Introdução
O presente artigo faz uma breve incursão em parte do pensamento de Martin Heidegger, visando explicitar os motivos que o levaram a refletir sobre o sentido do ser, o que culminou na elaboração de Ser e Tempo. Heidegger é um pensador da ontologia que utilizou parte de seus escritos para recolocar o ser na interrogação filosófica. Para o pensador alemão, a filosofia tradicional – aqui concebida como toda a história da filosofia ocidental – não refletiu de forma aprofundada sobre o ser, razão pela qual o próprio Heidegger (2012, p. 33) afirma que a pergunta pelo seu sentido “deu o que fazer à interrogação de Platão e de Aristóteles, embora na verdade se tenha calado desde então”.
Para Heidegger, a metafísica4 tradicional, partindo dos gregos até chegar à filosofia moderna, tinha a intenção de refletir sobre o ser, contudo, este intento acabou levando o pensamento filosófico ao estudo dos entes5. O ser, indefinido e indefinível, não é passível de qualquer objetificação. É possível refletir sobre o ser, mas não o enquadrar em definições ou categorias, pois, quando isto é feito, o ser é entificado. Esta foi a maior crítica de Heidegger à tradição filosófica.
Este artigo reflete sobre as críticas heideggerianas à categorização do ser na Vorhandenheit grega e no racionalismo cartesiano, utilizando os seguintes livros: Ser e Tempo (Heidegger), Categorias (Aristóteles), Metafísica I e II (Aristóteles), Fedro (Platão), A República (Platão) e O discurso do método (Descartes). Além destes livros, também foram consultados artigos e outros textos que auxiliam no entendimento e na elucidação do tema.
Válido mencionar, também, que a linguagem de Heidegger possui termos próprios, como é o caso das palavras Dasein, ser-no-mundo, ser-com e, até mesmo, Vorhandenheit. Aqui, compartilha-se o entendimento de que não é possível traduzir esta última palavra, de forma literal, do idioma alemão para o português, pois pode haver um déficit na compreensão da analítica existencial heideggeriana. Vorhandenheit, no sentido literal, significa presença. Acontece que o termo pre-sença (com hífen) também pode ser a tradução de Dasein6. Então, a fim de buscar a melhor alternativa para compreender o significado do termo Vorhandenheit na filosofia heideggeriana, optamos por fracioná-lo. O prefixo Vor significa antes, isto é, aquilo que vem antes, e hand significa mão. Ao todo, o termo em alemão pode ser compreendido como aquilo que vem antes à mão ou aquilo que é previamente estabelecido à mão. Heidegger (2012) remete o significado da Vorhandenheit aos gregos, pois Platão e Aristóteles, em suas ontologias, consideram que o ser possui uma substância previamente estabelecida, uma forma que é imutável apesar da alteração temporal do ente humano. De acordo com os gregos acima citados, existe uma essência permanente que é prévia ao nascimento do próprio ente e que é a condição deste. A este ente primeiro eles teriam atribuído o significado do ser. Esse é o significado de Vorhandenheit que será considerado no desenvolvimento do presente artigo.
Importante consignar, ainda, que este estudo não pretende fazer uma extensa reflexão sobre todos os conceitos e ideias inseridos nos livros dos pensadores aqui considerados, mas objetiva analisar brevemente a categorização do ser para Aristóteles, a partir de termos como substância, essência e acidente, bem como o dualismo mundano em Platão (mundos sensível e inteligível) e o dualismo mundano-ontológico em René Descartes (res cogitans e res extensa), este último consubstanciado na célebre frase cogito ergo sum (1996).
São estes conceitos, provenientes de parte da tradição filosófica, que Heidegger utiliza como ponto de partida para estabelecer uma nova forma de pensar o sentido do ser. Na visão heideggeriana, os gregos e a modernidade não obtiveram êxito em refletir sobre o ser, pois o entificaram e desconsideraram que o principal elemento ontológico do Dasein7 é ser-no-mundo.
Feitas estas considerações introdutórias, passa-se ao objetivo da presente pesquisa, que é compreender as principais motivações heideggerianas para se contrapor à tradição filosófica do Ocidente ao refletir sobre o sentido do ser, conforme desenvolvido em Ser e Tempo (1927). Os objetivos específicos são: a) analisar a categorização do ser através da Vorhandenheit grega, sobretudo nas filosofias de Platão e Aristóteles; b) refletir sobre a objetificação do ser na filosofia moderna de Descartes, por meio dos conceitos da res cogitans e res extensa; c) relacionar a ontologia fundamental de Heidegger com a educação.
A seguir, serão apresentados os principais conceitos ontológicos de Platão, Aristóteles e René Descartes, seguidos das críticas heideggerianas inseridas na obra Ser e Tempo. Por tais razões é que se pode afirmar que Heidegger rompeu com a metafísica tradicional e firmou uma nova maneira de pensar sobre o sentido do ser.
O ser na metafísica tradicional grega: processo de objetificação do ser através da Vorhandenhei.
Para se iniciar a reflexão sobre o ser na metafísica tradicional grega, é de fundamental importância a análise de alguns conceitos inerentes à ontologia de Platão e Aristóteles para, só então, seguir-se para as críticas heideggerianas à filosofia desses pensadores. Evidentemente, as reflexões sobre as possíveis (im)procedências das críticas heideggerianas à tradição ficarão a cargo e sob a responsabilidade do leitor.
No livro VII de A República, Platão (2003b) transcreve o diálogo que ficou conhecido como o Mito da Caverna, ou Alegoria da Caverna. Nesse diálogo, o filósofo grego faz alusão a dois mundos distintos: o mundo sensível (o mundo no qual os entes humanos vivem e existem) e o mundo das ideias, ou mundo inteligível (onde tudo é perfeito, universal e infinito). Foi principalmente com A República e Fedro que Platão estabeleceu a sua metafísica.
O mundo sensível é este onde todos nós, entes humanos, vivemos e existimos. Ocorre que, na ontologia platônica, o mundo sensível é caracterizado por ser finito e imperfeito. Há, portanto, um outro mundo onde tudo é perfeito e universal; um mundo ideal que deu origem à cópia conhecida como mundo sensível (Platão, 2003b). A metafísica platônica categorizou o ser ao assinalar que a sua verdade está no mundo das ideias. O ser perfeito independe da existência, pois é o ideal, o idealizado, que o caracteriza como tal. Esse pensamento metafísico foi criticado até mesmo por seu discípulo Aristóteles que, na Metafísica (1984), esclareceu o seguinte:
Platão, na esteira de Sócrates, foi também levado a supor que o universal existisse noutras realidades e não alguns sensíveis. Não seria, pois, possível, julgava, uma definição comum de algum dos sensíveis, que sempre mudam. A tais realidades deu então o nome de “ideias”, existindo os sensíveis fora delas, e todos denominados segundo elas
(Aristóteles, 1984, p. 24).
Em Metafísica (1984), Aristóteles retorna à questão das causas primeiras e aos princípios de todas as coisas existentes, materiais ou imateriais. De acordo com o filósofo grego, é evidente que “a filosofia seja a ciência de certas causas e de certos princípios” (Aristóteles, 1984, p. 13). O que significa, então, levar em consideração o princípio de todas as causas? Pois bem, durante toda a história, segundo Aristóteles (1984), o ser humano não se atentou à origem de todas as coisas, mas refletiu apenas sobre aquilo que é aparente. Um exemplo muito comum seria o fogo. Os entes humanos sabem que o fogo queima, mas não se teriam questionado sobre o que originaria o fogo, isto é, qual seria a substância primeira do fogo, que o definiria como tal. Esse é o ponto central da metafísica aristotélica.
Ainda na Metafísica, Aristóteles (1984) pensa em uma nova filosofia ontológica. Para ele, todos os entes intramundanos são constituídos por diferentes substâncias e, contrariamente aos pré-socráticos, o filósofo não acreditava que o universo possuísse uma substância una. Nesse texto, o pensador grego tece críticas a Tales de Mileto, que dizia ser a água a origem de tudo, bem como a Anaxímenes, que dizia ser o ar o princípio de tudo. Não há uma única substância determinada e universal que constitua as coisas como elas são, mas existem várias substâncias para cada ente existencial.
Objetivando chegar ao princípio de tudo que existe no mundo sensível, Aristóteles desenvolveu a teoria das quatro causas, e afirmou:
É pois manifesto que a ciência a adquirir é a das causas primeiras (pois dizemos que conhecemos cada coisa somente quando julgamos conhecer a sua primeira causa); ora, causa diz-se em quatro sentidos: no primeiro, entendemos por causa a substância e a quididade (o “porquê” reconduz-se pois à noção última, e o primeiro “por quê” é causa e princípio; a segunda [causa] é a matéria e o sujeito; a terceira é de onde [vem] o início do movimento; a quarta [causa], que se opõe à precedente, é o “fim para que” e o bem (porque este é, com efeito, o fim de toda a geração e o movimento
(Aristóteles, 1984, p. 16).
A partir dessa teoria, pode-se alcançar a substância de tudo aquilo que constitui o mundo. A verdade, o princípio e as causas dos entes, na filosofia aristotélica, são categorizados; ou seja, a partir de categorias pode-se alcançar a verdade absoluta que constitui os entes (intra)mundanos. Nas Categorias, Aristóteles (2000) esclarece que a substância é a categoria primeira, que se subdivide em outras duas categorias, sendo elas a essência e o acidente. Essência são todos os elementos que devem estar presentes para caracterizar determinado objeto como tal. Pode-se tomar como exemplo o ser humano. Para caracterizá-lo, de acordo com a metafísica aristotélica, basta lembrar que todos nós (humanos) possuímos características que, unidas, fazem com que sejamos seres singulares, diferentes dos demais: somos mamíferos, bípedes e racionais. Todo e qualquer ente que se enquadrar nesta categoria é, portanto, humano. O acidente, como segunda categoria da substância, são os elementos que constituem o ente humano, mas não necessariamente o caracterizam como tal – a exemplo do peso, da altura, da cor dos cabelos, da cor da pele etc. Com a junção da essência ao acidente, chega-se à determinação prévia e à categorização do ser (aquilo que Heidegger chamou de Vorhandenheit). A partir da categorização, pode-se perceber que a filosofia aristotélica considera até mesmo atributos físicos na reflexão e definição do ser, e desconsidera questões existenciais.
O ser, sobretudo a partir da metafísica tradicional de Platão e Aristóteles, foi entificado, objetificado, definido como mera categoria, e foram essas ontologias tradicionais que fizeram com que Heidegger (re)colocasse o sentido do ser como ponto central de sua filosofia ontológica. Filósofos da tradição – tal como visto anteriormente – refletiram sobre o ser a partir de suas características fundamentais, as quais são comuns aos entes intramundanos. A partir do momento em que isso acontece, o ser é objetificado e as suas possibilidades de projeção existencial são reduzidas – para não dizer inexistentes.
A definição do ser consiste na sua objetificação e no seu (in) consequente fechamento às várias possibilidades mundanas. Platão (2003), por exemplo, afirmou que o elemento verdadeiro de todos os seres está no mundo ideal, no mundo das ideias. Aristóteles (1984), por seu turno, utilizava determinadas categorias (substância, essência e acidente) para chegar à causa primeira, tanto do ser do ente humano quanto de qualquer outro entre intramundano. O conceito entificado de ser tira do Dasein a possibilidade de encontrar a si mesmo a partir de sua existência, pois nessa concepção fechada o ser se mostra como objeto definitivo.
O ser da tradição tem como característica fundamental a inexistência do modo de ser do Dasein. Heidegger (2012) afirmou que os influxos da tradição mantêm a problemática da ontologia numa estreiteza (Verengung) fundamental. Mas, de fato, qual seria a estreiteza fundamental da tradição citada por Heidegger?
Essa estreiteza reside no domínio da ideia “segundo a qual o que é (isto é, o ente, o ôntico) é aquilo que tem o modo de ser da Vorhandenheit, – aquilo, portanto, que não é o histórico, que não é a vida” (Santos, 2008, p. 35, grifos no original). O que impulsionou Heidegger para a reflexão sobre o ser foi justamente a maneira como a tradição filosófica o definiu. De acordo com Heidegger (2012), colocar a verdade do ser sob categorias e em um mundo ideal é um equívoco que deixa de considerar a existência como elemento constitutivo do Dasein.
A infrutífera amostragem do ser não evidenciou as suas características ontológicas essenciais e não alumiou os modos de ser específicos do Dasein. Pelo contrário: encobriu o ser na inobservância da historicidade e da existência. Para Heidegger (2012), os conceitos metafísicos do ser8 são inconcebíveis, haja vista que o ser não é simplesmente aquilo que é, mas também aquilo que pode vir-a-ser a partir dos horizontes da existência.
O Dasein, desde a Antiguidade, deixou de ser vislumbrado em sua especificidade ontológica, o que se deveu ao fato de que:
[...] tal tese pretende que o ente como um todo, o ente como tal, tenha sido interrogado e concebido a partir do registro interpretativo, metodológico e conceitual da Vorhandenheit. Desse modo. Heidegger não estaria apenas dizendo que o ser-aí tenha sido descurado por uma investigação ontológica desde a Antiguidade, mas sobretudo que esse ente foi concebido como um Vorhandenes, como Vorhandensein, como mais um ente entre outros, possuindo essencialmente um mesmo e único modo de ser fundamental e hegemônico: o da Vorhandenheit
(Santos, 2008, p. 37, grifos no original).
A tradição filosófica, segundo Heidegger (2012), equivocouse ao afirmar que o Dasein deveria ser classificado e interpretado a partir de categorias fundantes de todos os demais entes intramundanos. Houve, com isso, a transgressão categorial, isto é, o Dasein foi erroneamente concebido com um ser-aí de categorias, e não de existencialidades. Por transgressão categorial:
[...] queremos aqui indicar a atribuição de caracteres categoriais ao ser-aí. É a tese de Heidegger: o ser-aí foi sempre, ao longo da tradição metafísica, interpretado categorialmente – isto é, segundo o modo de interrogação e concepção do ente intramundano, categorial –, e não existencialmente
(Santos, 2008, p. 37, grifos no original).
A partir de categoriais gerais de todo e qualquer outro ente intramundano, não é possível chegar ao interior do Dasein e à sua essência enquanto ser ontológico. Aristóteles (1984), por exemplo, ao renegar a existencialidade do ser, deixou de observar os vários modos de ser do Dasein para categorizá-lo, simplesmente, como substância.
Heidegger (2012), por sua vez, explicita as singularidades e particularidades do ente humano ao afirmar que “o Dasein tem, por conseguinte, uma multíplice precedência diante de todo outro ente: A primeira precedência é ôntica: esse ente é determinado em seu ser pela existência. A segunda é ontológica: [...] o Dasein é em si mesmo ontológico” (Heidegger, 2012, p. 63, grifos no original). A principal ruptura da ontologia fenomenológica heideggeriana com a metafísica tradicional – principalmente a grega – está consubstanciada no fato de que Heidegger interpreta o Dasein como ser histórico e existencial, variável na medida em que existe e em que vive. Para os gregos, contudo, o ser conta com pressupostos próprios, bem definidos e inalteráveis (a exemplo da forma para Platão e substância para Aristóteles). Portanto, a tradição filosófica, de certa maneira, desconsiderou, na análise do Dasein, as suas existencialidades temporais e ocasionais.
O tratado ontológico Ser e Tempo é um retorno aos gregos, mesmo que tal retorno tenha como objetivo a crítica e a destruição9 da metafísica até então estabelecida. Na citação abaixo, é possível perceber as motivações que fizeram com que Heidegger colocasse a pergunta sobre o sentido do ser em destaque:
Sobre a base dos pontos-de-partida gregos da interpretação do ser, construiu-se um dogma que não só declara supérflua a pergunta pelo sentido do ser, mas além disso sanciona sua omissão. Diz-se: “ser” é o conceito mais universal e o mais vazio e, como tal, resiste a toda tentativa de definição. Mas esse que dentre os conceitos é o mais universal e, portanto, indefinível, não requer também definição, pois cada um de nós o emprega constantemente e cada vez já entende o que visa com ele. Assim, o que movia e como algo oculto mantinha na inquietação o filosofar antigo passou a ser claro como o sol, um-poder-ser-entendido-por-si-mesmo
(Heidegger, 2012, p. 33).
Heidegger (2012) ainda afirma que o Dasein não pode ser interpretado a partir das características dos entes intramundanos em geral (Vorhandenheit), pois “ser é um conceito indefinível. E, com razão – se definitio fit per genus proximum et differentia specificam10. De fato, ser não pode ser concebido como mero ente” (Heidegger, 2012, p. 37, grifos no original). Nesse excerto, evidentemente, Heidegger se remete à categorização do ser nas filosofias de Platão e Aristóteles, que o entificaram e trataram-no como ente.
Xavier Júnior (2015, p. 17) entende que, com “tal crítica à ontologia tradicional e com “ampliação” do conceito de mundo, Heidegger não pretende uma substituição (redução) ao primado do Dasein em oposição a Vorhandenheit”. O que Heidegger finalmente objetiva é a reformulação da metafísica tradicional para ir além de tudo aquilo que a filosofia já havia visto: estabelecer horizontes ontológicos para que o Dasein possa ser compreendido na sua totalidade enquanto ser geral e existencial.
A ontologia fundamental heideggeriana tem como principal premissa destacar que o Dasein, pela sua historicidade, é mutável. Não é possível que o ente humano, portanto, seja objeto de uma analítica existencial que tenha como modo de interpretação a sua comparação com entes intramundanos que não sejam portadores dos mesmos modos existenciais que o Dasein, e que, pela linguagem, não sejam privilegiados pela opção de darem acesso ao seres-próprios-de-si.
Não há, no ser do Dasein, uma substância própria que o defina como tal, pois as características desse ser dependem da forma como o ente humano se coloca no mundo e dependem, também, dos horizontes de temporalidade nos quais o ser está inserido. Assim, qualquer forma de interpretação do Dasein sem que seja considerada a existência, na visão heideggeriana, é um erro. Esse foi o motivo pelo qual Heidegger se voltou aos gregos com o objetivo de desconstruí-los: a transposição do ente sobre o ser. Inobservar a existência como pressuposto da constituição ontológica do Dasein é permanecer no equívoco ontológico de objetificação do ser.
A crítica heideggeriana à determinação moderna do ser no racionalismo cartesiano
Como já dito, o objetivo deste artigo não é percorrer todo o pensamento ontológico-metafísico da história da filosofia, mas, nesse momento, será assinalada a crítica à determinação moderna do ser evidenciada em Ser e Tempo (sobretudo a partir do §19) para auxiliar na compreensão da ontologia heideggeriana.
Enquanto os gregos refletiam o Dasein a partir da Vorhandenheit (com as categorias e com a idealização do mundo), a ontologia moderna determinou os modos fundamentais do ser a partir da natureza ou do corpo (res extensa) e do espírito ou da alma (res cogitans). Analisando as formas como a ontologia se distanciou do verdadeiro sentido do ser, Heidegger (2012) estabeleceu as diretrizes para a interpretação existencial do Dasein. Afinal, “somente a partir desta análise (destruição), pode-se abrir caminho para a ciência do ser” (Xavier Júnior, 2015, p. 17).
Em Ser e Tempo, Heidegger (2012) não apenas descontrói a metafísica tradicional, mas também, estabelece os parâmetros e os motivos pelos quais decidiu colocar sob questionamento o sentido do ser. No §10 do seu tratado ontológico inacabado, Heidegger apresenta a delimitação da analítica do Dasein em relação à antropologia, à psicologia e à biologia, e afirma
[...] que as questões e as investigações sobre o Dasein até agora levadas a cabo, não obstante a sua fecundidade fatual, não conseguiram alcançar o verdadeiro problema que é propriamente filosófico e, por isso, se persistem nesse erro, não podem sequer pretender que estão em geral aptas a levar a bom termo aquilo que no fundo pretendem
(Heidegger, 2012, p. 149, grifos no original).
A filosofia tradicional, para Heidegger (2012), não logrou êxito em analisar o ser do ente sem entificá-lo e sem lhe dar características que são gerais aos entes intramundanos. A analítica moderna, sobretudo com Descartes, seguiu os mesmos caminhos da metafísica grega ao se enveredar na tentativa infrutífera de descrever o Dasein.
A modernidade filosófica ficou caracterizada pelo cogito ergo sum cartesiano. No Discurso do Método, Descartes (1996) iniciou a Quarta Parte (ou Capítulo 4) esclarecendo que as suas meditações são metafísicas e que poderiam, por isso mesmo, não ser do agrado daqueles que as lessem. O racionalismo cartesiano nutre a ideia de que os sentidos podem levar o ser humano ao erro de interpretação do mundo, motivo pelo qual a razão seria o melhor caminho para encontrar a verdade e a essência dos entes (intra)mundanos. Não à toa que Descartes (1996, p. 37) esclareceu que “os nossos sentidos às vezes nos enganam”. Surgia, naquele momento, a modernidade filosófica, fundamentada no racionalismo cartesiano.
Descartes (1996) expressou que os sentidos humanos podem ter o mesmo efeito de quando sonhamos. Nossos sonhos são reais apenas no imaginário; ilustram situações que não vivemos ou, dito de outra forma, mostram situações irreais, refletidas no imaginário. Por isso, o racionalismo cartesiano parte do pressuposto de que todas as situações que surgem no espírito humano também não são reais, porque são mediadas apenas pelos sentidos. Ato contínuo, afirma o filósofo racionalista que:
[...] logo depois atentei que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade – penso, logo existo – era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava
(Descartes, 1996, p. 38, grifos no original).
Nesse viés, Descartes não pensou na existência como elemento constitutivo do ser, mas sim do sujeito. Para existir, basta pensar, não sendo necessária a existência de qualquer outro ente para influir no pensamento do sujeito cognoscente. “Reconheci que era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material” (Descartes, 1996, p. 39). A razão humana, portanto, é distinta de qualquer corpo, seja este corpo humano ou os corpos dos entes intramundanos. No racionalismo cartesiano, basta a razão, o pensamento, para que o sujeito ontológico seja constituído. Para Descartes, o simples pensar já é existir. Com isto, desconsidera-se toda a existência e historicidade do ente humano.
Heidegger (2012) tece críticas a esse modelo filosófico, já que Descartes utilizou como base do pensamento filosófico apenas o sujeito (cogito), e não a existência (sum), conforme se verifica com a passagem abaixo:
Descartes, ao qual se atribui o descobrimento do cogito sum como base de partida da interrogação filosófica moderna, investiga, dentro de certos limites, o cogitare do ego. Deixa, porém, inteiramente fora de discussão o sum, não obstante a posição do sum seja tão originária como a do cogito. A analítica faz a pergunta ontológica pelo ser do sum. Quando este for determinado então o modo-de-ser das cogitationes poderá ser apreendido
(Heidegger, 2012, p. 149, grifos no original).
A preposição sum tem uma base existencial essencialmente forte para a ontologia, e o equívoco de Descartes, segundo Heidegger (2012), foi deixar de refletir sobre ela. Restou ausente, na filosofia cartesiana, a pergunta ontológica pelo ser do sum, o que fez com que a metafísica tradicional continuasse a entificar e objetificar o ser. Este foi um dos motivos pelos quais Heidegger interrogou a filosofia cartesiana e apontou os seus possíveis equívocos ontológicos.
No §8 de Ser e Tempo, momento no qual descreve o plano do tratado ontológico, Heidegger (2012) afirma que é necessário analisar os fundamentos constituintes do cogito ergo sum. A filosofia ontológica da modernidade, consubstanciada no pensamento de Descartes, funda-se na subjetividade do sujeito que detém a racionalidade. O problema proporcionado pela ontologia moderna foi a fortificação da relação sujeito-objeto, a qual fez surgir a dicotomia entre a mente e o corpo e, consequentemente, entre a mente e o mundo (res cogitans e res extensa). De acordo com Sansevero (2013, p. 45), Descartes “[...] perde de vista o solo sob o qual apoia seu ponto arquimediano, a res cogitans, ignorando o caráter instrumental e primário da relação com os entes, presentes inclusive ali naquela situação isolada em que ele se colocou”. A relação dual distanciou o Dasein do mundo circundante, como se fosse possível a existência do ser independentemente da existência do mundo. O mundo, contudo, faz parte do Dasein desde o momento em que este fora projetado. Para Heidegger (2012), o dualismo proporcionado pela filosofia moderna não faz sentido ontológico, eis que, heideggerianamente, um dos modos existenciais do Dasein é justamente ser-com e ser-no-mundo.
O ente humano, único possível que pode possibilitar o acesso ao seu ser, faz parte do mundo, do mesmo modo com que o mundo faz parte do ser, sendo inevitável tratá-los unitariamente. Esse é, segundo Heidegger (2012), um dos maiores entraves da filosofia ontológica cartesiana: o sujeito supremo que, para ser compreendido, não necessita da existência de outros entes intramundanos e até mesmo do próprio mundo.
Entende-se por subjetivação do eu a substancialidade do sujeito. “A subjetivação do eu e a objetificação do mundo são as consequências da modernidade. O grande fracasso dessa filosofia, na perspectiva de Heidegger, decorre da tomada do ser do sujeito sob a égide da ontologia tradicional” (Xavier Júnior, 2015, p. 21). Entende-se por subjetivação do eu a substancialidade do sujeito. Nos fundamentos da determinação ontológica do mundo, a partir de Descartes, Heidegger (2012, p. 273, grifos no original) explica que “por substância nada podemos entender a não ser um ente tal que para ser não necessita de nenhum outro ente. O ser de uma substância é caracterizado por uma não necessidade”.
A tentativa cartesiana de formular uma filosofia ontológica foi malsucedida, pois, de qualquer maneira, aproximava-se da metafísica tradicional originada pelos gregos e fortificada pela ontologia medieval. Para Heidegger (2012, p. 277), “não há dúvida de que a ontologia medieval, do mesmo modo que a antiga, não se perguntou que significa ser ele mesmo”. A filosofia cartesiana não atribuiu ao ente humano a responsabilidade pela descoberta do seu ser nos horizontes temporais da existência, mas atribuiu ao Dasein uma substância inacessível, razão pela qual “Descartes não só evita em geral a pergunta ontológica pela substancialidade, mas afirma expressamente que a substância como tal, isto é, sua substancialidade, é em si mesma e por si mesma inacessível” (Heidegger, 2012, p. 277).
A filosofia cartesiana não estabeleceu um método fenomenológico próprio para a descoberta do ser, mas simplesmente se conformou com a remota hipótese de que o ser é uma subsistência constante, razão pela qual Heidegger (2012, p. 283) afirma que “Descartes não deixa que se dê pelo ente do-interior-do-mundo o seu modo-de-ser, mas, fundando-se numa ideia do ser cuja origem não é desvendada e cuja legitimidade não se prova, prescreve por assim dizer ao mundo seu ser próprio”.
A partir da análise que Heidegger instaurou, principalmente, nos §§19, 20 e 21 de Ser e Tempo, percebe-se que o sistema cartesiano considera que a subjetividade do sujeito se distancia do caráter mais próprio da existência, sobretudo porque mantém no seu centro de discussões a substância e a cognição (Sansevero, 2013). A ontologia fundamental heideggeriana, por seu turno, parte do pressuposto de que não há dualismo entre sujeito e objeto, mas que ambos são unificados na interiorização do mundo, sendo fundamental essa unicidade para o desvelamento do ser, pelo ente humano, com o decorrer da existência.
A filosofia tradicional, na acepção heideggeriana, não obteve êxito em estabelecer o entendimento ontológico sobre o Dasein e a sua necessária relação com o mundo e com os entes intramundanos. As noções de res cogitans e res extensa não vislumbraram a unicidade existencial entre o Dasein e o mundo, razão pela qual não se pôde proceder com a correta análise do ente humano e dos seus modosde-ser proporcionados pela existência.
Possíveis interlocuções entre a ontologia heideggeriana e a educação
A partir do já exposto no presente artigo, é possível estabelecer possíveis interlocuções entre a filosofia ontológico-heideggeriana e a educação. Vale lembrar, contudo, que Heidegger não foi um pensador que refletiu sobre a educação, de maneira específica, no seu tratado ontológico de maior prestígio, mas estabeleceu as diretrizes ou os caminhos para se pensar sobre o sentido do ser em geral.
Por isso, diz-se que Heidegger não foi um filósofo da educação, mas sim um filósofo na educação, pois abriu espaço, mesmo que não intencionalmente, para que se compreenda as funções primordiais desta área do saber. Questões como “o que é educação?”, “quais os objetivos da educação?”, “por que educar?”, são, fundamentalmente, ontológicas, pois proporcionam o acesso compreensivo à realidade do ato de educar.
Ao aproximar a reflexão heideggeriana ao campo educacional, pode-se pensar que a educação não tem a função específica de trazer à tona a essência prévia dos alunos – heideggerianamente entendida como inexistente –, mas tem como objetivo ontológico fazer com que os estudantes se situem existencialmente, compreendam a realidade em que vivem e saibam direcionar o seu ser ao caminho da autenticidade. Em contrassenso à ontologia da educação na perspectiva heideggeriana, na interpretação platônica ou aristotélica, os alunos podem ser concebidos como entes intramundanos que possuem uma finalidade específica e uma essência dissociada da existência.
Ambientes formais de ensino e professores que acreditam que os estudantes possuem um dom natural para exercer determinada atividade profissional, por exemplo, pensam a educação a partir da Vorhandenheit grega. A problemática desse pensamento é que, partindo do pressuposto de que há, de fato, um dom natural, a educação deixa de conduzir os estudantes ao desconhecido. Logo, os horizontes de aprendizagem são limitados ou reduzidos, já que, havendo uma essência previamente determinada, não há por que estimular o ser do estudante a se expor às novas possibilidades existenciais.
Com a analítica existencial heideggeriana, parte-se do princípio de que o estudante não possui um dom previamente determinado pela própria natureza – seja esse dom pessoal ou profissional –, mas que há determinadas particularidades no ser deste ente que são descobertas a partir da exposição do estudante às circunstâncias existenciais. Partindo desse ponto de vista, a educação é a ocasião que pode proporcionar a manifestação do ser do estudante em cada situação factual e, também, a compreensão de cada manifestação. Veja-se, então, o modo-de-ser ontológico da educação, já que o ontológico é, heideggerianamente, “aquilo que possibilita as várias maneiras de algo tornar-se manifesto, presente, criado, produzido, atuado, sentido etc.” (Spanoudis, 1981, p. 10).
A educação está para além da técnica, porque é a ferramenta que pode fazer com que o estudante se autoconheça, saiba quais são as suas angústias, seus ideais, valores, pensamentos, preocupações e, até mesmo, pode proporcionar a manifestação de suas aspirações profissionais. Pensar dessa forma é admitir que o estudante, assim como todo e qualquer ente humano, não possui uma essência prévia, pois tal essência o desabilitaria de se transformar (ou redescobrir) no decorrer da existência.
Ao contrariar o pensamento cartesiano, Heidegger (2012) considerou que o Dasein é, desde a sua projeção ontológica, um ser-no-mundo em relação com os outros (mitsein), e não um sujeito (res cogitans) separado da matéria (res extensa). O mundo em que o ente humano vive pode influenciar positiva ou negativamente a sua existência. Negativamente, quando as relações cotidianas proporcionam o decaimento do Dasein; positivamente, quando a angústia – enquanto um dos modos existenciais que não possui uma causa determinada para a sua ocorrência – retira o ente humano da situação de inautenticidade existencial por meio da analítica do próprio mundo. A angústia, portanto, é um elemento proporcionador da desvelamento do ser do ente humano, o que ocorre com o acesso compreensivo.
Por ser-no-mundo, consequentemente o Dasein precisa ser cuidadoso para não se deixar levar pela lida cotidiana ou, em termos menos heideggerianos, pelas massas ou condutas sociais rotineiras (agir conforme todos agem). Essa noção de cuidado, formulada por Heidegger (2012) em Ser e Tempo, pode ser associada ao campo educacional, eis que o Dasein desde sempre se mantém nessa estrutura ontológica, a qual é subdividida por dois existenciais: a preocupação e a ocupação. Todavia, mesmo que preocupação e ocupação sejam uma consequência direta do cuidado, os conceitos atribuídos aos três existenciais são distintos. Enquanto o cuidado pertence ao ente humano consigo, a preocupação consiste na relação do Dasein com outros entes humanos; nesse sentido, a relação da preocupação se consubstancia nas vivências entre os entes que possuem os mesmos atributos ontológicos (a exemplo do acesso ao ser pela linguagem11). Por outro lado, a ocupação diz respeito à relação que o Dasein tem com os entes intramundanos (os quais não possuem os mesmos atributos ontológicos do ente humano, a exemplo dos animais e outros objetos).
O existencial cuidado é de suma importância para a filosofia heideggeriana, porque “expressa um traço essencial à existência, na medida em que o ser-aí se empenha a cada instante em cuidar de si mesmo, em um processo de apropriação de si próprio apontando o modo de ser do indivíduo, mediante o esforço constante de compreensão do seu ser” (Kahlmeyer-Mertens, 2008, p. 27, grifos no original).
Referido existencial pode ser desenvolvido nos estudantes, justamente para que eles se deem conta de que são seres-no-mundo em convivência com-os-outros. Aspectos como afetividade, cooperação e empatia são fundamentais para a convivência harmoniosa em sociedade. Portanto, pensa-se que o papel da educação, sob o ponto de vista heideggeriano, está para além do repasse de conteúdo pelos professores aos estudantes, mas é fundamentalmente fazer com que estes pensem sobre a sua própria existência e desenvolvam o cuidado para consigo e com os outros, pois este é um existencial que leva o Dasein à compreensão do ser.
A preocupação também pode ser analisada a partir da relação entre professores e estudantes. Nessa estrutura existencial, os professores levam os estudantes à experimentação de uma existência própria e autêntica. Na preocupação, o professor deixaria de ser um repetidor de lições para se tornar o condutor ontológico do estudante, na relação ser-com.
Aqui se descreve a possibilidade de uma relação na qual a preocupação outro não aniquila sua individualidade, na qual não se age com o outro, preservando-lhe de experimentar os encargos de sua própria existência (de “retirar-lhe o cuidado”), mas, ao contrário, proporciona oportunidades de conduzi-lo às possibilidades de sua realização mais própria. Na relação discente/docente, isso se aplica pensando o segundo não como aquele que, antecipando-se ao aluno (o presumido desprovido de luz, como indica a composição latina do termo “alumnu”), predeterminaria a educação que lhe julgasse adequada, mas como aquele que estaria preocupado com o necessário para que o discente se descobrisse livre a um sentido próprio de si (Kahlmeyer-Mertens, 2008, p. 32, grifos no original).
Por outro lado, é importante destacar que muitas vezes a educação decai ao impessoal ou à impropriedade. Isso acontece quando os professores, por exemplo, deixam de pensar sobre a ontologia e os modos-de-ser da educação para simplesmente reproduzirem conteúdos herdados no ambiente formal de ensino. Logo, uma das finalidades da educação é, heideggerianamente, trazer à tona os modos-de-ser mais próprios dos estudantes em cada situação factual. Esse entendimento está em consonância com o significado etimológico da palavra educar (o termo educare – latim – significa “trazer para fora”). Assim, a educação tem como objetivo primordial auxiliar o estudante na manifestação do seu ser.
O sentido etimológico do educar também está diretamente relacionado com a noção de aprendizagem heideggeriana. Como bem descreve Heidegger (1994, p. 5) nos seus Escritos Políticos, “[...] aprender significa: ajustar nosso fazer e deixar ser ao que corresponde ao mais essencial em cada caso. [...] Nós atualmente só podemos, uma vez mais, aprender se sempre e igualmente deixamos aprender”. Fica claro nesse excerto que aprender é um ato tanto do discente quanto do docente, já que o docente aprende enquanto conduz os estudantes à manifestação do seu ser e o discente aprende no percurso da aprendizagem e do reconhecimento de si.
Com a filosofia ontológica de Heidegger, chega-se à consideração de que
[...] o verdadeiro sentido do educar não pode ser a pura transmissão de conhecimento, pois nela permanece o comodismo dos homens. A saber, educar implica convidar o existente humano para que ele assuma com o Ser uma relação própria, ou seja, que assuma para si tal relação como algo que lhe concerne, e não apenas como algo dado e já sabido. Por isso, quando Heidegger fala que o professor ensina não mais do que o convite a aprender, ele está, ao mesmo tempo, falando do cerne da filosofia, já que o homem deve ser tomado pela questão do Ser de modo singular. Enfim, o sentido educativo da filosofia não deve ser diferente do sentido filosófico da educação: despertar o homem do comodismo impessoal e da vida inautêntica
(Alves; Souza; Zanardi, 2017, p. 112).
Nesse viés, pensa-se que a educação não deve seguir os modelos da metafísica grega, tampouco a filosofia cartesiana, pois, se assim o fosse, individualizaria o estudante com os seus próprios pensamentos, o que seria um empecilho para o seu progresso existencial. O fato de o estudante ser-no-mundo com-os-outros o auxilia na manifestação dos seus modos-de-ser mais próprios, já que a educação é, também, a construção coletiva (e não individual) dos diversos modos-de-ser, com os saberes que lhe são inerentes.
Considerações finais
O presente artigo analisou as críticas que foram tecidas por Heidegger à metafísica tradicional grega elaborada por Aristóteles e Platão, bem como as críticas ao racionalismo de René Descartes, que inaugurou a filosofia moderna, sobretudo com a elaboração dos conceitos da res cogitans e res extensa. Ao final, fez-se uma possível interlocução entre a ontologia heideggeriana e a educação.
Para Heidegger, o pensamento platônico cometeu um equívoco ao considerar que o ser, no mundo ideal, é universal, imutável e eterno. O ser, que reside no mundo das formas, não tem relação direta com o mundo sensível, no qual estão os Daseins e, necessariamente, os entes intramundanos.
No mesmo sentido, a filosofia aristotélica categorizou o ser através da Vorhandenheit, e estabeleceu no Dasein características que são próprias aos outros entes intramundanos. Classificar o ser e atribuir a ele características essenciais são modos de fechá-lo às várias possibilidades de ser-no-mundo, impedindo-o de se projetar existencialmente em busca do encontro consigo mesmo. Caracterizar o ser é defini-lo. O ser do ente humano não é suscetível a definições, pois a definição pressupõe a sua objetificação. A essência do Dasein é, necessariamente, a existência.
Em continuidade à metafísica tradicional, Descartes fortificou a relação sujeito-objeto ao aumentar o dualismo por meio dos conceitos da res cogitans e res extensa. Para a filosofia moderna cartesiana, o sujeito é por si, independentemente da existência dos objetos e do mundo circundante. Conforme elucidou Heidegger (2012), o entrave de Descartes para direcionar o sentido do ser foi conceder primazia ao cogito em detrimento do sum. A racionalidade, na filosofia moderna, ficou acima da existência.
À guisa de conclusão, segundo as críticas tecidas por Heidegger em Ser e Tempo, a filosofia grega de Platão e Aristóteles e a filosofia cartesiana se esqueceram de que o ser do Dasein é mutável e finito, o qual depende dos horizontes de temporalidade para que o seu modo-de-ser ocasional seja exposto ao mundo. Não existe, então, uma substância que define a ontologia do ser de maneira prévia, pois a constituição do Dasein depende, necessariamente, da existência, do tempo e da história. Ademais, o Dasein não é um sujeito independente do mundo, mas é um ente lançado, desde a sua constituição ontológica, no mundo. A mutabilidade do ser do Dasein consiste, portanto, na mutação do próprio mundo.
A educação, nesse viés, é o meio capaz de fazer com que o estudante se desenvolva no decorrer da temporalidade, não individualmente, mas coletivamente, já que é, desde o seu lançamento ontológico, um ser-no-mundo em relação com-osoutros. Da mesma forma, a educação, na perspectiva heideggeriana, desconsidera que os estudantes têm uma essência previamente determinada, um modo-de-ser inalterável, mas considera que eles – tal como todos os demais entes humanos – sempre podem se redescobrir existencialmente, mudar de opiniões, gostos, valores e modos-de-ser em geral.