Introdução
Possuía, em sua casa, uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os viajantes para se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, os que tinham baixa estatura, eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Ninguém sobrevivia, pois nunca uma vítima se ajustava exatamente ao tamanho da cama
(SERRATO, 2010, p. 145).
As vivências que serão expostas neste artigo, oriundas de uma Tese de Doutorado em andamento,3 problematizam a microfísica reativa na sociedade e, consequentemente, no acontecimento educação. Teremos como pista cartografar o cis-tema a partir das potências de corpos que perceberemos como transexuais e que apontam para o agonismo do constructo desta introdução. Assim, a Cartografia dos Descostumes4 aqui pretensiosamente proposta vem no afã de que seu mapear também empreenda deslocamentos de pensamentos que façam com que os leitores participantes dessa jornada percam os costumes e se desabituem, pois tais descostumes podem trazer à baila novos/outros devires e forças... potências, uma vez que estamos atravessados por processos, movimentos e forças que muitas vezes não percebemos. Dito de outro modo, o tecer deste artigo se aproxima da potência dos corpos de transresistência como lugar de violência e controle que, mesmo mudo, calado, insiste em “atrapalhar” e embaralhar os códigos.
A partir de tal pista, dois movimentos se mostram essenciais: primeiro, mapear as críticas à dissocialização e ao controle dos corpos vistos em linhas moleculares e molares5 das construções discursivas e normativas, as quais o aparato escolar corrobora. Tal movimento se faz necessário, pois, como afirma Foucault (2001), nosso papel é diagnosticar as forças que atuam nas representações e nas formas de ser e estar no mundo, ou seja, a própria realidade. Posteriormente, desedificar discursos educacionais que transitam no universo da representação (significado, significante e significação) na qual se baseia atualmente a pedagogia.
Embora neste trabalho não nos proponhamos a adentrar em detalhamentos de “dados coletados”, é essencial que reconheçamos que nosso pensar sobre o encontro dos corpos trans com educação moveu-se a partir do acesso a entrevistas, ensaios fotográficos, intervenções artísticas, textos e documentários do artista/jornalista pernambucano Chico Ludemir.6 Tais materiais são oriundos de um projeto de pesquisa/extensão por ele desenvolvido com onze mulheres trans e travestis da cidade de Recife. O movimento realizado por Ludermir resultou, dentre outros materiais, no livro “A História Incompleta de Brenda e de Outras Mulheres” (LUDERMIR, 2016), que traz à tona subjetividades narradas pelas mulheres participantes do projeto.7
No entanto, “o indivíduo não nos é dado”, como advertem, e por nós são recebidas, as palavras de Alípio de Sousa Filho (2013). Sendo assim, deslocamos os registros das vivências de mulheres reais para substanciar de forma prática os descostumes que nos criam como uma obra de arte, a despeito das forças políticas que também atuam no espaço educacional. Nessa direção, o dispositivo teórico-prático (Cartografia dos Descostumes) articula múltiplos pensamentos dentro da linha de novas subjetividades e da filosofia da diferença na educação. Tais pensamentos em consonância com as provocações de autores como Foucault (1996; 2001; 2004; 2012), Deleuze (1988; 2000; 2001; 2010; 2012), Mbembe (2018), Preciado (2014), Zourabichvili (2004), Hilário (2016), Marinho (2014), Rolnik (1997; 2006; 2016), Souza Filho (2013) e Veiga-Neto (2013) reforçam o sintagma foucaultiano de pensar outramente.
No “modelo” educacional vigente, o descostume, a inquietude e o sofrimento que decorrem do amuralhar das subjetividades (nos melhores casos) partem da lógica procustiana de cortar, esticar e adequar processos de subjetivação por meio de agenciamentos constituídos por uma episteme cis, embranquecida, urbana, ocidental e heteronormativa que, por fim, acaba necropolitizando vidas. Estas passam a ser amordaçadas e empobrecidas pelo cis-tema que promove que o sofrimento devore o sujeito. Na esteira dessa lógica, observamos os modos de subjetivação que esses sujeitos encontram para determinar para si mesmos as regras de conduta e as transformações visadas para alcançarem as subjetividades na qual se retratam. Eles desafiam os modos de existência (pré)escritos e trazem-nos formas de re(x)istência, singularização e afirmação da alteridade/sororidade que podem ser capturadas positivamente como movimentos de educação.
A cama procustiana aqui indicada não será a escola, Procusto não é a educação e as vítimas desse titã, consideradas mais teratológicas e mitológicas do que o próprio personagem monstruoso, não são a individualidade de cada mulher aqui cartografada... A partir dessas negações, trazem-se como possibilidades de encontro os processos de articulação teórica e prática que também não invocam diretamente discussões pedagógicas ou didáticas, mas tratam da possibilidade de ruptura de alguns signos educacionais em suas verdades e contribuem para observarmos os eventos delimitantes da sociedade disciplinar e de controle.
1. Cartografias do Descostume: o mapeamento de uma micropolítica ativa no cotidiano da periferia social
Aos desavisados que por ventura seguiram adiante após a introdução, cabe-nos advertir que este artigo, cartográfico e rizomático, faz parte de um Corpo sem Órgãos, de um complexo de vivências que se comunicam e transdialogam, que, por ser sem órgãos, logo, sem pênis, apresenta-se emasculado, potente e real. Trata-se de uma Cartografia dos Descostumes, do que não é cotidiano, do que é marginal, uma potência de discussão que se vincula ao devir-mulher e parte, parcialmente, da crítica de Preciado (2014) à homossexualidade molecular narrada por Deleuze, pois é pautada na contrassexualidade percebida em corpos abjetificados de pessoas desterritorializantes e processos transeducacionais, em que mais adiante nos aprofundaremos.
Ademais, resgatamos uma gama de conceitos e noções foucaultianos apropriados por Albuquerque Júnior, Veiga-Neto, Souza Filho (2013) que atrelamos a uma Cartografia dos Desacostumes, uma vez que esta permite a compreensão espacial das relações de poder e das práticas discursivas e não discursivas: deslocamentos, posições, campos, lugares, territórios, domínios, solos, horizontes, paisagens, configurações, regiões, solos, geopolíticas. Tais conceitos são recorrentes e permitem repensar-se as próprias histórias de vida (sejam trans ou não) pelo estranhamento do cotidiano, uma vez que o dia a dia de mulheres transgêneras não é comum para além dos próprios sujeitos que o vivem em suas relações, tensões e conflitos e levam à constituição e ao desmonte dadas configurações ou desenhos espaciais.
Tais movimentos de desmantelamentos adquirem visibilidade na intervenção artística proposta por Ludermir, chamada “Mulheres: o nascer é comprido”, e nos curtas-metragens homônimos ao livro supracitado. Tais materiais fazem parte de um complexo, de um Corpo sem Órgão, “atravessado por eixos, limiares, latitudes, longitudes e geodésicas, atravessado por gradientes que marcam as transformações, as passagens, e os destinos que nele se desenvolve” (DELEUZE, 2001, p. 24). De forma específica, a experiência, proposta pelo artista e aqui analisada a partir de uma perspectiva educacional, buscou visibilizar o passado e o presente das mulheres trans por meio de fotos trazidas por elas e revisitadas em passados de aparência masculina ou andrógena, mas ainda não de mulher. Suas contações de si partem desse comparativo sem tempo, espaço e lugar exatos, mas reais.
A partir desse processo de reencontro consigo e das suas catarses em intervenções delas próprias em suas fotos impressas em azulejos por Chico Ludemir, corrigiram-se em suas próprias fabulações do que poderia ter sido seu passado, cuja chance de retorno não mais existe. Assim, acrescendo elementos, cabelos compridos e adereços ou retirando e apagando o que para elas eram desnecessidades ou imposições sociais, envolvem-se em um processo educativo que busca devolver ao tempo o feminino que, na época, não lhes fora permitido. Readmitem em si mesmas a mulher que ali sempre insistiu em estar ou, como dizem, a mulher presente no fundo de suas almas.
A partir daí seus relatos espontâneos se desdobram e são narradas suas autobiografias desse difícil parto em que “o nascer mulher é cumprido”.8 As narrativas que se desenrolam se dão a partir dos processos de violência e marginalização vivenciados por essas mulheres que foram postas em lugares minoritários, desviantes, ameaçadores e “invisíveis” da necrópole situada nas fendas da região metropolitana de Recife-PE. Diríamos, então, tratar-se de uma experiência calcada em um transdialogismo, transdiálogo ou transdialógico.9 Tais expressões, para fugir de qualquer disparidade, precisam encontrar o “anti-discurso”, pois Foucault (2012, p. 47) afirma que “o discurso é uma representação culturalmente construída pela realidade, não uma cópia exata”, esse “discurso” constrói e (re)produz o conhecimento e, a partir dele, considerará o que é passível ou não de ser falado/vivido, marginalizando outras formas de agir, pensar e sentir.
Poderíamos tratar aqui também de um transdiscurso que ultrapassasse os domínios e configurações do cis-tema e propusesse uma nova geopolítica de gênero e sexualidade, sem identidades e padrões. No entanto, o transdialógico reclama para si uma potência que fricciona o repertório de representações de verdades impostas e as experiências sensíveis que produzem efeitos em nosso corpo e, logo, produz uma travessia que liga o que é discurso com o que não pode ser discurso (mas que, de forma paradoxal, é discurso também).
Nessa tensão encontra-se a possibilidade de uma Cartografia dos Descostumes baseada no que Rolnik (2016), em seu manifesto intitulado “A hora da Micropolítica”, considera uma fricção das duas principais experiências que vivemos no mundo, que gera uma desestabilização da subjetividade: 1) uma envolve a percepção do mundo associada por nossas subjetividades10 (a partir do que convencionamos chamar de sujeito) ante o repertório de representações de que dispomos e que dá sentido aos elementos; 2) a outra envolve o que a subjetividade faz de seu entorno, “é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente” (“perceptos” e “afectos”).11 Trata-se de um saber-do-corpo,12 uma outra maneira de deslocar o pensamento sem se limitar à experiência exclusiva de um único indivíduo que dilata tempo e espaço sem distinção entre sujeito e objeto, descontextualizando e traduzindo-se em outras formas de ver e sentir (ROLNIK, 2016).
Os descostumes germinam a partir do desejo que atua na desestabilização da subjetividade e gera o florescer. O cis-tema, por sua vez, encontra-se na tríade significado-significante-significação ao mesmo tempo em que impede que haja pensamentos outros. A partir daí o desejo faz o inconsciente colonial-capitalístico produzir uma “anestesia da potência” na qual o saber-do-corpo torna-se inacessível.
Por estar bloqueada a experiência da subjetividade fora-do-sujeito, a subjetividade passa a existir e a se orientar somente a partir de sua experiência como sujeito. Nestas condições, a subjetividade vive a fricção do paradoxo existente entre estas duas experiências como uma ameaça de auto-desagregação, o que lhe causa medo
(ROLNIK, 2016, p. 03).
O cis-tema é um dos tentáculos estratégicos do poder exercido por meio da força do desejo de uma micropolítica que, como disse Suelly Rolnik (2016), passa a ser mais sutil e invisível do que a tradicional estratégia macropolítica. É a micropolítica que criptografa seus processos e a complexidade das forças em jogo e torna difícil enfrentar o regime normativo da cultura moderna ocidental como na metáfora mitológica grega de Procusto.
Assim o poder deve ser compreendido e analisado em movimento. Deve ser analisado nos movimentos que acontecem ao longo das malhas da rede social, em cujos nós se situam os indivíduos que, ao mesmo tempo em que se submetem ao poder, são capazes de exercê-lo. E se os indivíduos são capazes exercer o poder é porque o poder os atravessa. Isso significa que, numa dada situação, as relações de poder sejam simétricas, isso é, de mesma “intensidade” entre aqueles que mais exercem o poder e aqueles que mais se submetem a ele a cada momento
(VEIGA-NETO, 2013, p. 24).
Rolnik (2016) nos traz ainda a ideia de “inconsciente colonial-capitalístico”, que produz um regime de subjetivação antropo-falo-ego-logo-cêntrica, na qual o poder do inconsciente colonial-capitalístico abarca as subjetividades diversas e até antagônicas, pois todas nascem no interior da mesma cultura e, por isso, funcionam dentro de uma micropolítica reativa e desconectada da experiência que envolve os “afectos” e os “perceptos” dos quais compomos nossos corpos em contato com o mundo. Diríamos então que o cis-tema atua especificamente por meio do “inconsciente colonial-capitalístico”, indicando monstruosidades e alertando para o “perigo iminente” de uma “desagregação familiar e moral” heteronormativa fabulada pelo sujeito tanto pelo viés da macropolítica reacionária como da micropolítica reativa e conservadora que promove a reacomodação do mapa vigente pautado na desigualdade econômica e social. Ademais, o cis-tema implica, também, uma experiência subjetiva vivida e entendida como sendo do âmbito do indivíduo (interesses individualistas) e que interrompe os fluxos de criatividade do corpo sensível, impedindo movimentos de vida coletiva e compreensão de outras florações transdialogantes, pois trata-se de:
kits de perfis-padrão [...] para serem consumidos pelas subjetividades, independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural, etc. Identidades locais fixas desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis que mudam ao sabor dos movimentos do mercado e com igual velocidade
(ROLNIK, 1997, p. 01).
Resistir a esse “kit” implica aceitar a provocação de Rolnik (2016) à criação de uma releitura do termo “resistência” para que este recupere seu valor, sua complexidade, amplie-se e ative seu sentido micropolítico. Discute que:
Abandonar este modo de subjetivação passa por um “devir revolucionário”, como dizia Deleuze. Tal devir é impulsionado pelas irrupções de afetos que nos chegam pelo saber-do-corpo e que nos forçam a reinventar a realidade [...] são práticas que incidem na dimensão micropolítica da existência coletiva e que não param de proliferar. Elas nos oferecem condições favoráveis para problematizar e ressignificar a palavra “resistência”, que ainda pode nos servir para qualificar a força das ações de desmontagem do intolerável, já que por ora não dispomos de uma palavra que tenha mais sintonia com o tipo de ativismo que vem sendo praticado.
Daí surgiu, na leitura e na oitiva das vivências propostas por Ludermir, a compreensão de espaços éticos e políticos pautados em experimentações estéticas-artísticas em ligação recíproca com o pensamento visível em novas/outras linguagens educacionais. Surge um devir revolucionário pautado no saber-do-corpo que promove tal reinvenção da realidade, ressignificando efetivamente a palavra “resistência” para um ativismo de re(x)istência e, quiçá, uma educação pautada no cuidado de si (FOUCAULT, 2004)
Assim, foram cartografados incidentes que caracterizam as linhas de intensidade sentidas e que transbordam a partir das marginalidades criadas pelos processos de limitação impostos por nossa civilização, mas que não conseguem ser represados nem pela inteligibilidade estatal, nem pela macropolítica do consumo. Nesse sentido, a Cartografia dos Descostumes busca a possibilidade de uma micropolítica ativa, empreendida a partir vivências cotidianas e narrativas de mulheres transgêneras, que promova a dissolução do poder da macropolítica cis/heteronormativa e de sua micropolítica reativa que captura de forma procustiana todas as esferas da vida humana.
Um olhar micropolítico para detectar o intolerável e buscar formas de combatê-lo. O que orienta este olhar é uma bússula ética, cuja agulha aponta para tudo aquilo que impede a afirmação da vida, sua preservação e sua expansão. Essa mesma bússola é a que orienta tal comunidade flutuante em seus modos de agir. Estes consistem em atos de criação que vão redesenhando os contornos do presente, de maneira a dissolver os pontos em que a vida se encontra asfixiada
(ROLNIK, 2016, p. 02).
Oxigenar “os pontos em que a vida se encontra asfixida” manifesta-se no processo desencadeado por Ludemir com as transexuais e travestis analisadas. São histórias de vidas transnecropolitizadas que instrumentalizam um corpo orgânico pautado nas biografias autocentradas de um coletivo de mulheres que, cartografado, mostrou-se como um Corpo sem Órgãos (CsO) (DELEUZE, 2010).13 Vidas à revelia da racionalidade lógica e rizomática por suas linhas de fuga, na qual, contraditoriamente, se reconhecem singularidades e experiências comuns de transformação do corpo, exclusão social, discriminação e violência. O CsO que parte deste coletivo feminino trans, não é um não corpo que reprime os impulsos, ele se refere a uma conexão de desejos, uma conjunção de fluxos que acontece por intensidades que estão associadas à vitalidade e à existência enquanto criação contínua (RESENDE, 2008). Corpo desamarrado, sem grilhões, alheio a padrões impostos socialmente e, por isso, fragilizados pelo cis-tema bem como submetido a negação de afetos, condicionamentos, perseguições, apagamentos, silenciamentos e extermínios.
Cartografa-se, a partir desse CsO, fenômenos educacionais de não enquadramento e de marginalização das “monstruosidades” que, em uma análise rizomática e filosófica (da diferença), problematiza o encimentamento lapidante ou o engessamento imobilizante que dificultam processos e prelúdios de se vislumbrar possibilidades de linhas de fuga, pois tais dificuldades, embora ineficazes à vista de permanência, enfretamento e re(x)ixtência, mostram-se mortais em muitos sentidos.
2. Sentenças procustianas no sistema necropolítico: um cis-tema esquartejador e transgenerocida
Embora não seja um ensaio, pois trata-se de uma pesquisa, mostra-se inevitável aproximar-se desse gênero linguístico para um flerte com as verdades de uma época. Para isso, retiramos de Hardt e Negri (2003 apudVEIGA-NETO, 2013) discussões que se configuram no conceito de Império e são decorrentes da complexidade do biopoder atrelada às novas relações sociais e às novas configurações econômicas, culturais, geográficas e políticas. Nesse conceito (Império), demonstra-se que há “uma crescente imaterialidade do trabalho, num pós-fordismo impensado por Marx, conduzindo ao enfraquecimento – mas não ao desaparecimento – da soberania do Estado-nação, uma invenção típica da Modernidade” (HARDT; NEGRI, 2003 apudVEIGA-NETO, 2013, p. 17). Nessa perspectiva, os autores discutem um desmantelar da sociedade de controle que perde a capacidade de mediar os interesses do capital e do Estado bem como de desarticulá-lo da sociedade civil com efeitos diretos em instituições sociais, como a escola e a família, por operarem contínua e intimamente na produção de subjetividades.
A importância da discussão dessas alterações na ordem do biopoder14 mostra que a micropolítica reativa que atua sobre a cultura torna seus espaços e práticas como também sendo pedagógicos. Essas alterações atuam na potência dos desejos, apresentando deslocamentos e movimentos para fora dos espaços estritamente institucionalizados. No entanto, segundo Hardt e Negri (2003 apudVEIGA-NETO, 2013) neles se ensina, aprende e naturaliza determinadas verdades, visões de mundo e práticas sociais. “Na medida em que os espaços são cada vez mais estriados, menos lisos, e as novas linhas de força que o atravessam são cada vez mais móveis e instáveis, não faz muito sentido pensarmos num centro irradiador de soberania, ou seja, das decisões e da dominação mundial” (VEIGA-NETO, 2013, p. 18).
Assim, pulveriza-se e descentra-se o poder, uma vez que ele não se traduzirá como uma “coisa” que emane de um centro, que se possua, que se transfira e que “tenha uma natureza ou substância própria, unitária e localizável. O poder não é uma entidade externa de que se possa lançar mão numa relação social, seja essa uma relação de produção, de família, de sexualidade etc.; não vindo de fora, o poder está sempre intricado em qualquer relação” (VEIGA-NETO, 2013, p. 24). No entanto, apesar da inexistência de um “centro irradiador de soberania”, como diz Veiga-Neto, o biopoder pode ser visto por sua capacidade de produzir subjetividades em conformidade com as determinações normativas e normalizantes derivadas do capitalismo. O poder, então, se atualiza e se legitima a partir das lógicas de domínio sobre os corpos individuais em suas práticas cotidianas cujo objetivo é gerar o sujeito da produção e a produção do sujeito concomitantemente (HILÁRIO, 2016).
Contudo, para além do alcance do expressamente disposto na obra de Foucault, restou-nos dar um passo na direção de outras discussões das linhas de intensidade e captura do corpo. Para tanto, precisamos apontar que entre os séculos XVI e XX o capitalismo buscou “assimilar” grandes massas humanas para as linhas de produção, contudo, tendo em vista as transformações técnicas no modo de produção capitalista, o sistema passa a precisar cada vez menos de força de trabalho (HILÁRIO, 2016). Ao chegarmos à segunda metade do século XX o sistema capitalista, de posse dos meios de produção e da tecnologia que aufere um maior lucro com menos mão de obra, passou pela fase do “expulsar”, ou seja, demissões e desemprego estrutural bem como destinação espacial das massas às periferias da cidade, prisões ou aniquilamento por meio de forças policiais, oficiais ou não (milícias) (HILÁRIO, 2016).
Atualmente, seguimos para a fase na qual as grandes massas humanas passam a ser supérfluas, dispensáveis, sobrantes ao seu modo de reprodução e produção de riqueza. A biopolítica passa a não dar conta do acontecimento por significar ainda a produção de vidas: sadias, dóceis politicamente e úteis produtivamente para garantir riquezas às nações. As instituições disciplinares – como as escolas – estão definhando na atualidade, razão pela qual se pode afirmar que as formas de sociabilidade próprias do capitalismo entraram em estágio de decomposição (HILÁRIO, 2016).
Mbembe (2018, p. 146) assinala que “a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte”, contudo, faz-se necessário destrincharmos a ideia de necropolítica. O termo “necropolítica”15, apesar de se referir a uma epistemologia negra da África, assume-se na existência de linhas duras, estratificações e territorializações que impelem os sujeitos à periferia do capitalismo (espacial e política). Isso ocorre quando percebemos que os tais supérfluos, dispensáveis, sobrantes estão inseridos em um jogo de morte que investe em sua impotência, um despotencializar, impedindo as subjetividades de realizar, de fazer o que se pode, de se afirmar. De forma específica, Achille Mbembe (2018, p. 135) define sua necropolítica como “destruição material dos corpos e populações humanas julgadas como descartáveis e supérfluas”.
Assim, os processos e as forças micropolíticas que atuam no desejo de forma reativa coagem e desviam a potência de sua própria plenitude, uma vez que pretendem dominar a vida do outro. É minada a potência do corpo de traduzir a realidade a partir de sua condição de vivente, bloqueando a experiência da subjetividade fora do sujeito (afectos e perceptos) a partir da redução das vidas pela agudização da exclusão, da barbárie e do autoritarismo. Tal condição leva-o à precariedade e à marginalidade em relação ao sistema econômico e social. Hilário (2016, p. 205) acredita, assim como nós, que a necropolítica:
possibilita uma análise crítica dos fenômenos de violência próprios da periferia do capitalismo, onde o desfazimento de um débil Estado de Bem-Estar Social se realiza por meio da barbárie numa dinâmica em que a era de crescimento de direitos individuais e políticos é substituída pela fase de declínio e retirada desses mesmos direitos.
A figura do sujeito supérfluo com uma vida destituída de direitos, sem valor e indigna de ser vivida pode ser compreendida pelo fato de este já não ser mais necessário ao modo de reprodução do capital em crise estrutural atual. Logo, converte-se em portador de uma vida matável, ou seja, uma ação política de morte assinala o ponto em que a biopolítica se converte necessariamente em tanatopolítica (AGAMBEN, 2010, apudHILÁRIO, 2016, p. 205).
Encontramos, ainda, no texto de Achille Mbembe (2016, p. 146) sua argumentação de que “as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror” bem como, no que tange às topografias de repressão e crueldade, “as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem”. Nas palavras de Rolnik (1997, p. 02):
Tais experiências tendem então a ser aterrorizadoras: as subjetividades são tomadas pela sensação de ameaça de fracasso, despersonalização, enlouquecimento ou até de morte. [...] o desassossego trazido pela desestabilização torna-se traumático. Para proteger-se da proliferação das forças e impedir que abalem a ilusão identitária, breca-se o processo, anestesiando a vibratilidade do corpo ao mundo e, portanto, seus afetos.
Diante da descrição dos fenômenos necropolíticos que se articulam ao inconsciente capitalístico-colonial, o termo cis-tema segue no processo de desterritorialização da linguagem ao enfatizar filologicamente que o termo cis significa “do mesmo lado”, antônimo político do trans, pois este seria o contrário ou o incompatível com o normativo e a normalidade estabelecidos. Assim, o cis-tema imputa aos transgêneros a obrigatoriedade de alinhamento de identidade de gênero com o sexo atribuído no nascimento. Dessa forma, muitas vezes a cisnormatividade16 acaba permitindo que a violência a afeminados e a transexuais possa partir, inclusive, de homossexuais cisgêneros. O alinhamento do gênero biológico à performance social de gênero e à heteronormatividade gera o indivíduo padrão para as discussões aqui propostas.
As mulheres que se narraram e das quais partiu nossa cartografia trazem em seus corpos, não diretamente em próteses, hormônios e procedimentos estéticos, mas em cicatrizes e mutilações, o peso da passabilidade, de tentar/lutar para parecer uma mulher biologicamente constituída desde o nascimento.
3. O maquinário escolar e as linhas molares da cisnormatividade.
A educação é lida a partir de inúmeras pesquisas e teorias cis/hétero/embranquecidas/magras, pautadas em identidades, padrões e emolduradas no rol histórico em sucessivas transformações de práticas. As discussões aqui trazidas propõem um deslocamento de pensamento que traz à baila uma ética/estética das formas de subjetivação que o poder-saber exerce, pois funciona no universo da representação (significado, significante e a significação), que é “a tropa de elite da pedagogia” (MARINHO, 2014, p. 23).
Nesse sentido, a crítica social estruturalista no pensamento educacional brasileiro a partir 1970 propõe um pensamento educacional crítico, macropolítico, que se distancia da ideia proposta por Rolnik (2016) de que devemos nos ater à micropolítica. Cristiane Marinho (2014, p. 12) é contundente ao compreender que as discussões da micropolítica são de tamanha importância que por meio dela seria possível identificar que o pensamento marxista-dialético e metafísico encontra traços de “truculências e prepotências que hipostasiaram a realidade em conceitos abstratos, principalmente no que diz respeito à imposição da cultura europeia ao resto do mundo civilizado como tendo caráter de universalidade”.
O acontecimento educação parece-nos tão regular, no sentido de continuidade, mas ao mesmo tempo mostra-se como novidade por parte das práticas transformadoras como as propostas por Ludermir. Nomeamos de acontecimento educação por entendermos que este traduz-se como uma ruptura, uma descontinuidade de regularidades ao acaso de suas transformações, a materialidade de suas condições de existência e relação de forças. Foucault (1996) o vislumbrava como a mutação de uma episteme a outra, que estabelece uma nova ordem do saber, do qual só é possível seguir os signos e os efeitos em lugar das condições gramaticais ou das condições de significação, pois leva-se em consideração as condições de existência que determinam a materialidade própria do enunciado (CASTRO, 2016).
Em todo acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que é designado quando se diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, por outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente porque está livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro, nem geral nem particular, eventum tantum...; ou antes que não tem outro presente senão o do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que convém chamar de contra-efetuação
(DELEUZE, 2000, p. 177-178).
Assim, o acontecimento educação proposto segue a linha da compreensão deleuziana de Zourabichvili (2004), gerando um antes-depois não cronológico unido em uma síntese disjuntiva entre duas interpretações da relação entre linguagem e mundo, estando, portanto, dos dois lados ao mesmo tempo. Em suma, o acontecimento é inseparavelmente o sentido das frases e o devir do mundo; é o que, do mundo, deixa se envolver na linguagem e permite que esta funcione. Conceituado o acontecimento e remetido este ao locus educacional quanto ao prisma da transgeneralidade, coube-nos desdobrarmos as discussões para compreender as realidades educacionais que seguem fortemente conceitos foucaultianos, deleuzeanos, buttlerianos e preciadianos, derridarianos, barthesianos, lyotardianos, dentre outros grandes problematizadores da Diferença.
Adentramos, sem incorrer no antagonismo comum aos sistemas binários de identificação, no protagonismo das linhas molares e moleculares do processo educacional de formação do desejo pelo viés das vivências de sujeitos que contracenam entre si expondo seus modos de vida, diversidades e singularidades, todas no plural, além das interseccionalidades que permitem as florações da Realidade17, com tantas nuances quanto sejam possíveis ou perceptíveis (ROLNIK, 2006).
A Cartografia dos Descostumes aqui proposta partiu de melasmas da pedagogização e da territorialização do cis-tema contidos no tronco e na copa, para só então buscar os rizomas e suas linhas de fuga que permitem o desencaixotar de possibilidades e o bagunçar dos pensamentos, das formas e dos métodos de olhar e sentir a educação em crise e considerar a diversidade das subjetividades. Vincula-se o passado das personas aqui apresentadas, o presente de suas autonarrativas e seu reinventar enquanto CsO.
A metáfora procustiana pode ser compreendida também nos signos educacionais em suas verdades e eventos delimitantes oriundos de uma sociedade disciplinar e de controle aqui denominada “maquinaria educacional”. Essa maquinaria produz o não eu, o não espaço, o não lugar por meio de um universo natureza/cultura que vislumbra o ser assíduo, o ser asseado, a repetição de conceitos e a pouca (ou nenhuma) criação, a preservação do bom senso e do senso comum nos enunciados de educação nos quais convergem as máquinas para o engessamento de seus movimentos (RHODEN; BERTOTTO, 2010).
Não existiu qualquer pretensão neste trabalho de colocar como antagonistas as existências e possibilidades de um CsO composto por elementos cis/embranquecido, magros e elitistas, mas de problematizar, através do olhar vibrátil, a dogmática escolar atualmente (im)posta no Brasil de 2020 que parece transitar para um aspecto conservador, religioso e pautado na necropolítica18 denunciada por Achille Mbembe (2018). Cristiane Marinho, ao tratar da filosofia da educação, que partiu incialmente das obras de Foucault, dispõe que:
O fundamento do ser foi negado em sua estrutura estável, foi declarada a morte metafísica e foram postas em xeque as conquistas políticas, econômicas e filosóficas da modernidade. Assim, se para as vertentes filosóficas educacionais, inspiradas no pensamento pós-moderno, o saber, a razão, e o conhecimento não são mais sinônimos de liberdade como fora na modernidade, pois agora significam poder, então a educação não pode ser somente transmissão de saber, aperfeiçoamento da razão e produção de conhecimento. Agora é exigido dela um pensamento criativo e contestador e uma prática libertadora dos desejos e afetos em relação aos poderes estabelecidos
(MARINHO, 2014, p. 21).
À guisa de conclusão: desiderato cartográfico do desassossego
Proposta a Cartografia dos Descostumes, mapeamos os deslocamentos de pensamentos que se insurgiram do/contra o cis-tema. O inabitual e estranho passa a se delinear em potências queer de mulheres transexuais atravessadas forças e devires, processos e movimentos encontrados nas fendas da realidade.
Encontramos em Rolnik (1997; 2006; 2016) que as críticas à dissocialização e ao controle dos corpos perpassa os estruturalismos dos fatos e das análises superficiais de modos de vida por meio de exterioridades formais, mas que devem ser vislumbradas pelo plano micropolítico das forças que agitam a realidade da necrópole em relação à educação (enquanto itinerário ético), dissolvendo suas formas e contrapondo outras ao cis-tema escolar. Isso será possível por meio da visibilização das linhas de intensidade e tensão que se traduzem em desejos e subjetividades que não se deixam facilmente encaixotar nos discursos educacionais de representação da pedagogia.
Por fim, o presente texto culmina com a maquinaria escolar como sendo uma das estratégias do cis-tema, um dos tentáculos do sistema capitalístico e de suas forças necropolitizantes. Para tanto, fez-se importante um curto caminhar que nos levasse da discussão do biopoder à de necropoder para compreendermos as ordens dos discursos de verdade escolares.