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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022025 

ARTIGOS

Abordagem filosófica da política/gestão da formação de professores na perspectiva substantiva/ético-política

Philosophical approach to the policy/management of teacher education from the substantive/ethical-political perspective

Roberto Francisco de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0001-7278-181X

Rosilene Lagares2 
http://orcid.org/0000-0003-2959-5573

Doracy Dias Aguiar de Carvalho3 
http://orcid.org/0000-0001-6992-1615

1PhD em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Professor Associado da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus Universitário de Palmas, cursos de Filosofia e Teatro. Membro do corpo docente do Mestrado Profissional em Educação da UFT (PPPGE). Participa, como membro, da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED). Compõe o quadro de formadores da Rede Colaboração Tocantins (RCT). É pesquisador na área de Sociedade, Política e Gestão Educacional e Currículo, vinculado a: Grupo de Estudo e Pesquisa Práxis Socioeducativa e Cultural; Núcleo de pesquisa em Educação, Desigualdade Social e Políticas Públicas (NEPED); Observatório de Sistemas e Planos de Educação do Tocantins (ObsSPE) e da Pesquisa Rede MAPA; e Rede Universitas/Br. E-mail: carvalho1917@gmail.com;

2Doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Docência da Educação Superior pela Faculdade de Patrocínio/MG. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professora Adjunto da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus de Palmas, no curso de Pedagogia e Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado) e Doutorado em Educação em Rede/Amazônia (Educanorte). Tutora do Programa de Educação Tutorial de Pedagogia Palmas. Líder e pesquisadora do grupo de pesquisa CNPq/Plataforma Lattes/UFT: Estudo, Pesquisa e Extensão em EducaçãoMunicipal na UFT (GepeEM), do Observatório de Sistemas e Planos de Educação do Tocantins (ObsSPE) e da Pesquisa Rede MAPA. Diretora da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae-Tocantins). Avaliadora AdHoc da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (Anped/Grupo de Trabalho 5/Estado e Política Educacional). Integra a Linha de Pesquisa do PPGE: Estado, Sociedade e Práticas Educativas. E-mail: roselagares@uft.edu.br.

3Doutoranda em Política Social pela Universidade de Brasília (UNB) e mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Assistente Social da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Membro do Grupo de Pesquisa Práxis Socioeducativa e Cultural da UFT e do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Democracia, Sociedade Civil e Serviço Social. (GEPEDSS/UNB). E-mail: doracy@uft.edu.br.


Resumo

O texto aborda a política/gestão da formação de professores no Brasil na perspectiva da filosofia da práxis. Resulta de pesquisa sobre a formação de professores na tensão entre as dimensões econômico-corporativa e ético-política. A pesquisa em pauta investigou a política/gestão da formação de professores na perspectiva da filosofia da práxis, tendo a educação como arena de luta política. Tendo em vista a predominância da lógica capitalista que investe intensamente sobre a perspectiva social que vislumbra as possibilidades de humanização e desalienação, buscamos explicitar a viabilidade de efetivação da dimensão ético-política no processo de produção e reprodução da sociedade incluindo a escola, a formação de professores e o trabalho docente. No desenvolvimento do estudo indagamos, como ponto de partida, as possibilidades de uma educação ético-política/democrático-popular que extrapole a reprodução da ideologia econômico-corporativa/mercantil e possa ser vislumbrada no processo de formação de professores no Brasil. Partindo de tal indagação, o estudo tem por objetivo explicitar alguns dos fundamentos da política/gestão da formação dos professores na dimensão substantiva/ético-política. O estudo utiliza-se das pesquisas bibliográfica e empírico-documental e ancora-se na abordagem materialista e crítico-dialética para interpelar a existência teórico-prática da ótica formativa emancipadora fundamentada nos princípios ético-políticos e da filosofia da práxis e seus impactos para o trabalho docente. A pesquisa revelou que a formação de professores no Brasil, tendencialmente, relegou a segundo plano a dimensão político-cultural, no entanto, a instrumentalização da formação, predominante no país, não ocorreu de forma linear e sem a disputa por uma formação de professores em um prisma substantivo, libertário e emancipador, expresso no trabalho docente em espaço formativo.

Palavras-chave Política/gestão da formação de professores; Abordagem histórica e teórico-filosófica; Formação substantiva e ético-política

Abstract

The research in question investigated the policy/management of teacher education from the perspective of the philosophy of praxis, considering education as an arena of political struggle. In view of the predominance of the capitalist logic that invests heavily in the social perspective that envisions the possibilities of humanization and de-alienation, we sought to clarify the feasibility of implementing the ethical-political dimension in the process of production and reproduction of society, including school, teachers education and the teaching work. In the development of the study, as a starting point, we questioned about the possibilities of an ethical-political/democratic-popular education that extrapolates the reproduction of the economic-corporate/mercantile ideology and that can be glimpsed in the process of teacher education in Brazil. Starting from this question, the study aims to clarify some of the fundamentals of the policy/management of teacher education in the substantive/ethical-political dimension. For this purpose, the study uses bibliographical and empirical/documental research and is anchored in the materialist and critical-dialectical approach to question the theoretical-practical existence of the emancipatory formation perspective based on the ethical-political principles and on the principles of the philosophy of praxis and its impacts on the teaching work. The research revealed that teacher education in Brazil tended to relegate the political-cultural dimension. However, the instrumentalization of education, predominant in the country, did not occur linearly and without the dispute for a teacher education in a substantive, libertarian and emancipatory prism, expressed in the teaching work in a formative space.

Keywords Policy/management of teacher education; Historical and theoretical-philosophical approach; Substantive and ethical-political formation

Introdução

Neste artigo discutimos, em uma abordagem teórico-filosófica, a política/gestão da formação de professores no Brasil na perspectiva substantiva/ético-política tensionadora da dimensão instrumental/econômico-corporativa, buscando perceber seus impactos para o trabalho docente. O estudo é parte dos resultados de um projeto de pesquisa que investigou a política/gestão da formação de professores na perspectiva da filosofia da práxis, desenvolvido por dois grupos de pesquisas cadastrados no diretório de pesquisa do CNPq e vinculados a um determinado Programa de Pós-Graduação em Educação.

O estudo traz uma abordagem teórico-filosófico acerca da política/gestão da formação de professores utilizando parte dos dados de uma pesquisa que abarcou o período de 1995 a 2014. Toma como referência empírico-documental as publicações de quatro periódicos brasileiros acerca do tema em questão, sendo estes: Revista Brasileira de Educação; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos; Educação e Filosofia; e Revista Digital Arte & Educação – Cultura – Formação – Comunicação – Produção (RBE, 2019; RBEP, 2019; RDAECFCD, 2019; REF, 2019).

A pesquisa mencionada investigou a política/gestão da formação de professores na perspectiva da filosofia da práxis, tendo a educação como arena de luta ético-política. Frente à predominância da lógica capitalista que avança sobre uma perspectiva social mais humanizada e menos alienada, visou compreender quais as possibilidades de efetivação da dimensão ético-política em relação à dimensão econômico-corporativa4 no processo de produção e reprodução social incluindo a escola e o trabalho docente na formação de professores. Assim, indagamos sobre as possibilidades de uma educação ético-política/democrático-popular que extrapole a reprodução da ideologia econômico-corporativa/mercantil e possa ser vislumbrada no processo de formação de professores no Brasil.

A partir da indagação aventada buscamos, em geral, explicitar alguns dos fundamentos da política/gestão da formação dos professores na dimensão substantiva/ético-política. De modo específico, objetivamos compreender os fundamentos formativos calcados em valores ético-políticos e discutir, sob o ponto de vista teórico-filosófico, as possibilidades do processo de formação de professores considerando a existência teórico-prática do prisma formativo, emancipadora fundamentada nos princípios ético-políticos e da filosofia da práxis.

Na consecução dos objetivos propostos, tomando como referencial teórico-metodológico a perspectiva crítico-dialética (MARX, 1982; 1985), desenvolvemos o estudo utilizando o instrumento auxiliar de pesquisa na perspectiva dialética da análise de conteúdo abrangendo três momentos ou fases: análise prévia, exploração do material e tratamento dos resultados, explicitado na inferência e na interpretação (BARDIN, 1977).

Na análise prévia fizemos a leitura dinâmica dos artigos sobre a formação de professores publicados nos quatro periódicos mencionados, buscando uma primeira organização do material em estudo, conforme os objetivos da pesquisa. Nessa fase buscamos compreender a política/gestão da formação de professores no Brasil a partir das diversas pesquisas produzidas, sob o ponto de vista teórico-filosófico, a fim de identificar traços formativos emancipadores dos professores em formação e as implicações para o trabalho docente. Nessa fase foram lidos os resumos dos periódicos, base empírica da pesquisa, categorizando-os em subtemáticas com destaque para a formação de professores.

Partindo do material previamente organizado passamos à fase da exploração por meio da leitura integral dos artigos que tratavam diretamente da política/gestão da formação de professores destacando a formação de natureza democrático-participativa, a dimensão formativa político-cultural, a relação teoria e prática – práxis – e o resultado formativo crítico-emancipatório.

Na fase do tratamento dos resultados obtidos procuramos aprofundar a análise visando superar a compreensão aparente e superficial do objeto de estudo acerca da formação de professores no Brasil na tensão entre os aspectos instrumentais e substantivos.

Em termos quantitativos, a pesquisa mais geral abrangeu o conjunto de 80 artigos que abordaram a temática da política/gestão da formação de professores no Brasil e as implicações para o trabalho docente, dos quais 32 (40%) trataram da formação inicial, 18 (22%) da formação continuada ou em serviço e 30 (38%) da discussão geral sobre a formação de professores por meio de reflexão histórica, filosófica, cultural e político-educacional.

Depreendemos, da pesquisa realizada, que os cursos de formação de professores brasileiros, conforme revelam os 80 artigos analisados5, em sua grande maioria (73%), têm priorizado as dimensões instrumentais/econômico-corporativas, centradas nos critérios de eficiência econômico-administrativa e eficácia pedagógica. Os outros 27% dos artigos estudados revelaram reflexões sobre cursos ou experiências formativas que privilegiam as dimensões substantivas/ético-políticas, evidenciadoras de critérios de efetividade política e relevância cultural.

Em relação aos trinta artigos que trataram da formação de professores, em geral – aspectos históricos, filosóficos, culturais e político-educacionais –, cinco referiam-se aos aspectos históricos, oito aos filosóficos, treze às políticas educacionais e quatro aos culturais. Desses trinta artigos analisados, vinte e três (77%) apontaram a dimensão formativa instrumental, centrada nos critérios de eficiência econômico-administrativa e eficácia pedagógica, e sete (23%) referiam-se à dimensão formativa substantiva, caracterizada por critérios de efetividade política e relevância cultural.

Para os propósitos deste texto, nossa argumentação estruturou-se tendo por base sete artigos que explicitaram a dimensão substantiva da formação de professores, sendo três de cunho teórico-filosófico e quatro de abrangência político-cultural. Nessa perspectiva, tomamos como parâmetro de análise o contexto social, as noções de democracia e participação, a dimensão formativa preponderante e a relação de teoria e prática.

1. Abordagem teórico-filosófica da política/gestão da formação de professores para além da instrumentalidade formativa do trabalho docente

Seguindo a linha de análise crítica da formação, Ourique (2010), Trevisan et al. (2013) e Resende (2001), por meio de discussão teórico-filosófica, explicitaram sinais de uma política/gestão da formação de professores para além da instrumentalidade formativa.

Em uma perspectiva de análise6 crítica, situando o trabalho docente na política/gestão da formação de professores no contexto da sociedade capitalista sem desconsiderar a história da educação, a pesquisa de Ourique (2010) mapeou a produção sobre a temática da formação difundida, nos anos de 2007 a 2009, no grupo de trabalho Filosofia da Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Educação (Anped). O estudo buscou entender as dimensões filosóficas da formação docente nas pesquisas do GT17, categorizando-as em duas imagens ou racionalidades de formação relacionadas à mitologia grega: a do “professor Prometeu” e a do “professor Hércules”7 para discutir duas performances de professores.

O texto em análise apresenta duas perspectivas de educação que carregam consigo duas lógicas de participação do professor em seu processo formativo: uma de natureza mais espectadora (“professor Prometeu”) e outra com caráter de autoria (“professor Hercules”). O estudo revelou, a partir do entendimento de Ourique (2010), o fato de a comunicação humana não se reduzir a um simples processo que conta com um emissor, uma mensagem e um receptor. Sendo assim, depreendemos do exposto pelo autor a ideia do professor como

[...] testemunha da própria aprendizagem’, que participa do processo de criação e mediação das percepções a partir de suas perspectivas nesse momento de encontro comunicacional em sala de aula. Ele propõe o entendimento da pedagogia como um fazer autofundante, que acontece nas situações de comunicação entre professor e aluno. [...] O ‘conhecimento da realidade’ – entendido aqui como o entendimento das necessidades, angústias e experiências – é tomado pelo “professor Hércules” de forma diferente daquela que levou o “professor Prometeu” a assegurar sua tarefa nos processos cognitivos. O ‘professor Hércules’ constrói seus itinerários de formação conforme os interesses e aprendizagem das circunstâncias, lançando-se ao desconhecido, na ânsia de perfazer novas trajetórias formativas

(OURIQUE, 2010, p. 551-552).

As performances formativas situam-se no contexto da modernidade, por vias diferentes, centram-se na perspectiva substantiva de formação (política e cultural) e trazem implicações para o trabalho docente. O ponto de partida para o entendimento da primeira performance é a sociedade moderna que suplantou a ordem transcendental pela ordem racional, esta tida como emancipadora e que se efetivaria “[...] pela intervenção do homem no mundo natural e social, transformando-o através das ciências e das tecnologias” (OURIQUE, 2010, p. 545). O progresso, em um futuro glorioso, consistiria na finalidade do projeto de humanidade, no qual “[...] a tarefa de trazer o homem a si é da educação, assegurando-lhe sua essência educável por formas de adaptação ou transformação da sociedade” (OURIQUE, 2010, p. 545).

A educação, assim, perseguiria os objetivos ligados à liberdade, à democracia, à virtude, à emancipação, à cidadania e à autonomia e teria o ideal de professor como guia. Nesse sentido, esse texto argumenta, a partir dos trabalhos analisados no âmbito do GT17 da ANPEd, que “[...] as reflexões sobre a formação delineiam um modelo de construção da docência, no sentido imagético-expressivo, que busca viabilizar ‘soluções’ para os problemas sociais contemporâneos” (OURIQUE, 2010, p. 547), assemelhado à figura mitológica de Prometeu que significa “[...] etimologicamente ‘o que é previdente’ e, dando ao homem o fogo como instrumento capaz de controle sobre a natureza, o titã assevera-lhe a possibilidade de transformá-lo em utensílios de captura e proteção [...] e em bom alimento” (OURIQUE, 2010, p.547), possibilitado pelo cozimento que elimina as patologias por meio das labaredas queimantes recebidas. Dessa forma, “[...] na imagem de Prometeu, o fogo divino capaz de trazer ‘consciência’, ‘emancipação’ e ‘cidadania’ ao homem moderno é alastrado pelo professor” (OURIQUE, 2010, p. 548). Nessa visão de professor “[...] a docência assume, destarte, a tarefa de implementação do próprio projeto da modernidade, haja vista as narrativas reguladoras do processo pedagógico” (OURIQUE, 2010, p. 548) fundamentadas, entre outros aspectos, na ideia de individualidade e consciência.

A segunda performance é abstraída da imagem de Hércules que, conforme a nota sete, trata de uma mistura de Deus e homem acometido pelos intempéries terrenos, incluindo a necessidade de aprender com a vida para sobreviver aos desafios cotidianos. A educação, por essa performance, tem o significado de colocar-se em relação com os demais seres no mundo e, com isso, extrair aprendizagens.

[...] Nesse sentido, na imagem do ‘professor Hércules’, compreendemos o papel das experiências no processo formativo, configurando-se, assim, a formação (Bildung) como uma viagem pela cultura [...]. Nesse aspecto, o “professor Hércules” desafia sua classe a embarcar com ele em um tour pelos saberes já construídos, religando ou rompendo elos compreensivos. [...] As narrativas que fundaram a docência na modernidade – emancipação, liberdade, cidadania, consciência, entre outras – são entendidas pelo ‘professor Hércules’ como horizonte de expectativas da tarefa docente, que guiam, sem engessar, a construção das Aprendizagens

(OURIQUE, 2010, p. 551).

Ressaltando as dimensões filosóficas da formação docente, a discussão sobre a relação teoria e prática se dá por meio da imagem de formação essencialista (relacionada ao “professor Prometeu”) e existencialista (ligado ao “professor Hércules”). Para a primeira imagem

[...] a proposta da reflexão, na perspectiva filosófica da Teoria Crítica, tomou o caminho da denúncia do atual estado da racionalidade, ao passo que as teorias pedagógicas de cunho crítico se renderam às dimensões afirmativas da racionalidade, apostando no papel central da docência para a formação da subjetividade discente esclarecida. [...] O ‘professor Prometeu’, no impulso de salvaguardar a essência da aparência, prende-se ao plano cognitivo como caminho redentor de acesso ao conhecimento genuíno, capaz de purificar qualquer outro saber que o aluno traga de sua experiência, de seu mundo vivido. [...] Nesses termos, assim como Prometeu, que nada pode fazer contra a abertura da caixa de Pandora, responsável por espalhar os males no mundo, o empenho do professor em dotar seus alunos com a chama da consciência, da liberdade e da cidadania, entre outras, é posto à prova cotidianamente nas diferentes situações em que a dimensão cognitiva por si só não basta para orientar o melhor caminho

(OURIQUE, 2010, p. 549).

Na segunda performance de professor a prática é fundante, considerando que

[...] os processos de formação fortalecem-se justamente no contato com o múltiplo, com o estranho, constituindo-se numa experiência com a alteridade e construção da própria identidade. No entanto, precisamos lembrar que essa forma de compreender a razão, situada nos contextos do mundo da vida (cf. Habermas, 2002), não abdica das relações possíveis com o plano normativo. [...] Por isso, o “professor Hércules” só pode ser entendido como testemunha da própria aprendizagem se essa se referir à atitude questionadora que deve ser estabelecida com relação ao conhecimento. Do contrário, se o testemunho envolver também o conteúdo aprendido pelo docente, corre-se o risco de restringir a racionalidade a relações entre particularidades, o que reduziria o processo formativo discente e/ou expandiria ao extremo a subjetividade docente – visto que se deveria ter vivenciado todas as aprendizagens possíveis antes de testemunhá-las

(OURIQUE, 2010, p. 551-552).

O texto explicita ainda que “[...] não é a metodologia ou a didática que sustenta a ação pedagógica do ‘professor Hércules’, elas são apenas ferramentas das quais ele lança mão para potencializar o movimento formativo” (OURIQUE, 2010, p. 552). Resultam das imagens performáticas de educação discutidas anteriormente duas perspectivas de formação de professores que buscam a emancipação do homem, uma mais ligada à teoria e outra à prática. Nesse sentido, Ourique (2010, p. 553) adverte que

[...] uma escolha por exclusão entre a teoria e a prática na formação docente, por exemplo, tem conduzido a discursos falaciosos ou distorcidos da formação, que se compõem justamente da articulação desses dois momentos. O estranhamento provocado pelo pensamento teórico-prático dimensiona para o sujeito a distância com relação a si mesmo, possibilitando relações entre o universal e o particular. Sabemos que a docência carece de argumentos teóricos de sustentação nos planos epistemológico e público – simultaneamente –, do mesmo modo que as condições materiais de seu trabalho são carentes de dispositivos de intervenção. Porém, tanto na vertente defensora da teoria, quanto naquela que enfatiza a prática, aparecem imagens de professor capazes de emancipar seus alunos – “professor Prometeu” – ou construir com eles sentidos para as experiências vividas – “professor Hércules”. A frequência dessas imagens nas formas diversas de entendimento da formação sinaliza, criticamente, para uma discussão que articule tais concepções de docência.

Corroborando o pensamento de Ourique sobre a política/gestão da formação de professores e as implicações para o trabalho docente, o estudo de Trevisan et al. (2013) aborda a filosofia da educação também a partir da pesquisa publicada no âmbito do GT17 da ANPEd, sintetizada nas imagens do “professor alquimista” e do “professor viajante”. Como resultado do processo formativo, no sentido trabalhado no texto em análise, a metáfora do professor alquimista (relacionada ao campo da educação transformadora, dialética e libertadora) seria superada pela metáfora do professor viajante que “[...] constrói seus itinerários de formação lançando-se ao desconhecido na ânsia de perfazer novas trajetórias formativas” (TREVISAN et al., 2013, p. 136). Nesse sentido, é proposta uma relação aberta entre professor viajante, aluno e mundo, mas, como alertam os autores do artigo analisado, “[...] não tendo mais a bússola do conhecimento seguro, o risco de o viajante virar um simples turista é permanente, transformando-se em alguém que simplesmente transita ou surfa sobre as ondas do saber sem fazer as necessárias paradas” (TREVISAN et al., 2013, p. 136) no mundo cultural de forma radicalmente refletida e problematizada.

Criticando a lógica formativa nos moldes do professor viajante, Resende (2001, p. 54) retoma a perspectiva de educação transformadora, dialética e libertadora – partindo do mundo existente e tendo o homem como sujeito histórico – e faz “[...] uma reflexão sobre o tema da educação, no que se refere, especificamente, à questão da formação do educador, a partir das postulações filosóficas de Jean-Paul Sartre”. Tal perspectiva diz respeito a um projeto de humanidade que foi pensado e se faz na contínua ação humana que busca, pelo movimento dialético, negar e superar as realidades dadas. A educação faz parte do projeto de humanidade em que o professor se faz sujeito por meio da sua prática pedagógica e formação contínua. O projeto educativo é fruto de escolhas em que o professor “[...] tem no campo de seus possíveis tanto a possibilidade de romper com as obscuridades da educação, no sentido de transformá-la e concebê-la como instrumento de libertação, como também a possibilidade de agir no extremo oposto desta possibilidade” (RESENDE, 2001, p. 65). No existencialismo sartreano o homem é o sujeito da história e feito pela história em busca constante do processo de humanização (RESENDE, 2001).

No caso da formação do professor, trata-se do processo de humanização em que

[...] a educação é um aspecto particular do que Sartre designa projeto humano. Em termos mais concretos é razoável argumentar que o educador estará tanto mais envolvido neste projeto quanto mais ele se comprometer com a sua formação, enquanto tal. Ora, é por intermédio da ampliação de seus conhecimentos, na continuidade de sua formação que o educador, enquanto sujeito da práxis educacional, estará cada vez mais habilitado a fazer e a assumir opções cada vez mais conscientes no projeto de construção da humanidade, com capacidade, assim, de desvelar os referenciais que fundamentam sua prática na negação do dado em favor do não existente

(RESENDE, 2001, p. 64-65).

A política/gestão da formação de professores e as implicações para o trabalho docente, nesse texto, ancoram-se na compreensão político-cultural na qual

[...] o objeto do existencialismo [...] é o homem singular no campo social, em sua classe no meio dos objetos coletivos e outros homens singulares, é o indivíduo alienado, reificado, mistificado, tal como o fizeram a divisão do trabalho e a exploração, mas lutando contra a alienação por meio de instrumentos falsificados e, a despeito de tudo, ganhando pacientemente terreno

(RESENDE, 2001, p. 58).

[...] O empenho e compromisso com sua própria formação/capacitação será a medida do significado de sua realização na educação. O educador se objetiva em sua prática educativa, ou seja, é naquilo que ele opta fazer em termos de práticas, objetivações pedagógicas que ele estará saindo de si, colocando-se no mundo, objetivando a sua subjetividade. Será, então a ação do educador, traduzida, por um lado, por sua prática pedagógica e, por outro, por sua contínua formação [...].

Pensar a educação no âmbito do projeto existencial significa pensar o educador [...] como sendo sujeito histórico de seu processo, responsável pelas escolhas que delineiam sua ação pedagógica. [...] O conhecimento do educador é um momento da práxis, mas trata-se de um conhecimento que se define pela recusa da realidade negada em nome da realidade a ser forjada [...].

(RESENDE, 2001, p. 64).

Refletir sobre a política/gestão da formação de professores e as implicações para o trabalho docente, tendo o homem como sujeito da história, é exatamente pensá-lo como práxis. Referindo-se ao contexto da educação, trata-se de articular pensamento e ação como práxis. Nesse sentido, partindo do aporte existencialista e emancipador de Sartre, Resende (2001) argumenta que a educação e a política/gestão da formação de professores bem como suas implicações para o trabalho docente precisam ser pensadas e vividas como movimento histórico, portanto como práxis.

A educação, neste sentido, deve se consubstanciar num empreendimento humano. O educador deve ser formado/capacitado, e para que esta formação/capacitação se processe é necessária a ação sobre os fatores que condicionam o educador, sobre as relações que o engendram, enquanto tal. [...] Assim, a educação deve ter um sentido para o educador, enquanto homem produto e produtor da história. E a necessidade de contínua formação será, nesta perspectiva, sentida pelo próprio educador que toma consciência de si mesmo, tornando-se, pela práxis, sujeito da educação. O educador deve reconhecer-se na educação e fazer desta seu próprio projeto de humanidade, tendo como referência as condições reais e objetivas nas quais a educação se encontra e também o seu papel no processo educacional

(RESENDE, 2001, p. 62).

Embasando-nos em uma perspectiva libertária e emancipadora, compreendemos que o professor deve sentir-se mobilizado pela vontade de formação, sem desconsiderar, obviamente, a luta pela garantia da ação dos sistemas de ensino nessa formação.

2. A dimensão substantiva da formação de professores: discussão teórico-prática a partir da abordagem cultural e político-educacional

Depreendemos, da pesquisa realizada, que, para além da instrumentalidade, a formação de professores no Brasil também promove experiências formativas críticas e emancipadoras. A esse respeito, destacamos estudos abordando a temática da formação de professores indígenas, de jovens e adultos e de arte (CAVALCANTE, 2003; LEITÃO, 2004; SILVA COSTA; ROSA, 2011; FRADE, 2013).

O trabalho de Cavalcante (2003) discute a formação de professores na perspectiva do Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia historicamente situada no âmbito da sociedade brasileira, mas tendo a esfera pública e a educação nacional popular como horizonte possível. Refere-se à formação de professores conforme “[...] as discussões realizadas pelo Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia [COPIAM] e seus esforços de construir uma política indígena para a educação escolar” (CAVALCANTE, 2003, p. 14) que promova o “[...] diálogo entre a aldeia e o mundo, constituída de riscos, sacrifícios e desafios. Riscos de caírem nas ‘armadilhas’ da tão criticada escola formal; sacrifícios e desafios para que essa escola indígena se torne um grande espaço de formação e reflexão para a sociedade” (CAVALCANTE, 2003, p. 15). O texto, além de apresentar fundamentação teórica sobre a formação de professores indígenas, analisa 13 relatórios do COPIAM. O primeiro destaque refere-se à contextualização da temática no contexto educacional histórico, mas tendo o professor indígena como participante efetivo do processo formativo.

Como se sabe, historicamente os programas de escolarização nas áreas indígenas foram fundados segundo a ideia de que é necessário “fazer a educação do índio”. Hoje, a escola entra em cena como uma necessidade pós-contato, assumida pelos índios, mesmo com todos os riscos, incertezas, dificuldades e resultados contraditórios ocorridos ao longo da história. [...] Como nos adverte Candau (1996), “qualquer possibilidade de êxito do processo que se pretenda mobilizar tem no professor em exercício seu principal agente”

(CAVALCANTE, 2003, p. 14-15).

Nessa direção formativa, a dimensão técnico-pedagógica é desenvolvida em função da dimensão político-cultural elucidada na vontade que os “educadores indígenas demonstram em fazer de suas escolas e de seus atos educacionais processos formadores que expressem a afirmação de suas culturas, bem como em discernir, em cada momento histórico, o porquê e o para quê de suas ações pedagógicas” (CAVALCANTE, 2003, p. 15). O autor dialoga com outros pesquisadores acerca da temática e, nesse sentido, traz algumas experiências, dando-se conta de que

[...] a formação indígena é constituída com base em dois campos principais. O primeiro tem um suporte mais marcado nos valores, na identidade e no próprio convívio com a natureza. Os professores indígenas, assim como seus “parentes”, são os principais responsáveis por essa parte da formação, que envolve as relações sociais no cotidiano da aldeia. No segundo campo, a formação ocorre por meio de um ensino que requer uma mediação mais verbal, isto é, um desenvolvimento de competências que estão ligadas ao letramento. Essas competências, por sua vez, ampliam capacidades tanto cognitivas como linguísticas e dão acesso e domínio a novos tipos de saberes, imprescindíveis na situação de contato com o não-índio

(CAVALCANTE, 2003, p. 16).

Na mesma direção, outros autores presentes na discussão de Cavalcante defendem uma formação política, intercultural e de fronteira na qual os aspectos teóricos vinculam-se aos práticos. Com esse entendimento, “[...] em meio a relatos de como se educa na comunidade e as discussões sobre a escola e seus objetivos, observa-se a preocupação pelo direito à terra, à língua materna e ao reconhecimento étnico-cultural. O professor indígena deve, pois, ser o porta-voz de tais reivindicações” (CAVALCANTE, 2003, p. 17-18). Ressaltamos que os indígenas têm a preocupação com os aspectos pedagógicos e os materiais didáticos, de modo a reafirmarem, “[...] no processo de formação, a valorização da reflexão de suas ações pedagógicas” (CAVALCANTE, 2003, p. 18), mas a formação que defendem é ampla e tem íntima relação entre teoria e prática. Em síntese, os fundamentos da formação dos professores indígenas em pauta dão conta de que “[...] somente um projeto político transformador levará à autonomia das sociedades indígenas e esse projeto deve manifestar, acima de tudo, consciência política, ‘com a busca de conhecer como funciona e como se distribuem as relações de poder na sociedade majoritária” (CAVALCANTE, 2013, p. 16).

Partindo dessa visão crítica, por inferência do estudo de Cavalcante (2003, p. 18), os professores indígenas têm consciência de que o posicionamento político incomoda, por isso em um dos seus relatórios foi aprovada uma “[...] declaração de princípios sobre a educação escolar indígena, de caráter articulador e reivindicatório, que se tornou, desde essa ocasião, o principal documento do movimento.”

Na perspectiva de educação anteriormente mencionada, “[...] os indígenas reclamam por uma formação emancipadora, com clara orientação política, crítica e transformadora de relações sociais” (CAVALCANTE, 2003, p. 23) e uma formação de professores inicial, contínua e emancipadora.

No tocante à formação de professores de jovens e adultos em uma perspectiva substantiva evidenciadora dos critérios de efetividade política e relevância social, foram localizados também, no escopo da presente pesquisa, os textos de Leitão (2004) e Silva, Costa e Rosa (2011).

A partir da experiência dos Coletivos de Autoformação realizados pela organização do Serviço de Apoio à Pesquisa em Educação (SAPÉ), o texto de Leitão (2004) propõe uma reflexão sobre as questões relacionadas à formação de professores de jovens e adultos considerando as expressões das culturas locais, as singularidades, os saberes cotidianos que são produzidos nas práticas educativas, a diversidade dos sujeitos envolvidos, as histórias de vida e as relações entre o que se é e o que se faz, a articulação possível a partir das diferenças e a produção que pode ser feita no interstício entre diferentes lugares. Nesse processo formativo evidencia-se o incentivo à forma de organização dos professores em cada unidade educativa em processo de autoformação partilhada – que possibilite a reflexão sobre as suas práticas – e a criação de espaços de trocas e convivências nos quais se possa exercitar a crítica, a criatividade e o aprofundamento das relações entre prática/teoria/prática, favorecendo um exercício autônomo e sistemático dos seus fazeres, saberes e poderes.

Inferimos de Leitão (2004) que se faz necessária a transformação do indivíduo professor tendo em vista a impossibilidade de transformação da sociedade. Assim, o agir do professor ocorre na inter-relação entre o público e o privado em busca da promoção de transformações educativas e sociais emancipadoras vislumbrando a democratização das relações sociais. Nesse sentido, para Leitão (2004, p. 27) não há formação para a transformação em seu sentido democrático se os “[...] professores não estiverem sensibilizados e sentirem necessidade de participar dessa mudança. Isto é, [...] não é possível mudar sem a participação dos sujeitos – professores e alunos – que fazem a educação acontecer”. Nesse aspecto, tem-se a compreensão de uma formação que, “[...] em vez de moldar, possa mudar, desde que os sujeitos mais interessados se sintam concernidos a participar dessa mudança [...]. Se não é possível mudarmos o conjunto da sociedade, talvez seja possível mudar além de nós mesmos” (LEITÃO, 2004, p. 38).

Considerando a intrínseca relação entre a sociedade e os indivíduos na perspectiva da classe trabalhadora em suas diversas segmentações, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em áreas de reforma agrária e os desafios da formação de educadores do campo são estudados por Silva, Costa e Rosa (2011). A materialidade empírica do referido estudo tem como foco o Projeto Educação, Campo e Consciência Cidadã e revela, em uma perspectiva democrática e participativa, que “[...] a formação realiza-se em diferentes espaços/tempos pedagógicos e em todos os processos de organização do projeto, ou seja, durante o planejamento, a organização e a implementação dos ciclos estaduais de formação dos educadores/as, das oficinas regionais e das visitas/ acompanhamento às salas de aula nos acampamentos e assentamentos” (SILVA; COSTA; ROSA, 2011, p. 154-155). Em outras palavras, é na formação de professores e alunos que o conhecimento é produzido coletivamente.

Depreende-se do estudo de Silva, Costa e Rosa (2011) que a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em áreas de reforma agrária evidencia as dimensões políticas e culturais da formação de professores e as implicações para o trabalho docente. Por esse caminho “[...] alinha-se à necessidade de a EJA efetivar-se como direito dos povos do campo e como parte das lutas e das conquistas de direitos que têm como protagonistas os movimentos sociais e sindicais” (SILVA; COSTA; ROSA, 2011, p. 153). Com esse entendimento, busca-se a “[...] afirmação de ações e de políticas educativas que incluam o homem e a mulher do campo na busca de valorização de sua história, sua cultura e de sua cidadania” (SILVA; COSTA; ROSA, 2011, p. 153). Desse modo, a formação almeja, em outra lógica, romper “[...] com a concepção preventiva e moralizante ainda dominante nas práticas educativas tradicionais destinadas aos jovens e adultos” (SILVA; COSTA; ROSA, 2011, p. 155).

O referencial teórico que orienta a formação de professores e as implicações para o trabalho docente na perspectiva aventada está de acordo com a práxis social ao fazer a vinculação da formação à realidade de vida dos sujeitos e vice-versa. Nessa direção, o processo de formação de professores em tela ancora-se na propositura formativa de Paulo Freire tendo como eixo de construção dos processos formativos a especificidade do trabalho educativo (SILVA; COSTA; ROSA, 2011).

O estudo das pesquisadoras anteriormente citadas, revela, entretanto, que no dia a dia do processo formativo ainda existem dificuldades em conciliar a discussão teórica presente em uma sala de aula formal e a dinâmica da vida dos sujeitos assentados e em processo de assentamento da reforma agrária: trabalho; despejo, luta etc. Isso exige uma formação dialogada que amplie a própria ideia de aula e dos conteúdos ali trabalhados que abrangem a dimensão técnica, política e cultural. Resultante dessa abrangência e densidade formativa, inferimos a partir das autoras mencionadas que a formação dos educadores da EJA prioriza a dimensão político-cultural abrangendo a organização política, os movimentos sindicais e sociais, a saúde, o trabalho, a ecologia, a agricultura, a produção e a cultura.

O estudo revela, também, que há contradição no processo educativo, pois, embora produza compreensão política e econômica dos processos sociais, ainda apresenta “[...] dificuldades dos/as educandos/as da EJA em alterar as representações e os significados deixados pelas marcas de exclusão e dominação” (SILVA; COSTA; ROSA, 2011, p. 158). Trata-se de uma tendência que, segundo as autoras, é muito comum entre os jovens e adultos trabalhadores e tem a ver com o sentimento de culpa de si mesmos pelo fracasso na escola, que faz com que acreditam que seja “[...] natural que ocupem na sociedade patamares mais precários de existência” (p. 158-159).

O enfrentamento da contradição entre uma formação teórica que tem dificuldade em cimentar a realidade social sugere a ampliação do escopo formativo escolar técnico fortalecendo o campo político e cultural que inclua os campos da ciência, da filosofia e da arte. Com esse entendimento quanto à formação docente no campo da arte em uma lógica critico-emancipatória, a nossa pesquisa localizou o estudo de Frade (2013), intitulada Sujeitos do conhecimento e relações comunitárias – repensar a formação docente em Arte, que trata da formação docente em que a arte aparece como ação social a partir de relações comunitárias. O texto aborda a proposta formativa em contraposição ao que há em termos de formação em arte centrada nas metodologias e nas disciplinas escolares. O ponto de partida foi fazer um resgate histórico do ensino de arte no Brasil (desde a escola nova, passando pela escolinha de arte) denominado “[...] abordagem como lassaiz faire” (FRADE, 2013, p. 5), por acentuar um viés espontaneísta para, posteriormente, apresentar os pressupostos socioculturais efetivos pelos quais a formação do educador de arte ocorre articulando teoria e prática que emancipa o educando professor.

Contrapondo-se a uma formação de professores de arte existente no Brasil em uma perspectiva disciplinar, a autora argumenta a favor de uma perspectiva formativa e um trabalho docente para além dos muros escolares.

Nesse sentido, formar educadores em arte exige pensar sobre as questões políticas que envolvem o ato de reconhecimento de qualidades, normas e valores que compõem identidades sociais e trabalham para a construção da noção de autonomia e pertença. [...] Ao contrário de uma ação de transmissão ou mediação de conhecimento, ao que significaria formar reprodutores ou tradutores de ideias e conceitos externos ao grupo no qual se envolve, essa mirada para o docente como sujeito decisor, como produtor de conhecimento e agente politicamente ativo em seu meio, apresenta a atitude de engajamento ao que nos referíamos logo antes, ao pensarmos na arte como força de mudança e aprimoramento das relações em sociedade. Isso se refere a um sujeito consciente de sua ação em dupla aliança: é reconhecer-se como personagem ativo em seu meio, como investigador e propulsor desse mesmo campo e, ainda, como agente político de transformação, educador em sentido amplificado

(FRADE, 2013, p. 8).

A dimensão formativa que a autora defende contrapõe-se ao viés de educação/formação de natureza técnica higienizada da política que tem o

[...] professor como apenas dispositivo de manobra do governo, na conformação de um programa geral e unificado de ensino que visa, ao fundo, ao controle e à repressão silenciosa. E é aqui que, ao nosso entendimento, o problema reside: é esse giro de posição do docente que o tira do atual estado de submissão aos sistemas oficiais de ensino e que o promove a um papel gestor, de sujeito de influência e que se afirma como propositor de sua própria ação educativa. Ele é autor, é conhecedor, é criador. O professor deve estar do lado da criatividade social e não dirigido à movimentação submissa de massas. Devemos observar a formação tradicional do educador e seu progressivo enfraquecimento, ao que este hoje deve deixar de estar operando como funcionário dos programas de resultados uniformes e pela domesticação de comportamentos. Implicamos nisso o comprometimento desse educador com a gestão de seu próprio projeto educativo, e trabalhar esse projeto pela discussão com seus pares, abrindo-se ao debate e à colaboração com a comunidade na qual se envolve

(FRADE, 2013, p. 9).

A autora faz a crítica da formação existente, contrapondo-se ao ideal formativo não crítico com profunda desconexão entre a teoria e a prática educativa em que os formandos vivenciam, em grande medida, “[...] o processo convencional e fragmentário de cursar cada disciplina acadêmica isoladamente, produzindo trabalhos desconexos, visando apenas cumprir os objetivos de cada professor e sob juízos diferenciados, ansioso pela sua aprovação [...]” (FRADE, 2013, p. 12). Em tal lógica formativa, verifica uma dissociação entre a teoria e a prática social, por isso defende outra formação para o estudante, com a “tríplice composição artista/pesquisador/educador” (FRADE, 2013, p. 13).

A autora defende a formação do docente em arte rompendo com a lógica formativa convencional e disciplinar presente em muitos cursos de formação de professores e no trabalho docente em geral. Para tanto, argumenta que o pesquisador docente em arte deve tratar de investigar também a “[...] área da produção, em forma associada ao trabalho da pesquisa teórica em arte e educação. Unir as duas potências que o conformam, que o fazem especial e que torna, de forma muito particularmente preciosa, a sua atuação como educador” (FRADE, 2013, p. 15). Por essa linha de raciocínio, defende que “[...] a educação da arte é exatamente a possibilidade de alterar determinadas divisões perversas entre as classes ou estamentos sociais, inundando e revertendo as barreiras e criando novas possibilidades do sentir/pensar” (FRADE, 2013, p. 18), o que evidencia, portanto, um campo de tensionamento por outra educação e formação.

Considerações finais

Os estudos de cunho teórico-filosófico acerca da política/gestão da formação de professores no Brasil e suas implicações para o trabalho docente nos permitem depreender, tendencialmente, que a dimensão político-cultural ficou relegada a outro plano, que não a primeira intenção de formação. Todavia, a instrumentalização não ocorreu de forma linear e sem as contradições tensionadas pelas forças que vêm lutando por uma educação e formação de professores em uma perspectiva libertária e emancipadora. Nesse sentido, sob o ponto de vista teórico-filosófico, também, ocorreu formação na lógica emancipadora, tensionando a proposta centrada hegemonicamente em uma formação técnica, pautada, em grande medida, pelo discurso utilitário.

Compreendemos a partir dos artigos estudados que, historicamente e sob a forma de contradição e tensionamento, também esteve presente na política/gestão da formação/participação de professores como resistência a perspectiva formativa emancipadora. Esta, por sua vez, buscou efetivar, embora encontrando dificuldades, uma lógica de educação balizada no entendimento: da classe, esfera pública/nacional-popular; da democracia substantiva de participação efetiva, na qual a eficiência e a eficácia educacionais pretenderam-se subsumidas à efetividade política e cultural; da filosofia da práxis, fundamentada na noção de superação constante das fraturas da sociedade capitalista referentes à filosofia, à história e à política; ao materialismo histórico e ao materialismo dialético; à estrutura e à superestrutura; e à teoria e à prática (GRAMSCI, 2006).

Do exposto, indicamos, então, que a reflexão teórico-filosófica pode ser um ponto de partida importante para pensarmos e agirmos acerca da política/gestão da formação de professores no Brasil e das implicações para o trabalho docente, incluindo as abordagens cultural e político-educacional como dimensões a serem dialeticamente pensadas no âmbito da política/gestão da formação inicial e da formação continuada.

4Formação de professor depreendida do entendimento de práxis em Gramsci (2006) articulada à compreensão de educação multidimensional de Sander (1995) que parte da ideia de prática social – síntese provisória das relações sociais – e problematizada a partir de sua instrumentalidade teórico-prática existente com foco nas dimensões econômico-corporativa e técnico-pedagógica em busca da eficiência e da eficácia educacional. Vislumbrando a superação da instrumentalidade formativa, a partir da problematização e apreensão das conexões práticas da educação chega-se à catarse, que é um momento superior acerca da formação, que é, por superação, enriquecida da dimensão formativa ético-político-cultural de característica efetiva e relevante transformada e em movimento de históricas transformações.

5Por meio dos artigos analisados não foi possível precisar o número de cursos de formação de professores realizado em instituições públicas e privadas. Embora não tenha sido preocupação deste estudo, entendemos, entretanto, que essa informação é importante e fará parte das nossas preocupações nas próximas pesquisas sobre a temática uma vez que, segundo o censo da educação superior de 2019, a maioria (64%) dos cursos de formação de professores no Brasil ocorre em instituições privadas (BRASIL, 2019).

6Como buscamos apreender a perspectiva teórico-filosófica e político-cultural da formação de professores no Brasil utilizando-nos do que foi produzido e publicado nos periódicos mencionados, transcrevemos, neste artigo, algumas citações diretas dos autores pesquisados por entender que estas evidenciam com mais ênfase o que este estudo pretendeu demonstrar acerca da política/gestão da formação de professores no Brasil.

7Prometeu e Hércules são duas figuras da mitologia grega tomados no estudo analisado para discutir duas performances de professores: uma mais ligada à formação teórica e outra à prática. Na primeira, Prometeu, um tipo mitológico, roubou dos deuses uma fagulha de fogo (representa a essência humana ou o cabedal teórico) para que o homem transformasse a natureza para a superação das dificuldades da vida. Hércules, um semideus, teve, como castigo, de enfrentar e vencer diversos desafios em seu mundo e deles extrair aprendizagens que o forjaram como herói guerreiro: representa a perspectiva existencialista de formação, com foco na experiência prática.

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Recebido: 24 de Abril de 2021; Aceito: 17 de Agosto de 2021

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