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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 06-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022046 

DOSSIÊ: ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA EM PAULO FREIRE

A participação das mulheres na pedagogia crítica de Paulo Freire: entre a alusão e o reconhecimento

The participation of women in the critical pedagogy of Paulo Freire: between allusion and recognition

Gisele Cristine da Silva Dantas1 

Carla Sabrina Xavier Antloga2 

Noelma Silva3 

1Professora formadora da educação básica, Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília.

2Psicóloga, Professora, Mestre e Pós-Doutora em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília.

3Professora formadora da educação básica, Cientista Social, Pedagoga e Mestre em Geografia pela Universidade de Brasília


Resumo

A produção de Paulo Freire ainda é atual e necessária. Sua obra é permeada pela defesa de uma ação libertadora da opressão social e dialógica (GASPARELLO, 2013). Freire reconheceu na sociedade brasileira o autoritarismo, o racismo e o machismo e passou a considerar a universalidade das opressões (ANDREOLA, 2016). Paulo Freire foi sensível ao reconhecimento das mulheres da sua convivência em sua obra, por meio de prefácios, dedicatórias e agradecimentos, de maneira oral ou escrita. Entretanto há uma invisibilização histórico-social do trabalho das mulheres, tanto do trabalho reprodutivo quanto do trabalho produtivo, e, com isso, o não reconhecimento simbólico e material. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é realizar uma pesquisa documental para levantar a presença e a colaboração das companheiras de Freire e avaliar o tipo de reconhecimento delas realizado na vida e na obra do autor. Foi feita a análise das partes introdutórias de 17 produções do autor, e em mais da metade delas (11) menções à primeira esposa, à segunda esposa e às filhas foram identificadas. Apesar das referências, estas não reverberaram mudanças na vida dessas mulheres de modo simbólico ou material. Também não foram localizadas biografias em arquivos públicos ou institutos sobre as esposas ou as filhas, situação que caracteriza a ausência de reconhecimento público do trabalho direto e indireto das mulheres parceiras, cocriadoras, coautoras, colaboradoras. O esforço do reconhecimento se faz no resgate de algumas poucas outras mulheres pesquisadoras, condição comum a outros campos, apontando para uma estrutura e uma organização social invisibilizante da presença e da contribuição das mulheres no mundo.

Palavras-chave Participação; Pedagogia crítica; Reconhecimento; Trabalho de cuidados; Trabalho reprodutivo

Abstract

Paulo Freire's production is still current and necessary. His work is permeated by the defense of a liberating action from social, dialogic oppression (GASPARELLO, 2013). Freire recognized authoritarianism, racism, and machismo in Brazilian society and began to consider the universality of oppression (ANDREOLA, 2016). Paulo Freire was sensitive to women's recognition of their coexistence in his work through prefaces, dedications, and thankfulness, either orally or in writing. However, there is historical-social invisibility of women's work, both reproductive and productive, and with that, the symbolic and material non-recognition. The objective was to carry out documentary research to survey the presence and collaboration of the companions and to assess the type of recognition made in the life and work of the author. The introductory parts of 17 productions by the author were analyzed, and the results were that in more than half, in 11 of them, mentions of the first wife, second wife, and daughters were identified. Despite the references, these did not reverberate in changes in their lives, either symbolically or materially. No biographies were found in public archives or institutes about the wifes or daughters, which characterizes the lack of public recognition of the direct and indirect work of women partners, co-creators, co-authors, and collaborators. The effort of recognition is made in the rescue of a few other women researchers, a condition common to other fields, pointing to a structure and a social organization that makes the presence and contribution of women in the world invisible.

Keywords Participation; Critical pedagogy; Recognition; Care work; Reproductive work

Considerações iniciais

As comemorações do centenário de Paulo Freire em 2021 nos fizeram querer revisitar sua obra a partir de um olhar do vivido ao longo de quase três décadas. Sua obra, no campo da Educação, sempre esteve presente e estendeu-se de forma contundente para outras áreas, que adotaram um discurso crítico e comprometido com a dialogicidade imprescindível para um mundo menos injusto e desigual.

Entretanto, em tempo de uma “cultura da desinformação” produzida pelas fake news, Paulo Freire e sua obra foram desmerecidos, e, portanto, a releitura é uma forma de comprovar que “mentira tem perna curta”, enfatizando a força do pensamento freiriano. Em seu centenário foi incontável o número de eventos nacionais e internacionais que buscavam resgatar a importância de Paulo Freire, que transcende os muros da escola e da Educação e sedimenta o que realmente importa: o sentido e o significado de um país, de uma nação que conhece e enaltece sua cultura. A tradução do seu livro Pedagogia do oprimido para mais de 40 línguas e o fato de ele ser o terceiro autor mais citado no mundo comprova seu reconhecimento global.

No momento desta escrita, encontramo-nos no lugar de pesquisadoras do trabalho feminino e, por conta desse recorte, propomo-nos a compartilhar reflexões sobre a participação da mulher na obra de Paulo Freire, que foi o porta-voz de uma Educação crítica e libertadora sem precedentes. Para tanto, com base na proposta democrática e libertária para a Educação, pretendemos investigar a participação das mulheres em sua obra e o reconhecimento delas na sua produção, com vistas a identificar os devidos créditos do trabalho realizado por suas esposas, filhas e outras mulheres. As perguntas de pesquisa foram: (a) se o trabalho realizado por mulheres na obra de Paulo Freire tivesse sido realizado por homens, sofreria alguma invisibilidade?; (b) quem são as mulheres por trás de sua obra?; (c) como o trabalho das mulheres foi visto?; (d) houve reconhecimento dessa participação?

1 Mulheres, trabalho reprodutivo e busca por reconhecimento

Federici (2017) ressalta que, na época feudal, em certos períodos muitas mulheres exerceram uma profissão, como as de ferreiras, padeiras e até mesmo professoras, médicas e cirurgiãs. Entretanto, com a consolidação do capitalismo, uma nova ordem social foi exigida, o que resultou na exclusão das mulheres desses diferentes ofícios.

Para garantir a reposição da mão de obra necessária para o período de alta mortalidade, principalmente do contingente masculino em função de guerras, doenças e outros motivos, o trabalho de cuidado e reprodutivo passou a ser mais acentuado para as mulheres. A procriação passou a ser de mais valia e os comportamentos associados à maternidade precisaram ser modificados e moldados pelos discursos científicos, religiosos e estatais da época (BADINTER, 1980; FEDERICI, 2017).

A posição social das mulheres, então, passou a ser restrita à participação na vida pública (FEDERICI, 2017; ZANELLO, 2018). Para que se pudesse alcançar um novo tipo de disciplinamento dos corpos, a violência precisou ser utilizada (FEDERICI, 2017). Muitos são os reflexos da manutenção do capitalismo sobre a vida dos cidadãos, sobretudo pela violência contida no cotidiano, principalmente aquela dirigida às mulheres. A proteção contra a violência está descrita em grande parte das legislações atuais, porém a condição para coibir a sua prática é insuficiente.

Apesar da maior participação na vida pública, sobretudo a partir do século XX, e da prova da capacidade das mulheres para a execução de diferentes profissões, existem nichos ocupados predominantemente por elas, em grande presença numérica, geralmente associados à área de cuidados, e muitos outros ainda a serem ocupados.

Persistem, na sociedade, percepções e crenças de que o trabalho está associado à natureza e ao sistema sexo/gênero, o que influencia as escolhas profissionais e o percurso de trabalho dos indivíduos. A partir desse contexto, o trabalho das mulheres e o seu não reconhecimento é constituído de prejuízos tanto à cooperação para uma sociedade mais rica quanto à própria autovalorização delas. O reconhecimento tem associação com a autonomia, a riqueza de experiências, as perspectivas e o poder de decidir sobre a sua própria vida, a da família e a da comunidade.

Com a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, a partir da segunda metade do século XX, exigência de um novo momento econômico e sociocultural, os conflitos individuais e os familiares tornaram-se mais evidentes pela pressão para contribuir economicamente com a renda familiar (SAFFIOTI, 1976). As mulheres ficaram divididas entre “trabalhar fora” e “não trabalhar”, entre o trabalho de cuidado e o trabalho para renda, retrato da percepção sobre a posição social, não igualitária. Para Saffioti (1976), o trabalho produtivo contém um elemento que explica a existência de um contingente mais ou menos disposto, uma margem para sua subsistência, pois o trabalho das mulheres e de outros grupos excluídos é subsidiário, mas precisa de certa formação para que haja disponibilidade das necessidades do mercado. Já hooks (2017) argumenta que, para a mesma dinâmica, a existência do capitalismo exige uma massa de mão de obra excedente subprivilegiada.

O contingente de 52,2% da população brasileira é composto por mulheres, segundo dados de 2019 (BRASIL, 2019), e a exclusão dessa parcela de indivíduos do mercado de trabalho tem um impacto sobre a qualidade de vida comunitária, condenando essas mulheres a atuarem em subempregos, fazerem diferentes bicos e trabalharem mais recebendo muito menos. Associado a isso, há o não reconhecimento do trabalho doméstico e do de cuidadora, realizados infinitamente nos lares, que funciona como apoio ao trabalho reconhecido como produtivo, que, além disso tudo, não é pago. Esses trabalhos são a base do sistema capitalista, que se utiliza e se sustenta do trabalho doméstico, de cuidados e reprodutivo, mas não o computa economicamente. O resultado é a invisibilidade e a discriminação do trabalho atribuído ainda hoje naturalmente às mulheres (FEDERICI, 2017; 2019).

O molde do mercado formal de trabalho é excludente e violenta as mulheres na ausência de apoio para desenvolver as atividades requeridas de cuidados e do trabalho reprodutivo. Violenta na medida em que há ausência de serviços que apoiem a sua saída do local de residência para ela poder se disponibilizar para o trabalho externo. A pressão para o cuidado dos filhos, dos idosos, dos doentes, dos deficientes, da alimentação e da limpeza das louças, das roupas e da casa não é computada como trabalho, já que essas atividades são discriminadas e não remuneradas.

Associa-se a isso o fato de que o trabalho realizado é não só o que aparece concretizado mas também o que é feito a todo tempo no planejamento, nos insights, nos sonhos, isto é, naquilo além do horário da jornada definida pelo empregador. Dejours (2012) afirma que o trabalhador está envolvido com todo o seu corpo, toda a sua mente e toda a sua subjetividade no exercício do trabalho e desenvolve a inteligência prática para executá-lo, mas essas faculdades não são medidas nem remuneradas. A clínica psicológica tradicional muitas vezes não visibiliza nem reconhece o sofrimento das mulheres e a relação do contexto cultural e econômico sobre a vida cotidiana e familiar. As relações familiares e as socioprofissionais podem receber impactos da opressão e da exploração das mulheres, entretanto a culpa pode ser um mecanismo utilizado para coibir e autoimplodir essas mulheres.

Vivemos cada vez mais em um mundo informacional, de compartilhamento de ideias e fazeres, e a imersão em um mundo de trocas e de aprendizagem coletiva pode impactar novas criações e o seu reconhecimento. A internet propiciou a difusão das inteligências práticas e do acúmulo de experiências, que são transmitidas pelo prazer de cooperar, nem sempre vislumbrando reconhecimento financeiro, mas ao menos simbólico pelos pedidos de likes para o conteúdo. Abriu-se um campo possível de aprendizagem e cooperação para economia de tempo e ação efetiva, o que pode ser traduzido como certa contradição no cenário autoritário. Segundo Gadotti (1996), Paulo Freire foi um pioneiro no Brasil na utilização dos meios de comunicação social, pois considerava os slides, o cinema, o teatro, o vídeo e a televisão como partes do seu método de alfabetização de adultos, além de ter indicado a necessidade da democratização do acesso a essas ferramentas de trabalho.

Para as mulheres, a entrada no mercado de trabalho formal deu-se mais fortemente a partir do século XX. Demais sujeitos com marcadores físicos de raça/etnia, geração, deficiência, imigração, entre outros, tiveram suas especificidades na inclusão no mercado formal e lutaram pela participação nele. Na psicodinâmica do trabalho, confrontado pelo real, o trabalho está associado ao prazer e ao sofrimento, e uma das condições para a transformação do segundo no primeiro se dá pelo reconhecimento, que, afinal, é um imperativo para o trabalho. A retribuição do trabalho pela avaliação dos pares ou pelos superiores pelo senso de justiça é um mecanismo de retroalimentação e autorrealização. Dejours (2012) apontou o fato de esses julgamentos serem imprescindíveis para trabalhar.

2 Em busca de uma ética dialógica democrática por meio da Educação freiriana

Vivenciamos, hoje, mais do que nunca, os efeitos de um cenário político-social extremamente antidemocrático, neoliberal e, por consequência, excludente e polarizado que tem inviabilizado o diálogo, colocando sob constante ameaça o Estado Democrático de Direito institucionalizado que temos. Mas o que a Educação e a luta pela democratização das escolas têm a ver com isso? Pegando emprestada da sociologia a percepção de que a escola nada mais é do que a reprodução da sociedade que temos, é possível perceber que o sistema democrático vivenciado nas escolas públicas do nosso país reflete e é reflexo, produz e reproduz as fragilidades da nossa incipiente democracia neoliberal.

Apesar de a institucionalização da gestão democrática nas escolas ter a mesma idade constitucional, sua implementação foi desigual e tardia em muitos estados. Foi delineada uma gestão democrática, que promove a descentralização pedagógica, administrativa e financeira, implantando colegiados que visam garantir uma participação decisória dos protagonistas da escola, caso das escolas do Distrito Federal, amparadas pela Lei 4.751/2012 (DISTRITO FEDERAL, 2012). Entretanto, ao analisar todos os sistemas de gestão democrática escolar implantados no país, Erastos Fortes Mendonça (2000), em sua obra A regra e o jogo, ressalta que um desafio comum se sobrepõe. Ele identificou em seu estudo que as características patrimonialistas da sociedade e do Estado brasileiros comprometem a efetividade de uma gestão escolar genuinamente democrática.

Faz todo sentido, nessa discussão, resgatar o pensamento de Paulo Freire, que viveu os ditames da ditadura militar e sobreviveu a eles, implementando mundo afora, durante seu exílio, reflexões e práticas para uma Educação que promovesse a consciência crítica, uma Educação libertadora que tornasse o aluno sujeito e agente de sua história. Freire posicionava-se a favor da liberdade, da justiça, da ética e da autonomia do ser humano, da escola e da sociedade, destacando que a democracia não acontece de uma hora para outra, por decreto ou por uma concessão de uma autoridade que se autointitula democrática. Ele entendia que a democracia, a liberdade e a autonomia são processos, mas não processos de cima para baixo e sim uma conquista conjunta, coletiva, que exige respeito, diálogo e poder de decisão a todos que participam dessa construção.

Vale destacar que vivemos numa sociedade capitalista moderna, que se autodenomina democrática e reafirma a defesa dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade para todos os cidadãos. Contudo, essa democracia liberal é apenas formal, na medida em que esses três princípios, na prática, só são válidos para aqueles que fazem parte do mundo ocidental da minoria burguesa, branca e masculina heterossexual.

A desigualdade e a falta de liberdade e fraternidade para pobres, negros, mulheres, homossexuais e tantos outros grupos que formos capazes de listar aqui são uma constante na vida social. Entretanto a luta por maior igualdade de direitos, liberdade etc., ou seja, por mais democracia, está presente nos diversos movimentos sociais encabeçados por esses grupos oprimidos ao longo da história. A democracia liberal recebe pressões de vários segmentos sociais e luta para manter a sua hegemonia, mesmo tendo que fazer concessões em determinados momentos.

Na obra de Paulo Freire, a definição de democracia corresponde à sua etimologia, isto é, um governo do povo e para o povo. Também significa dizer que todo governo é também um autogoverno, uma prática de sujeitos autônomos, livres, com igualdade de direitos e deveres; sujeitos igualmente fraternos, solidários e amorosos. Por outro lado, ressalta-se que é necessário ir além da representatividade na participação direta em todos os processos decisórios que dizem respeito à vida cotidiana, sejam eles vinculados ao poder do Estado, sejam vinculados a processos interativos cotidianos, ou seja, em casa, na escola, no bairro etc. (OLIVEIRA, 2000 apudGASPARELLO, 2013).

Uma sociedade realmente democrática possui e constitui um governo do povo, que exige a sua participação permanente em todos os processos decisórios da vida social. Gasparello (2013) ressalta que em toda a obra de Paulo Freire encontramos a defesa de uma ação libertadora da opressão social e dialógica. Trata-se da luta de um determinado grupo social, que, embora possa e/ou deva começar por certo grupo – o dos oprimidos, ou o das chamadas minorias –, tem que ser um processo coletivo de libertação, de todos e para todos. Conforme ressalta Freire (1992), tais minorias precisam reconhecer que, no fundo, são a maioria, e realmente o são quantitativamente, mas sem a devida representação política, como no ambiente legislativo, por exemplo. Para tanto, um caminho é assumir-se como maioria, trabalhar as semelhanças entre si (não só as diferenças) e assim criar a unidade na diversidade, o multiculturalismo, que demanda uma ética democrática. Entretanto Freire apontou para o mecanismo de manutenção das classes dominantes de dividir para ganhar, o qual ressurge com força no cenário político brasileiro atual.

A pedagogia freiriana pressupõe uma busca incessante do exercício democrático, no sentido de a democracia precisar ser forjada com ele (o oprimido) e não para ele, enquanto homem ou povo, na luta incessante de recuperação de sua humanidade, procurando continuamente o engajamento necessário na luta por sua libertação. Trata-se de uma questão central na práxis freiriana, porque “ninguém se liberta sozinho, e sim que os homens se libertam em comunhão, pois não será a libertação de uns feita por outros” (FREIRE, 1982, p. 58). Para tanto, é imprescindível nessa práxis haver confiança entre o povo. Exige-se que todos sejam sujeitos no processo de libertação e democratização da sociedade.

Segundo Freire, a ação dialógica é na verdade uma práxis democrática que deve ocorrer tanto na escola como nas diversas outras relações sociais nas quais os seres humanos atuam, visto que no diálogo rompe-se com esquemas verticais de relações predominantes nas relações autoritárias. O diálogo restabelece o direito do ser humano de pronunciar o mundo, transformá-lo e humanizar-se e pressupõe compromisso amoroso, ético, humilde, grávido de fé e de esperança na humanidade e nas suas possibilidades de libertação e democratização.

3 Na Educação, a categoria “mulher” é o sujeito e “esperançar” é o verbo

Na Educação, vivemos ainda o reflexo de uma cultura patrimonial, patriarcal e machista ao destacarmos que o magistério, apesar de ser composto em sua maioria de mulheres trabalhadoras, invisibiliza-as, como o fato de que dificilmente se vê o nome de uma mulher estampado entre grandes expoentes da Educação. Afinal, o duro caminho e as conquistas da mulher na sociedade têm apenas seis décadas comparados à idade da humanidade, e a mulher continua invisível mesmo quando é a principal protagonista. Cabe ressaltar que a desigualdade de gênero afeta não apenas as mulheres, mas também toda a sociedade, que perde por ser refém de um sistema escolar produtor e reprodutor de desigualdades e injustiças.

Vale destacar que, quanto à sua obra, Paulo Freire foi, pelo menos duas vezes, questionado por mulheres sobre a opressão do gênero feminino. O primeiro caso foi entre 1970 e 1971, logo após o lançamento do livro Pedagogia do oprimido (1986) nos EUA, quando Freire recebeu cartas de mulheres norte-americanas, de diferentes estados, questionando o discurso sexista adotado nessa importante obra. Freire relata esse episódio no livro Pedagogia da esperança (1992) e diz ter concordado com a crítica e agradecido.

Pontes-Saraiva e Nascimento (2022) apontaram os conflitos entre as mulheres feministas norte-americanas pelo olhar masculino do mundo e pela linguagem não inclusiva utilizada pelo autor. Freire, com sua capacidade de revisão, reconheceu “a linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação da verdade” (FREIRE, 1992, p. 34; PONTES-SARAIVA; NASCIMENTO, 2022, p. 11).

A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso machista e encarnada em práticas concretas, é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer posição progressista, de mulher ou de homem, pouco importa. A recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo. Por isso mesmo, ao escrever ou falar uma linguagem não mais colonial, eu o faço não para agradar a mulheres ou desagradar a homens, mas para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos malvado de que falei antes. Da mesma forma como não escrevi o livro, que ora revivo, para ser simpático aos oprimidos como indivíduos e como classe e simplesmente fustigar os opressores como indivíduos e como classe também. Escrevi o livro como tarefa política, que entendi dever cumprir

(FREIRE, 1992, p. 35, grifos nossos).

A professora e autora bell hooks (2017, p. 30-31) relatou em seu livro Ensinando a transgredir as indagações e interlocuções a respeito das causas sexistas, racistas e imperialistas. Hooks reconheceu o conteúdo da pedagogia engajada de Freire como vital para ela, como estudante e docente de uma cultura de colonialismo e dominação, de patriarcado capitalista de supremacia branca. Ao conhecê-lo, teve a experiência de “ser tocada pela sua presença” (HOOKS, 2017, p. 31), “uma água viva para mim” (HOOKS, 2017, p. 72), até porque reconheceu como cruciais as questões mencionadas e fez a promessa de revisão posterior: “nesse momento eu realmente tive amor por ele, porque ele exemplificou com atos os princípios de sua obra” (HOOKS, 2017, p. 78), demonstrando uma conexão entre os princípios, a teoria e a prática.

Alguns anos mais tarde, em 1986, participando de um evento público em Piracicaba/SP, Paulo Freire foi novamente questionado pela brasileira Moema L. Viezzer sobre sua visão acerca da questão das relações de dominação e opressão entre homens e mulheres na sociedade. Nessa ocasião, ele respondeu de forma veemente que jamais teria escrito a Pedagogia do oprimido se permitisse oprimir suas filhas, sua mulher ou as mulheres com quem trabalhava. Refletindo hoje sobre o contexto dessas respostas e de seu conteúdo, podemos separar o homem de sua obra, a prática de sua teoria, e perceber o quanto é necessário revisitarmos expoentes e darmos visibilidade às mulheres que ajudaram inclusive na construção pedagógica.

Por outro lado, Andreola (2016) também registra, em seu artigo Paulo Freire e a condição da mulher, que na Suíça um amplo movimento feminista inspirou-se nessa mesma obra para sua luta, sem ver nela uma linguagem machista. Ressalta ainda que Paulo Freire, em suas obras, denuncia toda forma de discriminação e especificamente aquela contra a mulher, estando tal denúncia mais explícita em Pedagogia da esperança (1992), À sombra desta mangueira (1995), Pedagogia da indignação (2000) e Pedagogia dos sonhos possíveis (2015).

4 Metodologia

A partir dessas considerações, intentamos levantar as menções às mulheres da convivência de Paulo Freire nas partes iniciais dos seus livros, como os prefácios ou as introduções, para avaliar o reconhecimento delas realizado na vida e na obra do autor. O prefácio de uma obra, do latim prae (“antes”) e fatio (“ditos”), comumente inicia e vem antes dela, sendo uma oportunidade para o autor indicar a motivação, a contextualização, a descrição, a experiência ou a opinião ligada(s) ao texto. Nas dedicatórias é possível realizar um agradecimento e homenagear ou descrever a participação de uma pessoa.

Paulo Freire escreveu mais de 20 livros sozinho e mais de 13 com participação de outros. A metodologia adotada neste artigo foi a revisão de literatura em livros publicados pelo autor com ou sem coautoria explícita. Há registro de que seus escritos eram bastante modificados a partir de considerações de pessoas próximas, às quais o autor submetia os textos para leitura (GADOTTI, 2011). Foram consultadas as obras encontradas disponíveis on-line. Os prefácios, as dedicatórias e a apresentação de 17 obras do autor foram tabulados e analisados como forma de avaliar o reconhecimento da participação das mulheres da sua família nas obras.

5 Resultados

Paulo Freire (1921-1997), nordestino, teve mãe costureira e bordadeira (BRANDÃO, 2005) e pai policial militar. Foi casado por 42 anos (1944-1986) com sua primeira esposa, a professora Elza Maia Costa de Oliveira Freire, depois conhecida como Elza Freire, até o falecimento dela, aos 65 anos. Teve cinco filhos da primeira união; destes, três eram mulheres. Com o falecimento do pai aos 13 anos, foi concedida a ele uma bolsa em escola particular pelo diretor da época, com cuja filha casou-se, pela segunda vez, a professora e autora Ana Maria Araújo Hasche, conhecida por Anita Freire ou Nita. Ficaram juntos por dez anos (1987-1997), até o falecimento dele.

Foi professor, diretor, consultor e secretário de governo. Com seu sistema que defendia constantemente a ética na busca de um mundo mais amável e justo, passou a ser referência na Educação brasileira e internacional, aproximando os alunos da sua própria realidade pela associação ao cotidiano e ao trabalho.

Neste breve resgate, deparamo-nos, lá no início do seu caminho, em 1963, com Elza Freire, sua primeira esposa, pioneira em Arte-Educação no Brasil. Ela contribuiu de forma significativa na construção e na consolidação de um sistema de aprendizagem para alfabetização de adultos e na conservação do método, chamado no livro de Carlos Rodrigues Brandão de “Método Paulo Freire”, mundialmente conhecido e que para nós, mulheres educadoras, passa a ter um significado ainda maior.

Machado (2017) destaca que a sociedade patriarcal brasileira da época inferiorizava e silenciava o conhecimento das mulheres e o casamento acabava tornando-se a forma encontrada para manter as mulheres altamente produtivas com o cuidado da casa, dos filhos e filhas e do marido. Elas ainda ajudavam o marido no seu trabalho sem que seu nome recebesse crédito. Isso aconteceu não apenas com Elza como também com outras mulheres, como Sophia Tolstói, Anna Madgalena, que, ajudantes dos maridos, escritor Leon Tolstói, compositor Joahnn Sebastian Bach, fizeram história, “porque muitas vezes os grandes homens aparecem no mundo, na mídia e as suas esposas ficam na penumbra” (COSTA FREIRE, 2005 apudSPIGOLON, 2009, p. 157). Inclusive, Nima Spigolon (2009) denominou de Pedagogia da Convivência o processo por meio da qual Elza influenciou e contribuiu para a construção das teorias e práticas freirianas, ao ser participante desse processo histórico.

A tônica de Paulo Freire era uma práxis libertadora, que incluía os excluídos e principalmente os pobres e os camponeses por meio do desenvolvimento da consciência e da ação crítica da realidade, postura com potencial poder transformador e reivindicativo. É válido destacar que a maior parte das suas obras foi produzida no período da primeira união. Surpreendentemente, Paulo Freire faz referência às esposas com relativa frequência. Muitos trabalhos biográficos narram a presença e a participação de Elza para Paulo Freire (BRANDÃO, 2005; GADOTTI, 2011; MACHADO, 2017; SPIGOLON, 2009; VALE; JORGE; BENEDETTI, 2005) bem como a de Nita.

A análise das obras foi dividida em duas fases: a primeira aborda a sua primeira união e a segunda considera o período da segunda união. A segunda companheira foi aluna sua, o que permite a reflexão sobre a ascendência dos professores sobre as alunas mulheres e a menor permissividade social para os casos contrários em nossa cultura.

É importante ressaltar que as menções em dedicatórias, prefácios ou entrevistas não necessariamente possibilitam dimensionar o real trabalho ou reconhecimento da participação da homenageada. Pode significar o apoio a algo específico para a concretização da obra, a lembrança da importância da pessoa na vida ou mesmo na história dos autores, ou a simples existência dessa mulher, mas, de qualquer forma, demonstra um vínculo com a pessoa nomeada.

Foram encontradas 10 obras da primeira fase e sete da segunda fase, sendo analisadas 17 no total. Na primeira fase, das 10 obras, quatro mencionaram as mulheres da família, sendo três menções relacionadas a Elza e uma à filha Cristina. Da segunda fase, das sete obras analisadas, cinco citavam a esposa nas dedicatórias, uma mencionava duas filhas (Madalena e Fátima) e outra fazia referência à filha Cristina. As esposas foram mais lembradas que as filhas, mas, proporcionalmente, é na segunda fase que a homenagem se deu de forma mais frequente, inclusive como realce ao trabalho feito. Entretanto, foi na primeira fase que o reconhecimento relacionado à participação foi mais direto, conforme Tabela 1.

Tabela 1 Divisão das obras por fases de vida de Paulo Freire. 

FASES OBRAS (ANALISADAS) MENÇÕES À ESPOSA MENÇÕES ÀS FILHAS
1ª FASE (1º casamento) 10 03 01
2ª FASE (2º casamento) 07 05 02
Total 17 08 03

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Na primeira fase, em sua primeira obra, a tese publicada, além da referência também aos pais e aos filhos, Freire ressaltou o reconhecimento da importância da colaboração de Elza para o trabalho, de modo descritivo:

A ELZA, MINHA MULHER, CUJA COLABORAÇÃO NA FEITURA DESTE TRABALHO FOI INESTIMÁVEL. A MARIA MADALENA, MARIA CRISTINA, MARIA DE FÁTIMA, JOAQUIM E LUTGARDES, MEUS FILHOS

(FREIRE, 1959, p. 6, grifo nosso).

Em sua quarta obra publicada, além do agradecimento “[à]s equipes universitárias e homens simples do povo, os analfabetos” e outros, há a dedicação “à mulher”, ressaltando o seu agradecimento de modo mais geral (FREIRE, 1989a), como segue:

À MEMÓRIA DE JOAQUIM TEMÍSTOCLES FREIRE, MEU PAI. À EDELTRUDES NEVES FREIRE, MINHA MÃE. COM AMBOS APRENDI, MUITO CEDO, O DIÁLOGO. À MEMÓRIA DE LUTGARDES NEVES, TIO E AMIGO, QUE ME MARCOU PROFUNDAMENTE. A ELZA, MINHA MULHER, A QUEM MUITO DEVO. A MADALENA, CRISTINA, FÁTIMA, JOAQUIM E LUTGARDES, MEUS FILHOS, A QUEM MUITO QUERO. COM ELES, CONTINUO O DIÁLOGO QUE APRENDI COM MEUS PAIS

(FREIRE, 1989a, p. 31, grifos nossos).

Em entrevista com um dos filhos de Elza e Paulo, Lutgardes, este descreveu o apoio da mãe e a contribuição dela na alfabetização das pessoas junto com Freire, como professora de magistério e diretora de uma escola do Recife (GÓMEZ, 2018), bem como o apoio das mulheres da família. Relatou o cuidado com o pai na prisão, as dificuldades de fuga durante esse período, a religiosidade e o exílio para o Chile. Reconheceu também tanto o machismo na cultura quanto a força das mulheres nordestinas. Anos mais tarde, apesar da dedicatória a um educador referência para ele, Freire fez o relato na introdução sobre a experiência do exílio: “Elza e eu no Chile, aprender para ensinando continuar a aprender” (FREIRE, 1977, p. 12, grifo nosso).

Já a filha Fátima Freire definiu a influência da mãe em “dez trilhões de vezes mais” (MENDONÇA, 2019, p. 4). Ressaltou a influência da relação de mãe-filha, elogiando a mãe e descrevendo-a como uma brilhante educadora e uma excelente diretora pedagógica de escola pública. “Eu convivi com essa realidade com ela, porque ela me levava. E eu adorava aquela escola dela, adorava ver ela atuando. Então, nesse sentido, a influência foi muito mais da minha mãe do que do meu pai” (MENDONÇA, 2019, p. 6).

Machado (2017) afirma que o próprio Paulo Freire frequentemente agradecia as contribuições da esposa Elza. Em Pedagogia da Esperança (1992, p. 33), “reconhecimento e de agradecimento póstumo, devo a Elza, na feitura dessa pedagogia”, e continua, “ela sempre foi uma ouvinte atenciosa e crítica, e se tornou minha primeira leitora, igualmente crítica, quando comecei a fase de redação de texto”. Machado (2017) também destaca o testemunho da filha Madalena sobre “a presença da mãe na vida do pai”. Resgatamos esse trecho do estudo sobre as influências teóricas/epistemológicas de Elza:

Elza aprofundou estudos; ampliou atividades; compôs equipes técnicas; fundou instituições; socializou conhecimentos; aliou teoria e técnica; discutiu questões político-pedagógicas sem se isolar do contexto da vida. O compromisso dela com a Educação, sua instrução e formação compreende questões sobre a discussão do ensino público no Brasil, dentro de uma perspectiva crítica e politizada, reflexiva e científica

(SPIGOLON, 2006, p. 22 apudMACHADO, 2017, p. 8-9 grifos nossos).

Em um momento posterior, além do registro na dedicatória “[a]os homens e mulheres que na África e na América Latina estão criando diariamente uma educação popular”, assinada por Antonio Faundez, Freire fez homenagem direta a uma das filhas:

A Irmela Köhler, Helen Mackintosh, Inge Kissinger e Irene Heyartz, de quem não apenas recebi, em momentos diferentes, eficiente colaboração no Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, mas de quem me tornei real amigo. A Cristina Freire Heiniger, por sua fundamental na feitura deste livro

(FREIRE, 1985, p. 5, grifo nosso).

Na segunda fase da sua vida, além do editor, das professoras, das alunas e das amigas, Freire fez agradecimentos à segunda esposa e às duas outras filhas:

Meu muito obrigado a Nita, pela paciência com que me aturou durante os dias mais intensos de redação do texto, mas sobretudo, pelas sugestões temáticas que me fez, apontando um aspecto aqui e outro ali, à luz de sua própria experiência como ex-professora de História da Educação de alguns cursos do Magistério em São Paulo. Finalmente, devo ainda agradecer a Madalena Freire Weffort, a Fátima Freire Dowbor [...]

(FREIRE, 1993, p. 6, grifo nosso).

Freire (1993) registrou a homenagem “A Anita minha mulher” na obra Política e educação: ensaios, e em 1996 fez uma declaração bastante explícita da importância do companheirismo dela: “A Ana Maria, Nita, que me devolveu o gosto do bom viver, quando a vida me parecia tão longe e, quase sem esperança, a olhava!” (FREIRE, 1992, p. 4, grifo nosso).

Em Cartas a Cristina (1994), escreveu sua trajetória respondendo a uma provocação da filha e fez uma menção a ela no título do livro e à esposa na dedicatória: “A ANA MARIA minha mulher não apenas com o meu agradecimento pelas notas, com as quais, pela segunda vez, melhora livro meu, mas também com a minha admiração pela maneira séria e rigorosa com que sempre trabalha” (FREIRE, 1994, p. 10, grifos nossos).

Em outra obra, além de outros homenageados, iniciou com a seguinte frase, indicando a contribuição de Nita em forma de notas:

A ANA MARIA, NITA, MINHA MULHER, COM MEU AGRADECIMENTO, MAIS UMA VEZ, PELAS NOTAS CUIDADOSAMENTE TRABALHADAS E ESCRITAS COM QUE VEM MELHORANDO MEUS LIVROS

(FREIRE, 1995, p. 4, grifos nossos).

Anita Freire foi a companheira que deu continuidade ao legado e à divulgação do acervo. Amiga de infância, conhecedora da história do autor, prefaciou, escreveu, reuniu e publicou várias obras de Paulo Freire. Apesar da referência a homens de modo universal nas primeiras publicações, ele usou muitas vezes a expressão “homens e mulheres”. Em uma delas, destacou a necessidade da superação da fala machista e da linguagem sexista bem como afirmou que mulher não é uma classe social (ANDREOLA, 2016; FREIRE, 1992; GADOTTI, 2011).

Há ainda em Freire (1989a) o uso do masculino universal no prólogo ou na apresentação do trabalho em “idealizadores e organizadores”, em referência a uma comunicação oral, mas logo em seguida, na introdução, há uma afirmativa no feminino, em alusão às mulheres que idealizaram e organizaram o encontro, mais acertado possivelmente pela maioria de mulheres entre o público docente. Isso demonstra avaliação das desigualdades e certa sensibilidade no mundo organizado de modo patriarcal. Freire apontou que a sociedade brasileira é autoritária, racista e machista e passou a prestar atenção na universalidade das opressões (ANDREOLA, 2016).

Merece reconhecimento todo o conjunto de ideias, a criticidade do autor bem como a sua originalidade e a sua capacidade de expressão e projeção. Foi analisada a participação das mulheres de sua vida contempladas nas dedicatórias, se existiam nas obras, incluídas pelo autor. O reconhecimento do autor é medido pela disseminação das obras, dos prêmios e dos títulos, mas falta o reconhecimento público do trabalho direto e indireto das mulheres cocriadoras, coautoras, o que almejamos agora neste texto. Apesar do pouco material disponível, diversas obras e autores biografaram a parceria de Elza (ARRIADA; NOGUEIRA; ZASSO, 2017; GADOTTI, 2011; GÓMEZ, 2018; SPIGOLON, 2009; VALE; JORGE; BENEDETTI, 2005).

No resgate da sua trajetória, Elza já era professora e foi diretora antes de se casar nos anos 1940. Precursora da Arte-Educação e da formação de professores em Recife, o encontro com o companheiro deu-se pela indicação e pelas aulas de gramática. Ela tinha cinco anos a mais, melhor nível socioeconômico e teve influência na carreira do educador. O casal pensou, executou, teorizou e fundamentou: “fizemos juntos, Paulo e eu, o trabalho de alfabetização. Fiquei com a parte metodológica, com a elaboração da coisa” (FREIRE, 1980, p. 203; SPIGOLON, 2009, p. 175, grifos nossos); “com a efetiva colaboração de Elza, minha primeira mulher” (FREIRE; HORTON, 2003 apudSPIGOLON, 2009, p. 175, grifo nosso); e “Elza ia a todas as partes comigo e me observava trabalhar. Depois me corrigia ou chamava a minha atenção sugerindo como eu poderia melhorar certas coisas” (FREIRE; HORTON, 2003 apudSPIGOLON, 2009, p. 178, grifos nossos).

Sua coautoria foi evidenciada nas biografias e nos manuscritos, na experimentação inicial e na formação em Angicos, porém no lugar de coadjuvante e não no de protagonista (SPIGOLON, 2009). Teve o reconhecimento do companheiro, de amigos e de familiares, mas pouco do público. Sempre trabalhou junto, acompanhou e apoiou com feijoadas para o período de prisão (SPIGOLON, 2009; DOWBOW, 1980), no exílio voluntário a cinco anos da aposentadoria, com atribuições da profissão, bem como no cuidado dos cinco filhos e da casa. Recebia alunos e visitas com a famosa galinha cabidela de Elza. Foi existência de muito trabalho envolvido (ARRIADA; NOGUEIRA; ZASSO, 2017).

Segundo o filho Lutgardes, a mãe “foi uma intensa batalhadora dos direitos humanos, da igualdade entre os povos, da igualdade de raça” (FREIRE, 2007 apudSPIGOLON, 2009, p. 199), “é difícil falar em Paulo Freire, sem falar em Elza Freire, ela foi uma grande pensadora, uma grande educadora” (FREIRE, 2005apudSPIGOLON, 2009, p. 157). Para ele,

O Método Paulo Freire nasceu de ambos. Inicialmente com uma forte contribuição de Elza. Ela tinha experiência em educação, principalmente com crianças. Foi professora primária no Recife e mais tarde diretora de escola. Foi ela que convenceu Paulo a seguir a carreira de educador

(FREIRE, 2007 apudSPIGOLON, 2009, p. 175, grifo nosso).

É interessante observar que as duas companheiras conhecidas de Paulo Freire foram nordestinas como ele, da mesma cidade. A primeira foi companheira por 24 anos e a segunda por 9 anos (quando ele já era viúvo há dois anos), sendo a última sua conhecida de infância e sua aluna orientanda de Mestrado. As duas esposas tiveram reconhecimento como importantes em sua carreira. Na ocasião do recebimento do título de Doutor Honoris Causa na PUC de São Paulo, fez uma dedicatória casada: “à memória de uma e à vida da outra” (SAMPSON, 2021).

Um selo foi criado na comemoração do centenário de Paulo Freire e dos 105 anos de Elza Freire para representar o “reencontro”, os pensamentos e as práxis na concepção de um mundo menos desigual e de uma Educação libertadora; um símbolo de reconhecimento (CNTE, 2021). Nita ainda vive e é guardiã dos escritos e promotora da memória de Paulo. Por outro lado, Pontes-Saraiva e Nascimento (2022) indicaram que, apesar do discurso por uma Educação de emancipação e fortalecimento de lutas populares, ainda há o predomínio masculino no campo da Educação popular e a desvalorização da produção de conhecimento das mulheres.

É importante o esforço de Paulo Freire na superação da fala machista nas suas posições e produções (ANDREOLA, 2016; GADOTTI, 2011) e o reconhecimento das mulheres da vida do autor, que o acompanharam em momentos distintos, tanto em vida como no pós-vida. Na tradição e na idealização das estruturas familiares das sociedades ocidentais, a segunda esposa nem sempre alcança um lugar de reconhecimento, entretanto ambas se colocaram na posição de cuidado, tanto dos filhos e da família como da vida, vide o acompanhamento de Elza ao exílio e a publicação da biografia e dos escritos póstumos feita por Anita.

De Elza, há relato da significativa contribuição na constituição da obra também como sua e da presença diária na discussão dessas experiências. Da filha Fátima, há o impacto de ter um pai de projeção e reconhecimento internacionais e da vivência do exílio, considerando as dificuldades em terras distantes (DOWBOR, 1980). De Anita, historiadora, há a colaboração nas notas de várias obras, na promoção delas e na sua continuidade (ANDREOLA, 2016; ARRIADA; NOGUEIRA; ZASSO, 2017; GADOTTI, 2011). Não foram localizadas biografias sobre essas mulheres em arquivos públicos ou institutos, e o esforço do reconhecimento faz-se no resgate de algumas poucas mulheres, por determinadas profissionais, o que aponta uma estrutura invisibilizante das suas presenças nas obras, também comum em outros campos.

Considerações finais

As seis décadas que compreendem a produção e o pensamento de Freire coincidem com o ressurgimento do movimento feminista bem como de todas as formas de afirmação da condição da mulher na luta pela igualdade de direitos e oportunidades. Isso explica como os agradecimentos podem ser compreendidos como reconhecimento das mulheres da sua família à sua importante obra.

Para Freire (1982; 1989a), o Brasil foi inventado autoritariamente, de cima para baixo, mas pode ser reinventado. A mudança do paradigma do analfabeto para o alfabetizado já possibilita o vislumbre da potencialidade, em gerúndio, sendo, de continuidade. Para ele, a tradicional Educação, do tipo bancária, consiste em saciar a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade (FREIRE, 1975). A disciplina está direcionada para a ingenuidade e a não criticidade, o silêncio e a ideologia da acomodação, da conformação, da descolonização das mentes, citando outros autores (FREIRE, 1975; 1978). A liderança implica autoridade, e a relação com liberdade deve ser bem pensada (FREIRE, 1989a).

Em suas determinadas proporções e épocas, o legado de Paulo Freire apregoa a liberdade em vez da opressão, a palavra em vez do silêncio. Dejours (2012) defende o reconhecimento do esforço do trabalho para uma nova coletividade como via de saúde mental em forma da expressão, da fala e da escuta, no contexto competitivo não favorável de práticas históricas autoritárias, que mantêm e reproduzem a disciplina crítica – os dois autores subvertendo a ordem imposta, cada um à sua maneira. Paulo Freire foi sensível à causa das mulheres e acatou as observações das professoras para uma visão inclusiva, entretanto a estrutura e a organização sociais ainda não colaboravam para as mudanças e a igualdade de fato.

Reviver os ideais freirianos bem como suscitar a necessidade de devolver o mérito a Elza, Anita, Cristina, Fátima, Madalena e demais educadoras e cidadãs que participaram dessa construção é devolver o valor e a relevância a essas mulheres e somá-las aos esforços de visibilizar o trabalho do cuidado, do companheirismo, de parceria conjunta na elaboração e na manutenção do trabalho, atribuindo importância à sua presença e ao seu reconhecimento, estendendo essas observações a todas as participações das mulheres na construção da sociedade para a construção de um novo mundo.

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Recebido: 30 de Junho de 2022; Aceito: 31 de Agosto de 2022

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