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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 08-Abr-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022047 

DOSSIÊ: ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA EM PAULO FREIRE

Educação do campo como movimento educacional e modalidade educativa: notas a partir de Paulo Freire

Emerson Augusto de Medeiros1 

Ivan Fortunato2 

Osmar Hélio Alves Araújo3 

1Doutor em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (DCH/UFERSA), Brasil. É membro dos Grupos de Pesquisa “Educação, Memórias, (Auto) Biografia e Inclusão” da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (GEPEMABI/UERN), “Educação, Discursos e Sociedade” (GEPEDS/UFERSA) e “Laboratório de práticas, estudos e pesquisas em formação de professores – Universidade e Escolas de Educação Básica (Laconex@o/UFPB)”.

2Doutor em Desenvolvimento Humano e Tecnologias e Doutor em Geografia, ambos pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro. Professor em regime de dedicação exclusiva do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus Itapetininga. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar, campus Sorocaba.

3Doutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor Adjunto do Departamento de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. É Líder do Grupo de Pesquisa “Laboratório de práticas, estudos e pesquisas em formação de professores – Universidade e Escolas de Educação Básica (Laconex@o/UFPB)”.


Resumo

Este ensaio ergue reflexões sobre a Educação do Campo tendo como arcabouço teórico principal o pensamento de Paulo Freire. Textualiza considerações que demarcam a Educação do Campo, nas dimensões histórica e conceitual, no Brasil a partir de dois enfoques, quais sejam: (i) como movimento educacional (o Movimento de Educação do Campo), protagonizado por diferentes organizações e movimentos sociais do campo; e (ii) como modalidade educativa, com características específicas, a exemplo de uma Educação, a nível de Estado, construída com a participação ativa dos sujeitos do campo. Entende-se que, de maneira geral, o pensamento de Paulo Freire se fez como parte constituinte de sua materialização. No texto, discorre-se sobre o diálogo, a conscientização, a contextualização e a formação humana como princípios da obra freiriana que inspiram o plano teórico-prático a Educação do Campo, seja na escola ou fora dela.

Palavras-chave Educação do Campo; Paulo Freire; Movimento Educacional; Escola do Campo

Abstract

This essay raises reflections on rural education having as its main theoretical framework the thought of Paulo Freire. It texts considerations that demarcate rural education, in the historical and conceptual dimensions, in Brazil from two approaches, namely: (i.) rural education can be conceived as an educational movement (the Rural Education Movement), carried out by different organizations and movements rural social areas, and (ii.) as an educational modality, with specific characteristics, such as education at the State level, built with the active participation of rural subjects. It is understood that, in general, Paulo Freire's thought was made as a constituent part of its materialization. In the text, dialogue, awareness, contextualization and human formation are discussed as principles of Freire's work that inspire, on a theoretical-practical level, rural education, whether at school or outside it.

Keywords Field Education; Paulo Freire; Educational Movement; Field School

Um adendo, como introdução

“A escola no meio rural [na história] é a escola que gorou. É a escola que ‘cabeu’. É a escola que não vingou”.

(Paulo Roberto Silva, educador popular do campo, 2016)

A epígrafe que abre este escrito ensaístico foi declamada em uma roda de diálogos com educadores e educadoras do campo, no Seminário Estadual da Política de Educação do Campo, no ano de 2016, no estado do Ceará. Nela, denota-se uma característica que historicamente se presenciou na Educação promovida pelo Estado para as populações do campo: a Educação no campo (e a escola no campo) se fez ao longo do tempo com um “anexo” da Educação projetada para os espaços urbanos. Pensada a partir de um “pacote educacional” pronto, englobando o currículo escolar, os professores, os materiais didático-pedagógicos, para citar alguns, a Educação no meio rural se desenvolveu tendo como referência e premissa o “modelo educativo” urbano.

Nas escolas no campo espalhadas pelo Brasil afora tornou-se evidente a “escolinha cai não cai4, com professores (em algumas realidades) que vivenciaram não mais que o Ensino Médio. Isso sem falar das péssimas condições de infraestrutura, quase sempre circunscrita na beira da estrada, com a escola ofertando somente os Anos Iniciais do Ensino Fundamental e sendo ameaçada de fechamento a cada início de ano letivo. Essa escolinha se perpetuou no decurso do tempo e ainda persiste como simbolização do descaso e omissão do Estado frente à escolarização dos povos do campo.

Advogando outra perspectiva de escola e, sobretudo, de Educação, em meados da década de 1990 frentes sociais organizadas, como os movimentos sociais do campo, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), demarcaram a necessidade urgente de pensar a Educação nos espaços campesinos por outras lentes, validando o campo e seus sujeitos como centrais nos processos educativos. Nesse sentido, emergiu de maneira enfática um conjunto de ações que culminou no que concebemos no momento (ano de 2022) como a Educação do Campo.

Neste texto, concebemos a Educação do Campo a partir de dois enfoques, os quais se sobressaem, de maneira soberana, na literatura educacional construída nos últimos anos no país por pesquisadores nacionais, os quais têm se dedicado a somar ao debate. O primeiro deles concebe a Educação do Campo como um movimento nacional de educação (o Movimento de Educação do Campo) protagonizado por diferentes sujeitos e movimentos sociais do campo. Tal movimento contribuiu de modo fundamental na luta e na concretização de políticas educacionais e dispositivos legais para a Educação do Campo. Dentre elas, lembramos o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) bem como as Licenciaturas em Educação do Campo, cursos regulares de formação de professores para os Anos Finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio.

O segundo enfoque demarca a Educação do Campo como uma modalidade educativa brasileira com princípios pedagógicos próprios, oriundos das experiências desenvolvidas com educadores e educadoras (populares) do campo, acumuladas na história com a escolarização das populações campesinas.

Na condição de pesquisadores da área de Educação, sensibilizados e motivados para contribuir com o debate, pretendemos com este escrito ensaístico erguer um diálogo acerca da Educação do Campo associada às ideias de Paulo Freire. Por nossa experiência na docência e na pesquisa em cursos de Graduação e Pós-Graduação, alinhados ao pensamento de Paulo Freire e no âmbito da Educação do Campo, entendemos que no cenário nacional a discussão sobre a Educação do Campo não se faz apartada das ideias do célebre educador pernambucano. Aliás, discussão alguma sobre Educação poderia prescindir dos ideais freirianos de esperançar por um mundo melhor.

Na sua dimensão ontológica, a Educação do Campo, como movimento educacional e modalidade educativa, se funde em princípios oriundos da obra freiriana. Para esse momento, nos centralizamos na perspectiva de dialogarmos sobre a Educação do Campo com base em alguns princípios básicos que firmam sua materialização, quais sejam: diálogo, conscientização, contextualização e formação humana.

Traçada esta breve introdução, organizamos o restante do texto em mais duas seções e considerações finais. Na primeira, debatemos a respeito da história da Educação do Campo no Brasil, realçando-a conceitualmente como movimento educacional (e social) bem como modalidade educativa. Na segunda, traçamos algumas notas sobre princípios da Educação do Campo que se firmam com base no pensamento e nas ideias de Paulo Freire. Nas considerações finais, sucintamente, reforçamos que a Educação do Campo, quer construída nas escolas ou fora das instituições formais de ensino, tem como premissa básica uma Educação transformadora e de resistência ao status quo; portanto, alinhada ao diálogo, à conscientização, à contextualização e à formação humana.

Ao final, desejamos destacar a fundamental importância da Educação do Campo como lugar de formação humana contextualizada e coerente com seus princípios, além de realçar a relevância de Paulo Freire no enfrentamento das políticas educacionais que almejam ceder algumas escolinhas para as populações do campo.

Primeiras notas – educação do campo: história e conceito(s)

Na literatura educacional brasileira é comum encontrarmos, particularmente desde o final do século passado, as expressões “Educação do Campo”, “Educação no campo”, “Educação para o campo” e “Educação rural” (MEDEIROS, 2019). Apesar de serem termos que, do ponto de vista da linguagem, se aproximam na sua essência e materialidade, eles também se distanciam. A Educação do Campo, tal como a concebemos no momento atual (ano de 2022), nasceu no bojo das lutas dos movimentos e das organizações sociais do campo no pleito pela terra e pela reforma agrária. Seu berçário se fez no âmago dos movimentos sociais do campo que afirmaram a necessidade de um projeto social que rompesse os efeitos da lógica mercantil e capitalista existente na sociedade civil de maneira geral (CALDART, 2005; MUNARIM, 2008). Nesse contexto, a Educação das populações campesinas foi demarcada também como direito social indispensável ao crescimento do campo e de seus povos.

Ela emergiu, de forma sistematizada como movimento educacional, no ano de 1997, quando realizado o I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA), no mês de julho, na Universidade de Brasília (UnB). Na ocasião, enfatizou-se que a Educação das populações rurais foi encaminhada pelo Estado brasileiro, historicamente, como acessório marginal no contexto educacional. No I ENERA lançou-se o “Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro”, demarcando sua organização, na condição de movimento educacional5 (sendo também social) que se constituiria a partir de princípios políticos, pedagógicos, axiológicos, epistemológicos, entre outros. Nos termos de Munarim (2008, p. 60),

O manifesto do Iº ENERA, acima referido, de certa forma, sintetiza os elementos fundantes do Movimento de Educação do Campo. Em primeiro lugar, evidencia a existência de um sujeito coletivo [o movimento educacional] forte, ente social munido de propósitos, capaz do exercício da autonomia política e portador de consciência dos direitos. [...] Isso parece elementar, mas deixa de ser elementar se observarmos que os povos do campo no Brasil, em regra, têm significado ou têm sido considerados contingentes de indivíduos ou de massa humana de subalternos mantidos sob o tacão da bota de coronéis de plantão, ou, em hipótese não muito melhor, tem significado massas de manobra de grupos pretensamente libertários, seja em nome de uma doutrina religiosa, seja em nome de uma doutrina política.

Os signatários do movimento de Educação do Campo, a partir do I ENERA, afirmaram-se como sujeitos organizados na luta por uma Educação que fosse desenvolvida com a participação ativa dos diferentes grupos sociais e coletivos organizados que vivem no campo. No evento, como fruto da intenção de levar adiante as postulações erguidas no momento e ampliar a força coletiva do movimento, nasceu a ideia da “I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo”. Assim, em julho do ano de 1998, de maneira expandida acerca da inclusão de outros movimentos sociais do campo que não participaram do I ENERA, a referida conferência se sucedeu no município de Luziânia, estado de Goiás (GO). Da referida conferência surgiu a “Articulação Nacional por uma Educação Básica do Campo”, sediada em Brasília, Distrito Federal, importante instância organizativa das pautas da Educação do Campo que foram empreendidas posteriormente.

Vale lembrar que, ainda como consequência dos diálogos do I ENERA, nasceu, no ano de 1998, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária6 (PRONERA), que culminou no desenvolvimento, no seleiro nacional, de projetos de cursos de formação de professores da Educação do Campo. Dentre eles, mencionamos o projeto Pedagogia da Terra, que teve suas ações principiadas na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), sendo expandido posteriormente para todo o país, chegando em 37 universidades públicas do Brasil, considerando o período de 1998 a 2011, quando houve a conclusão do projeto (MEDEIROS; FERREIRA; AGUIAR, 2018). Além disso, salientamos a oferta de cursos de Educação de Jovens e Adultos também como implicação do PRONERA no âmbito nacional.

Retomando a digressão histórica arrolada em revista, lembramos que a “Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo” foi fundamental para que no ano de 2002 fossem publicadas, por meio da Resolução CNE/CEB nº 1, de 03 de abril, as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Esse dispositivo legal legitima o primeiro documento normativo no país orientador dos currículos das escolas do campo.

Dessa maneira, temos no âmbito nacional os passos iniciais concretos e institucionalizados a respeito da Educação do Campo. Independentemente de a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, realçar, em seu art. 28, a especificidade da Educação nos espaços rurais em termos de organização do trabalho pedagógico-curricular e do calendário escolar, as diretrizes operacionais foram essenciais (e necessárias) na afirmação da Educação do Campo com características próprias. Na nossa opinião, elas circunscrevem a Educação do Campo não somente como movimento educacional, mas, sobretudo, como modalidade educativa própria.

No referido dispositivo legal, tratam-se de procedimentos que visam “adequar” as escolas do campo a um projeto educativo desenvolvido com os sujeitos do campo. Dentre as importantes sinalizações para a Educação do Campo, salienta-se o que se entende por escola do campo, validando sua identidade. Vejamos seu art. 2º, parágrafo único:

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.

(BRASIL, 2002)

Seguindo a história da Educação do Campo, temos a II Conferência Nacional por uma Educação do Campo, ocorrida no ano de 2004, também em Luziânia-GO. Algo que é perceptível desde o título da referida conferência é que houve a tentativa e o pleito de expandir, desde o evento nacional, o raio de efetivação e luta pela Educação do Campo. Identificamos que o termo “Educação Básica” não se encontra em destaque no título da conferência, tal como ocorreu no ano de 2002. Os sujeitos do campo, representados especialmente pela Articulação Nacional de Educação do Campo7, conceberam que a Educação para as populações rurais não poderia se delimitar aos estudos elementares escolares. Era necessário ir além, defender a escolarização dos povos do campo desde a Educação Infantil até o Ensino Superior.

Outra questão, pensada antes e durante o evento, condiz ao aspecto de que a Educação do Campo também ocorre em outros espaços que não correspondem exclusivamente às escolas. Esse aspecto pesou, haja vista que, até então, muitas experiências educativas que deram tinta à luta pela Educação do Campo no Brasil eram advindas de experiências de Educação em espaços não formais de ensino, como nos centros comunitários, nas associações rurais, nas cooperativas, entre outros. Isso quer dizer que a Educação do Campo nasceu também do acúmulo de vivências da Educação popular em ambientes não escolares.

Situamos, neste momento do texto, que, no cenário político, o contexto da Educação do Campo se encontrava no ano de 2004 muito favorável, conforme alerta Munarim (2008), haja vista que se tinha como representação estatal, a nível nacional, um governo de esquerda, voltado à edificação de uma sociedade mais igualitária, mormente com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Isso favoreceu, somando-se à luta construída pelos movimentos sociais do campo (com os educadores e as educadoras do campo), a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), para, dentre outras atribuições, promover, a nível nacional, a Educação do Campo. Nesse interim, foi criada a Coordenação Geral de Educação do Campo, cujo primeiro coordenador foi empossado na função no instante da II Conferência Nacional de Educação do Campo.

A partir daí emergem novas experiências nacionais e institucionalizadas de Educação do Campo. Segundo demarcamos no início deste escrito, tivemos o desenvolvimento do primeiro curso regular de formação inicial de professores: a Licenciatura em Educação do Campo, curso criado no ano de 200, por meio do grupo de trabalho de Educação do Campo, vinculado à SECADI/MEC. A princípio, a referida licenciatura emergiu por meio de projetos-piloto em quatro universidades que já detinham experiências com a formação (especialmente a continuada) de professores da Educação do Campo, são elas: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade de Brasília (UnB).

Nos anos posteriores (2008 e 2009), o Ministério da Educação, por meio também da SECADI, criou o programa específico de apoio à formação superior em Licenciatura em Educação do Campo, o PROCAMPO, o qual lançou editais específicos, possibilitando que as instituições públicas de Ensino Superior pudessem ofertar turmas pontuais de Licenciatura em Educação do Campo. Assim, universidades estaduais e federais participaram do certame e conseguiram a oferta de turmas únicas.

No entanto, fruto da luta do Movimento de Educação do Campo, no ano de 2012, publicou-se o edital SESU/SETEC/SECADI/MEC nº 02, de 31 de agosto, que visou à oferta de cursos regulares por todo o país. A partir desse edital, criaram-se 46 Licenciaturas em Educação do Campo como cursos permanentes nas Instituições Federais de Educação Superior, incluindo universidades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, em 18 estados brasileiros8 (MEDEIROS; DIAS; THERRIEN, 2021). Essas licenciaturas representam, nos termos de Molina (2017), um importante avanço da Educação do Campo na agenda educacional no país, uma vez que ampliam a visibilidade dos sujeitos do campo na Educação Superior, contribuindo para modificar culturas organizacionais cristalizadas nas universidades brasileiras, estreitando os laços entre os movimentos sociais e o Ensino Superior. Não obstante, vimos que sua contribuição também se fez no sentido de evidenciar a força que o movimento educacional (Movimento de Educação do Campo) pôde alcançar no âmbito social e, sobretudo, educativo.

Ainda no ano de 2010 foi publicado o Decreto Lei nº 7.352, de 04 de novembro, que dispôs sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Tal como as diretrizes operacionais homologadas em 2002, esse dispositivo legal, mais do que nunca, afirma a Educação do Campo como modalidade educativa9, a qual não se situa apenas na dimensão da escolarização básica. Ela se estende da Educação Básica à Superior. No documento normativo se textualiza, oficialmente, a obrigatoriedade do Estado no que toca a assegurar a Educação às populações do campo. Observemos o seu art. 4, quando se refere ao dever do Estado na oferta da Educação do Campo às populações campesinas:

I – oferta da educação infantil como primeira etapa da educação básica em creches e pré-escolas do campo, promovendo o desenvolvimento integral de crianças de zero a cinco anos de idade;

II – oferta da educação básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos, com qualificação social e profissional, articulada à promoção do desenvolvimento sustentável do campo;

III – acesso à educação profissional e tecnológica, integrada, concomitante ou sucessiva ao ensino médio, com perfis adequados às características socioeconômicas das regiões onde será ofertada;

IV – acesso à educação superior, com prioridade para a formação de professores do campo;

V – construção, reforma, adequação e ampliação de escolas do campo, de acordo com critérios de sustentabilidade e acessibilidade, respeitando as diversidades regionais, as características das distintas faixas etárias e as necessidades do processo educativo;

VI – formação inicial e continuada específica de professores que atendam às necessidades de funcionamento da escola do campo;

VII – formação específica de gestores e profissionais da educação que atendam às necessidades de funcionamento da escola do campo;

VIII – produção de recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários que atendam às especificidades formativas das populações do campo;

e IX – oferta de transporte escolar, respeitando as especificidades geográficas, culturais e sociais, bem como os limites de idade e etapas escolares.

(BRASIL, 2010)

Na nossa percepção, o referido decreto se apresenta também como o principal expoente legal que demarca e sintetiza a Educação do Campo como modalidade educativa brasileira. Com base nele, tivemos, por meio da Portaria nº 86, de 01 de fevereiro de 2013, via Ministério da Educação, a instituição do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), que se consistiu em um conjunto articulado de ações de apoio aos sistemas de ensino para a implementação da política de Educação do Campo no país (BRASIL, 2013; SANTOS, 2017).

Organizado em quatro eixos (I – Gestão e Práticas Pedagógicas; II – Formação Inicial e Continuada de Professores; III – Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional; e IV – Infraestrutura Física e Tecnológica), o PRONACAMPO assegurou, pelo menos a princípio, que a materialização da Educação do Campo como modalidade educativa se fizesse organicamente articulada aos povos do campo e suas representações. Outras ações, programas e projetos educativos nasceram do PRONACAMPO, como os programas “Escola da Terra”, “Saberes da Terra” e “Projovem – Campo”, destinados aos jovens camponeses, professores e professoras do campo, entre outros, sendo desenvolvidos com a participação efetiva, em momentos, das representações dos povos do campo (SANTOS; SILVA, 2016).

Contudo, os avanços pararam e os direitos conquistados têm recrudescido em razão das circunstâncias políticas que assolaram o país nos últimos anos, especialmente a partir do golpe político de 2016, com a derrubada da ex-presidente Dilma Rousseff, de maneira infundada e ideologicamente projetada. Identificamos que a necessidade de luta pela Educação do Campo, quer na condição de movimento educacional, quer na condição de modalidade educativa, se agudizou. Estamos vendo o acentuado fechamento das escolas de Educação Básica no campo. Além disso, os difíceis avanços da Educação do Campo conquistados sob “duras batalhas” estão sendo gradativamente ceifados, a exemplo dos cortes no Ensino Superior, os quais atingiram, de maneira direta, as Licenciaturas em Educação do Campo a partir de 2017, implicando a organização metodológica dos cursos que se desenvolvem com a pedagogia da alternância.

Em linhas conclusivas, entendemos que, sendo um movimento educacional, a Educação do Campo se organiza com seus sujeitos e suas representações. Uma prova da sua organização atual, no ano de 2022, condiz com o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), que conta com representantes dos movimentos sociais do campo – entre os principais estão o MST, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MBA), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), entre outros – bem como educadores e educadoras de escolas de Educação Básica e de Instituições de Ensino Superior públicas brasileiras. Na condição de modalidade educativa, tem reforçado uma Educação que resguarde a identidade campesina como elemento norteador de sua prática, o que requer a perene presença do diálogo, da conscientização, da contextualização e da formação humana como princípios dos processos educativos na escola e em diferentes espaços não escolares.

As próximas notas continuam o debate, almejando promover um diálogo alinhado ao pensamento de Paulo Freire.

Segundas notas – a educação do campo a partir de Paulo Freire

[...] ao analisar os referenciais teóricos utilizados pelas dissertações e teses mapeadas [sobre Educação do Campo], notamos que existem alguns autores em comum. O autor mais citado foi Paulo Freire, principalmente por causa de seus ideais de educação como prática de liberdade e autonomia.

(FORTUNATO; LANFRANCO, 2021, p. 252)

Após nosso esforço de síntese em debater a história da Educação do Campo alinhada aos seus conceitos centrais (Educação do Campo como movimento educacional e modalidade educativa), é relevante seguir com a discussão como meio de cumprir com o propósito deste texto ensaístico, ampliando as reflexões à luz de Paulo Freire. Como vimos na frase citada acima, retirada de um levantamento sistemático que relacionava Educação do Campo com ensino de Física, o autor mais citado nas pesquisas inventariadas foi Paulo Freire. Isso, porque, quando passamos em vista as “duras lutas” históricas da Educação do Campo, não há como esquecer nosso patrono da Educação e suas lutas históricas para transformar as realidades dos oprimidos (pobres, mulheres, negros, trabalhadores braçais, etc.) por meio da sua militância educativa.

Aliás, Caldart (2005), em texto apresentado na II Conferência Nacional de Educação do Campo, cita que, desde o seu princípio, a Educação do Campo tem se sustentado, na dimensão epistemológica (o que reflete e alimenta sua prática), nas ideias do educador pernambucano, brasileiro, global. Segundo a autora, a Educação do Campo, no plano teórico-prático, se funde a partir da junção de três arcabouços pedagógicos que perpassam o pensamento educacional de base freiriana.

O primeiro se refere à Pedagogia Socialista, entendida pela óptica de não separar a Educação das questões do trabalho, dispositivo sine qua non de formação integral humana. O segundo enfoque refere-se à Pedagogia do Movimento, compreendida com base na relação que os sujeitos do campo desenvolvem em coletivo (política e pedagogicamente) com as questões da terra (terra como território, espaço de luta social, contexto de produção de vidas, entre outros). O último enfoque corresponde à Pedagogia do Oprimido, com destaque óbvio à obra de Paulo Freire.

Nas palavras de Caldart (2005), a Educação do Campo talvez possa ser considerada uma das realizações práticas da Pedagogia do Oprimido, na medida em que afirma os camponeses como sujeitos autênticos e legítimos de um projeto emancipatório e, por isso mesmo, educativo. Nesse viés teórico, o diálogo, a conscientização, a contextualização e a formação humana, como elementos basilares das ideias de Paulo Freire, também se tornam princípios fundantes da Educação do Campo. Nos próximos escritos abordaremos esses princípios como parte integrante da Educação a ser promovida com os povos do campo.

O diálogo – expressão da relação horizontal transformadora entre os sujeitos do campo e os espaços escolares e não escolares

Paulo Freire (2005), ao escrever um dos mais importantes registros de sua obra, o livro “Pedagogia do Oprimido”, estabeleceu o diálogo como um dispositivo elementar no desenvolvimento da Educação libertadora. Ora, a Educação do Campo nasceu, segundo já delineado aqui, na e da interação entre diferentes movimentos sociais do campo e entre educadores e educadoras da Educação Básica e do Ensino Superior na luta por uma Educação que transformasse e elevasse a condição do sujeito do campo, oprimido historicamente, para a libertação. Nesse sentido, o diálogo se estabeleceu como princípio elementar em sua constituição.

Ao demarcarmos o diálogo, é importante que entendamos que ele representa, na nossa interpretação, o traço mais íntimo da relação educador-educando, camponês-sociedade, sujeito-mundo. Para Freire (1992; 2005), escutar o outro é condição para estabelecer o diálogo, ou como ele mesmo enfatiza: o diálogo autêntico que atravessa o individualismo e favorece as condições de estabelecer entre os sujeitos uma reciprocidade viva. Exercer o diálogo é apostar no encontro do sujeito com o mundo, é apostar no princípio de desenvolver uma compreensão crítica da realidade sócio-histórica. Ele diz:

O diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. Se, ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens. O diálogo é, pois, uma necessidade existencial.

(FREIRE, 1980, p. 82)

Desde o nascimento da Educação do Campo, percebemos que o diálogo se fez como princípio basilar. Ele esteve presente na organização das barracas de lona – quando ainda as escolas se faziam nos acampamentos e assentamentos rurais à beira da estrada (o que prevalece em muitas realidades brasileiras) –, nos momentos de estratégia de luta por escolas específicas do campo bem como na organização coletiva dos educadores e das educadoras do campo nas escolas comunitárias. Ainda esteve presente quando a mística, traço identitário do povo camponês, selou (e sela) sua memória simbólica nos espaços formais e não formais de ensino. O diálogo é a marca existencial dos sujeitos do campo, seja no âmbito educativo escolar ou no social.

Pontificamos que, ao expressar o diálogo como referência para os processos educativos, na escola ou fora dela, Freire (2005) está preocupado, de modo geral, com a transformação social e compreende o diálogo como meio para o sujeito atingir os objetivos de uma Educação que conduza à emancipação.

Na escola do campo, o diálogo está presente desde a relação com a comunidade, na relação do currículo escolar assentado nas demandas sociais que se exercem em cada contexto, na interação do conteúdo curricular com a prática pedagógica, nos elos entre educador-educando, no ensinar-aprender. Pensar na Educação do Campo é pensar no diálogo. Conforme alerta Arroyo (2015), é inimaginável a escola do campo distante do diálogo com os movimentos sociais do campo e as questões relacionadas à terra, ao desenvolvimento sustentável do campo, às questões agroecológicas, à agricultura familiar, entre outros temas.

Falar sobre a Educação do Campo é falar sobre o diálogo – como marca da sua existencialidade. Ela se faz por meio do diálogo. Os educadores e as educadoras do campo têm na prática dialógica, dento da escola e da sala de aula no campo, a possibilidade de conduzir seus estudantes a níveis gradativos de conscientização e libertação. As escolas do campo, quando construídas com a comunidade social, são expressões reais de que a dimensão dialógica pode ser um caminho para a interação entre escola e comunidade, escola e família, realidade social e Educação. Muitas das conquistas nos espaços rurais pelo Brasil, a exemplo de projetos educativos circunscritos na política educacional, nasceram da relação dialógica iniciada nas reuniões entre a escola e as instâncias organizativas comunitárias no campo.

Por tudo que foi dito anteriormente, o diálogo se constitui como princípio elementar na materialização da Educação do Campo, porque ele é o traço mais íntimo dos sujeitos do campo na sua relação com o mundo, com a terra, com a natureza, com a cultura e com a memória histórica camponesa. Em verdade, o diálogo é uma referência para elevarmos nossos níveis de conscientização (coletiva e individual).

A conscientização – (re)conhecer-se como resistência e compreender a Educação do Campo como resistência

[...] a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica.

(FREIRE, 1980, p. 26)

Não é novidade falar sobre Paulo Freire e conscientização ao mesmo tempo. Conscientizar é, primeiro, conscientizar-se. Isso, porque não é possível explicar ao outro a realidade em que ele ou ela vive, mesmo que tal realidade pareça ser algo bastante óbvio. Não funciona assim, pois não existe essa coisa de realidade óbvia; afinal, por mais concreta que seja determinada circunstância, ela é sempre medida pela subjetividade de quem a vive. Por isso falar em conscientização começa pela conscientização de si.

Com isso, voltamos a Paulo Freire (1980, p. 26) e sua afirmação de que a conscientização é conceito geral e fundamental de suas ideias sobre Educação. Não assume autoria pelo conceito, pois a atribui a um grupo de professores que lhes instigaram a pensar a Educação como “uma aproximação crítica da realidade”. Foi daí que compreendeu que a Educação se torna libertária quando possibilita a tomada de consciência, transformando a ação sobre o mundo em uma ação consciente – a práxis.

O que aprendemos disso é que se torna insuficiente evidenciar, tal como Penha de Paula e Barbosa (2021, p. 2), que “os povos do campo, das águas e das florestas, historicamente, em suas vidas, são marcados por processos de extrema exclusão e de nefastas formas de violências, que estão presentes desde a chegada das caravelas portuguesas”. Mesmo que se apresentem dados, fatos, fotos... ou se esteja no meio dessa exclusão, como aquele que exclui ou aquele que é excluído, tudo isso não garante conscientização. É preciso criar mecanismos de reflexão e, ao refletir, promover meios de intervenção.

Com isso, queremos dizer que demonstrar os avanços e os lamentáveis retrocessos da Educação do Campo na história da Educação brasileira é um princípio de conscientização, mas não o fim. Se nós mesmos, autores deste ensaio, não nos colocarmos como parte desse desafio de garantir a existência das escolas do campo, sem se configurarem como “escolinhas” na forma de “esmolas”, não podemos afirmar que estamos conscientizados da situação. Mas, ao estabelecermos nosso papel de professores formadores como resistência, no sentido de contrariar o status quo, aí sim podemos ufanar certo deslocamento em sentido à conscientização.

Claro que a conscientização não acaba na resistência, pelo contrário, pois resistir como ação é apenas o primeiro passo. É preciso identificar contra o que e de que forma se resiste, pois todas as formas passam então pelo crivo da análise e se tornam outras ações, reconfiguradas, e assim por diante. Eis a práxis.

Isso quer dizer que não basta dizermos “sou contra o capitalismo” ou “sou contra o fechamento de escolas do campo” ou mesmo “sou contra escolinhas”. O que há no capitalismo que se deve batalhar contra? E por que é que as escolas devem se manter abertas? E por que é importante oferecer não apenas uma pequena infraestrutura para se dizer que há um lugar de alfabetização no campo? Essas perguntas, ao se buscar responde-las, vão instigando a práxis. Mas não basta ansiar por uma resposta direta, reta, pronta e acabada. Não funciona assim, pois cada resposta deve instigar novas perguntas e novas reflexões.

E se temos respostas para essas questões, optamos por deixá-las para outros momentos, como que se estivéssemos fazendo um convite para o leitor ir tateando por suas próprias hipóteses. Caso essa instigação sirva de estímulo, então fica o desafio de estimular outras pessoas a fazerem o mesmo. Assim, vamos (nos) conscientizando.

A contextualização – ensinar-aprender, de forma crítica, com a cultura, a história, a realidade sociopolítica e a experiência dos estudantes do campo

Em sua obra, Paulo Freire (2005; 2010) destaca que os processos de ensinar-aprender, concebidos como processos inseparáveis, na escola e fora dela (nos ambientes não formais de educação, por exemplo), devem se apartar da Educação bancária. Essa perspectiva de Educação limita, coisifica e atrofia o sujeito, impedindo-o de se desenvolver humanamente, porque faz com que aceite e considere a realidade como dada e imutável, “coisa simples” que o ser humano apreende mecanicamente, desconsiderando a complexidade do mundo, da vida em sociedade, de cada sujeito.

Freire (2010) propõe uma perspectiva de Educação considerada no âmbito das teorias pedagógicas e no campo curricular como Pedagogia Libertadora. Em contraposição à Educação bancária, essa perspectiva de Educação parte de situações contextuais e problematizadoras do cotidiano dos sujeitos bem como da realidade concreta que desenha a prática social mais ampla. É ela, a prática social, um instrumento-chave nos processos de ensinar-aprender.

Reforçamos que nos espaços rurais, por séculos, predominou a Educação bancária. Em parte da história, ela tinha um objetivo bem traçado, conforme mencionamos em outra seção: preparar a classe trabalhadora para servir de mão de obra ao sistema mercantil capitalista. No entanto, a Pedagogia Libertadora é referência para pensarmos uma Educação contextualizada, que se desenha com assento nos elementos da cultura, tal como Paulo Freire fez na experiência no Município de Angicos, na década de 1960, no Rio Grande do Norte, para alfabetizar 300 homens e mulheres do campo considerando sua dimensão sócio-histórica.

É sabido que Paulo Freire orientou, na experiência registrada anteriormente, que os processos de alfabetização deveriam partir do universo vocabular dos estudantes. Ou seja, com base na dimensão léxica que habitava o meio social e cultural dos alunos, o professor os ensinou a ler o mundo, tomando como eixo da prática educativa o contexto em que viviam. A Educação contextualizada a que nos referimos é uma Educação crítica que vai munindo de consciência social, nos processos de ensinar-aprender, os sujeitos que dela experienciam.

A Educação contextualizada é uma Educação que valida os conteúdos curriculares ensinados na escola em diálogo com as experiências locais das comunidades das quais os estudantes fazem parte. É uma Educação que se alimenta da cultura popular, da história de luta das populações camponesas e dos saberes geracionais que os povos do campo construíram no decurso do tempo.

Quando nos reportamos aos povos do campo, precisamos entender sua diversidade. Os povos do campo, como lembram Arroyo (1999) e Medeiros (2019), são os povos da floresta, os povos dos sertões, os povos ribeirinhos, os caboclos, os remanescentes de quilombos, os povos do mar (povos praieiros), os povos do semiárido, entre outros. Essa diversidade étnico-racial e territorial não pode seguir uma única perspectiva de Educação, com um currículo escolar prescrito, engessado e vivido sob uma única “régua”. Contextualizar é um meio de produzir sentidos na prática educativa nos diferentes ambientes escolares e não escolares. É um meio também, como alude Freire (1980), de quebrar a lógica assimétrica e vertical (de cima para baixo) que o currículo escolar perfaz quando é elaborado por especialistas dos órgãos oficiais do Estado, desconsiderando quem, em verdade, o produz no chão da Educação (professores e estudantes).

Salientamos que, na Educação do Campo, há práticas educativas que já registraram experiências exitosas de ensinar-aprender com base em uma Educação contextualizada. Na Região Nordeste, por exemplo, temos a Educação contextualizada com o semiárido. Os estudos de Reis (2008) e Sousa (2004) registram experiências em escolas do semiárido baiano e piauiense que tomam como eixo para a organização do trabalho pedagógico e a construção do currículo escolar questões locais das comunidades camponesas. No currículo das escolas se inserem temas como a convivência com o semiárido, a violência no campo, as práticas sustentáveis de trabalho no campo, a mulher e a agricultura agroecológica camponesa, por exemplo, os quais são vivenciados ao longo do ano letivo nas instituições. Ao trabalharem os temas, as comunidades participam ativamente da Educação que as escolas promovem. Dessa maneira, (re)significam, nas escolas, as suas culturas, os seus problemas locais e sociais, entre outros, no diálogo contextualizado entre diferentes saberes (escolares e comunitários).

Em texto, ressaltamos que, ao defendermos uma Educação contextualizada com base em Paulo Freire, não estamos advogando uma Educação localista, centrada em si mesma, e acrítica, que descredita as condições de desumanização as quais o sistema capitalista nos impõe de maneira direta e indireta em nosso convívio social. Estamos a favor de uma Educação que preencha a escola e seus protagonistas de sentido.

A formação humana – educar com sensibilidade e alteridade para o convívio social responsável com o mundo

Em publicação anterior, alertamos sobre a ausência de aulas nos processos de escolarização formal que acolhem, verdadeiramente, o ser humano (FORTUNATO; ARAÚJO; MEDEIROS, 2022). Nas escolas, muitas vezes as aulas são apáticas, frias e desmotivantes para estudantes e professores. Entendemos que, em virtude do modo de vida que acometeu a humanidade nas últimas décadas, a prática educativa precisa dar conta dos conteúdos curriculares a qualquer custo. Afinal, na sociedade guiada pelo sistema capitalista mais vale um sujeito com uma cabeça cheia de informações do que um que pensa/age criticamente.

Nas escolas no campo, a presença da Educação apática, fria e desmotivante é evidente nas aulas (MEDEIROS, 2019). Pode-se até dizer que são aulas conduzidas por pedagógicas abstratas, isto é, uma miscelânea de práticas desconexas (as quais, em ocasiões, contribuem para a evasão escolar), baseadas nos materiais pedagógicos-curriculares destoantes dos contextos das comunidades campesinas. Além disso, percebe-se falta de sensibilização e relacionamento com o contexto na organização do trabalho pedagógico das instituições como um todo, citando, à guisa de exemplo, o modo como o calendário escolar é sistematizado sem considerar, em realidade, o período chuvoso que dificulta o acesso à escola.

Além desses aspectos, vimos que, para as escolas no campo, durante muito tempo (persistindo na atualidade) qualquer professor se fez pertinente. Como já foi delineado anteriormente (MEDEIROS, 2019), no contexto rural perdurou a designação de docentes não alinhados politicamente ao Poder Executivo municipal e/ou aqueles recém-concursados que, por não residirem ou votarem no munícipio em que atuam, são destinados a ensinar na escola do perímetro rural como uma forma de punição. Tudo isso implica uma realidade educacional que fere o direito a uma Educação humana para as pessoas do campo.

Com arrimo em Paulo Freire, pensamos em uma Educação do Campo que atente para a formação humana de seus estudantes. Dessa maneira, demarcamos uma Educação guiada por práticas educativas que agucem a sensibilidade e exercitem a alteridade para o convívio responsável dos povos do campo com o mundo, o que requer atenção para a dimensão socioambiental, os modos de produção de trabalho sustentável com a terra, a relação sujeito-camponês e a sua existência com o mundo. Freire (2018, p. 108) escreveu:

Enquanto o ser que simplesmente vive não é capaz de refletir sobre si mesmo e saber‐se vivendo no mundo, o sujeito existe e reflete sobre sua vida, domínio mesmo da existência, e se pergunta em torno de suas relações com o mundo. O domínio da existência é o domínio do trabalho, da cultura, da história, dos valores – domínio em que os seres humanos experimentam a dialética entre determinação e liberdade.

Pensamos que a Educação do Campo, focada na formação humana de seus estudantes, condiz com uma Educação que preza pela qualidade das escolas, pelo direito que os sujeitos do campo têm de aprender, pelo compromisso de nutrir, continuamente, a relação da comunidade, dos movimentos sociais, entre outros, com as escolas. Sabemos que inexistem ações públicas, como políticas de Estado, que ajam com efetividade na Educação do Campo com vista à formação humana.

A realidade no campo, ensaiada neste texto, é um desafio, mas não pode ser tomada como determinista, impedindo as populações do campo de conviver dignamente com/no mundo. Acreditamos que o primeiro passo para se materializar uma Educação verdadeiramente humana se faz pelo reconhecimento do campo como lugar em que habitam povos, culturas, histórias, memórias, crenças, valores, entre outros. Esse reconhecimento implica uma renovação no currículo escolar, pois este necessita atentar ao que tem sido gestado no Brasil, construindo-se a partir de suas diferentes realidades. Além disso, é preciso, no plano legal, que se desenvolvam políticas educacionais que atentem a esses aspectos de formação humana.

No entanto, também entendemos que a luta não pode se delimitar à Educação. É preciso agir na sociedade como um todo, reconhecendo o campo como território não exclusivamente do agronegócio, pronto para “servir” ao sistema mercantil capitalista, mas como lugar de vida humana, de formação humana, voltando a Paulo Freire, o que é fundamental para a transformação do status quo.

Um aditamento, como conclusão

Ao longo deste escrito apresentamos algumas notas sobre a Educação do Campo, tendo como arcabouço principal o pensamento de Paulo Freire. Na nossa perspectiva, falar sobre Educação do Campo é mergulhar, diretamente ou não, no pensamento do educador pernambucano, brasileiro e global.

Do ponto vista conceitual, argumentamos que a Educação do Campo pode ser entendida com base em dois conceitos principais: (i) como um movimento nacional de educação e (ii) como uma modalidade educativa brasileira. Na literatura educacional pode haver outros conceitos de destaque, porém, com relevo em nossa prática profissional no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão, compreendemos que os principais estão sobescritos neste texto. Dizemos que os conceitos abordados necessitam ser contextualizados, não no sentido de classificar o que é ou não é a Educação do Campo, mas na intenção de situar sua prática, sua finalidade, sua materialização.

Na dimensão histórica, alertamos para a luta que os povos do campo, com realce para os movimentos sociais do campo, encamparam na busca de efetivar seu direito social, o direito à Educação, mas não a qualquer uma. Essa luta se fez de modo organizado, edificando o próprio movimento educacional (e social) que se constituiu na defesa de cada pauta, em cada tempo histórico. A história tem mostrado avanços e retrocessos. De um modo ou de outro, percebemos conquistas importantes no plano legal e normativo (como a base legal da Educação do Campo que contribui para que ações públicas e políticas sejam traçadas) e na dimensão concreta (como a criação de escolas do campo, atendendo aos seus princípios).

No que condiz aos princípios debatidos e refletidos no presente ensaio, pensamos que eles podem perpassar (já perpassam) a Educação do Campo nas escolas, nas salas de aula e fora delas, nos centros comunitários, nas associações e nos sindicatos, nos assentamentos, nas cooperativas rurais, nas rodas de diálogo entre educadores populares e educandos nos acampamentos, entre outros. Esses princípios são referências que alimentam nossa prática educativa. São atingíveis na cotidianidade da Educação do Campo, porém é preciso sempre atenção e militância para que não se distanciem na complexidade social que nos acomete. É fundamental também que estejamos atentos, porque tais princípios são atingíveis em momentos e graus distintos. Conforme acentuamos, eles são referências, sãos fins educativos a vivenciarmos na Educação do Campo.

Em suma, esperamos que o presente ensaio nutra seus leitores com ideias e pensamento crítico. Isso feito, compreendemos que cumprimos nossa função, qual seja: demarcar que a Educação do Campo, quer na condição de movimento educacional, quer na condição de modalidade educativa, está fundamentada no pensamento freiriano. Suas ideias e seus princípios são a base para a materialidade da Educação do Campo.

Finalizamos este aditamento, novamente, reforçando aos leitores que as reflexões tecidas e apresentadas em tela sobre a Educação do Campo, a partir de Paulo Freire, necessitam ser aprofundadas e redimensionadas. Outros princípios da obra freiriana podem alimentar novos escritos, pensamentos, ensaios e pesquisas bem como outras reflexões. Deixamos o convite.

4Termo utilizado pelo Professor Miguel Arroyo na I Conferência Nacional de Educação do Campo, no ano de 1998, em Brasília, para se referir à representação da escola no campo ao longo do tempo (ARROYO, 1999).

5Explicamos, com base em Gohn (2011), que o movimento educacional (tal como um movimento social) se refere às ações coletivas, de natureza sociopolítica, pedagógica e cultural, que permitem e viabilizam os sujeitos sociais expressarem e se organizarem em prol de suas demandas sócio-históricas, o que inclui a luta pela Educação alinhada a outras pautas, como justiça social, sustentabilidade, segurança alimentar, questões de gênero, entre outras.

6O PRONERA surgiu por meio da Portaria nº 10, de 16 de abril de 1998. Seu principal objetivo é fortalecer a Educação nas áreas de reforma agrária, estimulando e propondo projetos educacionais que contribuam para o desenvolvimento sustentável dos povos do campo, somando para que eles permaneçam no campo (BRASIL, 2004).

7A Articulação Nacional de Educação do Campo se constituiu de um conjunto de movimentos sociais, sindicais, pastorais, entre outros, e educadores e educadoras de universidades, escolas e instituições de Educação não formal do país. Entendemos que ela foi uma instância importante no desenvolvimento da Educação do Campo no Brasil, porém perdeu forças ao longo do tempo (MUNARIM, 2008).

8Ao contrário de 2008 e 2009, o edital 2012 não permitiu que instituições estaduais e municipais participassem do processo seletivo para criação de cursos permanentes. Mas, por iniciativa própria, há em pelo menos cinco estados licenciaturas permanentes em universidades estaduais (MEDEIROS; DIAS; THERRIEN, 2021).

9Alertamos que, antecedentemente à publicação do Decreto Lei nº 7.352, de 04 de novembro de 2010, a Educação do Campo foi referendada como modalidade educativa na Resolução CNE/CEB n° 4, de 13 de julho de 2010, que definiu Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica.

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Recebido: 30 de Junho de 2022; Aceito: 30 de Agosto de 2022

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