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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.27  Caxias do Sul  2022  Epub 10-Mar-2024

https://doi.org/10.18226/21784612.v27.e022028 

RESENHAS

FALABRETTI, Ericson, OLIVEIRA, Jelson. O Nó do Ser: para uma Ontologia do Corpo. Caxias do Sul: Educs, 2020.

Éverton Marcos Grison1 

1Bacharel e Licenciado em Filosofia (UFPR), Especialista em Educação das Relações Étnico-Raciais (UFPR), e em Ensino de Filosofia para o Ensino Médio (UNICENTRO), Mestre em Filosofia (UFPR). Professor de Filosofia do Ensino Médio na Escola Seb Dom Bosco e no Colégio Estadual Ivo Leão, em Curitiba, PR. Coordenador do projeto de Cineclube G-Filo (NESEF/G-FILO/UFPR), no Colégio Estadual Ivo Leão.

FALABRETTI, Ericson; OLIVEIRA, Jelson. O Nó do Ser:, para uma Ontologia do Corpo. Caxias do Sul: Educs, 2020.


O nosso tempo pode ser definido como aquele do assalto dos Corpos. Em nossos dias trituramos vidas com o mastigar dos olhos: “Quem vai ficar sem fazer ioga sou eu, quem está se sentindo violentada, estuprada sou eu, na minha cidade, no meu cantinho sagrado, sou eu. E esses doentes estão rindo e postando isso” (ALMEIDA, 2020). Essa é a fala da advogada e professora Mariana Maduro, que foi filmada e exposta nas redes sociais em agosto de 2020 enquanto praticava ioga na lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul do Rio de Janeiro.

Como se tornou de conhecimento público, dois homens trocam um diálogo de cunho sexista e violento enquanto filmam Mariana e depois a expõem no vídeo compartilhado nas redes sociais. Infelizmente não é um caso isolado. Não é uma brincadeira. Não é exagero. Trata-se da realidade crua que coloniza o Corpo feminino como objeto de consumo e prazer. É a exacerbação de uma cultura da violência, do aproveitamento, da ingestão, da prova e do experimentar do Outro.

Esse ocorrido evidencia a necessidade urgente do posicionamento claro sobre a questão estética e cultural do Corpo. Quantos ainda vão sofrer a violência da fala, do olhar e do assalto estuprador para que a questão da superficialidade violenta sobre o Corpo seja posicionada, além de um silenciar imposto às violentadas e aos violentados?

Uma nova formação do olhar e do falar sobre o Corpo, que também é Ser, seja Meu ou do Outro, não cabe mais na linha do tempo da espera por um mundo melhor que não virá tão cedo. A vivência do medo por se ter o Corpo e o nó da presença por ser o que se é exigem mudança drástica. O roubo das vivências precisa ser aniquilado. Pensar o Corpo é pensar a vida e o mundo. E outro mundo é urgente.

Refletir sobre o Corpo, seja na sua longa história enquanto aquilo que se apresenta, ocupa e delimita, mostrando certos contornos da existência humana e animal, na sua própria condição de existência, de uma vida que pulsa ao experimentar a realidade mais concreta e a existência dos outros, se configura por intermédio de uma gama de estímulos e afetos que produzem mundo. Nessa disposição de experiências, o Corpo representa uma configuração da origem experiencial sobre os fundamentos da gênese dos seres vivos. Sejam crianças ou animais, ambos se percebem enquanto seres vivos a partir do seu ordenamento corpóreo, que se complementa com o desenho dos outros Corpos presentes. Sendo assim, pensar na ausência do Corpo é o mesmo que conjecturar para além do mundo próprio da vida.

Pensar no Corpo e com o Corpo, por mais paradoxal que isso possa parecer, representa encarar um dos problemas mais clássicos da história humana, isto é, a separação entre consciência e natureza. Trata-se de fazer do Corpo o guia em meio a um pântano de questões e respostas dadas ao longo da história por diferentes áreas, como a Biologia, a Psicologia, a Medicina, as Ciências Humanas em geral, a um novo modo conceitual que se abre. Nesse aspecto, o Corpo manifesta nossa identidade. Ele fala mesmo depois de ser assassinado, como foi o de Marielle Franco. O Corpo se torna memória e continua a lutar e persistir na mente e na existência de outros Corpos.

Ser Corpo e falar do Corpo exige escolhas, muitas perguntas e, quem sabe, algumas respostas. É nesse caminho que podemos posicionar o livro “O Nó do Ser: para uma Ontologia do Corpo”, com 285 páginas escritas pelos Corpos de Ericson Falabretti e Jelson Oliveira, publicado pela Educs, editora da Universidade de Caxias do Sul, no primeiro semestre de 2020. Falabretti é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Decano da Escola de Educação e Humanidades da PUC-PR. Possui Graduação (UFPR-1995), Mestrado (UFSCAR-2000) e Doutorado (UFSCAR-2006) em Filosofia. Em 2013, com apoio da CAPES, realizou estágio de Pós-doutoramento na Universidade Jean Moulin (Lyon 3), desenvolvendo pesquisa sobre o estruturalismo e a fenomenologia na obra de Merleau-Ponty. Desenvolve pesquisas no campo da Filosofia Política e Fenomenologia. Oliveira é professor e atual coordenador da Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-PR. Possui Graduação em Filosofia (UFPR-1999), especialização em Sociologia Política (UFPR-2002), Mestrado em História da Filosofia Moderna e Contemporânea (UFPR-2004) e Doutorado em Filosofia (UFSCAR-2009). Em 2016, com auxílio da CAPES, realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Exter (Reino Unido). É bolsista produtividade da Fundação Araucária e desenvolve pesquisas nas áreas de Ética e História da Filosofia Contemporânea.

O livro escrito a quatro mãos reúne as reflexões elaboradas nos últimos quatro anos pelos autores, compondo-se por uma diversidade exitosa de tonalidades que foram sendo reunidas, como destacam os autores na introdução da obra, a partir das participações em eventos acadêmicos, artigos, capítulos de livros escritos para outras ocasiões e discussões e debates com estudantes matriculados na disciplina de Tópicos de Ontologia, ofertada no segundo semestre de 2018 no departamento de Pós-Graduação da PUC-PR. Dessa maneira, o que se materializa em palavras no livro são os encontros de diferentes Corpos e suas nuances, os quais se comprometem em pensar e não resignar suas reflexões as torres internas do seu próprio Ser.

O livro é composto de uma introdução e quatro partes que se conectam entre si, mas podem ser lidas separadamente, apontadas as perdas que isso representa. Também possui uma considerável quantidade de notas de rodapé e referências dos textos citados e discutidos na reflexão. O livro possui divisões no interior de cada parte que contribuem para a demarcação do texto, no sentido de fornecer substrato reflexivo e didática para professores e estudantes, sejam do Ensino Básico, do Ensino Superior e das Pós-Graduações, visto que tem a virtude de se posicionar como um material de estudos para ser lido, citado e consultado constantemente, seja pela estrutura organizativa escolhida pelos autores ou pela qualidade literária que o texto apresenta. Além disso, o livro será de interesse de diferentes áreas do conhecimento, como a Filosofia, a Sociologia, a Antropologia, a História, a Educação Física, a Biologia, a Medicina, entre outras.

Já na introdução os autores são cautelosos ao definirem os recortes que se apresentaram como necessários para realização do trajeto. A opção foi pelo conceito contemporâneo de contiguidade, pois funciona como uma via de acesso à verdade do Ser revelada na multiplicidade de experiências de encontro no Corpo. Na contiguidade o Corpo não é reconhecido a partir de uma relação entre coisas que se distanciam, mas no relacionamento imediato de coisas que se tocam.

A partir da contiguidade o Corpo é pensado como encontro que, por um lado, expressa uma gama de transbordamentos e, ao mesmo tempo, é o tecido da existência mais imediata do Ser. É o Ser que se dispõe no mundo, e para refletir isso os autores recuperam compreensões acerca do Corpo, entendido como chave do enigma do mundo (Arthur Schopenhauer), grande razão (Friedrich Nietzsche), nó do ser (Hans Jonas), e ser, no mundo, abraço e encontro (Merleau-Ponty). Portanto, o texto é costurado pelo conceito de contiguidade, ao mesmo tempo que lança mão de uma vasta literatura de diferentes períodos e campos do saber, para refletir sobre a questão: qual ontologia ainda é possível na Filosofia Contemporânea? A chave da resposta se insere no interior de uma ontologia do Corpo.

A primeira parte é intitulada Corpo-Eu e se concentra em estabelecer de forma muito originária os pressupostos necessários para o desdobramento da discussão. É declarada a intenção de não reduzir o Corpo a um objeto mensurável, que se enquadra em categorias lógicas definidoras e restritivas. Ele transborda e é transbordado a partir de intercruzamentos de integralidades e desintegralidades com aquilo que está ao seu redor. Assim, o Corpo é extensivo e pensante ao mesmo tempo.

O Corpo visto dessa maneira está diretamente conectado a um princípio vital, ou seja, a uma noção de identidade, que não existe desde sempre. A partir disso os autores se concentram em refletir acerca da ligação entre Corpo, sua vitalidade e seu relacionamento com a morte. O Corpo se mantém em vida enquanto se alimenta dos diferentes fenômenos da morte, isto é, daquilo que é visto como menor, sejam animais ou vegetais. Portanto, a nossa vitalidade, ou, de outra maneira, a nossa saúde, é conquistada com a transformação de outros animais e vegetais, por exemplo. Essa reflexão se delineia a partir de um interessante diálogo com o pensamento grego, seja o da literatura ou da filosofia antiga, no sentido de compreender a elaboração da unidade entre Corpo e Alma como fontes de conhecimento e possibilidades de corrupção, discutidas no cruzamento de espaços de dor e de prazer.

A segunda parte do livro é denominada Corpo-Deus e se concentra em refletir a partir de referenciais do pensamento medieval. Deus é desde sempre Corpo e cria a partir do seu próprio Corpo. O sopro próprio da sua existência atribui vitalidade iniciática para a carne que passa a existir. No interior do cristianismo o Corpo é um paradoxo, pois ao mesmo tempo que é a imagem do pecado carnal, das escolhas que ultrapassam e desencaminham, o Corpo chagado de Jesus Cristo é o principal mensageiro de fé e esperança. Trata-se de um Corpo ressuscitado e, portanto, místico. Nesse Corpo que sofre e representa as mazelas de todos os humanos está a chave da salvação de cada um, a qual assume um papel curativo, como se fosse uma terapia para todos os males. Por isso o Corpo no culto à Deus é fonte de oração, de alimento e de esperança no transbordamento da morte da carne.

A partir da reflexão mística e religiosa que perpassa o Corpo no período Medieval, o livro dedica um profundo e longo trajeto para abordar o Corpo-Mundo. Essa terceira parte é a maior em extensão no livro. Esse Corpo-Mundo é discutido a partir de uma mudança ontológica significativa, pois a ontologia antiga pan-vitalista é negada por uma ontologia pan-mecanicista. Isso representa, de início, que na Modernidade o organismo vivo passa a ser associado a uma lógica de ontologia da morte. Grande parte das reflexões modernas giram em torno do Corpo sem vida, na esfera de uma facilitação de compreensão, pois não há mais conexão desse ser com os movimentos próprios da vida. Essa mudança gera uma espécie de revolução na visão acerca da natureza no que diz respeito à destituição da sua finalidade de valor, abrindo espaço para um processo de exploração sem compromisso ético. Isso vem apoiado ao lado de um subjetivismo sedento por aumento de poder. A partir dessa dualidade a natureza torna-se um grande laboratório de pesquisas, investigações e explorações.

Desenvolve-se, portanto, um pensamento mecanicista que emudece a natureza, pois o organismo natural é visualizado como pura extensão, ou seja, fechado numa dimensão de Corpo material que nada comunica. Esse é um período de reflexão muito profundo e complexo, e os autores enfrentam o desafio de costurar uma leitura de grandes cânones da reflexão filosófica, como René Descartes, Baruch de Spinoza, La Mettrie, entre muitos outros, com o embate de concepções, por exemplo, acerca da relação e da diferença entre o Corpo e a Alma. O pensar e a ação própria do intelecto e sua conexão com o Corpo são investigados levando em conta os grandes problemas da modernidade, a saber: a relação tensa entre Razão e Instintos.

Para além do conceito de contiguidade, percebemos a presença constante das ideias de Maurice Merleau-Ponty e Hans Jonas, seja para aprofundar aspectos ou preparar o solo literário para novas dobraduras sobre o Corpo e seu papel próprio, isto é, na mediação do ser humano com o mundo, no quanto isso produz sonoridade como uma espécie de condição de possibilidade, de relacionamento e de vida em geral.

A última parte do livro é nomeada como Corpo-Outro. No último século o corpo foi alvo de reviravoltas epistemológicas, visto que passou a ser escaneado e esquadrinhado por máquinas cada vez mais sofisticadas e difundidas entre os médicos. Os procedimentos mecânicos permitiram informar os sujeitos que seus corpos são mensurados por dados sobre doenças e disfunções. Nasce, assim, a necessidade da construção de um Corpo que está para além do humano até então visto. Uma espécie de Corpo pós-humano, ajustado por procedimentos futurísticos como a clonagem, a mudança de genes, a seleção genética, as eugenias, as cirurgias genéticas que tornam o corpo orgânico obsoleto. Em seu lugar é posicionado um corpo utópico e não interessa mais aquilo que não se realizou, mas o que é possível alcançar com as novas possibilidades tecnológicas.

O Corpo é modelado aos ditames de padrões de origem bastante duvidosa e sofre os efeitos de uma exposição e instauração pornográfica. Nesse sentido, a pornografia não fixa interioridade e mistério. É o suprassumo do externo, da exposição da crosta do Ser. Isso se transforma em novo paradigma que embasa uma sociedade mercantil e capitalista, com Corpos que são alienados de sua interioridade para serem empobrecidos e reduzidos ao seu fora, como foi no crime praticado contra Mariana Maduro. O grande desafio é modificar esse paradigma que devora Corpos nos algoritmos de redes da exterioridade e aniquilação do mistério. O livro contribui, entre outras virtudes, para almejarmos isso.

Referências

ALMEIDA, P. 2020. Polícia investiga postagem expondo advogada que fazia ioga no RJ. UOL, 04 ago. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/08/04/policia-investiga-postagem-expondo-advogada-que-fazia-ioga-no-rj.htm. Acesso em: 20 de set., 2020. [ Links ]

FALABRETTI, Ericson, OLIVEIRA, Jelson. O Nó do Ser: para uma Ontologia do Corpo. Caxias do Sul: Educs, 2020. [ Links ]

Recebido: 05 de Dezembro de 2020; Aceito: 17 de Outubro de 2022

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