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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022012 

ARTIGOS

A ciência que “não pensa” e a provocação da natureza em Heidegger

Science that “does not think” and the challenging-forth of nature in Heidegger

Antônio José Nascimento1 

1Doutor em Filosofia (UÉVORA), Mestre em Economia (UNICAMP) e Professor do Departamento de Economia da UFS.


Resumo

O presente artigo examina o caráter de teoria do real da ciência que, por não dizer respeito propriamente a um pensar em Heidegger, apreende a natureza como coisa externa ao homem, como mera reserva material processável a partir da urdidura do enquadramento matemático que a objetifica a serviço da técnica. Negada em seu valor intrínseco, a natureza que a ciência moderna submete à representação objetivadora é então preparada para o essenciar-se da metafísica no incondicionado da exploração tecnológica. Diversamente, contudo, do entendimento corrente, o domínio da natureza com vistas à eficácia do asseguramento da disponibilidade não é algo que emana da vontade soberana do sujeito no trato com os artefatos e processos de trabalho, mas de uma maquinação - ver-se-á aqui - cuja essência repousa no modo onto-técnico de manifestar o ser, ou a entidade dos entes, no interior do produtivismo niilista da metafísica que fez da ciência uma força operadora do calculismo da técnica. Em larga medida, foi sob os auspícios do projeto da modernidade que se sedimentou a ideia de que a técnica se tratava de algo cujo controle o homem detinha, na condição de instrumentum derivado da aplicação científica. Para esse efeito, contribui decisivamente o paradigma da racionalidade tecnocientífica fundado na metafísica da subjetividade cartesiana, em vista de que o mundo, como imagem, é diligenciado como processo de construção forjado pela representação científico-matemática que é já, como tal, um influxo da vontade de poder da técnica como força cega e trágica que se quer para o pleno cumprimento de uma forma de desvelar as coisas como domínio calculado.

Palavras-chave Ciência; Investigação; Cálculo; Natureza; Técnica

Abstract

This article aims to examine the character of the theory of the real of science which, because it does not correspond exactly to a thinking for Heidegger, apprehends nature as something external to man, as a mere processable material reserve based on the plot of the mathematical framework that objectifies it in the service of technique. Therefore, denied, in its intrinsic value, the nature that modern science submits to objectifying representation is the one that is prepared for the essence of metaphysics in the unconditioned of technological exploration. Differently, however, from the current understanding, the mastery of nature with a view to the effectiveness of ensuring availability is not something that emanates from the sovereign will of the subject in dealing with artifacts and work processes, but from a machination - It will be seen here - whose essence rests in the ontotechnical way to manifest the being, or the entity of the entities, within the nihilistic productivism of metaphysics that made science an operative force of the calculism of technique. To a large extent, it was under the auspices of the modernity project that the idea that the technique was something whose control man held, as an instrument derived from scientific application, was consolidated. For this purpose, the paradigm of technoscientific rationality based on the metaphysics of Cartesian subjectivity was very helpful, considering that the world, as an image, is endeavored as a construction process forged by the scientific-mathematical representation that is, as such, an influx from the will to power of technique as a blind and tragic force that wants itself for the full fulfillment of a way of unveiling things as a calculated domain.

Keywords Science; Research; Calculation; Nature; Technique

Introdução

A escrutinação científica da natureza - enquanto primado da ação calculada pertencente à essência da técnica moderna, em seu modus de revelar o ser de qualquer coisa como expressão do domínio humano sobre a totalidade do ente - inscreve-se como um novo capítulo da história da metafísica produtivista do ocidente que forjou a conquista tecnológica do mundo. Com efeito, a ciência constitui o sine qua non operatório da culminância do itinerário da ocultação [Verborgenheit] do ser no assegurar-se do ente, para o que a metafísica da subjetividade de Descartes – em seu trabalho de haver conduzido o pensar à sua conversão em substância pensante – foi decisiva, porque instaurou, para Heidegger, tanto a demarcação do sentido da objetividade [Gegenständlichkeit] quanto a verdade como certeza da representação [Vor-stellung].

Sem essa precondição fundamental, relativa à concepção do ente e da verdade que tornou possível o conhecimento investigativo da natureza, a ciência experimental moderna – que Heidegger justapôs à técnica como “fenômenos essenciais” da modernidade – não teria podido firmar-se como investigação, mormente como empresa da investigação (HEIDEGGER, 2012a), entendida como atividade organizada de inquirição sistemática e incursionamento em regiões do ente a partir da efetividade de uma desobstrução, isto é, da abertura que faculta uma demarcação e uma projetualidade em termos de mensuração metódica de processos naturais para fins de asseguramento do domínio tecnológico da natureza como presença constante ou disponibilidade permanente.

Em sua regência essencialmente técnica, a ciência moderna escancara a estrutura do ser do ente próprio da ontologia da coisa, do simplesmente dado pela tematização teórica propiciadora da verdade dos entes como algo não só objetivo, mas também elaborável no contexto do produtivismo do pensar metafísico que, a caminho de sua autorrealização, arregimenta a própria ciência para poder triunfar no absolutum da técnica. Ao reconhecer como realidade apenas e tão somente o que se põe em consonância com o processável, com o que é objetualmente mensurável, precisamente por isso - argumenta Heidegger (1997) - a ciência não pensa, porque não interpela e nem se ocupa com os fundamentos que dizem respeito à determinação da objetualidade de seu objeto.

Isso posto, é propósito do presente artigo examinar essa peculiaridade da ciência em Heidegger a partir de seu caráter de teoria do real, que, a bem da verdade, é um não meditar acerca da realidade dos entes de que se ocupa, uma vez que o ser-natureza (tanto quanto o ser-homem aí) é, para a esfera da ciência, uma simples presença, é o puramente subsistente [Vorhandenes] que figura como receptáculo de uma configuração que posiciona a physis para a maquinação de um ordenamento, quer dizer, para o provimento contínuo de recursos reclamados pelo modo constrangente (técnico) de produzir o aparecimento das coisas. Disso, contudo, que compele o mundo da vida à exploração e à desmesura de tudo, pode muito bem resultar, como admitia o próprio Heidegger, um outro sentido de escuta para o que nos solicita.

A esse respeito, quando, decerto, o que mais urge é a possibilidade de a humanidade se colocar no aberto de uma outra modalidade de desvelamento da verdade do ser, de uma abertura quiçá propiciadora da compreensão de um outro modo de se habitar o mundo-ambiente para além do requisitado pelo saber da dominação - o qual circunscreve a ciência à condição de mera força produtiva e descura da importância de pensar o ser -, eis que, paradoxalmente, mais se é instado à defesa da vetusta positividade da ciência. Noutras palavras: quando já não mais parecia fazer sentido pugnar pelo legado positivista da ciência, a fim de se poder fazê-la avançar numa outra diretiva, é justo agora, em meio a uma pandemia que aflige a humanidade, que esse apelo à hegemonia da representação científica é ressignificado para fazer face às investidas de um certo obscurantismo anticientífico, perante o qual se é levado, à outrance, de volta à revigoração da ideologia do progresso que consiste na defesa da dominação dos processos naturais como fim único da ciência.

1. A ciência como empresa da investigação

No âmbito do ser que se delimita como objetualidade, a natureza é provocada pela ciência a mostrar-se por meio do rigor da investigação matemática, porque o trato com a verdade dos entes somente se pode dar por via do caráter de exatidão da regularidade dos fenômenos. Uma vez preestabelecido ontologicamente que o conhecimento objetivo da natureza se deve realizar como projeto de investigação interceptado pelo cálculo, o experimentum permanente emerge, então, como o modus operandi por excelência da ciência moderna. Entretanto, como o próprio Heidegger (2012a) ressaltou, não é mediante o experimento que a ciência da natureza se faz investigativa, em vez disso, é o experimento que se torna possível com a prévia determinação do conhecimento da natureza como processo de investigação, o qual não é outra coisa senão o descortinar provocante da ordenação quantitativa enquanto pré-manifestação do ente trazido à presença - pela representação do calculável - para a esfera do constantemente disponível em conformidade com o estabelecido pelo esquema do plano que o pré-põe.

No cerne dessa provocação encontra-se a circunstância, apontada por Arendt (2007, p. 243), de “as ciências naturais se terem tornado exclusivamente ciências de processo e, em seu último estágio, ciências de ‘processos sem retorno’, potencialmente irreversíveis e irremediáveis”, desencadeados no reino da natureza com o concurso das faculdades humanas. Assim é como o homem, diz Heidegger (2012a, p. 118), “põe em jogo a violência ilimitada do cálculo, da planificação e do cultivo seletivo [Züchtung] de todas as coisas”, como forma de instalar-se no mundo, o qual, não sendo mais o da ideia de cosmos, “já não tem unidade, é apenas um conjunto de objetos oferecidos à investigação científica”, analogamente ao que se vê na concepção de natureza referida por Descartes como extensividade própria de entes corpóreos.

Ora, semelhante interpretação, em seu modo de apreender os entes, é bem diversa e já não guarda mais relação com a do mundo grego, cuja natureza [physis] – sublinha Chrétien (1997, p. 56) – “não é extensão geométrica, inerte e disciplinada” como a que se “presentifica” no projeto cartesiano da representação calculadora. A natureza dos gregos, ao contrário, “é uma potência de vida sem cessar, explode em miríades de formas, rebeldes à lógica e à identidade”.

A bem da verdade, mais do que introduzir uma mudança na interpretação do significado conferido pelos gregos a φύσις [physis], a moderna investigação físico-matemática da natureza - ao reduzir processos naturais a um fenômeno de base material como outro qualquer - converte a filosofia originária dos gregos na filosofia da natureza que enquadrou todas as coisas na representação (HEIDEGGER, 2001), aniquilando as forças que imperam no devir e no ser.

Da perspectiva, então, da história do ser internada na tradição da metafísica produtivista, pode-se dizer, como Foltz (2000, p. 30), que,

com o advento da filosofia moderna, o ser da natureza já não é visto simplesmente em termos de presença como pura dádiva. Ao contrário, é lançado para fora como a objectividade de um agregado de objectos dados que é assegurado de antemão pelo assegurar-se a si próprio da subjectividade; na base da auto-fundamentação do ego cogito [...] a natureza é postulada como constantemente presente à subjectividade na sua mensurabilidade e calculabilidade.

Essa situação extrema a que foi levada a natureza, reduzida a estatuto de coisa objetivada pelo padrão de racionalidade da ciência moderna, tornou-a, para Galimberti (2010, p. 387), “presente como negada, e o não da negação é o não da natureza como physis autodesvelada, por causa da opressão da aparência”2 que a compeliu a prestar contas de si à razão. Portanto, nesse processo que desnaturaliza a natureza como provocação da “ciência que não pensa”, ela “aparece nos termos preestabelecidos pela razão e, nesse revelar-se racional, oculta a sua face natural; oferece de si o requisitado, retendo em si o não requerido [...]. O seu manifestar-se é, sim, aletheia, mas essa aletheia não é total”3.

2. A ciência como teoria do real

É comum supor que a essência da ciência se consubstancia como elaboração teórica de domínios da realidade, porque sua função é lidar com os entes em seus ramos de especialidade. Não lhe compete, pois, interpelar o ser dos entes com os quais opera, o que significa dizer que não questiona o substrato ontológico ou o estatuto das entidades que constituem seu objeto de investigação. Tacitamente, ela “assume um sentido para seus conceitos, objetos e relações - um sentido que pressupõe um entendimento irrefletido de Ser como mera presença (Vorhandenheit)” (GIACOIA JUNIOR, 2013, p. 55). É nesse horizonte, como bem se pode perceber, que o dito heideggeriano - “a ciência não pensa” - manifesta todo o seu conteúdo.

No entender de Heidegger, a ciência moderna – e somente ela, já que tal não se aplicaria nem à ciência antiga, nem mesmo à ciência medieval - compreende um tipo de saber informado pela teoria do real, e a ocultação [Verborgenheit] da essência desse saber repousa no pensamento grego e recebe o nome de filosofia. Foi nessa destinação, como legado histórico do esquecimento da pergunta pelo ser na metafísica, que o saber moderno encontrou sua culminância na técnica moderna.

A insistência em permanecer nas malhas da representação habitual da ciência (como atividade desinteressada e neutra) não nos permite discernir esse oculto que nela impera e que tolhe a compreensão de que sua peculiaridade não deriva, pura e simplesmente, da propensão humana ao conhecimento. Decerto que a dominação objetiva da natureza, característica da revolucionária maneira moderna de conhecer – e de conhecer distintamente, por meio do emprego da ciência –, não se limita à importante e necessária, mas não suficiente, vontade de conhecer, que é apenas uma variante, não obstante própria, do modo humano de estar no mundo para além de sua primordialidade prática.

Em vez da persistência nesse terreno da vontade, Heidegger sugere que alcancemos, primeiramente, a verdadeira essência da ciência como teoria do real, a fim de, com isso, podermos então apanhar o contexto de significação empregado para caracterizar o “real” da teoria da ciência moderna possibilitante de seu afazer no tocante à investigação per se dos entes, que, no caso, transitam já num determinado horizonte de compreensão do sentido do ser, no qual o questionamento ontológico antecede aquele de jaez ôntico das ciências positivas. Em Ser e Tempo, Heidegger (2014, p. 21) é bastante eloquente a esse respeito:

A pergunta que interroga pelo ser dirige-se, por conseguinte, não somente a uma condição apriorística de possibilidade das ciências que pesquisam o ente enquanto tais ou quais entes, movendo-se em cada caso já numa certa compreensão do ser, mas também à condição de possibilidade das próprias ontologias que antecedem as ciências ônticas e as fundam. Toda ontologia, por mais rico e solidamente articulado que esteja o sistema de categorias de que disponha, resulta no fundo cego e um desvio de sua finalidade mais autêntica se não houver esclarecido, prévia e suficientemente, o sentido do ser, por não haver concebido esclarecê-lo como sua tarefa fundamental.4

Dito isso, “o real”, segundo ele, abarca precipuamente um âmbito operatório, em que o “operar” [wirken] significa “fazer” [tun], sem que tal “fazer”, todavia, diga respeito exclusivamente à atividade humana, e tampouco, por mais estranho que pareça, ao sentido de ação e agir (Cf.HEIDEGGER, 1991a). Isso se justifica, por sua vez, porque o produzir da natureza é também um “fazer” que conduz à vigência, equivalendo, nesse sentido, a um autêntico operar que põe o real como o vigente e a realidade como “a presença em si mesma acabada do que se produz e se leva ao vigor de si mesmo”5 (HEIDEGGER, 1991a, p. 31). Portanto, “o traço fundamental de ‘operar’, wirken, e de ‘obra’, Werk, não reside no efficere e no effectus, mas em algo que vem a des-encobrir-se e manter-se desencoberto”6 (HEIDEGGER, 1991a, p. 31).

Somente mais tarde se modifica o cenário em que o “vigente numa vigência” é não apenas ampliado, mas também, por assim dizer, aviltado em seu significado de vigência do que se desencobre e perdura para dar espaço à sua apreensão como operatio, isto é, como aquilo que resulta de uma actio: o real é agora o sucedido, o consequente, o que teve êxito, e a consequência se presume provocada por algo que a antecedeu, a sua causa, a causa efficiens à luz da qual o real agora aparece. Com o início da era moderna, portanto, “a realidade do real” alcança o factível e passa a ser engendrada, produzida, objetivada por meio de um proceder resguardado pela certeza prévia de todo verdadeiro efetivar-se da coisa. Heidegger (1991a, p. 32) o resume dessa forma:

O trabalhado, no sentido do resultado de uma operação, mostra-se como coisa que se manifestou num fazer, isto é, num realizar e trabalhar. Aquilo que no feito (in der Tat) alcança um fazer é um factual. O termo factual, de fato, possui atualmente o sentido de assegurar, e equivale a certo, seguro. Em vez de dizermos “é certamente assim”, costumamos dizer que “de fato é assim”, “é realmente assim” [...]. O real, no sentido do que “é de fato”, corresponde ao oposto do que não resiste a uma averiguação, ao que se apresenta como pura aparência ou simples opinião... agora se apresenta na vigência da efetuação [...]. O real se mostra agora como o Gegen-Stand, o objeto [...]. O tipo de presença desta coisa presente, que na época moderna aparece como objeto, nós a chamaremos então objetidade

(Gegenständigkeit).7

É essa nova determinação do vigente que se presencia e perdura no efetuar objetificante que passa à articulação teórica na formulação da ciência enquanto teoria do real. Nos termos da “objetidade” referida por Heidegger como o modo de presença regular das coisas na era moderna, assomam, pois, estreitamente relacionados, a “certeza”, o “real”, a “efetuação”, o “resultar”, o “factual”, o “objeto” e sua subjetividade manifestadora. Como decorrência da objetificação, tudo, até mesmo o sujeito, se objetifica sob o influxo do que Vattimo (1980. p. 32) denominou como “canonização da objetividade” - objetividade essa que é pregnante da compreensibilidade científica como construção apropriativa e basilar do liame cartesiano sujeito-objeto e causa-efeito.

Em princípio, a ciência, como teoria, prescinde de qualquer elaboração do real, porquanto isso contraria sua essência teórica. O que lhe parece mais característico, quanto a isso, é a assimilação em estado puro do real. Daí o entendimento corrente de que a ciência é conhecimento desinteressado e sistemático da realidade. Contudo, nota Heidegger (1991a), como teoria, no sentido de “tratar” [Betrachtung], atuar para consecução de algo, perseguir um asseguramento abonador do poder de dispor de âmbitos específicos e/ou de regiões da realidade como objetidade, a ciência claramente é um fazer violência ao real na condição de um operar “assediante-assegurador”8; é uma intervenção que agride a realidade dos entes em face do que já se lhes está previamente estabelecido no ver científico do que é real, porque, nesse caso, a ciência efetiva sua regência sobre os entes impondo-lhes um modo de presença como elaboração teórica determinante de tudo o que é real na objetidade.

O que parece de todo intrigante, nisso que é uma desconstrução da perspectiva convencional da ciência levada a efeito por Heidegger, é, sobretudo, ter-nos feito ver que subsiste, por trás da abordagem da ciência como teoria do real, a incompreensão do real como algo supostamente extrínseco à existência humana, como se se tratasse de um dado objetivo que está “lá fora”, como quer, v.g., a noção cartesiana de realidade objetiva presente na ideia enquanto representação das coisas.

Presa à orientação segundo a qual o traço fundamental da atuação científica consiste no descortinar da verdade a qualquer custo, o convencionalismo do paradigma da ciência físico-matemática da natureza retrata a práxis científica como um operar asséptico, neutral e despretensioso no interior de uma realidade de mundo que se supõe dada independentemente do existente humano. Destarte, a redução da natureza a estruturas matemáticas não costuma remeter o funcionar da ciência a um abuso imobilizador do cálculo que é inerente a toda forma de objetivação; vale dizer, não remete o proceder calculador da ciência à sua essência asseguradora, presente na elaboração antecipada da realidade assim arranjada e produzida em conformidade com o projeto de seu plano. Com efeito, calcular tem a ver com um sistema de informações que busca extrair algo, portanto compele a natureza a fornecer esse algo pré-manifestado no cálculo, na “vontade de querer” do cálculo que se impõe. Tudo isso para que a ciência se possa essenciar tecnologicamente, em sua condição de ordenamento oculto da técnica.

Quando Heidegger se refere ao ataque à natureza perpetrado pela experimentação que peculiariza a ciência moderna, por vezes tem-se a impressão - errônea - de que, confrontada com a convencional, a posição dele, além de reacionária, recende a obscurantismo no que tange à cientificidade da ciência. Assim, convém não perder de vista, a título apenas de esclarecimento, que, antes de Heidegger, o costumeiro procedimento positivista que consistia, hegemonicamente, em fetichizar o dominium do fenômeno como objetividade – incluindo-se, nessa conjunção, até mesmo a assimilação do humano como coisa objetivável, susceptível de rebaixamento a uma determinação –, desaparece por completo da analítica existencial de Heidegger para dar lugar, a partir de Ser e Tempo – com a perspectiva da temporalidade e historicidade do Dasein –, não só a uma reinterpretação do modelo de racionalidade metodológica do mecanicismo, mas também, e sobretudo, a uma reorientação das ciências do homem, com a inclusão do existir humano e sua realidade no cerne do “modo de ser ciência”, no lugar do apofântico da consciência e sua adaequatio a uma realidade exterior.

Por esse ângulo, vê-se que a filosofia de Heidegger concorre para promover uma importante ruptura nesse quadro metodológico que é, antes, ontológico (metafísico). Ao proporcionar uma espécie de lance para se superar a orientação reificada da epistemologia tradicional do cogito, experimentada como consciência de si do sujeito (Cf. RICOUER, 1989), a ontologia-fenomenológica heideggeriana desconstrói o cogito da metafísica cartesiana ao lhe contestar a ausência do “ser-aí”, o modo de ser da res cogitans e, mais especificamente, o sentido de ser do Sum. Ter-se-ia o encobrimento dessas questões devido, no entender de Heidegger, à certeza absoluta do cogito, que tornou dispensável a questão do sentido do ser desse ente.

Com a desconstrução, franqueia-se a percepção de que não apenas o sujeito já soçobrou numa vontade de dominação em cujo âmago todo o ente acaba reduzido à especificação de objeto, ao estatuto de coisa objetivada constituída como Bestand, como fundo subsistente, reserva ilimitada e fulcro da completa nulificação do sujeito. Quando tudo, enfim, se torna objeto, com o auxílio do poder fixador do calculabilidade científica e da manipulação tecnológica, cessa de haver espaço, por mais paradoxal que pareça, tanto para a singularidade do objeto quanto para o próprio sujeito, porque, nas palavras de Haar (1997, p. 128), “deixa de haver mesmo objeto isolável, mas apenas uma Rede, um gigantesco fio de relações instrumentais” em vista das quais, portanto, torna-se desnecessário “falar de objetividade, mas apenas objetidade”.

3. A ciência da técnica (do niilismo e da vontade de poder)

A essa altura já se divisa com mais transparência a contextura que permite a identificação do caráter da ciência com a violência da vontade de poder [Wille zur Macht] radicada na interpelação unilateral do mundo por meio da representação processadora. Por isso mesmo, “quanto mais inequivocamente as ciências forem levadas para a sua essência técnica predeterminada e para o seu cunho, tanto mais decididamente se aclara a pergunta pela possibilidade do saber reclamado na técnica” (HEIDEGGER, 2012b, p. 245).

De fato, com a razão tornada cálculo por intermédio do projeto matemático do real, a ciência moderna triunfa como processo de exploração ilimitada da natureza sob os auspícios de sua orientação metafísica (onto-técnica), a qual tornou possíveis tanto a moderna produção tecnológica do industrialismo ocidental quanto, como corolário, a destruição da terra, a coisificação do humano, a existência quotidiana inautêntica, o atomismo desagregador da vida comunitária, o comportamento utilitário do individualismo burguês-materialista etc. Tudo viabilizado por um produzir-se que Marx identificou como o telos do movimento de reprodução do capital na geração de valor alicerçada em relações alienantes de trabalho objetivado.

Em Heidegger, entretanto, o enredo desse itinerário inscreve-se como acontecimento da história da verdade do ser e como destinação epocal (de uma história sem razão de ser - e do ser), cuja questão do valor não está adstrita àquela abarcada por Marx, de feitio estritamente econômico, porque essa problemática, em Heidegger, tem alcance metaeconômico, voltado para uma outra orientação produtivista, aquela entranhada no modo de pensar o ser que, desde os gregos, acabou por assentar a história ocidental no caminho que resultou na moderna tecnologia (Cf. ZIMMERMAN, 1990) e no que Heidegger qualificou como desenraizamento da humanidade moderna em seu modo agora inautêntico de habitar a terra.

Como não poderia deixar de ser, o niilismo arraigado na metafísica ocidental integra a disposição de espírito que involucra toda essa trajetória que se desdobra como ocaso do suprassensível em meio ao crescente protagonismo das forças de controle técnico do mundo. Tal como postulada por Nietzsche - e, afinal, involucrada por Heidegger em sua dimensão tecnológica -, a vontade de potência operante no indivíduo, como horizonte no qual tudo se configura, realiza sua culminância, na era da técnica, como domínio total dos entes. Na desmesura do querer (Wollen) da técnica enquanto imposizione da funcionalização e da quantificação exponenciada de todas as relações, o niilismo que emana da metafísica como pensamento redutor e “movimento histórico” (HEIDEGGER, 2012b) se cumpre como acabamento da metafísica da vontade de poder no predomínio do modo de ser tecnológico.

Acima de tudo, a técnica se torna o único horizonte de desvelação da verdade dos entes mediante o fazer que dispõe, instaura, fabrica a realidade como corroboração do sistema de verdade divisado pela ciência - verdade essa que não se refere, conforme indicação de Nietzsche (2008, p. 288), a algo que efetivamente existe e que há de se encontrar ou descobrir, mas ao “que se há de criar e que dá nome a um processo [...] a uma vontade de dominação que não tem nenhum fim em si”, porque se trata da determinação ativa de um processus in infinitum. E mais: vontade de poder é como se nomeia uma tal determinação que, de acordo com Heidegger (1991c, p. 65), “impõe, ao possível, o impossível como meta. O sistema de dispositivos que coordena essa imposição e a mantém em seu predomínio irrompe da essência da técnica, palavra aqui idêntica ao conceito da metafísica em seu cumprimento”9.

Como expressão, por conseguinte, da vontade de potência do “incondicionado condicionante” de toda verdade, a técnica - que não encerra em si qualquer finalidade específica - se quer única e indefinidamente a si própria. Sob sua égide, tudo, inclusivamente o homem, passa à condição de meio para novos saltos técnicos, nenhum dos quais, sabidamente, com qualquer conteúdo de sentido, mas sempre como recurso e expediente para novos e incessantes provisionamentos a serviço do dispor pelo dispor, como algo efetivamente disposto segundo uma determinação ou ordem que emerge do requisitado pela técnica, ou melhor, pelo Gestell.

O querer da vontade de vontade [Wille zum Wollen] da técnica diz de si precisamente a vontade eficaz e competente (científica) da possibilidade de realização autonomizada na lógica processual da reprodução expandida dos circuitos de destruição e criação incessantes de novidades tecnológicas das sociedades industriais, nas quais, consoante Heidegger, a pletora econômica de bens destituídos de valor intrínseco irrompe como subjetividade e, com isso, retém o homem nesse círculo dos poderes da técnica científica. Ao fim e ao cabo, isso significa - diz Galimberti (1999, p. 341) - que “o homem não escolhe mais o fim em vista do que operar, mas esse fim lhe é oferecido como resultado da técnica”10, razão pela qual, no entender de Heidegger (1991b, p. 05),

Permanecemos sempre prisioneiros da técnica e acorrentados a ela, quer quando a aceitamos com entusiasmo, quer quando a negamos com veemência. Mas caímos ainda mais gravemente em seu poder quando a consideramos algo neutro; de fato, essa representação, que hoje se tende a aceitar com especial favor, torna-nos inteiramente cegos para a essência da técnica.11

Estar cego para a essência da técnica significa ignorar que é como dominium do pensar e do saber na racionalidade do cálculo que ela prescreve aos homens o que fazer, porque também o próprio homem já sucumbiu à condição de coisa calculável, já passou a integrar as conexões do sistema da mobilização total do apparatum. Não há, assim, à luz da ontologia heideggeriana, que se falar em neutralidade da técnica ou de sua ciência, porquanto é a humanidade do humano que se encontra ameaçada pelo pensamento que calcula e tudo desvela como exigência mais da realização desse cálculo, elevado ao posto de lei fundamental da provocação científica da natureza, que em função propriamente da produção mitigadora de necessidades humanas.

Considerações finais

O que precede deixou claro, entre outras coisas, que a estrutura técnica da ciência moderna empreende um enquadramento da natureza como calculabilidade objetificada, com vistas, essencialmente, à realização tecnológica do ser como disponibilidade. Mais que tudo, tratou-se de um desabrigar que não dá lugar a uma produção propriamente poiética de um deixar viger, mas a um produzir que desafia [herausfordern] a natureza a pôr-se [stellen] de determinada maneira, a mostrar-se conforme o estipulado pelo plano que comanda a ação que descortina e traz à presença o ente como obra da provocação que elenca o explorar, o transformar e o disponibilizar garantidores da continuidade dos fluxos da atividade processadora representada pela (tecno)ciência moderna.

Em sua marcha pelo incondicionado de si mesma enquanto absolutum que põe seu querer como vontade eficaz e saber competente, a técnica - pôde-se enfim perceber - requisita em seu apoio a moderna ciência físico-matemática da natureza, que, assentada no estatuto de verdade e na certeza da representação, realiza o trabalho de objetificação da natureza, tornando-a acessível - quer dizer, dominável - pelo cálculo que possibilita o consumar-se da história da metafísica como completação na era tecnológica.

2“[...] presente come negata, il non della negazione è il apparire della natura come physis autodischiudentesi, a causa della sopraffazione dell’apparenza”. (Tradução minha).

3“[...] appare nei termini predisposti dalle anticipazioni della ragione e, in questo rivelarsi razionale, nasconde il suo volto naturale; offre di sé il richiesto, trattenendo in sé il non-richiesto [...]. Il suo manifestarsi è sì a-létheia, mas questa a-létheia non è totale”. (Tradução minha).

4“La pregunta que interroga por el ser apunta, por ende, no solo a uma condición apriorística de posibilidad de las ciencias que escuadriñan los entes en cuanto tales o cuales entes, moviéndose en cada caso ya en cierta comprensión del ser, sino a la condición de posibilidad de las ontologías mismas que son anteriores a las ciencias ónticas y las fundan. Toda ontología, por rico y bien remachado que este el sistema de categorías de que disponga, resulta en el fondo ciega y una desviación de su mira más peculiar, si antes no ha aclarado suficientemente el sentido del ser, por no haber concebido el aclararlo como su problema fundamental”. (Tradução minha).

5“[...] la presenza in se stessa compiuta di ciò che si produce”. (Tradução minha).

6“[...] il tratto fondamentale dell’operare e dell’opera non risiede nell’efficere e nell’effectus, ma invece nel fato che qualcosa viene a posare ed ergersi nel non nascondimento”. (Tradução minha).

7“L’operato nel senso della conseguenza di un operare si mostra come cosa che si è manifestata in un fare, cioè ora in un realizzare e lavorare. Ciò che nel fato (in der Tat) consegue a un tale fare è il «fattuale» (das Tatsächliche). Il termine «fattuale», «de fato», ha oggi il senso dell’assicurare, e equivale a «certo», «sicuro». Invece di dire: «è certamente così» noi usiamo dire che «di fato è cosí», «è realmente cosí» [...

8“[...

9“La volontà ha imposto, al possibile, l’impossibile come scopo. Il sistema di apparati che organiza questa imposizione e la mantiene nel suo predomínio nasce dall’essenza della tecnica”. (Tradução minha).

10“[...

11“Restiamo sempre prigionieri della tecnica e incatenati ad essa, sia che la accettiamo con entusiasmo, sia che la neghiamo con veemenza. Ma siamo ancora piú gravemente in suo potere quando la consideriamo qualcosa di neutrale; infatti questa rappresentazione, che oggi si tende ad accettare con particolare favore, ci rende completamente ciechi di fronte all’essenza della tecnica”. (Tradução minha).

Referências

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Recebido: 12 de Agosto de 2020; Aceito: 21 de Junho de 2021

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