Considerações Iniciai
A desigualdade no acesso ao conhecimento ocasionado por diferenças sociais de diversas naturezas tem sido um dos principais desafios da educação na contemporaneidade. Políticas educacionais voltadas exclusivamente ao mercado de trabalho e à manutenção do sistema capitalista acabam por enfraquecer os mecanismos de proteção às minorias, agravando ainda mais essa situação desigual.
Uma pedagogia engajada, nesse cenário, passa a ter um papel fundamental na reflexão quanto aos modos de superação de desigualdades, tornando-se propulsora para a transformação desse quadro. Nesse sentido, o presente artigo propõe, por meio de uma pesquisa bibliográfica, uma educação como prática da liberdade para superação do racismo.
Para tanto, dividimos o artigo em três partes: na primeira apresentam-se o conceito de raça e racismo, o papel do racismo na perpetuação das desigualdades e a sua reprodução na escola; num segundo momento salientam-se as dificuldades encontradas desde a abolição da escravatura para educação de negros/as, destacando-se o papel fundamental do Movimento Negro nessa luta assim como na valorização de outros tipos de saberes que não os de origem eurocentrada; e, por fim, propõe-se como solução uma educação como prática da liberdade baseada em bell hooks.
1. Raça, racismo e manutenção dos lugares sociais
O racismo institucional ainda impõe muitas dificuldades para o reconhecimento das culturas formadas desde a diáspora, principalmente nas instituições oficiais. Esse não reconhecimento pode ser constatado pela invisibilidade na literatura, como apontado por Silva (2017, p. 2), na televisão, que além da invisibilidade faz uma inserção via estereótipos, produzindo racismo recreativo, como explicitado por Moreira (2019), e na escola, cuja ausência vem sendo debatida e combatida a partir de políticas públicas, como a criação da Lei 10.639/03, que obriga o ensino de história da África e da cultura africana e afro-brasileira nas instituições de ensino. A educação pautada, ainda, em termos eurocentrados ajuda a manter a ilusão de um Brasil embranquecido, reforçando o racismo estrutural no país (ALMEIDA, 2018).
O conceito de raça foi utilizado na ciência como justificação para o racismo ainda no século XIX, quando as ciências naturais tinham um forte impacto na análise das relações sociais. Raça inicialmente foi um conceito criado pela biologia que, sendo aplicada à sociedade, dividiu os seres humanos em subespécies e deu o primeiro passo para a concepção de racismo tal como conhecemos hoje.
Nesse período, a solução encontrada por alguns teóricos para o problema do/a negro/a, usado como bode-expiatório para o atraso econômico do país em relação às nações localizadas ao norte, foi o branqueamento. A miscigenação seria necessária, porém transitória, o/a mestiço/a seria o “elo evolutivo” entre o/a negro/a “bruto/a”, o/a indígena “selvagem” e o/a branco/a “civilizado/a” (RESTIER; SOUZA, 2019, p. 28). A ideologia da mestiçagem colocava o branco como o ideal a ser conquistado em prol de uma sociedade economicamente próspera (SKIDMORE, 1976).
As decisões políticas direcionadas ao branqueamento baseavam-se num tipo de ciência alienígena impregnada por teorias racistas advindas da Europa e dos Estados Unidos. Silvio Romero3, um dos primeiros a requisitar que o Brasil fosse reconhecido como fruto da miscigenação, acreditava que os povos louros do norte e da Europa eram superiores aos outros homens. “Sua fórmula para melhorar o Brasil, consistia em aumentar o influxo de alemães, que deveriam ser distribuídos e disseminados pelo país a fim de absorver a cultura brasileira e aceitar a autoridade do governo brasileiro” (SKIDMORE, 1976, p. 72).
Sob o olhar de Nina Rodrigues4, os batuques eram entendidos como um ritual de possessão, sendo, assim, um tipo de religião “primitiva”. Vistas como resquícios de “africanidade”, manifestações culturais negras não deveriam fazer parte do quadro cultural brasileiro (GUIMARÃES, 1998, p. 22). A mestiçagem era vista como uma degeneração cultural (SIMAS; FABATO, 2015, p. 21). Nina Rodrigues, a partir de sua “teoria da inferioridade racial”, atribuía às características biológicas os diferentes comportamentos, criando, desse modo, uma justificação teórica para a “impossibilidade de considerar um ex-escravo capaz de comportamento ‘civilizado’” (SKIDMORE, 1976, p. 74).
Diferentemente do modelo norte-americano, em que a segregação foi legalizada, no Brasil teóricos como Rodrigues e Romero acreditavam que a multirracialidade e uma casta intermediária formada pela mistura de brancos e negros facilitariam o branqueamento na medida em que naturalmente a “superioridade branca” se imporia às demais raças. Essa suposição pairava sobre a ideia de que a “degeneração” não era inevitável, pelo contrário a miscigenação produziria uma população “sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural quanto fisicamente” (SKIDMORE, 1976, p. 81).
A categoria racial como fator inato, biológico, só veio a ser abandonada de fato a partir do ano de 1942, quando o americano Donald Pierson publicou “Negroes in Brazil”, mudança gestada nos EUA em 1910, quando os primeiros cientistas sociais negros, seguindo Franz Boas, se livraram da categoria biológica, que explicava as desigualdades a partir de categorias inatas, para discutirem “a heterogeneidade social, política e cultural do meio negro, concentrando-se na hipótese de que a discriminação racial era o principal obstáculo para o progresso social, político e cultural dos negros naquele país” (GUIMARÃES, 2004, p. 14).
O economista americano Gunnar Myrdal, autor de “An American Dillema: the Negro Problem and the American Democracy”, revelou aspectos importantes sobre a situação do/a negro/a nos EUA, mas que também servem para a realidade brasileira. Para Myrdal, a situação desigual está ligada ao que pode ser denominado de causas cumulativas. A partir da discriminação escolar, o/a negro/a enfrenta dificuldades em encontrar um emprego. A educação precária também leva à desinformação em relação às questões voltadas à saúde. O acesso restrito à educação e ao dinheiro e a saúde precária fazem com que as pessoas negras permaneçam menos tempo empregadas. Esse processo ajuda a reforçar os estereótipos racistas, que acabam por formar um circuito fechado em que a discriminação gera ainda mais discriminação (ALMEIDA, 2018, p. 123).
Podemos afirmar, portanto, que a categoria raça deve ser pensada como uma construção social. A racialização, a partir do processo de estereotipação, é um mecanismo de classificação no qual cada indivíduo é colocado em um determinado grupo por meio de suas características físicas, ela “seria uma forma de construção e de diferenciação de indivíduos, prática que possui um objetivo específico: a raça é a marca que representa as relações de poder presentes em dada sociedade” (MOREIRA, 2019, p. 41). A raça demarca os papéis a serem ocupados por cada indivíduo, processo que leva as pessoas a ligarem imediatamente negros/as a profissões braçais5, as mais desvalorizadas, enquanto brancos/as são associados a profissões intelectuais, as mais valorizadas.
O conceito de raça é, ainda, interconectado com os conceitos de classe, cor e gênero. Guimarães (2008) observa que pessoas negras tendem a se classificar como classe trabalhadora6 mesmo quando se encontram em melhores condições de vida7, em contraponto a pessoas brancas, que, apesar de trabalharem como empregados/as várias horas ao dia, tendem a se classificar como classe média. Esse é um conceito nativo de classe, por meio do qual as pessoas definem sua condição em situações da vida prática, cotidiana. O conceito analítico de classe, responsável pela análise teórica de um conjunto de fenômenos, é um conceito em constante formação, que constrói uma comunidade de origem ou destino dentro de uma história, de um tempo e de uma política.
Já o conceito de cor é um discurso classificatório que parte dos europeus (brancos) e nomeia os outros, negros, amarelos, vermelhos. Cor se tornou um conceito nativo naturalizado e pouco exposto à crítica. Esse sistema de classificação dos seres humanos estabeleceu uma hierarquia segundo a qual o branco é associado a tudo que é bom e o negro a tudo que é mau.
No nosso caso [brasileiro], a relação social era fechada pela cor – negro –, que sinalizava seja a idéia de raça, seja a ideia de cultura e civilização, seja a ideia religiosa de uma descendência divina. As pessoas comuns, entretanto, sempre se referiram a essa divisão entre “senhores” e “escravos” como uma divisão de classes. As raças e as classes, portanto, se articulavam intimamente, em seu sentido nativo. No entanto, ainda não conhecíamos o racismo moderno
(GUIMARÃES, 2008, p. 70).
Já a articulação do conceito de raça com o gênero faz-se necessária, como nos alerta Grada Kilomba (2020), pois a maior parte das políticas negras construíram a noção de sujeito baseada no homem heterossexual negro como o outro do universal homem heterossexual branco, alterando apenas a categoria de raça e desconsiderando mulheres e LGBTQIA+ negros/as. As mulheres e LBTQIA+ negras acabam invisibilizadas tanto dentro do debate sobre raça como no feminista, pois as teorias ocidentais são produzidas a partir do olhar das mulheres brancas. Ao manter-se o conceito de raça desconsiderando o de gênero e o de gênero sem levar em conta a raça, colocam-se as mulheres negras em um lugar vazio.
Em decorrência disso, desenvolve-se o conceito de interseccionalidade, que considera como as opressões sociais interagem acarretando diferentes modos de vivenciar o preconceito e a discriminação. Criado por Kimberlé Crenshaw, em 1989, a partir da publicação de “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”, a noção de interseccionalidade descreve como as “condições estruturais [d]o racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem, discriminam e criam encargos singulares às mulheres negras” (AKOTIRENE, 2019, p. 35). Desse modo, compreendemos que o conceito de raça é uma construção social, relacional, política e histórica, estando sempre em constante transformação.
A raça acrescida dessas relações tem sido utilizada constantemente como um mecanismo de controle e tem se demonstrado efetiva no aumento da desigualdade de acesso à educação assim como fortalecido a evasão escolar de negros e negras do ambiente escolar. Problema apontado no cenário estadunidense, como vemos em “Escolarizando homens negros” (2015). Bell hooks aponta que o imaginário social concebe homens negros como seres desprovidos de habilidades intelectuais, sendo tratados como meros corpos, aos quais se destinam as tarefas mais duras, que exigem força física, não capacidade intelectual. Jovens negros têm sido socializados a partir da mídia de massa para acreditar que força e resistência física é tudo o que têm a oferecer. Para bell hooks (2015), essa crença é tão disseminada atualmente quanto foi nos tempos da escravidão. Ensina-se aos jovens negros que pensar não é algo importante e não os ajudará a sobreviver.
Ellis Cose, jornalista estadunidense negro, reconhecido por sua excelência na escrita, relata que nos tempos de escola foi repreendido por fazer muitas perguntas. Ouviu de professores/as que negros/as tinham línguas preguiçosas, de modo a justificar as deficiências dos/as estudantes negros/as na escrita e na pronúncia. Ao questionar sua professora do sétimo ano sobre o porquê de usarem livros do quinto ano, obteve como resposta que eles sequer seriam capazes de compreender aquele material e o melhor a fazer era agradecerem por ter acesso a esses livros e calarem-se. Segundo bell hooks (2015, p. 680):
Em várias outras vezes, quando nos contam suas histórias de vida, homens negros descrevem que foram punidos nas escolas porque se atreveram a questionar e a pensar. A curiosidade que pode ser considerada um sinal de genialidade em uma criança branca é vista como um problema ou dificuldade quando expressada por meninos negros.
Outro exemplo que reforça a concepção de escola como reprodutora do racismo é trazido por Nathan McCall, em sua autobiografia “Makes Me Wanna Holler”. McCall, escritor afro-americano, relata a perseguição que vivenciou aos onze anos, quando frequentava uma escola predominantemente branca. Conta que os/as colegas se recusavam a sentarem-se próximos a ele e os/as professores/as desviavam o olhar. Atitudes como essa o tornaram introspectivo e calado. Ele evitava participar dos debates em aula, não fazia perguntas, evitava chamar atenção para si mesmo.
Garotos negros inteligentes que buscaram ser ouvidos, antes e agora, foram frequentemente expulsos, considerados encrenqueiros e colocados em classes de baixo rendimento ou em clases especiais que são meros espaços de confinamento para aqueles garotos considerados delinquentes
(HOOKS, 2015, p. 683).
Sob esse prisma, a escola, além de se tornar um ambiente estranho em grande parte dos casos, torna-se um ambiente opressivo para o/a estudante negro/a, justificando as altas taxas de evasão sobre esse recorte.
2. Racismo institucional e outras formas de conhecer
Embora a racialização e, por meio dela, a produção de lugares sociais se reproduzam em ações diárias, individuais, a partir da injúria e da discriminação, é no âmbito estrutural que reside seu núcleo duro e silencioso. O racismo funciona em níveis, sendo o estrutural o mais profundo deles, pois se encontra diluído no âmbito ideológico e cultural. A manutenção do racismo estrutural depende de seu funcionamento nas instituições. É por vias das instituições – família, escola, meios de comunicação – que os estereótipos são repassados de uma geração para outra, geralmente de forma naturalizada, perpetuando posições dentro da sociedade (ALMEIDA, 2018, p. 29-35).
É importante salientar que esse processo é fruto de uma série de disputas dentro das instituições, cabendo a elas a absorção do resultado dessas disputas. Esse ambiente garante que o racismo possa ser modificado diante de ações dos órgãos competentes (Estado, escola etc.), por meio de políticas públicas e intervenções, promovendo reparação aos grupos mais vulneráveis no intuito de reverter o processo cumulativo (ALMEIDA, 2018, p. 29-35). Esse espaço de disputa permite que a escola desenvolva ações pedagógicas democráticas a fim de minimizar o processo de classificação excludente.
Apesar de as instituições poderem se constituir como espaços importantes para a diminuição da desigualdade racial na sociedade, elas geralmente não revelam a origem desse mesmo quadro, tornando-se também responsáveis pela reprodução de algo que é produto das relações sociais históricas. Marília Pinto de Carvalho (2004) analisa o fracasso escolar de meninos/as negros/as, e afirma que os estereótipos raciais imputados ao/à sujeito/a em sua vida escolar acabam por responsabilizá-lo/a por seu desempenho. Análise equivalente à realizada por bell hooks (2015), que nomeia o fenômeno como blame the victim, em tradução livre culpe a vítima, noção relacionada aos ideais neoliberais de mérito individual, que atribuem todo o sucesso ou fracasso ao indivíduo, desconsiderando questões sociais, aqui o racismo, em especial.
A educação de negros/as é um problema histórico que remonta ao período da escravidão. Segundo Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino (2018), a escravidão produziu, de um lado, fragmentação, quebra dos laços e uma dupla morte: física e simbólica. Os povos escravizados passavam pelo “Portal do Não Retorno”, no Benim, local de embarque para as Américas, e “deixavam para trás” toda a história vivida até então; nesse sentido a diáspora é uma experiência de morte. Mas ao mesmo tempo a história da escravidão é “uma experiência de reconstrução constante de práticas de coesão, invenção de identidades, dinamização de sociabilidades e vida” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 57-58).
As culturas africanas destroçadas se reconstruíram na experiência do cativeiro. Criaram-se, assim, novas instituições (zungus, terreiros de santo, agremiações carnavalescas etc.) e, dessa forma, modos de manutenção, produção e reprodução de identidades comunitárias: “A chibata que bate no lombo e a baqueta que bate no couro do tambor são as duas faces dessa moeda” (SIMAS E RUFINO, 2018, p. 58).
[...] os africanos já traziam em si – no corpo e no espírito – o gérmen da nova civilização que nasceria nos trópicos. À condição de africano escravizado longe da sua terra e de sua gente, somaram-se as precárias condições de sobrevivência e o vislumbre, na solidariedade, da possibilidade de superar as diferenças e sedimentar, no contato com as outras culturas, a massa que amalgamou a cultura afro-brasileira
(SANTOS, 2008, p. 191).
De acordo com Abdias do Nascimento (1980), durante três séculos negros e negras de todas as partes do país se autolibertaram por meio da fuga e formaram agrupamentos denominados quilombos, os quais eram meios de organização existencial individual e coletiva que garantiram a sobrevivência de milhares de negros e negras durante o período escravagista a partir da colaboração mútua. “Uma espécie de trabalho cooperativo, nos moldes tradicionais africanos” (NASCIMENTO, 1980, p. 62).
Apesar de todos esses esforços para a produção e a manutenção da cultura afrodiaspórica em solo brasileiro, muito pouco desses saberes foi incluso na agenda escolar, permanecendo sempre às margens. No Brasil Imperial a educação era vetada para pessoas escravizadas até o Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, que reformava o ensino primário e secundário no município da Corte e o ensino superior em todo país. O artigo primeiro desse decreto estipulava que era “completamente livre o ensino primario [sic] e secundario [sic] no municipio [sic] da Côrte [sic] e o superior em todo o Imperio [sic], salvo a inspecção necessaria [sic] para garantir as condições de moralidade e hygiene [sic]” (BRASIL, 2020a). Mas em alguns locais continuou-se proibindo a presença de negros/as, como no Rio Grande do Sul, que a partir das legislações de Instrução Pública de 1837 e 1857 proibia escravizados/as e libertos de frequentar instituições de ensino (SCHNEIDER, 1993). Na época também era possível encontrar associações particulares oferecendo educação noturna para negros/as, buscando, por meio da instrução, engajá-los/as na luta abolicionista (GONÇALVES; SILVA, 2000).
Em 1871 aprovou-se a Lei do Ventre Livre, que considerava livres todas as crianças nascidas posteriormente à sua promulgação. O parágrafo primeiro do artigo primeiro dessa lei afirma que os filhos menores ficariam em poder dos senhores de suas mães, que deveriam criá-los e tratá-los até os oito anos completos. A partir dessa idade, o senhor teria a opção de receber do Estado a indenização de seiscentos mil réis ou utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos. No primeiro caso, o Governo receberia a criança e lhe daria destino (BRASIL, 2020b).
Gonçalves e Silva (2000) levantam a hipótese de que, se tivesse sido cumprida a lei que sugeria a entrega das crianças, talvez a situação educacional do/a negro/a seria outra atualmente. Entre 1871 e 1885 o contingente de crianças de ambos os sexos matriculadas chegava a 403.827, das quais apenas 113 foram entregues ao Estado mediante indenização. Grande parte do contingente de crianças nascidas livres ficou sem acesso à escola por ficar em poder dos senhores de suas mães até os 21 anos.
Desde o início do século XX surgiram entidades de luta contra a discriminação racial, muitas delas tendo como pauta o direito da população negra à educação. Na defesa à educação apareciam questões como a valorização da raça negra, a possibilidade de ascensão e integração social, o meio de conscientização, a possibilidade de acesso à história e à cultura da raça. Pretendia-se que a tomada de consciência oriunda da educação pudesse fortalecer a luta por direitos sociais e políticas públicas (GONÇALVES; SILVA, 2000).
A escolarização de homens negros que nasceram no século XX se deu já na idade adulta na maioria dos casos. Enquanto às mulheres ensinava-se apenas os trabalhos domésticos, para que pudessem atuar como empregadas de famílias brancas, muitas vezes apenas em troca de teto e comida, sem remuneração. O lugar social das mulheres negras acabou marcado por esse estigma.
Frente a esse cenário, entidades negras se organizaram para suprir a ausência de políticas educacionais, oferecendo alfabetização para adultos e uma formação mais completa para as crianças negras. Por meio da imprensa negra também se estimulava o estudo e exaltavam-se os pais que enviavam seus filhos à escola. Haviam iniciativas, a exemplo da Campanha Pró-Instrução encabeçada pela Frente Negra Brasileira, que atuavam sem qualquer apoio material por parte do Estado. Em 1934, o militante negro Olímpio Moreira da Silva denunciava as instituições de ensino que aceitavam jovens negros por obrigação, mas menosprezavam sua capacidade intelectual (GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 143).
Embora houvesse todo esse esforço para a inclusão dos/as negros/as na agenda institucional do Estado por parte do Movimento Negro Organizado no início do século XX, Nilma Lino Gomes (2019, p. 28) constata que “a raça operou mais como recurso discursivo na defesa dos ideais universalistas de uma educação para todos” do que propriamente na diminuição dos distanciamentos sociais entre brancos e negros. De acordo com a autora, foi no período pós-ditadura que o Movimento Negro estabeleceu um giro à educação, tornando-a central:
É possível dizer que até a década de 1980 a luta do Movimento Negro, no que se refere ao acesso à educação, possuía um discurso mais universalista. Porém, à medida que este movimento foi constatando que as políticas públicas de educação, de caráter universal, ao serem implementadas, não atendiam à grande massa da população negra, o seu discurso e suas reivindicações começaram a mudar. Foi nesse momento que as ações afirmativas, que já não eram uma discussão estranha no interior da militância, emergiram como uma possibilidade e passaram a ser uma demanda real e radical, principalmente a sua modalidade de cotas
(GOMES, 2019, p. 30).
O Movimento Negro8, nesse caso, é encarado pela autora como um produtor e transmissor de conhecimento, que rompe com a lógica universalista que se pretende neutra, mas não o é, por isso deve ser encarado como um movimento educador ou como um sujeito de conhecimento. Três pontos de inflexão são destacados por Gomes (2019, p. 24) em relação ao giro estabelecido pelo Movimento Negro: o primeiro sugere uma nova interpretação da história do Brasil, tendo como perspectiva a história do negro e da diáspora; no segundo ponto o movimento rompe com o processo de racialização, ressignificando e politizando a raça; por fim, explicita a relação complexa entre desigualdades sociais e raciais.
A partir do giro estabelecido no período pós-ditadura, o Movimento Negro intensificou as mudanças e o processo de ressignificação e politização da raça, buscando interferir diretamente na política de Estado. Políticas afirmativas, debatidas desde os anos 1980 no movimento, passaram a ser implementadas por meio da criação de secretarias e projetos de lei9 (GOMES, 2012, p. 740). Desse modo, concordamos com Nilma Lima Gomes, quando esta afirma que seria impossível chegarmos ao atual estado sem a atuação do Movimento Negro.
A escola, além de não proporcionar um ambiente sadio para o aprendizado de homens e mulheres negros/as, pode em última instância desestimulá-los/as e afastá-los/as do exercício da intelectualidade. Bell hooks (2015) relata que homens negros que tinham o hábito de ler acabam por abandonar a leitura, e quando questionados sobre as razões disso respondem que é por não terem tempo. Toda a energia passa a ser direcionada ao desenvolvimento de habilidades voltadas para o mercado. Valores e experiências anteriormente conservados em comunidades negras são deixados de lado em prol de objetivos financeiros. A capacidade crítica e transformativa é abafada por um aprendizado meramente reprodutor e assujeitado. Os saberes significativos para pessoas negras, como sua história, sua cultura e seus heróis, não são trabalhados nas instituições de ensino. Apenas o conhecimento produzido por e para brancos/as é valorizado.
A restrição de saberes não hegemônicos na escola e na academia não é exclusividade do Brasil. Foi em função do racismo estrutural predominante nas escolas norte-americanas que o movimento Black Power, Movimento Negro que ganha força no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, investiu em aulas de reforço em escolas públicas. Essas ações visavam fortalecer a juventude negra, negligenciada pelo Estado, por meio da educação. A escola, os professores e o Estado culpabilizavam crianças negras de seis, sete anos pelo seu fracasso em aprender a ler e escrever, reforçando os ideais individualistas e neoliberais que já começavam a tomar conta do imaginário social. Fenômenos como esse são ainda comuns no Brasil do século XXI.
Entretanto, as instituições, embora trabalhem na grande maioria das vezes para a reprodução da ordem social vigente, não são as criadoras do racismo, o que permite que elas atuem dentro das disputas sociais de forma a reforçar o pensamento vigente, como têm feito, ou, de modo contrário, coloquem-se como agentes transformadores desse quadro, o que significa que podem agir de forma reflexiva na dissolução do senso comum que naturaliza o racismo (ALMEIDA, 2018).
Infelizmente, a precarização da escola e a implementação da ideologia neoliberal de concorrência e maximização dos lucros aprofunda as desigualdades a partir da racialização, fortalecendo o racismo estrutural. Isso, porque fundamentalmente esse modelo de educação reprodutivo e voltado ao mercado não guarda espaço para o desenvolvimento das capacidades críticas necessárias para a problematização da realidade sociocultural vigente, como as efetivadas pelo Movimento Negro.
3. Pensar sobre o racismo: uma pedagogia engajada
Moreira (2019, p. 54) defende que a raça em muitos momentos “determina qual é o lugar que o indivíduo pode ocupar dentro de várias hierarquias presentes em uma comunidade política”. Nesse caso, a raça funciona como suporte de valores, sendo o negro o negativo e o branco o positivo. “A branquitude como elemento positivo permite que as pessoas brancas sejam representadas como superiores e também os únicos capazes de atuar de forma competente na esfera pública” (MOREIRA, 2019, p. 54). Cabe à escola, enquanto instituição de ensino, capacitar o/a estudante a problematizar a naturalização dos lugares criados pela categorização racial, tanto a negatividade que recai sobre o/a negro/a quanto os privilégios da branquitude. Embora as políticas de Estado sejam importantes para a facilitação ao acesso a formas de conhecimento diversas, sua efetivação concreta depende de uma prática pedagógica que esteja engajada com esses conhecimentos.
Desse modo, em contraposição ao modelo neoliberal que priva o indivíduo de suas experiências e tende a práticas reprodutivas e homogeneizantes, bell hooks oferece uma pedagogia engajada, que busca na emancipação do sujeito subalternizado a superação do racismo estrutural e da desigualdade social por meio de uma educação crítica e transformadora. A autora (2017) considera que a superação do racismo e do sexismo em sua prática pedagógica só foi possível na medida em que ela adotou pedagogias anticolonialistas, críticas e feministas. Nessa interação complexa de múltiplas perspectivas foi possível transpor fronteiras e questionar os sistemas de dominação da supremacia branca capitalista e patriarcal em sala de aula.
Baseando-se em sua experiência vivida, a autora defende o pensamento crítico como um lugar imaginativo que possibilita a criação de futuros possíveis, um lugar de cura para as dores da infância (HOOKS, 2017, p. 85). Nesse sentido, pensar a raça ou refletir sobre o racismo torna-se um movimento necessário dentro das possibilidades de cura para o racismo. No entanto, para a autora, pensar a raça não está, sob nenhuma circunstância, alijado da prática e da experiência vivida, “nenhuma teoria que não possa ser comunicada numa conversa cotidiana pode ser usada para educar o público” (HOOKS, 2017, p. 90).
Bell hooks defende que as práticas didáticas não podem ser regidas por esquemas fixos e absolutos. As práticas defendidas pela autora não se encontram distantes das práticas desenvolvidas pelo Movimento Negro no Brasil. A busca pela superação da padronização teórica imposta pelo pensamento vigente possibilitou ao Movimento Negro, enquanto sujeito político, a teorização de conhecimentos que emergem das práticas vividas de negros e negras cotidianamente (GOMES, 2019). Nesse sentido, uma pedagogia que se pretende emancipatória deve estar próxima às formas de saber produzidas por esses movimentos.
Os esquemas têm de ser flexíveis e levar em conta as particularidades dos estudantes e suas interações com o/a professor/a. Esquemas fixos advém de uma noção de racionalidade e objetividade criada pelos homens brancos europeus, que veem a mulher e o negro como outro, e a mulher negra como outro do outro (KILOMBA, 2019).
Existe um olhar colonizador sobre os corpos negros, um olhar que os define de fora (RIBEIRO, 2017). Para além de refutá-lo, é preciso contar a história desde outros pontos de vista. Os/as negros/as, assim como as mulheres não negras, são vistos/as a partir de um olhar objetificante. Objetos atendem a uma função, como uma cadeira, por exemplo, cuja função é servir de assento para as pessoas, ou um lápis, cuja função é escrever. Ninguém deveria ser pensado desse jeito, pois é dessa forma que funciona a desumanização (ROCHA, 2019).
Kilomba (2019) destaca que tanto o homem negro quanto a mulher branca podem oscilar nas relações de poder. Se comparada ao homem negro, a mulher branca pode assumir a posição superior em relação à raça na hierarquia, já o homem negro pode colocar o gênero diante da mulher. Mas a mulher negra sempre ocupa a posição de outro e nunca de em-si (ROCHA, 2019). Por isso, só uma pedagogia anticolonialista, feminista e crítica pode superar as barreiras impostas pelo racismo estrutural para mulheres negras e homens negros; e pode fazê-lo somente na medida em que supera os essencialismos nas definições e a fixidez e rigidez nos esquemas pedagógicos.
Uma pedagogia engajada e uma educação como prática da liberdade só são possíveis quando os/as professores/as veem os/as estudantes como seres humanos integrais. A educação como prática da liberdade compreende a ligação entre as ideias aprendidas em contextos de educação formal e as apreendidas pela prática da vida bem como permite a partilha de conhecimentos; ela representa a “ligação entre o que eles [os/as estudantes] estão aprendendo e sua experiência global da vida” (HOOKS, 2017, p. 33). Trata-se de um conhecimento significativo.
Uma educação antirracista precisa necessariamente abandonar a concepção de educação politicamente neutra. O professor branco que só fala do conhecimento produzido pelos grandes homens brancos está tomando uma decisão política. Por mais que se insista em negar, “a política do racismo, do sexismo, do heterossexismo etc. [...] determina o que ensinamos e como ensinamos” (HOOKS, 2017, p. 53). Nossas “preferências políticas moldam nossa pedagogia”, assim como nossa “aceitação passiva de modos de aprender reflete parcialidades” (HOOKS, 2017, p. 53). A universalidade que parte de homens brancos é uma parcialidade dissimulada que, historicamente, exclui os/as outros/as (as mulheres, os/as negros/as, os/as não-brancos/as, os/as LGBTQIA+).
Ao descorporificar o conhecimento perante uma pretensa universalidade, a intelectualidade europeia criou um conhecimento instrumental que afasta o indivíduo de suas experiências. Avaliando diferentes povos e costumes por meio de suas “lentes”, tal intelectualidade menosprezou memórias performáticas que retêm lembranças profundas e são transmitidas pela linguagem materna, longe do vocabulário racista (ANTONACCI, 2014).
Negligenciando sentidos acústicos, táteis, gestuais, de viveres e atitudes em gêneros orais, o Ocidente produziu seu letrado aparato epistêmico dentre limites de seu mapa geopolítico, medindo, excluindo, racializando povos estrangeiros a sua ordem e que, há muito, negociam e incorporam seus ordenamentos de modo próprio, atualizando suas culturas
(ANTONACCI, 2014, p. 273).
Grada Kilomba argumenta que, a partir do ponto de vista racista, corpos negros são reconhecidos como corpos estranhos aos espaços de conhecimento, sendo corpos fora do lugar. Intelectuais negros/as são sempre empurrados para a margem. Na academia, corpos negros são vistos como fora de casa, ao contrário dos corpos brancos que estão no seu lugar em qualquer lugar do mundo, pois sempre estão em casa (KILOMBA, 2019).
Erudição e ciência aparecem subordinadas a uma lógica de poder em que as qualidades de escrita/razão/neutralidade/conhecimento são consideradas da branquitude, enquanto fala/emoção/pessoalidade/opinião são característica de negros/as. “Nesse sentido, a academia não é um espaço neutro nem tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e erudição, é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a” (KILOMBA, 2019, p.51).
Enquanto professores/as, precisamos descentralizar a civilização ocidental, descolonizarmo-nos, se quisermos, de fato, promover uma educação antirracista. Só uma pedagogia engajada que assume de antemão que nossas decisões são políticas e nosso currículo e os conteúdos que ensinamos são políticos, e a partir disso promove diversidade cultural, pode ser antirracista, ser prática da liberdade e promover a ruptura de estereótipos sociais desconstruindo hierarquias opressoras.
Bell hooks (2017) nos ensina a importância de reconhecer a voz individual de cada estudante como um exercício de reconhecimento do ser humano que há no/a outro/a. Os/as educadores/as não estão preparados/as para lidar com a diversidade étnica e cultural que encontram em sala de aula. Existem códigos culturais que precisam ser aprendidos ao se trabalhar com uma classe diversa e tanto o/a professor/a quanto os/as estudantes precisam dominá-los. Por isso, sucede que muitas vezes o aprendizado e a partilha de conhecimentos ocorrem de forma mais lenta. Nesse contexto multicultural, professores/as e estudantes “têm de aprender a aceitar diferentes maneiras de conhecer, novas epistemologias” (HOOKS, 2017, p. 59).
Em uma sala de aula comprometida com a educação como prática da liberdade será mais necessário explicar a filosofia, a estratégia e a intenção do curso do que em uma sala de aula tradicional. Em muitos momentos, os/as estudantes podem se sentir incomodados/as e não entender o valor de certo ponto de vista. O retorno de uma pedagogia engajada e de uma educação antirracista não é imediato. O/a professor/a precisará abrir mão da necessidade de um reconhecimento imediato e compreender que cada estudante passa por um processo e que o reconhecimento de um aprendizado transformador pode vir muito tempo depois. Bell hooks (2017, p. 60-61) nos ensina a praticar a compaixão:
Não esqueço o dia em que um aluno entrou na aula e me disse: ‘Nós fazemos seu curso. Aprendemos a olhar o mundo de um ponto de vista crítico, que leva em conta a raça, o sexo e a classe social. E não conseguimos mais curtir a vida’. Olhando para o resto da turma, vi alunos de todas as raças, etnias e preferências sexuais balançando a cabeça em sinal de assentimento. E vi pela primeira vez que pode haver, e geralmente há, uma certa dor envolvida no abandono das velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras formas. Respeito essa dor. E agora, quando ensino, trato de reconhece-la, ou seja, ensino a mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode causar.
Descolonizar-se, descontruir-se, repensar-se, desestabilizar os próprios privilégios são processos dolorosos. Rever os lugares sociais impostos a si e aos outros, abandonar preconceitos, reconhece-los nos outros e em si, questioná-los são processos complexos. Os novos modos de conhecer, propostos por uma educação como prática da liberdade, criam novos modos de ser, tanto para os/as professores/as quanto para os/as estudantes. Questionarmos nossas ideias e nossos hábitos, aliando teoria e prática, como nos exige esse tipo de educação, não é fácil, não é simples, não é rápido, mas é um modo de transformar a realidade, tornando-a mais justa para todos/as.
Considerações finais
O racismo, um dos eixos estruturantes do hetero-capitalismo-branco-patriarcal, conta com a instituição escolar, no cenário precarizado em que se encontra, para sua manutenção. A negritude é vista como mero corpo, objetificada, sempre desprovida de habilidades intelectuais, desse modo a escola se torna um lugar hostil para crianças negras. Entretanto, a escola pode atuar como agente transformador da sociedade, desnaturalizando o racismo assim como o machismo, a LGBTfobia e o elitismo que na maioria das vezes o acompanham.
Os aspectos responsáveis por uma educação como prática da liberdade aqui apresentados podem ser utilizados não só para redução do racismo, mas de outras formas de opressão em nossa sociedade. Uma pedagogia engajada, que descolonize o pensamento, pode superar preconceitos de classe, raça, gênero e orientação sexual.
Expor os problemas raciais presentes em nossa sociedade e na educação torna-se uma atitude política necessária na medida em que traz à tona um assunto ainda tratado como menos importante. Tratar todo e qualquer problema social como solucionável pela ideia de democracia sem nomeá-lo é, por si só, uma atitude invisibilizante. É necessário assumir que a pedagogia é política, que não há educação neutra e que há parcialidades presentes em nossas práticas como educadores/as bem como tentar superá-las por meio da diversidade cultural e da consideração dos diferentes códigos culturais que compõem a sala de aula e a escola.