreceu essa intersecção. A modernidade – com todas as suas feições – remarcou o espaço da religião enquanto presente em sua conformação institucional. Em boa medida, o “ressurgimento do religioso dos últimos decênios não representa uma reversão no processo de secularização da sociedade e da cultura” (MAIA, 2018, p. 120). Como salienta Dreher, o mercantilismo prosperou com base nos “critérios racionais e não-religiosos em sua economia” (2002, p. 30), mas, sem dúvida, as reformas religiosas desempenharam um “papel de disciplina social” como “veículo unificador da sociedade” (BOUREL, 2002, p. 338).

Esse foi, sem dúvida, um aspecto importante, mas sem o devido tratamento ou análise do papel social desses movimentos religiosos. Ou seja, o debate concerne muito mais ao papel e ao status da religião e não tanto ao novo padrão institucional das igrejas e do espírito dos movimentos de renovação, bem como ao papel social das distintas congregações em si. Talvez essa seja uma percepção latino-americana e brasileira, na medida em que as múltiplas “igrejas” ainda conseguem sustentar o jogo duplo de independência do Estado e, ao mesmo tempo, se alimentam de bonificações fiscais desse mesmo Estado (teoricamente laico e sem bandeira religiosa).

Em grande medida, nos anos 90 do século passado, predominava uma acepção marxista a respeito da religião, como uma espécie de ideologia da classe dominante. Ao mesmo tempo, reinava uma percepção de que a “idade da razão” havia suplantado todos os ditames religiosos, de modo que essa esfera já não pertencia ao nível pós-convencional. Em parte, na dúvida entre a existência ou não de qualquer deísmo, o jeito era mesmo aproveitar a vida; e nada mais (PIZZI, 2017, p. 155 ss).

No entanto, os espaços de discussão crítica também são capturados e, então, as pretensões de validade e de verdade passam a assumir uma carga religiosa muito forte. As estratégias de diferentes grupos religiosos, com o rosto de “igreja”, colocam em prática seu propósito claramente de empreendedor, ou seja, boutiques que transformam a fé em um produto de atacado e de varejo. Em outras palavras, a “religião triunfalista do mercado” (SANDEL, 2012, p. 17) absorve até mesmo as ditas “igrejas” tradicionais. A força do discurso – não poucas vezes fundamentalista e estrafalário, – ganha contornos de um poder monárquico, introduzindo-se, também, nas esferas da gestão política do Estado. Desse modo, esses movimentos passam a controlar setores importantes da vida social, cultural e econômica, cuja tônica presume a renovação do sujeito particular. Com a inserção de sujeitos “regenerados ou renovados”, a pretensão é, então, criar uma atmosfera voltada a transformar a sociedade, livrando-a não apenas das penúrias e do sofrimento individual, mas também dos indivíduos alheios a essa pretensão (descabida).

Desse modo, introduz-se um “novo” espírito, que aufere um caráter imanente aos princípios religiosos. Tais discursos induzem as pessoas com promessas de superação do sofrimento, realçando um salvacionismo de tipo imanente, ou seja, de uma dádiva individualizada e verticalizada. A resposta dos acólitos se traduz em um individualismo sem qualquer solidariedade social, pois prevalece a fórmula cada um por si. Em outras palavras, a insígnia realça a disposição particular de cada indivíduo cuidar de seus próprios negócios, sem qualquer compromisso social e coletivo. Trata-se, portanto, de um modus vivendi e de um modus operandi completamente individualistas, traduzido em autonomia individual e, por isso mesmo, hiperindividualista.

Na interpretação de Fromm (1994), a modernidade substituiu os dogmas religiosos pelas máximas de mercado. No campo simbólico, a fé se transformou em produto à la carte e, assim, ele assumiu uma dimensão imanente e individualista de prosperidade e de rentabilidade econômica. O imaginário desse mercado da fé se entrecruza com o sistema financeiro e a acumulação particular de bens materiais. O fator mercadológico representa, pois, o eixo de convecção e motivo para auferir um resultado material não só em termos de autorrealização individual, mas – e principalmente – também na concentração e no acúmulo, nas mãos de poucos, das rentabilidades financeira e econômica. E quem não segue tais ditames é considerado um herege e, por isso, um endemoninhado.

Por isso, a percepção de que o discurso religioso continua ausente das questões políticas não condiz com a realidade atual. Os novos espaços dessa exposição permitiram a disseminação de movimentos, com a fachada de “igrejas”, aumentando a quantidade de instituições, com um leque plurifacetado de denominações, credos e distintivos. Nesse ínterim, o caráter de indecisão, ou seja, de indeterminação entre os horizontes religiosos e seculares assume proporções ainda mais profundas. Na verdade, não há precisão a respeito da “procedência etimológica do termo religião”, porque também é ambíguo. Ou seja, a indefinição dos espaços passa a ser o “elemento nuclear que subjaz à pluralidade de manifestações locais e de suas transformações históricas” (LANCEROS, 2004, p. 489). O mesmo ocorre com a noção de fundamentalismo.

De qualquer forma, esses movimentos, com o distintivo de “igreja”, assumem um caráter organizacional que, de um modo ou de outro, atende às exigências institucionais, não apenas em relação ao Estado, como também diante da sociedade em geral. O reconhecimento desse caráter aufere-lhe um status de organização e, dessa forma, se apresenta com regramentos, hierarquia e atribuições, com funcionários e acólitos, com procedimentos, controles e, ainda, com vistas ao sustento familiar e a angariar novos adeptos.

Para fugir desse caráter institucional e institucionalizado, melhor seria, então, considerar o fenômeno como concernente à religiosidade. Todavia, a opção em diferenciar o religioso do sagrado parece ser a opção mais didática – ou quem sabe, hermenêutico-interpretativa –, com o que é possível, então, estabelecer uma interdisciplinaridade mais plausível. Por um lado, a escolha permite identificar o modelo tradicional de conceito, no qual a religião serve como fator de ordenamento da sociedade, especificando os fiéis e os infiéis como opostos excludentes. Por outro, a ideia está em realçar o sagrado como abarcador do fenômeno religioso e místico, com seus topos, símbolos, metáforas e narrativas. Essa seria, portanto, a alternativa em tempos pós-metafísicos.

O mercado da fé: da prosa ao dinheiro

O segundo ponto do texto se centra no apregoamento do mercado da fé. Há algum tempo, fala-se da teologia da prosperidade, mas isso é unilateral, porque o acúmulo não é universal. Na verdade, a predicação pública contribui para um tipo de empreendedorismo que agracia apenas um grupo seleto. Nesse sentido, a reinterpretação do preceito do evangelista Mateus sustenta o favorecimento dos “donos” dessas igrejas. Ou seja, a quem tem será dado ainda mais e terá em abundância; e de quem pouco tem será tirado até mesmo o que possuir. Além dessa referência, há, ainda, segundo Rachels e Rachels, a figura de Jabez, que orou a Deus para “alargar seus territórios” e, então, Deus atendeu à sua prece (I CRÔNICAS, 4:10).

Para Habermas, a grande maioria desses movimentos religiosos, surgidos nos anos 70 do século passado, possui um sincretismo californiano. Eles compartilham com os grupos evangélicos, mas de “uma maneira não institucionalizada da prática religiosa” (HABERMAS, 2015, p. 266). Além do contexto norte-americano e latino-americano, esse movimento também ocorre, por exemplo, no Japão, onde, nas últimas décadas, surgiram em torno de “quatrocentas seitas desse tipo que fusionam elementos do budismo y da religião popular com teorias pseudocientíficas e exotéricas” (HABERMAS, 2015, p. 266).

A designação de californiano também merece um destaque, pois há, nessa qualificação, um horizonte histórico. Ou seja, o clima de hostilidade, que reinou na Inglaterra, por séculos, apresenta vieses sinuosos. Em poucas palavras, a imigração de muitos britânicos para os Estados Unidos proporcionou uma nova atmosfera aos colonos imigrantes, cujo ambiente favoreceu – e segue contribuindo – para consolidar um espírito de liberdade muito importante. Esse aspecto foi, sem dúvidas, um dos fatores a colaborar com a disseminação e a multiplicação de seitas e “igrejas”, em vistas a essa diversidade extraordinária. Como já foi salientado, a cientologia foi um desses movimentos que prosperou nesse clima de livre empreendedorismo.

Evidentemente, essa abertura favorece também uma crítica vivaz e radical. Em uma versão musical tradicionalista e interiorana de estilo gauchesco, o compositor e músico Velho Milongueiro expressa essa crítica ao mercado da fé através de uma canção “É mentira desses loco”. Com seu estilo caipira e sem grandes requintes, ele traduz esse espírito estrafalário do seguinte modo:

E andam dizendo que eu vou pouco “nas igreja”

Que é melhor que o povo veja eu fazer mais oração

E até “os irmão” querem me entupir de exemplo

Querem me arrastar pro templo pra eu mudar de religião

Dê dez por cento do salário pra irmandade

Que eles te mostram a verdade, te livram do mau agouro

Caia no choro lá na casa do Senhor

Que num “gritedo”, o pastor te tira o diabo do corpo

É mentira “desses loco”

Pra mim isso é um absurdo

Primeiro a prosa é dinheiro

E adespois faz um griteiro

Pensando que Deus é surdo

Mas é mentira “desses loco”

Tão querendo os pilas meus

E eu me mordo de tão bravo

No meu corpo não tem diabo,

No meu corpo só tem Deus!5

Como é possível perceber, há diversos elementos importantes nesse trecho da canção. Em primeiro lugar, a noção de secularidade negativa concernente àqueles que não frequentam “igrejas”. Ou seja, a designação aos fiéis ocorre ante a classificação dos demais como pérfidos. Por isso, o empenho evangelístico de “arrastar”, seja como for, para a “igreja”, todos aqueles que não pertencem ou não se enquadram nos ditames da “fé”.

Em segundo lugar, o texto deixa clara a quantia a ser doada: “Dê dez por cento do salário...” para, então, conseguir a agraciação divina, ou seja, a criação de um espírito caritativo, em torno do qual as estratégias vão do choro ao grito, “pensando que Deus é surdo”. Em outras palavras, há um ritualismo que envolve “prosa” e cujo meandro e simulações exigem dinheiro. A letra da música mostra uma reação estrondosa: “Tão querendo os pilas meus”, ou seja, a tática tem como objetivo o dinheiro que, ao final, enriquece um pequeno grupo. Na expressão de Sandel, trata-se de “gorjetas” que podem ser consideradas como autênticas “formas de suborno” (2012, p. 21). Com isso, a concentração de renda aumenta, nada novo para uma república Terra brasilis.

Em terceiro lugar, o projeto salvacionista traduz uma perspectiva individual e financeira. Ou seja, o messianismo prometeico conforma um projeto financeiro que enriquece o grupo dominante, auferindo benefícios, que lhe possibilita adquirir bens. Quando eles assumem cargos políticos, o negócio passa a movimentar quantias exorbitantes, dinheiro em favor desses grupos.6 No caso, “a profundidade do bolso” é o jogo para ser levado em conta (SANDEL, 2012, p. 35).

Em quarto lugar, a proeza de um salvacionismo alcança o desatino tão estrondoso cujos escândalos saltam à vista. E isso não é uma característica específica de uma ou de outra denominação de igreja, pois é concernente, inclusive, a igrejas tradicionais. Embora os fatos escandalosos recebam tratamentos diferenciados – de acordo com o vínculo dos meios informativos – há, em geral, um esforço de minimizar e, assim, isolar o caso da instituição e de sua vinculação com essa ou aquela “igreja”.

Por fim, um quinto elemento relaciona-se à própria música. Ou seja, a cantoria daqueles que apregoam tal negócio. Nesse sentido, é mais que sintomática a pergunta da canção Quem sou eu sem Jesus?, de Alessandro Campos. Na música, a palavra “nada” aparece 18 (dezoito) vezes. A resposta à pergunta, além de salientar a divisão entre os seguidores da doutrina católica contra os demais, é uma forma de interpretar as fronteiras entre os com e os sem Jesus. Em outras palavras, a fixação de um eixo central demarca duas esferas distintas. Existem, portanto, dois lados: os adeptos da fé versus os demais.

Na verdade, o “nada” já é alguma coisa. Mas a radicalização interpretativa da especificação e da forma de interpretar as circunstancialidades terrenais determina as fronteiras entre os com e os sem Jesus (como denota a canção). Em outras palavras, a fixação de um eixo central demarca duas esferas distintas. Existe, pois, uma espécie de terror entre os que estão com Jesus e os demais. O elemento balizador está na relação inversa entre graça e pecado. A insistência na graça representa a garantia de salvação e da libertação do pecado.

Em relação à América Latina, Eduardo Grüner salienta, na análise étnico-histórica da cultura latino-americana, a referência ao comércio triangular entre três continentes. Nessa nova conformação, ele afirma que houve uma homogeneização, a ponto de, monoliticamente, apenas o cristianismo (GRÜNER, 2010, p. 215). Para Eduardo Grüner a modernidade implantou um modelo sistema-mundo que deslocou a centralidade mediterrânea para se fixar no Atlântico, interligando três continentes: Europa, América e África. Esse fato amplia os horizontes econômico, político, cultural e religioso.

A configuração do novo sistema-mundo deixa de lado os “três grandes monoteísmos ou religiões históricas” para consolidar um “sistema-mundo mono-cultural” (GRÜNER, 2010, p. 215). Em outras palavras, paulatinamente, esse sistema foi sendo monoliticamente homogeneizado e consolidado a partir de uma única figura religiosa: o cristianismo. Em outras palavras, o sagrado não é assumido como religião histórica, pois o sistema “geocultural unificado”, na expressão de Grüner, se alimentava de um sistema-mundo como ideia de uma única religião, ao tempo que também defende “uma ideologia e uma concepção de mundo” única (GRÜNER, 2010, p. 219).

Esses elementos salientam dois aspectos deveras problemáticos.

Por um lado, conforma-se uma demonologia (BALDUCCI, 2001, p. 1.003) com o fim de mapear os signatários e seguidores das tradições religiosas em contraposição aos “não crentes”. Nesse caso, a dialogicidade se torna praticamente impossível. Além disso, o segundo aspecto salienta que a proliferação das “igrejas” aumenta a desigualdade social. Essa questão é a causa da suspeita em relação à vinculação do neoliberalismo com essa disseminação de “igrejas” e seitas mundo afora. No caso específico de Terra brasilis, os dados demonstram que a pobreza é crônica e, como se destacará a continuação, ao invés de minimizar, ela aumenta cada vez mais.

Nessa reaproximação entre fé e política, o “mercado” aparece como uma espécie de cassino ou boutique, na qual o único prazer é o negócio da eficiência. Ele funciona como eixo de convecção e lugar de culto. No plano da redenção, os méritos atendem a preceitos hiperindividualistas ligados ao deletério reino do “individualismo estúpido” e idiota (GARCÍA-MARZÁ et al., 2018, p. 11). Essa comprovação reflete, pois, a amostra particular relativa aos “talentos” e capacidades individuais, criando desejos e uma “fome de consumo” sem precedentes. Esse mercado cambista abençoa a meritocracia dos talentosos, uma espécie de necroempreendedorismo, que, simplesmente, beneficia os mais espertos.

Esse é o ponto central de um projeto neoliberal, um tipo de mercado cambista que coaduna “fé” religiosa com sucesso financeiro. O prospecto religioso de uma res-pública Terra brasilis que conjuga religião com o projeto neoliberal de sociedade. Nele, há duas instituições que assumem o protagonismo: a figura religiosa e a representação política. Esses grupos – embora com divisões internas – formam uma espécie de “aliança” estratégica, um tipo de Overlapping Consensus (PIZZI, 2020). agregando corporações e monopólios, para controlar setores essenciais da sociedade. São verdadeiros cartéis preocupados com os rendimentos financeiros de seus investimentos. Essas máfias não têm nenhum compromisso com os direitos sociais e, muito menos, com o ecossistema.

Além de uma teologia da prosperidade, está intrínseca a vinculação da razão pública a “movimentos fundamentalistas”, uma espécie de “terrorismo guarnecido de religião” (HABERMAS, 2015, p. 267). Por isso, ao ler Habermas e Fromm – entre outros autores –, me parece que existe um segundo aspecto importante no momento de compreender o fenômeno religioso e de sua influência na vida social, política, cultural e religiosa de nossos dias. Não se trata apenas de efeitos midiáticos, mas de uma perigosa reinterpretação da vida política a partir dos cânones fundamentalistas.

A Terra brasilis e o abençoamento dos talentosos

Na Terra brasilis, o “ponto de referência” segue a lógica das duas caras de Jano: de um lado, a perspectiva futura de abundância e enobrecimento dos talentosos e, do outro, uma legião de subalternos, contaminados por anomias. Para explicar mais detalhadamente a duplicidade de uma paralisia Terra brasilis, um texto publicado recentemente reflete as características suspeitosas da Constituição brasileira de 1988 (PIZZI, 2019). A finalidade é ressaltar a tão propalada ideia de uma Carga Magna com preocupações sociais. Ou seja, ela perfaz um conjunto de direitos sociais, mas os resultados não confirmam essa qualidade. A análise de então começa com o marketing de uma Constituição “vendida” como social.

Todo lo que se ha dicho y anunciado sobre ella subraya un «carácter social», es decir, se trata de una Constitución “social” que se centra y garantiza los derechos sociales de la gente y la búsqueda de la equidad y el bienestar de todos los ciudadanos. De hecho, si uno mira y estudia el texto constitucional, puede ver y destacar una serie de derechos sociales y una perspectiva volcada a la justicia social y ciudadana. No existen precedentes de una Constitución del país con tantas indicaciones de este carácter. Además, las interpretaciones y la exaltación de sus calidades sociales han sido motivo constante de debates, divulgaciones, marketing y otras formas de enunciación públicas. Mientras tanto, al mirar los resultados de sus treinta años de su vigencia, los hechos indican una situación plagada de controversias. Si, por un lado, la Constitución del 1988 fue ovacionada por su carácter «social», por otro eso se transformó en una gran mentira, pues la concentración de la riqueza y de la renta no dejó de avanzar. En otras palabras, los niveles de desigualdad se han incrementado. Si para Marx la confrontación ocurría entre la burguesía y los trabajadores, ahora el sistema capitalista presenta otra magnitud: la sociedad del despilfarro en la que los especuladores inmobiliarios y los ejecutivos de alto nivel concentran la riqueza. En otras palabras, “[…] las rentas del capital no dominan más las rentas del trabajo, pues estas están restrictas a un grupo relativamente pequeño”.

De forma más detallada, la Constitución ha permitido que determinados grupos hayan conseguido ganancias abrumadoras. Son terratenientes, grupos inmobiliarios, ejecutivos, sindicalistas, agentes públicos de distintos niveles (entre ellos, profesores universitarios y jueces que cobran o se jubilan con una renta o sueldo superiores a diez mil dólares). Entonces, si la renta media de las familias brasileñas ha sido de 1.268 reales mensuales (en torno a 340 dólares),7 ese pequeño grupo privilegiado cobra o vive con una renta por lo menos treinta veces superior a la gran mayoría de las personas. (PIKETTY, 2014, p. 138)

Como é possível perceber, Terra brasilis é uma res-pública onde a desigualdade segue como uma “companheira” devastadora. Na reportagem-entrevista Como fazer os ricos do Brasil pagarem a conta da crise do coronavirus (2020),8 Juliana Sayuri entrevista Fábio Pereira dos Santos e Úrsula Dias Peres. Nesse trabalho, há alguns dados atualizados a respeito de Terra brasilis, reafirmando a tese da abismal desigualdade. Em primeiro lugar, eles deixam claro o pouco imposto que os ricos brasileiros pagam. O extrato superior da pirâmide é formado por funcionários públicos e os estratos das altas classes médias, além dos super ricos. A média desses 11% dos declarantes do imposto de renda é de 60 salários mínimos (o salário mínimo nacional de 2020 é de R$ 1.030,00 reais o que equivaleria hoje – 30 de dezembro de 2020 – a aproximadamente 180 dólares). Ou seja, são pouco mais de três milhões de declarantes, com uma renda média de dez mil dólares mensais, isto é, de vinte mil reais ou mais. O valor do programa Bolsa-Família é de R$ 205,00 reais, ou seja, algo próximo a 37 dólares mensais.

Esses dados são mais que suficientes para indicar os abismos social, econômico e cultural de Terra brasilis. A fisionomia é aterradora, enquanto os grupos privilegiados seguem, em plena crise de pandemia, sua vida normal. Para eles, permanecer em casa significa normalidade sem qualquer tipo de inquietação. O mais intrigante é que muitos desses grupos vociferam por direitos sociais. No entanto, eles continuam enclausurados em suas bolhas, regozijando-se com sua condição de privilegiados. Nesse estrato, há lobistas e militares, servidores públicos, profissionais liberais, executivos e fazendeiros, além de pensionistas e aposentados com alta remuneração – alguns deles recebendo mensalmente de mais de uma fonte de renda. Às vezes, esses grupos deturpam seus interesses para ludibriar o sistema para, então, afeiçoarem-se ao jogo das mentiras, da corrupção e do populismo xenófobo, aporofóbico e mortífero.

O texto a seguir – parágrafo seguinte da citação anterior – deixa transparecer essa disparidade patologizante, que deverá aprofundar-se ainda mais com a atual pandemia.

La concentración de la renta y de la riqueza es un factor fundamental para el aumento de la pobreza extrema que, en el caso de Brasil, sigue disparado. Como el país con más población de la región, entre los años 2015 y 2017 la pobreza extrema saltó del 4% al 5,5% de su población. Los dados sobre Brasil no se alejan de los demás países latinoamericanos. De un lado, pequeños grupos muy privilegiados; de otro, la inmensa mayoría en situaciones de pobreza o, incluso, por debajo de la línea de pobreza. En este último caso no tienen acceso a la salud ni a jubilaciones pues no consiguen trabajo definido, ni tienen reposo semanal ni vacaciones, mucho menos seguro de desempleo o por accidente o enfermedad, ni tampoco licencia por paternidad o maternidad (PIZZI, 2020, p. 317-318).

O perigo se extrema com o ressurgimento da eugenia étnico-racial. Ela carrega consigo a possibilidade real de eliminar um contingente de pessoas consideradas “anormais”. No fundo, trata-se de uma purificação da sociedade, aspecto estudado por Mary Douglas, em seu destacado livro Pureza y justificación (1991). Nessa mesma direção, Adela Cortina examina a questão do ponto de vista da aporofobia, ou seja, um “rechaço, aversão e medo” aos e dos pobres (2017, p. 22). Em outras palavras, uma repugnância e hostilidade em relação aos desvalidos, como se eles fossem a causa das anomias a permear o País, em todas os seus estratos.

Nesse sentido, a constatação de Manoel Bomfim sobre os “males de origem” (2005) sublinha a possibilidade de um prognóstico eugenicida para, então, expurgar todas as influências indesejadas, porque elas são nefastas.9 Na verdade, o constante rechaço aos pobres vai criando um clima de ojeriza, de modo especial em relação aos afros, afrodescentes e indígenas, porque não apresentam as características dos colonizadores europeus e, muito menos, se encontram no estrato superior da escala social. Por isso, a proscrição das supostas irregularidades de formação precisa, antes de qualquer reação, encontrar os possíveis culpados das contaminações. Com isso, a terapia poderia contornar os “males de origem” e consolidar uma sociedade normalizada.

No entanto, a arregimentação busca fiéis de todas as classes sociais. Mas os pobres, que são a grande maioria, se convertem em fideístas de um projeto dinástico e, portanto, senhorial que favorece apenas o estrato superior. Nesse sentido, os pobres são transformados em objetos de um arrebatamento que serve de escudo para as dinastias dominantes. A insistência na possibilidade de cura torna os pobres reféns de um modus operandi embusteiro, de forma a criar uma dependência cada vez maior do sistema impostor.

Para os signatários dos fundamentalismos, alternativa de “cura” e purificação da sociedade seria, então, a oportunidade ímpar para romper o elo de uma conformação triangular afro-ibérica e ameríndia. Os fatores ético-culturais e a ancestralidade não deveriam ser os elementos congregantes para uma convivência saudável, mas indicadores de anomias insuportáveis. Nesse sentido, a eugenia possibilitaria a limpeza étnico-social da sociedade, alternativa para provocar o desaparecimento dos pobres e indesejados. Esses movimentos alimentam, portanto, o “rechaço a pessoas concretas, depreciadas ou temidas, por apresentarem características específicas de um determinado grupo” (CORTINA, 2017, p. 25). No conjunto da obra, a questão de fundo está ligada a uma epistemologia triangular, inerente aos mundos de vida afro-ibérico e ameríndio, tema já tratado em outros momentos (PIZZI, 2019).

De qualquer modo, a proliferação desse comércio é acompanhada por uma militância sistemática, tanto na abertura de capelas como também na formação de acólitos em diversos níveis. Há algum tempo, não é raro encontrar panfletos e anúncios em algum imóvel com anúncios de tal envergadura. Esses movimentos incrementaram com um tipo de “personalidade” de caráter estrafalário, ou seja, com uma característica nada tradicional os padrões até então normais. Como salienta Fromm, trata-se de culto “às vezes sem divindade.” Os “contaminadores” da convivência são “gentes” afros, afrodescendentes e ameríndios. Ao serem pobres, são vistos como anômalos. Eles intoxicam as relações sociais. Para alguns a solução seria uma eugenia étnico-racial. Por isso, não se trata apenas de uma teologia da prosperidade, mas de um estilo pitoresco e, talvez, ridículo de induzir as pessoas com promessas de superação de problemas. Todavia, não há dúvidas de que a essência de um salvacionismo de tipo imanente se combina com um tipo de modus vivendi típico do sistema-mundo neoliberal.

Considerações finais

A transformação da fé em fator mercadológico é, sem dúvidas, uma questão controvertida. Para além da simples separação entre religião e sagrado, o modus operandi do sistema-mundo neoliberal engendra um fundamentalismo que perpassa distintas esferas da vida social. Não se trata apenas de uma ortodoxia do mercado em si, mas de diferentes esferas, sem deixar de lado o âmbito religioso. Ironicamente, a transformação da fé em produto comercial ocorre em vista de haver consumidores. Essa conversão encontra, portanto, ressonância em um mercado que alimenta esse comércio.

Os limites do mercado são sua própria demarcação e, por isso, segundo Michael J. Sandel (2012), “não faltam maneiras de ganhar dinheiro”. No caso, a fé é uma delas e, em razão disso, a própria fé se transforma em produto à la carte. Nesse feirão de ofertas, há produtos e objetos para todos os gostos e necessidades.

O livro de Ricardo Salas indica uma metodologia e os procedimentos para pensar a questão do sagrado. Sua análise se centra no contexto chileno. No entanto, a América Latina como um todo e o Brasil, em particular, retrata a diversidade religiosa, aspecto que exige um diálogo intercultural. Nessa questão, o livro conduz o leitor a entender essa multidiversidade, com duas perspectivas diferenciadas: o aspecto originário das tradições de seus povos (afro-indígenas, por exemplo) e o processo de evangelização cristã.

Por isso, a análise não pode ser restrita a um campo das Ciências Sociais, como fosse apenas um tema estritamente sociológico, teológico ou antropológico. Nesse sentido, há uma complementaridade entre as ciências e, por isso, a filosofia não pode recusar-se a participar do debate. Aliás, o livro salienta a análise filosófica do tema, aspecto que o autor não se cansa de repetir. Por isso, o con-viver desloca a centralidade de um antropocentrismo avassalador e realoca o eixo na con-vivência saudável. Sem dúvidas, alguns países sairão da pandemia com “novas” exigências ao con-viver.

Essa análise presume reações voltadas a evitar o sofrimento, evitando cair na idiossincrasia de discursos solipsista e monolíngues. De uma forma mancomunada, diversos autores contemporâneos salientam alternativas às patologias sociais. Para Fromm a biofilia se antepõe à necrofilia. Nesse sentido, Fromm pode ser classificado como um autor vinculado à “filosofia da vida”. Na esteira desse movimento, muitos autores atuais insistem na reformulação dos pressupostos para reorientar o agir na direção de uma con-vivência mais saudável. Muitos deles são ecologistas, sanitaristas e da área da saúde, urbanistas, produtores rurais, etc. Então, o foco no entorno vivencial permite olhar de outro modo a alternativa voltada à consecução de um estilo de vida garantidor da con-vivência hospitaleira.

Por isso, sua insistência na contraposição entre os impulsos de “amar e cooperar” diante da inospitalidade necrófila – “de destruir, dominar, reprimir, sufocar a vida” – nos leva a acreditar na possível vinculação ou em uma propensão irresistível a uma filosofia voltada à vida. Sem dúvidas, a necessidade de um .e-enamoramento pelo con-viver carrega consigo um re-encanto pela convivência hospitaleira em todas as suas dimensões.

1Este texto é, de certo modo, uma continuidade do artigo “Efeitos patológicos do fundamentalismo: o religar como resposta à convivência saudável”, publicado no Dossiê Fundamentalismo e Democracia, publicano na Revista Horizonte, v. 18, n. 57.

2No Brasil, a grande inspiração neopentecostal da Igreja Católica deu-se por meio da Renovação Carismática, um movimento fundado por William Storey, Ralph Keifer e Pathi Mansfield, nos meados dos anos 60, nos Estados Unidos. Ele foi importado ao Brasil pelo sacerdote Haroldo Joseph Rahm (nascido no Texas, em 1919, e falecido no Brasil em 2019).

3Nesse sentido, parece ser muito sugestivo, para o debate atual, o documentário Sem espaços Seguros (2019) – no original No Safe Spaces –, no qual o comentarista político Dennis Prager e o comediante Adam Carolla apresentam uma série de entrevistas, seja com estudantes, professores e outros especialistas sobre a “liberdade de expressão”. O argumento central evidencia que ela sofre controvérsias não apenas na interpretação do artigo constitucional norte-americano, como apresenta também aplicações distintas, segundo os interesses de grupos e entidades específicas. Nesse sentido, não há, inclusive nos espaços acadêmicos, “espaços seguros” para opiniões divergentes. Cf. https://www.telecineplay.com.br/filme/Sem_Espacos_Seguros_21324.

4Essa representação empreendedorista é retratada no documentário produzido pela HBO (2015), dirigido por Alex Gibney, Going Clear: Scientology and the Prision of belief. No fundo, trata-se de uma atualização desse complexo das “fundações” que se estendem mundo afora. Com base no livro Prisão da fé: Cientologia, Celebridades y Hollywood (2013), de Lawrence Wright, o documentário recolhe depoimentos de ex-integrantes da igreja Cientologia, fundada por Lafayette Ronald Hubbad (1911-1986), fundada nos anos 50 do século passado. Nele, além das denúncias de abusos, intimidações e ameaças – como é o caso do ator John Travolta –, há também ilustrações dos perigos de uma fé cega e alucinógena. Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Going_Clear, acesso em 30 de dezembro de 2020. Nesse sentido, é interessante também ver o livro de Erich Fromm (1994, p. 36 ss) quando discute a “dianética”, um movimento que realiza uma espécie de simbiose entre religião e ciência. No caso, não se trata de traços psicológicos ou psicossomáticos, mas na reinterpretação da proposta do aventureiro L. R. Hubbard (também conhecido por Ron Hubbard).

5CF. https://www.letras.mus.br/velho-milongueiro/1594764/, acesso em 22 de dezembro de 2020.

7Cf. http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-02/renda-familiarcapita-no-brasil-em-2017-era-de-r-1268-segundo-ibge, con acceso en 10 de enero del 2019. Conversión de reales a dólares de enero de 2019.

9Um exemplo típico desse tipo de expurgação está representado no filme Silence (2016), cujo enredo – embora as controvérsias – faz referência à violência e perseguição do governo japonês que, no século XVII, pretendeu expurgar todas as influências estrangeiras; no caso específico, o catolicismo. Cf. o trailer oficial em https://www.youtube.com/watch?v=PgGZbD7wUIQ, com acesso em 30 de dezembro de 2020.

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Recebido: 17 de Novembro de 2020; Aceito: 10 de Janeiro de 2021

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