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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022035 

ARTIGOS

Comunitarismo: uma abordagem teórica e um estudo de caso

Communitarianism: a theoretical approach and a case study

Keberson Bresolin1 

Vitor Elias Sanches2 

1Doutor em filosofia. Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas.

2Universidade Federal de Pelotas


Resumo

Neste breve artigo voltamos nosso olhar ao debate filosófico entre comunitaristas e liberalistas. Escolhemos o filósofo norte-americano Michael J. Sandel (1953-) como principal voz dentro do comunitarismo por conta de poucos pensadores se ligarem abertamente a essa escola filosófica. Muitos sequer reconhecem sua validade como escola. Sandel é exceção. Obviamente, não reduzimos o debate comunitarista a Sandel, contudo sua voz reverberará mais alta ao longo deste artigo. Dada a pouca divulgação das teses comunitaristas, especialmente dentro do debate brasileiro, optamos por iniciar nossa obra traçando as raízes históricas e conceituais do pensamento comunitarista, suas principais críticas ao liberalismo, assim como suas fragilidades. Nisso se caracteriza a primeira parte de nosso texto. Na segunda parte voltamos nosso olhar para a realidade próxima, assim, analisando casos e dilemas específicos das comunidades pomeranas na zona sul do Rio Grande do Sul, buscamos abordá-los sob a ótica comunitarista. Fazemos isso com o intuito de perceber de que modo essa vertente filosófica pode auxiliar-nos. Na terceira parte damos voz ao pensamento liberalista, permitindo que este não só rebata os argumentos comunitaristas como também traga soluções aos problemas das comunidades estudadas. Por fim, na quarta parte, trazemos nossas considerações finais sobre os argumentos expostos, assim como nossa percepção acerca do embate “comunitarismo vs liberalismo”. Nesse ponto expomos nossa visão de que, apesar de ser bem-sucedido em levantar críticas pertinentes ao pensamento liberal, o comunitarismo falha em apresentar soluções aos problemas por ele levantados (ao menos soluções atraentes e definitivas a esses problemas), assim como em levantar críticas que não possam (ao menos em tese) ser sanadas dentro do próprio pensamento liberalista.

Palavras-chave Comunitarismo; Liberalismo; Comunidade; Pomeranos; Política

Abstract

In this paper, we turn our attention to the philosophical debate between Communitarians and Liberals. We choose the North American philosopher Michael J. Sandel (1953-) as the main voice amongst communitarians due to the fact that few thinkers openly associate themselves to this philosophical school. Many don’t even recognize its validity as a school. Sandel is an exception. Obviously, we have not reduced the communitarian debate to Sandel, yet his voice will reverberate louder throughout this article. Given the low propagation of the communitarian thesis, especially in the Brazilian debate, we choose to begin our work by tracing the historical and conceptual roots of the communitarian thinking, its main criticisms to liberalism, and its own frailties. In that consists the first part of our text. In the second part, we turn our gaze to the reality near to us, and so we analyze cases and dilemmas specific to the Pomeranian communities of the South region of the Rio Grande do Sul trying to address them through the communitarian optic. In the third part, we give voice to the liberal thinking, allowing it not only to rebuke the communitarian critiques, but also to bring its solutions to the studied communities’ problems. Lastly, in part four, we bring our own final considerations on the arguments exposed, as well as our perceptions on the “Communitarianism vs Liberalism” debate. On that topic, we expose our view that, despite communitarianism being well succeeded in raising valid criticisms to liberalism, it fails in presenting solutions (at least, alluring and definitive solutions) to those problems, it also fails in raising criticisms that could not be (at least, theoretically) dealt with within the liberal thinking itself.

Keywords Communitarianism; Liberalism; Community; Pomeranians; Politics

1. As raízes do comunitarismo

É impossível negar o impacto causado pela obra Uma Teoria da Justiça, do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002). Publicada no ano de 1971, Uma Teoria da Justiça reavivou o debate político filosófico ao apresentar as bases de uma concepção de justiça liberal equitativa. Entretanto, ainda que sua tese tenha sido bem-vista por um vasto número de pensadores, igualmente vasto foi o número daqueles que se mostraram críticos ao posicionamento de Rawls.

Alguns, criticando Rawls por sua visão de justiça equitativa, apontaram sua tese como sendo pouco (ou mesmo anti) liberal. Dentre esses críticos, destaca-se Robert Nozick (1938-2002) e sua obra Anarquia, Estado e Utopia, de 1974 (NOZICK, 2011), que foi alicerce à vertente de extrema direita libertarista ou libertarianista.

Outro grupo, criticando exatamente o viés liberal de Rawls, formaria o que mais tarde viria a nomear-se comunitarismo. Esse posicionamento critica o liberalismo rawlsiano quanto à sua abordagem universalista, à sua definição do “eu” (self), à sua política individualista, à primazia do direito em relação ao bem e à suposta neutralidade do Estado.

Pensadores como Alasdair MacIntyre (1929-), Michael J. Sandel (1953-), Charles Taylor (1931-) e Michael Walzer (1935-) são tidos como de importância ímpar no debate comunitarista (ainda que nem todos se identifiquem com o rótulo).

Visto não exatamente como uma escola de pensamento que visa à destruição do liberalismo, o comunitarismo (em sua maior parte) tem caráter reformista, busca manter certos alicerces liberais ao passo que corrige algumas de suas falhas e minimiza os impactos negativos que essa vertente filosófico-político-econômica gera.

Conforme dito, nem todos os pensadores associados ao comunitarismo se identificam com (ou mesmo, aceitam) o rótulo, e essa “crise de identidade” dificulta a compreensão a respeito de quais são, de fato, as críticas comunitaristas ao liberalismo igualitário e quais suas respostas aos problemas apontados.

1.1 Definindo comunidade

Antes de prosseguirmos em nossa empreitada na questão comunitarista, acreditamos ser importante clarificar o que os comunitaristas comumente tomam por “comunidade”. Afinal, como apontado por Wilfred McClay (1951-), o comunitarismo tem:

[...] a propensão em usar a linguagem da “comunidade” como espécie de música ambiente, uma forma agradavelmente imprecisa de humanizar toda e qualquer instituição, incluindo àquelas que decididamente não são famílias ou comunidades

(MACCLAY, 2020, n.p.).

Aqui, usaremos a catalogação de Daniel Bell (2020, n.p.), que assim enumera as comunidades:

1. Comunidades de local, ou comunidades baseadas em localização geográfica [...] 2. Comunidades de memória, ou grupos de estrangeiros que compartilham uma história de significância moral [...] 3. Comunidades psicológicas, ou comunidades de interação pessoal face a face, governadas por um sentimento de confiança, cooperação e altruísmo.

Dito isso, cumpre dizer que o primeiro uso é, sem sombra de dúvidas, o mais comum, sendo grande parte do debate comunitarista referente a grupos e comunidades locais ou geograficamente próximos. Presente nesse debate, encontramos apelos a políticas de maior autonomia às comunidades locais, assim como a preservação de áreas, monumentos, arquitetura ou outros pontos geográficos de importância para essas comunidades.

Em seu segundo uso, os laços comunitários representam a herança histórica e cultural de um povo ou grupo, as raízes que os une ainda que distantes geograficamente. Aqui, o debate alicerça-se sobre questões de valorização e preservação cultural e conscientização populacional das origens dos povos que as compõem e estende-se a propostas políticas de oficialização e ensino de línguas nativas ou de grande relevância àquele povo.

Por fim, as comunidades de caráter psicológico referem-se a laços como os matrimoniais, os fraternais, os de identificação intelectual ou de propósitos de vida compartilhados. As medidas defendidas por meio dessa abordagem incluem a valorização e a preservação dos vínculos familiares e matrimoniais, o incentivo à formação de laços mais próximos entre os cidadãos de dada localidade ou nação, as políticas de trabalho que fomente vínculos mais humanizados entre os trabalhadores, assim como a promoção de valores como a confiança, a solidariedade e o altruísmo, em oposição aos valores liberais da individualidade, egoísmo e ambição.

Ainda que implicitamente, essas três significações básicas do conceito de comunidade permeiam todo o debate e a argumentação comunitaristas, ficando mais fácil compreender seus posicionamentos quando mantemos elas em mente. Prossigamos às teses comunitaristas.

1.2 Críticas à abordagem universalista

Desde seus primórdios, com pensadores do porte de Locke (1632-1704), Smith (1723-1790), Mill (1806-1873), dentre outros, o liberalismo tomou como premissa básica a universalidade de seus princípios (entenda-se a aplicabilidade deles em qualquer local, qualquer período histórico e por qualquer povo), mas foi no princípio rawlsiano da posição original3 que grande parte da crítica comunitarista pautou-se.

Para os pensadores comunitaristas, a abordagem rawlsiana equivoca-se ao remover os indivíduos de seu meio e pô-los sob um “véu de ignorância”. Para os comunitaristas, é exatamente no meio coletivo e na diversidade de particularidades presentes no mundo real que um princípio de justiça deve-se pautar.

De igual modo, os comunitaristas criticam Rawls por tomar seu princípio de justiça (por mais bem embasado que seja) como aplicável a todas as comunidades formadas por indivíduos razoáveis. Novamente, se para o comunitarismo as concepções de justiça derivam do meio que as gerou, parece-lhe óbvio que existirão tantas concepções de justiça quanto grupos geradores destas, e, obviamente, os modelos de um grupo raramente servirão a outro.

É importante ressaltarmos o papel central que o universalismo exerce dentro do liberalismo. Para tal, mantenhamos em mente que, para o liberalismo, seja em sua vertente clássica ou “nova”, a não universalidade de seus princípios incorreria em um problema sério para suas teses.

Para o liberalismo clássico, no qual não há só uma íntima relação entre liberdade e propriedade privada4, mas também uma concepção negativa de liberdade (i.e., liberdade como ausência de coerção e intervenção), a universalização dos princípios liberalistas é garantia de que, primeiro, ninguém fique à mercê de forças coercitivas e, em segundo lugar, todos, por serem agentes livres, sejam responsabilizados por seus atos e, claro, legítimos senhores de sua propriedade adquirida.

Já para o “novo” liberalismo (também chamado de liberalismo de welfare state ou liberalismo de justiça social), no qual há menor ênfase na propriedade privada e maior foco no papel político-social do liberalismo, com uma visão positiva de justiça (i.e., liberdade por meio dos meios práticos para exercê-la), a universalidade dos princípios liberais vem para assegurar que não haja discriminação para com grupos ou indivíduos.

Apesar de pertinente, a crítica comunitarista provou-se pouco eficaz. Primeiramente por não conseguir apontar exemplos satisfatoriamente atraentes de sociedades não liberais. Alasdair MacIntyre (1984) defendeu o ideal aristotélico a respeito de uma comunidade local, unida por fins comuns, ao passo que Michael Walzer (1983) apontou o sistema de castas como um modelo não liberal que é (possivelmente) justo segundo os fins daquela própria comunidade. O primeiro é uma alternativa inviável a sociedades complexas como as contemporâneas, o segundo é polêmico, ao defender um sistema que é combatido por muitos pensadores inseridos em seu seio. Em segundo lugar, tal crítica falha ao ter de reconhecer que alguns direitos e princípios devem ser universalizados (medidas contra a escravidão, o genocídio, a tortura, o homicídio, o racismo, etc.), sendo desejáveis a qualquer indivíduo razoável.

Ainda assim, o debate a respeito da busca pela conciliação entre diferentes concepções de justiça em um mundo globalizado e plural vem mostrando-se de grande relevância e não deve ser desacreditado por conta de investidas malsucedidas e da existência de um grupo de valores universalmente desejáveis, dado que, em igual (ou maior) número, são os valores não universalizáveis encontrados.

1.3 A concepção do “eu” (self) e as questões individualistas

Também decorrente do modelo da posição original rawlsiana, a crítica à concepção e à formação do “eu” liberal foi tema bastante presente no embate comunitarista. Aqui, além de retomar a crítica à imposição do “véu de ignorância” por sobre as “partes” na posição original, é acrescida a crítica à concepção da busca das “partes” por seus fins particulares individuais como precedentes à formação do conceito de justiça e do estabelecimento da vida em comunidade.

Primeiramente, para filósofos como Sandel, o “véu de ignorância” mostra-se equivocado por ser impossível dissociarmo-nos de nossos “acidentes” da vida real. Antes de tudo, nossa identidade e nossa visão de mundo são estabelecidas comunitariamente (traços como língua, trejeitos, vínculos familiares, concepções acerca dos papéis sociais, etc.). Somos indissociáveis do meio, muito mais definidos pelo que somos como comunidade do que pelo que temos (e escolhemos) como comunidade (SANDEL, 1998).

Segundamente, o meio comunitário garante todo o aparato conceitual e reflexivo do “eu”, sendo impossível não só criticar o grupo no qual estamos inseridos (e buscar se distanciar dele ou se aproximar de algum outro), como também desenvolver perspectivas próprias da boa vida sem utilizar as ferramentas fornecidas pela própria comunidade. Taylor (1989, p. 4) se refere a esse aparato como nossos “mais elevados e fortemente avaliados bens”, que envolvem “a discriminação de certo e errado, melhor ou pior, altivo ou baixo, cujos quais não são tornados válidos por nossos próprios desejos, inclinações ou escolhas, mas antes se mantém independentes destes e oferecem padrões pelos quais estes possam ser julgados”. Mais a frente, Taylor (1989, p. 9) aponta que o agente pode nem mesmo ser a melhor autoridade em definir seus valores morais, porque a

[...] antologia moral por trás da visão de qualquer pessoa pode manter-se amplamente implícita. De fato, ela comumente se mantém assim, a menos que ocorra algum desafio que a force a expor-se. O indivíduo comum necessita de pouquíssima reflexão a cerca das bases do respeito universal, por exemplo, porque quase todos aceitam esse axioma hoje em dia.

Terceiro, a visão comunitarista defende que mesmo os objetivos traçados acerca da boa vida devem ser pautados por valores comunitários. A boa vida para o indivíduo está intimamente ligada à boa vida para toda a comunidade, e é o bem desta que deve ter primazia. Como escreve Gargarella (2008, p. 140): “para os comunitaristas, a pergunta vital para cada pessoa não é quem quero ser [...], mas a de quem sou, de onde venho”.

Os comunitaristas demonstraram uma grande preocupação a respeito de o pensamento liberalista resultar no que Charles Taylor chamou de “atomismo”, em obra homônima publicada em 1985. Segundo essa crítica, o liberalismo peca ao tomar os homens como autossuficientes e independentes da comunidade. A concepção liberal enfraqueceria os laços comunitários (tidos não só como basilares, como também indissociáveis da identidade humana) ao tomar o indivíduo como um ser que se autoconstrói, tanto em caráter formador como em metas, objetivos e concepções da boa vida.

Pensadores liberais rebateram as críticas comunitaristas apontando que não rejeitam a importância do meio na formação da identidade do indivíduo5, mas que os valores liberais visam garantir a possibilidade de questionarmos ou mesmo rompermos com os valores comunitários nos quais estamos inseridos. Ainda que, dirão pensadores como Will Kymlicka (1962-), o leque de opções, assim como as ferramentas que utilizamos para dentre elas escolher, seja delimitado comunitariamente, é inegável que valores como a autonomia e a liberdade na escolha seguem sendo preferíveis à mera aquiescência incontestada.

1.4 A primazia do direito em relação ao bem e a suposta neutralidade do Estado

Como vimos no terceiro argumento contra o potencial individualizador da filosofia liberal, há uma concepção de boa vida, de bem maior, que é estabelecida comunitariamente e na qual o indivíduo está irremediavelmente inserido. Para os comunitaristas há uma clara primazia desse background comunitário em relação ao indivíduo. Ainda que pensadores liberais contemporâneos concordem com a existência (e inexorabilidade) desse background, é na relação com os direitos individuais que vemos a oposição entre liberais e comunitaristas.

O Estado liberal é garantidor de direitos e liberdades individuais e deve manter-se neutro quanto às concepções particulares de bem. Desse modo, não é aceitável, perante o liberalismo, que o Estado se intrometa na vida particular dos indivíduos ou mesmo que promova concepções de bem, ainda que de forma não coercitiva. É repudiável a máquina estatal defender valores como o matrimônio (ou desencorajar o divórcio), a fé, o patriotismo, os valores culturais, etc.

Nessa esteira, o posicionamento comunitarista critica a postura liberal em quatro pontos. Primeiramente, aponta que não há verdadeira neutralidade estatal. Quando abdica do debate acerca do bem, o Estado está assumindo um posicionamento (o de não se intrometer no debate acerca do bem).

Em segundo lugar, os comunitaristas apontam a impossibilidade prática de abdicarmos de nossos valores e concepções pessoais quando participamos do debate público, ou, como nos diz Sandel (2018, p. 312), “mesmo quando possível, nem sempre é aconselhável que o façamos”. Como ignorar nossos valores quando confrontados com questões como o aborto, a eutanásia e o suicídio assistido? É possível separarmos nosso “eu político” (neutro) de nosso “eu particular” (dotado de valores e concepções pessoais)?

Sandel é enfático a respeito dos possíveis males decorrentes desse “calar-se” em prol de uma neutralidade impossível de se atingir na prática. Ao final de sua obra Justiça: O Que É Fazer a Coisa Certa, ele escreve:

Nas últimas décadas, passamos a achar que respeitar as convicções morais e religiosas de nossos compatriotas significa ignorá-las (pelo menos para propósitos políticos), não os perturbar e conduzir nossa vida pública – tanto quanto possível – sem fazer nenhuma referência a elas. Mas essa evasiva revela um respeito espúrio. Com frequência, significa suprimir as divergências morais em vez de evitá-las. E isso pode provocar retrocessos e ressentimentos. Pode também produzir um discurso público empobrecido [...]

(SANDEL, 2018, p. 330).

A terceira crítica refere-se ao fato de que, sem a interferência estatal, determinadas concepções de bem se tornam pouco acessíveis e, muitas vezes, impossíveis de serem atingidas. Um Estado que nega apoio a grupos minoritários em prol da neutralidade corrobora com os infortúnios que sobrevenham àquela minoria.

Por fim, os comunitaristas culpam políticas liberais e sua ênfase em conceder direitos e titularidades (entitlements) pela deterioração de nossos laços coletivos e valores cívicos, tornando grande parte de nossos vínculos supérfluos, onerosos ou artificializados pela intromissão da esfera política no campo privado.

Como aponta Sandel (1984), a complexidade de nossa estrutura social, somada à universalização da lógica dos direitos, nos traz certas garantias (liberdade de expressão, salário-mínimo), sem nos deixar a mercê das inclinações das políticas locais. Contudo, há um preço: “Conforme a escala da organização política e social se torna mais compreensíveis, os termos da nossa identidade coletiva tornaram-se mais fragmentados, e as formas da vida política ultrapassaram o propósito comum necessário para sustentá-las” (SANDEL, 1984, p. 94-95).

Esse “eu desonerado” (unencumbered self), como rotula Sandel (1984), não só é incoerente à realidade definidora do “eu” (indissociável da comunidade) como também apresenta traços devastadores, corroendo os laços coletivos e dificultando (quando não impossibilitando) a tomada de decisões coletivas e iniciativas em prol do bem-comum. Nas palavras de Sandel (1984, p. 90):

Podemos nos imaginar como (selves) independentes, independentes no sentido que nossa identidade não é nunca amarrada aos nossos fins e laços?

Eu não creio que possamos, ao menos não sem o custo a todas aquelas convicções cuja força moral consiste parcialmente no fato de que viver por elas é inseparável de nos compreendermos como as pessoas particulares que somos – como membros de uma família, comunidade, nação ou povo, como portadores daquela história, como cidadãos desta república. [...] Imaginar uma pessoa incapaz de laços constitutivos como esses não é conceber um agente idealmente livre e racional, mas imaginar uma pessoa inteiramente sem personalidade, sem profundidade moral.

Pensadores como Patrick J. Deneen (1964-) apontam mais um risco relacionado ao legalismo liberal: um crescente estadismo. E ambos, direita e esquerda, são culpados por sua ascensão. A direita liberal, buscando maior liberdade de mercado, acaba por afetar negativamente comunidades locais (cria pólos comerciais próximos a áreas urbanas, fere os pequenos comércios locais, aumenta o êxodo das pequenas cidades enquanto superpopula outras...) e macular o processo político (que cede às pressões econômicas), além de premiar traços condenáveis, como o individualismo, o egoísmo, as apostas de alto risco e a ganância.

Já a esquerda burocratiza o sistema político, distancia-o das pequenas comunidades e, visando libertar os indivíduos de seus laços (“arbitrários”) comunitários, acaba por inserir-se de modo invasor na esfera privada e artificializar as relações interpessoais.

Conforme aponta Deneen (2020, p. 65 e 74-75):

O liberalismo assim culmina em dois pontos ontológicos: o indivíduo liberto e o Estado controlador. [...] Tanto para “liberais” quanto para “conservadores”, o Estado se torna o maior impulsionador do individualismo, ao passo que o individualismo se torna a principal fonte do poder e da autoridade do Estado.

2. O debate comunitarista na prática: um olhar sobre as comunidades pomeranas no estado do Rio Grande do Sul

Diferentemente do que apontaria o senso comum, a filosofia prática, por definição, também possui interesse em estudar a aplicabilidade de suas teses no mundo concreto. Em verdade, a reflexão filosófica nasce, sem exceções, dos questionamentos e das reflexões acerca dos dilemas (mais ou menos agudos) encontrados em nosso cotidiano. A questão comunitarista não seria diferente.

Preocupados em avaliar se, primeiro, as críticas comunitaristas ao liberalismo são condizentes com a realidade e, segundo, se suas teses oferecem alternativas atraentes, optamos por fazer um breve estudo de caso. Para tal, voltamos nosso olhar às comunidades pomeranas sul-riograndenses.

Optamos por estudá-las por entendermos que sua situação atual no Brasil é exemplar para o debate comunitarista. Por um lado, as comunidades pomeranas constituem um grupo de fortes valores e tradições comunitárias, por outro lado, a identidade liberal (e, mais recentemente, neoliberal) brasileira apresenta de forma bastante clara alguns dos principais problemas apontados pelo comunitarismo. Antes, um breve traçado histórico.

Originários da extinta região da Pomerânia (hoje dividida entre a Polônia e a Alemanha), imigrantes pomeranos vieram para as américas em massa a partir da segunda metade do século XIX, grande parte deles com destino a terras brasileiras.

Diferentemente do que houve em outros países (EUA, por exemplo), as comunidades pomeranas vindas ao Brasil mantiveram-se relativamente fechadas, em grande parte devido ao quão inóspitas e pouco habitadas eram as regiões a elas relegadas. Devido a isso, mantiveram boa parte de sua cultura viva até os dias atuais.

Hoje o Brasil é o único país em que ainda se fala regularmente o pomerano, sendo o idioma presente em cinco estados brasileiros: Espírito Santo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rondônia e Minas Gerais (BARRETO, 2019).6 Dentre estes, a cultura e o idioma são especialmente importantes à identidade do povo gaúcho.7

Foi em meados de 1858 que, na região de São Lourenço do Sul, se estabeleceu um dos principais núcleos de colonos pomeranos (KRONE; MENASCHE, 2015). Hoje não apenas a cultura pomerana é vista como patrimônio da cidade como também há incentivos públicos e privados que buscam a manutenção e a valorização da cultura pomerana.

É em São Lourenço do Sul que encontramos a Südoktoberfest (tida como uma das principais celebrações à cultura germânica e pomerana do RS), assim como a implementação do Caminho Pomerano (trajeto turístico que visa promover o contato com os costumes tradicionais pomeranos), além de outras medidas menos agudas, como a valorização por parte de comerciantes locais na contratação de funcionários bilíngues pomerano-português.

Curiosamente, até o encerramento deste artigo o idioma pomerano ainda não havia sido oficializado na cidade de São Lourenço do Sul (fenômeno ocorrido em sua vizinha, Canguçu), mas o processo encontra-se em trâmite legal.

Conforme apontam as pesquisadoras Berwldt e Nogueira (2020), apesar da relevância cultural e da presença comunitária local, o idioma pomerano corre risco de entrar na lista de línguas ameaçadas de extinção. Em grande parte, esse risco se deve à falta de incentivo estatal quanto à valorização e à preservação do idioma, assim como pelo ensino predominante da língua portuguesa.

Em pesquisa realizada no ano de 2019 em duas escolas de Educação Infantil (localizadas nos municípios de Canguçu e São Lourenço do Sul), acompanhando crianças de origem pomerana ao longo do ano escolar (o primeiro contato dessas crianças com o ambiente escolar e, em alguns casos, fora do seio familiar), todas elas (muitas das quais inicialmente falantes apenas do idioma pomerano, outras bilíngues pomerano-português) abandonavam o uso de sua língua-mãe, substituindo-a pela língua portuguesa.

Uma das crianças, ao ser questionada pela pesquisadora quanto ao motivo de abandonar a língua pomerana, respondeu “com palavras misturadas entre pomerano ‘não quero mais falar o pomerano, é feio, as pessoas acham engraçado’” (BERWALDT; NOGUEIRA, 2020, p. 58). Vale destacar que a professora dessa turma era de origem pomerana, bilíngue pomerano-português, mas utilizava-se da língua pomerana apenas como instrumento facilitador do ensino da língua portuguesa.

Fenômeno semelhante foi observado na pré-escola da cidade de São Lourenço do Sul, na qual, a despeito da ligação histórica da cidade com a cultura pomerana, não foram observadas quaisquer medidas de valorização ou preservação da língua pomerana (curiosamente, a escola ofertava ensino das línguas inglesa e alemã como disciplinas obrigatórias).

Analisando o caso observado pelas autoras, ao negligenciar a língua pomerana as escolas tornam o período de aclimatação das crianças ao ambiente escolar muito mais difícil e oneroso; cria-se segregação entre os que falam a língua portuguesa e os que não falam; favorece-se o bullying e o preconceito linguístico; torna-se a demanda escolar desigual, dado que alguns terão de romper toda a barreira linguística a fim de porem-se em pé de igualdade com os demais, falantes da língua portuguesa; internaliza-se na criança pomerana a concepção de que sua língua é de menor valor e que a língua portuguesa é a “correta”, a língua “de valor”.

Vê-se na posição do Estado brasileiro em não valorizar o pluralismo linguístico um atentado grave às inúmeras identidades culturais, as quais, por direito dos indivíduos que as compõem, devem ser preservadas. Devido a políticas de identidade nacional (cicatrizes de governos nacionalistas, com destaque ao de Getúlio Vargas), somadas ao histórico descaso para com os inúmeros grupos minoritários que compõem a nação brasileira e à precariedade no sistema educacional, perde-se parte do traço identitário nacional mais marcante: sua pluralidade linguística.

Esse descaso para com a língua pomerana é sintomático, apontariam os comunitaristas, de um sistema (dito liberal) que ignora a importância dos traços culturais comunitários na formação do indivíduo, visto pelo sistema liberal como um sujeito que poderá, sem maiores problemas, abandonar parte de sua tradição constitutiva em virtude da aceitação de um novo conjunto (linguístico, nesse caso) tido como “oficial”.

Essa negligência para com a comunidade pomerana também representa a ação de um sistema individualista (e individualizador), que põe sobre os ombros do indivíduo a responsabilidade de se aclimatar à identidade padrão nacional. Nesse processo de aclimatação não só são ignoradas as necessidades especiais de um indivíduo em sua fase de transição entre as duas culturas como exige-se dele redobrado esforço para pôr-se em pé de igualdade dentro do ambiente social, aqui representado pelo ambiente escolar.

Ainda, esse enfoque no aprendizado de uma única língua “oficial” ignora o bem social promovido pela manutenção e valorização das múltiplas culturas formadoras da identidade brasileira, avaliando (muitas vezes) a importância do aprendizado de um idioma apenas em termos econômicos (fato evidenciado pela oferta de ensino de línguas como o inglês).

Por fim, é sintomático da autoproclamada neutralidade do Estado, em que a obrigatoriedade do ensino da língua oficial brasileira é imposta por lei, mas a preservação das línguas minoritárias é relegada a iniciativas privadas, interesse das próprias escolas ou (na maioria das vezes) pais e família.

Antes de seguirmos, é válido salientarmos um “porém” a essas críticas comunitaristas: elas parecem melhor direcionadas ou a um sistema neoliberal ou a uma visão libertarianista, não ao liberalismo em si.

Ambos, neoliberalismo e libertarianismo, colocam como passo inexorável à liberdade, em sua concepção mais ampla, a liberdade econômica e a mínima intervenção estatal, tida como paternalista (FONSECA, 2008). Desse posicionamento decorrem dois argumentos desfavoráveis a uma estrutura política que vise à preservação de um bem cultural:

  1. ela interferiria na ordem espontânea (para usarmos uma expressão hayekiana) daquele grupo, afinal “como defender o uso da coerção estatal para manter práticas cujos supostamente interessados não se interessam em manter?” (GARGARELLA, 2008, p. 161); e

  2. afetaria a liberdade econômica dos demais cidadãos ao direcionar parte do arrecadamento de seus impostos a projetos que atenderiam exclusivamente os interesses de um grupo específico.8

2.1 Ressalvas quanto a iniciativas de preservação cultural

Igualmente pertinente ao nosso estudo é a pesquisa realizada por Evander Eloí Krone e Renata Menasch (2015) entre os anos de 2011 e 2013 na região de São Lourenço do Sul, com foco nas festividades da Südoktoberfest, no papel de iniciativas como o do Caminho Pomerano e no contato com a comunidade local de Harmonia.

Krone e Menasch (2015), longe de criticarem as iniciativas de valorização e preservação cultural pomerana, trazem ao debate questionamentos pertinentes quanto ao modo e ao papel que tais medidas representam, na prática, na luta pela preservação dos laços comunitários e tradicionais.

O principal problema levantado pelos pesquisadores é a mercantilização da cultura pomerana, transformada em artigo turístico e representada como invariável, inalterada pelo agir do tempo e com pouca ou nenhuma relação à realidade das comunidades pomeranas atuais.

Essa característica é observável por meio de curiosidades, como as mascotes oficiais da Südoktoberfest (um casal de gansos nomeados Walter e Wilma) representarem o prato Spickbost (peito de frango defumado), tido como tradicional da culinária pomerana e extinto em todas as partes do mundo, que, a despeito de ser tomado como característico à cultura pomerana, é raramente consumido pelas comunidades atuais, sendo, inclusive, de difícil aquisição aos organizadores da festa, dado que a criação de gansos é rara na região (KRONE; MENASCHE, 2015).

Curioso também é o Caminho Pomerano percorrer localidades nas quais vive maior número de famílias de descendência alemã, não pomerana. Os autores justificam:

Neste contexto, imigrantes alemães e pomeranos viveram um processo compartilhado de ocupação do território, não obstante, os imigrantes alemães se destacaram na vida política e econômica da nova colônia e aproveitando desse poder estabeleceram hierarquias identitárias. Nesse quadro, os pomeranos, ainda que compusessem o grupo numericamente majoritário, tiveram sua origem étnica estigmatizada. Assim, seus afazeres e saberes, as práticas culturais mais diversas, incluindo o idioma pomerano, foram alvo de desvalorização. [...]

[...] Não obstante, se no passado ser pomerano e tudo que envolvia o modo de vida dessa gente constituíam sinal de inferioridade, na atualidade nota-se uma inversão de classificações, associado a um processo de reinvenção do passado e da história dos pomeranos. É a partir dessa mudança que podemos entender a participação de descendentes de imigrantes alemães (renanos) no Caminho Pomerano

(KRONE; MENASCHE, 2015, p. 4-5).

Dado que ambos, Südoktoberfest e Caminho Pomerano, atraem turistas e fomentam a economia local, é questionável se essas iniciativas têm por objetivo principal a conservação da cultura pomerana ou da cultura de um “ser pomerano” idealizado, “[...] convertido em atrativo turístico de modo a atender a demandas urbanas, ávidas em ‘consumir’ um passado pomerano romantizado e bucólico” (KRONE; MENASCHE, 2015, p. 3).

Contrastando com a imagem vendida na celebração que dá fama à região, ao acompanharem a festividade local da Comunidade Livre e Independente de Harmonia os pesquisadores observaram uma cultura pomerana viva e atual, em que as roupas eram belas e modernas (“roupas de domingo”, como chamadas popularmente), a culinária local (cucas e afins) compartilhava local com cachorros-quentes e enroladinhos de salsicha e a língua portuguesa era a mais usada, ainda que a pomerana fosse de conhecimento geral. Aqui, voltamos nosso olhar comunitarista ao estudo apresentado.

Parece-nos importante, sob a ótica comunitarista, salientar que, a despeito da relevância de que iniciativas como a Südoktoberfest e o Caminho Pomerano tragam a valorização da cultura pomerana, fato apontado pelos pesquisadores (KRONE; MENASCHE, 2015, p. 15), não podemos deixar de questionar a quem essas iniciativas servem, qual fim visam e qual o impacto causado nas comunidades locais e na imagem que estas têm de si.

Em um sistema liberal, apontariam os comunitaristas, há, muitas vezes, a preservação dos princípios liberais camuflados de interesse e valorização cultural. Cabe perguntarmos se essas medidas que visam ao fortalecimento da identidade cultural de uma comunidade não acabam, paradoxalmente, desfigurando a identidade desse povo. Se o “eu” é formado comunitariamente, indagamos: qual “eu” e por qual “comunidade”?

Igualmente questionamos: o bem visado por essas medidas é o bem da comunidade ou o bem da economia local? Incentivamos um identitário que não gere lucros?

Os comunitaristas defendem que a valorização das comunidades e das culturas locais deve sempre tomar o bem da própria comunidade como propósito principal, ou mesmo único. A preocupação em manter vivos os traços culturais devem visar ao bem-estar dos indivíduos que a esse grupo pertencem, garantindo a integridade identitária daquela comunidade e a autonomia do grupo em celebrar e preservar seus costumes, tomar decisões políticas que melhor se adequam à sua realidade, assim como fortalecer os laços comunitários que os unem. Segundo a visão comunitarista, os valores liberais ferem esses princípios.

Ainda assim, cabe ao liberalismo sua réplica.

3. Sejamos todos comunitaristas?

Ao longo deste artigo buscamos apresentar as principais teses comunitaristas, as quais dialogam com (e criticam) o posicionamento liberal em diversos aspectos. Apontamos como o liberalismo, segundo a ótica comunitarista, ignora fatores determinantes na formação do indivíduo, promove o individualismo e o rompimento dos laços comunitários e abstém-se de promover debates a respeito de conceitos de bem em detrimento a uma postura de neutralidade. Isso tudo, criticam os comunitaristas, em favor de uma visão equivocada que o liberalismo tem acerca da natureza humana.

Também analisamos o caso particular de um grupo cultural minoritário sob a perspectiva comunitarista, apontando como os equívocos liberais no tratamento de culturas minoritárias e as medidas de caráter comunitário podem ser distorcidos a fim de satisfazer os ideais liberalistas.

Contudo, é indispensável perguntarmo-nos: essas críticas sustentam-se? São os ideais (e, mais importante, as políticas) liberais antagônicos aos valores comunitários? Vejamos.

A começar pelo posicionamento a respeito da constituição do “eu” e da importância da comunidade que o forma, conforme apontado no item 1.3, pouquíssimos autores liberais negarão a importância do meio na formação do indivíduo ou ignorarão que tanto as ferramentas conceituais quanto as perspectivas ambicionadas pelo indivíduo advêm do meio coletivo. Entretanto, disso não decorre que o indivíduo não possa (ou, muito menos, não deva) ser livre para escolher seus próprios fins assim como desligar-se de laços comunitários dos quais discorda ou com os quais simplesmente não se identifica.

Quando observado sob a ótica liberal, o caso da comunidade pomerana em São Lourenço do Sul fortalece o argumento de que não devemos buscar, forçadamente, a manutenção de traços culturais em obsolescência, sob o risco de: 1) promover hábitos e tradições que não correspondem à realidade das comunidades por eles representadas, como apontaram Krone e Menasch (2015), já que as comunidades são, muitas vezes, tomadas como estagnadas, imutáveis, e, em muitos casos, romantizadas por meio de concepções estigmatizantes; 2) interferir no processo natural de formação identitária do indivíduo, que cresce tendo que adequar-se a certos hábitos tidos como tradicionais, sem a possibilidade de questioná-los, ressignificá-los, atualizá-los ou mesmo ignorá-los por completo caso com eles não se identifique; e, por consequência, 3) ocasionar o desligamento desses mesmos indivíduos do conjunto comunitário que se buscava preservar.

O liberalismo, criticado por promover valores individualistas, busca também, como veremos a seguir, garantir que o indivíduo se mantenha livre para escolher dentre o leque de opções ofertadas pelo coletivo, assim como certificar que o indivíduo possa buscar novas concepções da boa vida e trilhar seu próprio caminho.

É inegável que, coletivamente, possamos concordar que certas opções são melhores (ou que beneficiam um maior número de indivíduos ou mesmo a sociedade como um todo), e, claro, incentivar que mais pessoas compartilhem de nossos valores e nossas escolhas, mas esse não é o ponto do liberalismo. Os liberais defendem (e essa é a raiz da neutralidade do Estado liberal) que não devemos impor aos indivíduos nossas concepções particulares (ainda que, como bem apontam os comunitaristas, essa visão também se apresente como uma imposição).

A neutralidade do Estado e a primazia dada aos direitos individuais em detrimento de noções de bem coletivo são a chave, segundo os liberalistas, para uma sociedade composta por indivíduos plenos e livres não só para escolherem o melhor rumo para as suas próprias vidas como também para trazer novas perspectivas e garantir avanço à comunidade.

Beneficia-se, primariamente, o indivíduo, mas este, por sua vez, beneficia o todo.

Ao olharmos para a pesquisa de Berwaldt e Nogueira (2020), vemos como a conservação das línguas particulares a pequenas comunidades pode e deve fazer parte da política de um Estado liberal. Aqui, a má interpretação a respeito dos conceitos de “liberdade” e “neutralidade estatal” gera políticas incoerentes com o pensamento liberal.

Nesse caso, as políticas de conservação e valorização cultural, refletidas no ensino e na conservação de uma língua nativa, constitui um direito dos indivíduos que aquele grupo compõem. Na voz das autoras: “A ausência de uma ação educativa que tenha por base o contexto cultural, impacta na desvalorização do modo de vida. Nesse sentido, as instituições também produzem o escárnio e corroboram para o abandono da língua materna por parte de muitos pomeranos” (BERWALDT; NOGUEIRA, 2020, p. 62).

Ainda é válido ressaltar que a preservação e o ensino de uma língua ou costumes locais beneficia, também, os indivíduos que não fazem parte daquela comunidade. Assim sendo, o ensino da língua pomerana beneficiaria as crianças que a desconhecem, permitindo leque mais amplo de opções (e, portanto, maior liberdade) aos indivíduos.

A crítica comunitarista, em grande parte, falha, porque ignora pensadores liberais que não só defendem a preservação de nossa pluralidade cultural como a veem como parte indispensável à nossa identidade e liberdade. Joseph Raz (1939-), por exemplo, aponta que o nosso “horizonte de oportunidades” é determinado, em grande parte, por nosso meio cultural. A prosperidade desse(s) grupo(s) enriquece e amplia as oportunidades do indivíduo (RAZ, 1994 apudGARGARELLA, 2008, p. 165). Em outras palavras: um grupo próspero implica indivíduos com um leque de escolhas mais amplo a seguir-se (i.e., maior liberdade).

Na mesma perspectiva, Kymlicka (1995, p. 126) aponta o papel de relevância que o pertencimento a determinado grupo tem na formação de nosso leque de escolhas. Nas palavras do autor:

[...] [Nossa] liberdade de escolha depende de nossas práticas sociais, significações culturais e linguagem compartilhada. Nossa capacidade de formar e revisar uma concepção de bem está intimamente ligada ao nosso pertencimento a uma cultura social, dado que o contexto de escolha individual é o alcance das opções passadas a nós por nossa cultura. Decidir como levar nossas vidas é, em primeira instância, uma questão de explorar as possibilidades feitas avaliáveis por nossa cultura.

Assim sendo, não só nosso leque de opções como também a importância que damos a essas opções é fortemente influenciada por nossos laços comunitários. Contudo, e esse é o diferencial do pensamento liberal em relação ao comunitarista, Kymlicka (1989 apudBELL, 2020) defende que tão ou mais importante que a amplitude de nosso leque de escolhas é a nossa possibilidade de questionar e mudar as opções ofertadas.

Outra parte do pensamento de Kymlicka refere-se à questão da defesa de minorias culturais em um sistema liberalista. Aqui, o autor faz uma importante distinção entre o que ele interpreta como “restrições internas” e “proteções externas”.9

Por “restrições internas” Kymlicka (1995) compreende as medidas adotadas por certo grupo contra os direitos de alguns de seus próprios membros. Assim sendo, quando um grupo (seja por razões políticas, religiosas, culturais...) limita a liberdade de seus membros, configura-se um caso de restrição interna. As restrições internas mais severas seriam, segundo o filósofo, raras e poucas vezes bem-sucedidas.

Quanto às “proteções externas”, Kymlicka (1995) as vê como barreiras em defesa de determinada minoria desfavorável contra as pretensões do grupo social mais amplo com o qual elas convivem. Essas “barreiras”, materializadas como direitos especiais direcionados a essas minorias, não contradizem os ideais liberais. Pelo contrário, o autor afirma que elas costumam pôr grupos minoritários em pé de igualdade com grupos majoritários. De modo geral, defende o autor, políticas públicas (e aqui subentendem-se “políticas públicas em um Estado liberal”) costumam “endossar algumas proteções externas, ao passo que rejeita restrições internas” (KYMLICKA, 1995, p. 36 e 41).

Considerações finais

Ao longo deste artigo buscamos apresentar o pensamento comunitarista, analisando-o não só no campo teórico, mas também o utilizando como lente por meio da qual perscrutamos a realidade de um grupo comunitário do Rio Grande do Sul. Nosso azo ao fazê-lo foi o de analisar com mais precisão a real força do pensamento comunitarista ante seu principal dissidente: o liberalismo.

Ao expor, de forma dialogal, as principais críticas comunitaristas ao liberalismo, visamos atingir um parecer justo acerca desse embate filosófico. Não buscamos, contudo, antagonizar as partes como se fossem irreconciliáveis. Nossa terceira parte revolveu-se inteiramente em torno desta ideia: apontar que as preocupações comunitaristas estão presentes na tese liberal. Logo, esperamos que nosso parecer pessoal dentro deste estudo venha a enviesar futuros pesquisadores, interpretando o posicionamento X ou Y como “vencedor” ou “errado” dentro desse diálogo.

Contudo, a honestidade intelectual nos força a conceder que a crítica comunitarista pareceu-nos pouco convincente. Partindo da crítica comunitarista à concepção universalista, ela parece-nos ora beirar o relativismo, ora dar espaço para que o liberalismo se mantenha como opção mais atraente.

O comunitarismo, a nosso ver, não aponta que todas as concepções de justiça sejam igualmente válidas, nem mesmo que todas as comunidades sejam igualmente íntegras e preocupadas com o bem-estar de seus membros. Isso afastaria o fantasma do relativismo. Porém, se assim for, resta-nos perguntar: como defender que o liberalismo, como concepção de justiça e organização social comunitariamente definida, não seja a melhor opção?

Seguimos ao próximo ponto: à concepção liberal de “eu” (self). Não nos parece verdade que o liberalismo tome o indivíduo como “desonerado” de seu meio. Poucos pensadores afirmariam, de modo enfático, que o indivíduo nada deve ao seu meio, ou que absolutamente todos os seus valores e todas as suas convicções foram definidos por meio de um processo individualista e racional. Ao contrário, vimos em pensadores liberais como Raz e Kymlicka a defesa dos laços comunitários e a sua importância na formação do indivíduo.

De igual modo, parece-nos bastante fraco o argumento comunitarista de que, dado que a comunidade antecede e constitui o indivíduo, seus interesses tenham primazia ante os do indivíduo. Esse pensamento nos parece equivocado sob duas perspectivas.

Primeiro, porque não é verdadeira a alegação de que valores ou pensamentos mais antigos ou mais amplamente aceitos comunitariamente sejam mais verdadeiros ou mais importantes ou elevados que os mais recentes. Basta avaliarmos os valores antigos acerca de questões como racismo, escravidão, homofobia, sexismo, etc.

Segundo, porque não é verdade que os interesses de algo constituinte tem primazia ante os interesses de outro algo por aquele constituído. Por exemplo, não é verdade que o interesse de nossos átomos ou nossas moléculas tenham primazia ante nossos interesses particulares, ainda que sejamos constituídos pelos primeiros.10

Ainda que Sandel esteja correto quanto a sermos muito mais definidos pelo que somos em sociedade do que pelo que queremos em sociedade, não decorre que o querer deva se sujeitar ao ser. Do fato de que o meio fornece ao indivíduo todas as (ou boa parte de) suas ferramentas conceituais (valores, princípios, percepções de boa vida...), não decorre que este não possa (ou não deva) buscar, fora de suas raízes comunitárias, outros conjuntos principiológicos. Muito menos decorre que suas raízes comunitárias não possam mostrar-se equivocadas ou insuficientes para os dilemas encontrados por esse indivíduo.

De igual modo, da posição de Taylor de que poucos questionam as bases de suas convicções morais não decorre que não nos seja valorosa a possibilidade de assim fazê-lo. A opção de questionarmos nossas convicções, corrigi-las ou mesmo abdicá-las em favor de outras (ainda que apenas quando desafiados) parece-nos, sem sombra de dúvida, valiosa.

E nisso nos parece conter a vitória do liberalismo neste ponto: a defesa da possibilidade de questionar e rever valores, ideias, conceitos, assim como a proteção ante a obediência coercitiva. Isso não só nos parece de importância ímpar no mundo contemporâneo, considerando o pluralismo, como também não parece contrapor-se aos valores comunitários. Pelo contrário, essa liberdade parece fortalecer os laços comunitários e aprofundá-los (vide Kymlicka).

Por fim, a crítica comunitarista a respeito da primazia do direito em relação ao bem nos parece equivocada quanto às implicações dessa hierarquização. O posicionamento liberalista não implica a negação ou a condenação de concepções particulares (ou mesmo, comunitárias) de bem. Contudo, busca gerar um ambiente social que permita o convívio dessas diferentes concepções abrangentes, como diria Rawls; busca esse bom convívio com direitos, titularidades, mantendo a neutralidade estatal.

Sandel tenta defender que a justiça seja muito mais circunstancial, enfatizando valores como a fraternidade e apontando que em ambientes como o seio familiar ou o convívio entre amigos o apelo à justiça ou aos direitos seja não apenas equivocado, mas danoso (SANDEL, 1984). Contudo esse apelo nos parece ingênuo e equivocado.

A ausência de apelo à justiça, por exemplo, quanto ao valor da mesada que uma dupla de irmãos recebe de seus pais, não implica que a justiça não exista, ou seja, é irrelevante. Ainda que um dos irmãos, por uma questão de fraternidade, permita que o outro receba uma quantia superior à dele, não implica que ele não esteja sendo injustiçado.

Concluímos este paper salientando que, a despeito de percepções pessoais acerca do tema, o debate comunitarista trouxe, ao longo de sua história, questões pertinentes à visão liberalista, desafiando-a a buscar defesas mais robustas de seus princípios. De igual modo, vemos o comunitarismo como um pensamento ainda presente no debate contemporâneo que traz consigo a importante proposta (principalmente em nosso mundo globalizado e plural, muitas vezes distante das realidades locais) de olharmos com mais atenção a comunidades, seus valores e suas necessidades.

3Experimento da posição original de John Rawls, modelo neocontratualista amplamente debatido no campo da filosofia política. Nele, Rawls nos convida a imaginarmo-nos não como indivíduos de carne e osso, mas como “partes” em um debate a respeito de qual concepção de justiça nos parece melhor. Estas partes ignoram suas características individuais no “mundo real” (sua raça, credo, capacidades cognitivas, grau educacional, status social...), são estritamente racionais (no sentido de racionalidade meios-fins, ou seja, sabem que para atingir certas finalidades X, necessitarão de acesso aos meios Y), apresentam desinteresse mútuo (ignoram os avanços das outras partes e buscam apenas a realização de seus próprios fins, não sendo, nem invejosas, nem egoístas) e têm aversão ao risco (princípio “maximin”, onde “as partes querem maximizar o mínimo que podem obter em termos de liberdades, oportunidades, rendimento e riqueza.” (ROSAS, João Cardoso. Manual de Filosofia Política. Coimbra, Coi: Edições Almedina, SA, 2008. p. 52)).

4Visto que, em certa medida, não seria incorreto alegarmos que na visão clássica o indivíduo só é livre por ser, antes de tudo, dono de si mesmo.

5Rawls, por exemplo, na obra Uma Teoria da Justiça, dedica-se a demonstrar a importância psicológica e as condições sociais formadoras dos indivíduos. Essa crítica equivocada à concepção rawlsiana parece direcionar-se mais acertadamente ao pensamento individualista de Robert Nozick.

7Em entrevista, o Professor Dr. Luís Amaral, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) afirma que o Rio Grande do Sul apresenta a mais forte comunidade de falantes do pomerano em todo o Brasil (PARA MANTER..., s.d.).

8Para uma melhor compreensão desse ponto, ver a forte crítica de Nozick às políticas de redistribuição de bens em seu livro Anarquia, Estado e Utopia (1974).

9Kymlicka tece esse argumento ao longo do terceiro capítulo de sua obra Multicultural Citizenship (1995). Em capítulos posteriores, o filósofo apresenta como o tratamento diferenciado de certos grupos em uma sociedade que é compatível com os princípios liberais de liberdade (capítulo 5) e igualdade (capítulo 6).

10Para uma abordagem mais específica desse e de outros posicionamentos de Sandel, ver: CANEY Simon. Sandel’s Critique of the Primacy of Justice: A Liberal Rejoinder. British Journal of Political Science, v. 21, n. 4, 1991. p. 511-521).

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Recebido: 23 de Setembro de 2021; Aceito: 20 de Abril de 2022

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