Introdução1
A partir do último quartel do século XIX o imigrante estrangeiro passou a desempenhar um papel cada vez mais relevante na história de São Paulo. Vários foram os motivos do que ficou conhecido como o período da Grande Emigração Italiana ocorrida entre as datas-marco da unificação italiana (1861) e do final da Primeira Guerra Mundial (1918), ganhando contorno a partir de fins dos 70, e tornando-se fenômeno de massa entre 1887 e 19022. Trento (1988, 2009) e Cenni (2003) apontam a miséria como a principal delas.
Segundo Alvim (2000) a emigração italiana se constituiu como um fenômeno importante de equilíbrio socioeconômico, por aliviar a pressão e as reivindicações sobre as cidades e indústria nascente, mas também, porque os expatriados enviavam dinheiro aos parentes o que em certa medida contribuía minimamente para afastar ou postergar uma rebelião social.
Do outro lado do Atlântico também havia condições objetivas que favoreciam a imigração. O fortalecimento e a expansão do capitalismo determinaram a transferência de capitais para o Brasil, produzindo além da necessidade de mais mão de obra, a transformação de escrava para a livre, principalmente para o trabalho nas lavouras de café. Somados à baixa densidade demográfica, a existência de mercados de trabalho mais acessíveis e aos fatores ideológicos que, vislumbravam o contingente branco, preferencialmente europeu para a realização do branqueamento dos brasileiros.
Em São Paulo, especificamente, o crescimento acelerado da economia cafeeira gerou capital para seus desdobramentos, tais como, expansão da rede ferroviária, industrialização e urbanização, além de subsidiar a imigração. Esses fatores aliados à abolição da escravatura em 1888 e à instalação do novo regime político republicano criaram condições importantes para a imigração em grande escala.
No fim do século XIX e no começo do século XX, São Paulo era uma das maiores cidades de imigração do mundo. Entre 1880 e 1924, entraram no Brasil 3.396.366 imigrantes, dos quais 1.331.158 eram italianos, o que corresponde a mais de 39% do total de imigrantes. De acordo com Hall (2004) dos 4,8 milhões de pessoas que vieram para o Brasil entre 1820 e 1949, mais da metade entrou pelo Estado de São Paulo e foi levada principalmente para as fazendas de café paulistas e para os núcleos de colonização no sul e sudeste do país.
Na capital de São Paulo, muitos trabalharam como “[...] engraxates, jornaleiros ambulantes, vendedores de água, consertadores de guarda-chuvas, afiadores, mas também carregadores, barbeiros, garçons, costureiras, cocheiros, sapateiros e outros” (Trento, 2000, p. 80). A presença italiana também foi muito expressiva no interior das fábricas3, constituindo um contingente de operários superior a 60% dos trabalhadores entre 1900 e 1915. As condições de trabalho dos imigrantes eram as mesmas que a dos brasileiros, e muito se assemelhavam às vividas nos primeiros anos da Revolução Industrial nos países europeus, entre os séculos XVIII e XIX, conforme descreve Trento (2000, p. 82): “Jornadas de trabalho intermináveis, demissões arbitrárias, pagamento por peça, disciplina rígida, baixos salários e ampla utilização do trabalho de mulheres e crianças com remunerações inferiores às dos homens adultos”.
Muitos se dedicaram à abertura de suas próprias oficinas, que funcionavam no mais das vezes quase exclusivamente com mão-de-obra familiar, de sapataria, marcenaria, tinturaria, olaria, fundições, confecção de roupas e chapéus, fábricas de massas, de óleos, de tintas para escrever entre outros. A fim de fare l’America, expressão amplamente utilizada pelos imigrantes italianos, havia no dizer de Petrone (1990, p. 607-608) “[...] uma valorização quase religiosa do trabalho e, numa postura pragmática que as necessidades imediatistas estimulavam”. Muitas famílias reservavam à escola, um lugar de modesta valorização, outras, no entanto, ainda que ansiassem que seus filhos estudassem, não possuíam as necessárias condições materiais. No entanto, houve ainda um grupo que enfrentou árduos sacrifícios para que seus filhos estudassem, preferencialmente em uma escola italiana, ou ainda, nas escolas públicas paulistas.
O presente texto tem por objetivo investigar as operações de civilidade impressas e impostas nos livros de leitura que alcançaram circulação expressiva nas escolas étnicas italianas e nas escolas primárias paulistas frequentadas pelos imigrantes e/ou seus filhos, entre o final do século XIX e o início do século XX. A partir da perspectiva teórico-metodológica da história cultural toma-se como fonte privilegiada a ‘Série graduada de Puiggari-Barreto’ e o livro de leitura Piccolo mondo.
Os livros de leitura podem ser tomados como utensílios culturais que estabelecem elos e vínculos entre as estruturas mentais e as figurações sociais, ou no dizer de Elias (1994) entre a psicogênese e a sociogênese. Seguindo as advertências de Elias (2001) pretende-se investigar as artes da civilidade difundidas nesses livros de leitura de grande circulação, por meio da análise do modo como a civilidade se faz presente no corpus dos livros, trazendo para a vida cotidiana das crianças as virtudes morais e a aprendizagem de normas de condutas.
‘Civilizado’ é, para Elias, o indivíduo cujo comportamento foi transformado, moldado, condicionado para adquirir novos hábitos, novos comportamentos, que nele se impregnam como ‘segunda natureza’. ‘Civilização’ é assim o longo processo de transformação do comportamento do homem ocidental. Diz Elias (1994, p. 95), “[...] o que estamos procurando - isto é, o padrão de hábitos e comportamentos a que a sociedade, em uma dada época, procurou acostumar o indivíduo”.
É com base no corpus conceitual constituído por Norbert Elias que os procedimentos, os instrumentos, as fontes e as direções de análise foram definidas, uma vez que interessa examinar práticas e processos de modelação dos sujeitos crianças que viviam o tempo social da infância, pelos quais se constituem como configurações mentais ou psíquicas, e nos quais cognição, sentimento, atitude, comportamento, valor, não são passíveis de abstração.
O texto está organizado em três tópicos principais, a saber: o projeto civilizatório paulista e a ‘Série graduada Puiggari˗Barreto’; Piccolo mondo e a leitura para as escolas étnicas italianas, e por fim, algumas considerações acerca da construção de identidades nacionais por meio da leitura.
O projeto civilizatório paulista e a ‘Série graduada Puiggari˗Barreto’
Devido às muitas dificuldades financeiras que geravam precárias condições de vida, muitas famílias italianas não matriculavam seus filhos nas escolas, algumas conseguiam fazê-la nas escolas étnicas italianas, e outras tantas, nas escolas públicas paulistas. Provavelmente, as crianças italianas e descendentes estudavam nas escolas dos bairros onde residiam, portanto, principalmente nos bairros do Brás, do Bom Retiro, do Centro e do Bexiga, depois Barra Funda e Lapa e, no período entre as duas guerras, fruto da mobilidade social, na Vila Mariana, na Consolação e nas Perdizes.
Os dados contidos nos Anuários do ensino do estado de São Paulo (São Paulo, 1907, 1913) permitem algumas inferências acerca das escolas frequentadas. Na Tabela 1 se encontram os dados dos grupos escolares da capital de São Paulo em funcionamento entre o ano de 1894 (o primeiro instalado) e o ano de 1913. Com exceção do Grupo Escolar da Penha, sobre todos os demais há informação sobre a data da instalação. Somente no Anuário de 1913 consta a origem dos pais dos alunos matriculados, dado importante para se considerar que muitas das crianças, ainda que seus pais e irmãos falassem algum dialeto da península itálica (a maioria não falava italiano) eram nascidas aqui, portanto, matriculadas como brasileiras.
Grupos escolares | Endereço | Ano de instalação | Brasileiros matriculados | Estrangeiros matriculados | Filiação em 1912 | |||
1907 | 1912 | 1907 | 1912 | Pais brasileiros | Pais estrangeiros | |||
Avenida | Avenida Paulista, 100 | 26/03/1909 | -- | 538 | -- | 53 | 476 | 115 |
Triumpho | Alameda Triumph s/n; Alameda Cleveland, 19 (1913) | 03/09/1900 | 384 | 499 | 20 | 13 | 279 | 233 |
Arouche | Praça Alexandre Herculano, 24 | 01/07/1905 | 527 | 994 | 28 | 55 | 402 | 647 |
Barra Funda | Rua Victorino Camillo,153 | 10/03/1903 | 340 | 1540 | 16 | 47 | 1006 | 581 |
Belemzinho | Av. Celso Garcia, 260 | 02/02/1909 | -- | 417 | -- | 30 | 328 | 119 |
Bella- Vista | Rua Major Diogo, 14 | 04/07/1900 | 367 | 888 | 9 | 44 | 680 | 252 |
Bom Retiro | Rua Italianos, 80 | 02/02/1909 | -- | 448 | -- | 24 | 418 | 54 |
Braz (primeiro) | Av. Rangel Pestana, 142 | 15/08/1898 | 648 | 1122 | 25 | 61 | 867 | 316 |
Braz (segundo) | Rua Almirante Barros, 3 | 04/11/1896 | 376 | 905 | 20 | 89 | 806 | 188 |
Braz (terceiro) | Av da Intendência / Av. Celso Garcia, 16(a partir de 1913) | 11/08/1898 | 422 | 879 | 13 | 27 | 341 | 565 |
Cambucy | Rua Lavapés, 297 | 01/02/1908 | 365 | 715 | 22 | 96 | 683 | 128 |
Carmo | Rua Carmo, 16 | 10/08/1894 | 422 | 926 | 21 | 73 | 720 | 279 |
Consolação | Rua Consolação, 178 | 16/01/1911 | -- | 614 | -- | 33 | 344 | 303 |
Lapa | Rua 18, s/n | 08/02/1909 | -- | 407 | -- | 21 | 332 | 96 |
Liberdade | Rua Glória, 106 | 01/05/1905 | 405 | 866 | 18 | 71 | 394 | 560 |
Maria José | Rua Manoel Dutra, 47 | 11/04/1896 | 384 | 877 | 17 | 51 | 721 | 207 |
Moóca | Rua Moóca, 373 | 25/09/1906 | 373 | 1021 | 28 | 67 | 859 | 229 |
Pary | Rua. D. Elisa Withaker, 1 | 13/03/1905 | 473 | 1007 | 26 | 153 | 585 | 575 |
Penha | s/d | -- | 317 | -- | 5 | 119 | 203 | |
Prudente de Moraes | Av. Tiradentes, 3 | 25/03/1895 | 431 | 1070 | 14 | 76 | 759 | 387 |
Sant’ Anna | Rua Voluntários da Pátria, 425 | 17/05/1909 | -- | 535 | -- | 55 | 372 | 218 |
Santa Iphigenia | Alameda Andradas | 16/03/1896 | 269 | 437 | 15 | 15 | 220 | 232 |
Santo Antonio | Rua Santo Antônio, 77 | 01/06/1908 | -- | 438 | -- | 25 | 371 | 92 |
S. João | Rua São João, 182 | 04/03/1907 | 284 | 557 | 8 | 26 | 354 | 229 |
Sul da Sé | Rua Santa Thereza,22 | 05/02/1896 | 334 | 612 | 7 | 24 | 301 | 335 |
Villa Marianna | Rua Vergueiro, 268 | 01/09/1909 | -- | 642 | -- | 58 | 452 | 248 |
Fonte: São Paulo (1907, 1913); Brasil (2018).
Havia uma concentração de Grupos Escolares na região central da capital de São Paulo, com destaque para a Sé, Bela Vista e Brás. Na Sé se encontravam os Grupos Escolares do ‘Braz (1º)’, ‘Carmo’, ‘Prudente de Moraes’, ‘S. João’, ‘Santa Iphigênia’ e ‘Sul da Sé’, com expressiva presença de pais estrangeiros em todos, sendo inclusive maioria nesses dois últimos. Na Bela Vista havia cinco Grupos Escolares, o ‘Avenida’, ‘Bella Vista’, ‘Maria José’, ‘Santo Antonio’ e ‘Villa Marianna’ (na divisa com o bairro de Vila Mariana), em todos a presença de pais estrangeiros foi expressiva. No Brás foram criados quatro Grupos Escolares, o ‘Belemzinho’, ‘Brás (2º)’, o ‘Bras (3º)’ cujo número de pais estrangeiros excedia o de brasileiros, e o ‘Pary’, cujo número de pais estrangeiros quase se igualava ao de brasileiros.
Nos bairros localizados em um sentido mais alargado na região central da capital de São Paulo, a presença de imigrantes também se fazia notar. Assim, no Bairro de Santa Cecilia foram criados os Grupos escolares do ‘Triumpho’ e da ‘Barra Funda’ (na divisa com o bairro da Barra Funda); na Liberdade, os Grupos Escolares do ‘Cambucy’ (na divisa com o bairro do Cambucy) e da ‘Liberdade’; no Bairro República, os Grupos Escolares da ‘Consolação’ e do ‘Arouche’, sendo que nos Grupos Escolares do ‘Triumpho’ e ‘Consolação’ a presença dos pais estrangeiros era bastante próxima a de brasileiros, e nos Grupos do ‘Arouche’ e ‘Liberdade’ a presença de pais estrangeiros era bastante superior.
Nos demais bairros como da Lapa, Moóca, Santana, todos mais afastados do centro, foram criados Grupos Escolares com o mesmo nome do bairro que os abrigava. E por fim, merece destaque o Bairro do Bom Retiro, que ficou consagrado como um bairro operário de forte presença imigrante, sobretudo a italiana, entre fins do século XIX e início do XX. Esta afirmação não encontra eco no que se refere à presença de pais ou crianças estrangeiras no Grupo Escolar ‘Bom Retiro’, que apresenta a menor presença de pais estrangeiros, se comparada aos demais Grupos da cidade.
Dentre os livros autorizados para adoção nos Grupos escolares estava a ‘Série Graduada’ de Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto. No Anuário de 1907 consta a aprovação do Primeiro livro de leitura e do Terceiro livro de leitura da ‘Série Puiggari˗Barreto’. No Anuário publicado em 1913 a seguinte indicação: “Somos partidários dos livros da primeira e da segunda categoria, prestando-se uns à leitura expressiva ou corrente, outros à chamada suplementar. Entre os da primeira estão, por exemplo, a Série Puiggari ˗ Barreto” (São Paulo, 1913, p. XVII).
A ‘Série graduada Puiggari˗Barreto’4 foi publicada pela Editora Francisco Alves. Segundo Razzini (2004) o empreendimento da Alves & Comp. alcançou êxito na década de 1890, com mais de 100 títulos incluídos ao seu catálogo, contando pela primeira vez, com a publicação de autores que trabalhavam no ensino de São Paulo, como exemplo, Romão Puiggari, que publicou Cousas brasileiras (1895) e Álbum de gravuras (1898).
Os exemplares que se converteram em fontes de estudo deste texto são Primeiro livro - 37ª edição, 1931; Segundo livro - 36ª edição, 1934; Terceiro livro - 7ª edição, 1911; Quarto livro - [?] edição, 1909. A imagem da capa é a mesma para todos os livros, nela estão presentes alguns personagens das histórias que compõem os livros, são eles, Paulo (o protagonista), Luizinha, Donato e Tio José. As crianças estão sentadas em torno do tio, atentas ao livro que ele segura aberto enquanto se encontra sentado em uma cadeira, tendo por fundo uma estante repleta de livros. Cabe esclarecer que há tantas outras edições sem ilustrações, apresentando na capa o nome da Série, o título do livro e da editora e uma nota explicativa: “Premiado com medalha de prata na Exposição Universal da cidade de S. Luiz-EUA” (Puiggari & Barreto, 1927, s/p). Na contracapa são apresentados livros do catálogo da Livraria Francisco Alves e seus respectivos preços.
A série é constituída por quatro livros. O Primeiro livro de leitura e o Segundo livro de leitura foram lançados em 1903, o Terceiro livro de leitura e o Quarto livro de leitura, provavelmente entre 1903 e 1904, posto já constarem do Inventário de bens escolares5. Na década de 1910, a Série já era bastante conhecida e bem conceituada. Segundo Pfromm, Rosamilha e Dib (1974) em 1904 a série conquistou a medalha de prata da Exposição Universal realizada em Saint Louis, nos Estados Unidos e em 1912, a adoção da Série torna-se obrigatória para as Escolas de Grumetes e de Aprendizes de Marinheiro, regulamentada pelo Decreto n. 9.386, em fevereiro deste ano (Regina &Panizzolo, 2016).
Os livros da ‘Série’ como já apontaram os trabalhos de Belo e Panizzolo (2014) e Panizzolo e Belo (2016) foram inspirados na obra italiana Cuore de Edmundo de Amicis e caracterizam-se por não estarem divididos em lições, mas sim em ‘capítulos’, ou em historietas de um menino chamado Paulo. A história se inicia quando o menino está prestes a ingressar na escola primária e acaba quando ele encerra o primeiro ciclo de sua instrução primária, no quarto ano. Cada livro da ‘Série’ acompanha Paulo em um ano escolar, além de narrar fatos ocorridos na escola, os livros tratam da vida cotidiana do menino com sua família, seus amigos, vizinhos, etc.
De acordo com Oliveira (2004), Belo (2013) e Regina (2017) a ‘Série Puiggari˗Barreto’ é expressão do modelo de leitura formativa. Os livros de leitura privilegiam lições de cunho moral, cívico e patriótico, além de lições de conduta, higiene, etc. Deste modo é possível perceber que a escola começa a ser vista como o meio propício para a disseminação dos valores republicanos, com destaque para a importância em modernizar o país, e valorização do trabalho como ferramenta necessária para a construção da cidadania.
Puiggari e Barreto (1911) dedicaram muitas historietas à higiene do corpo e da casa e afirmavam que para uma pessoa ser querida não era suficiente ser ativa e honrada, é “[...] mistér ser asseiada, e muito asseiada visto que a pobreza, não desculpa a falta de asseio, pois que isto não é privilégio de ninguem; ou antes, é uma obrigação moral que nenhum homem, rico ou pobre, deve olvidar” (Puiggari & Barreto, 1911, p. 34). Um exemplo é o relatado por Mauricio que estava envergonhado pelo fato do professor passar vistoria “[...] nos cabellos, nas unhas, nas orelhas, nos dentes, e no pescoço dos meninos” (Puiggari & Barreto, 1911, p. 29) e ter sido advertido, por não ter cortado as unhas. No entanto, Mauricio não foi o único a receber advertência do professor. A situação de José da Silva, que “[...] nunca vai limpo à escola. Hoje, então, appareceu tão sujo que o mestre teve que mandar buscar uma bacia com agua e lavar-lhe o rosto, o pescoço, as orelhas” (Puiggari & Barreto, 1911, p. 29).
Além da higiene, Puiggari e Barreto (1934) ensinaram acerca dos cuidados com a saúde. Em visita ao sobrinho Paulo que estava acamado e havia faltado à aula, tio José asseverou que “[...] uma de nossas obrigações é cuidar de nossa saúde, e fazer tudo o que for possível para nos tornarmos robustos e fortes [...]”, e para tal a parcimônia e a prudência eram fundamentais: “Comer de mais é sempre prejudicial. Beber de mais, nem se fale; além de estragar o estômago, transforma um homem num verdadeiro animal, inconsciente e repugnante” (Puiggari & Barreto, 1934, p. 113).
Puiggari e Barreto (1934) prescreveram ainda sobre a construção de casas visando à higiene, iluminação, ventilação e limpeza. Para tal valem-se, por exemplo, da história da casa construída pelo Sr. Anselmo, pai de Álvaro. A residência é apresentada como dispondo de todos os cômodos necessários e “[...] não tinham sido esquecidos os preceitos da hygiene. No espaço entre o soalho e o solo circulava perfeitamente o ar; não havia aposentos sem janellas, e as paredes eram caiadas e adornadas com pinturas simples” (Puiggari & Barreto, 1934, p. 91).
A Série dedica-se também aos ensinamentos de Botânica e Zoologia. Os garotos Donato e Paulo assumiram a função de ensinar a Ricardo, jardineiro da família, a ler: “Donato ensinava a ler e a contar. Paulo explicava as lições de botânica e zoologia, à medida que as ia aprendendo na escola” (Puiggari & Barreto, 1934, p. 105). Assim são muitas histórias destinadas a essas temáticas.
Assuntos relacionados aos reinos animal, vegetal e mineral são apresentados aos pequenos leitores de modo a favorecer uma aplicação prática dos estudos realizados. Por exemplo, ao chegar à casa Luiza tenta relacionar os ensinamentos da professora com sua boneca preferida, a Zilda, mas como não conseguia encontrar resposta, perguntou ao Vítor, que lhe explicou pertencer a boneca aos três reinos. O rosto da boneca é feito de porcelana, “[...] a porcelana é feita de caulim, que é um mineral”. O cabelo é feito de seda, “[...] pelos cabelos ela é do reino animal, porque a seda é produzida por um animal chamado - bicho da seda [...]” e concluiu a explicação esclarecendo que a pequena tábua que servia de “[...] armação ao peito da Zilda era de pinho que vem do pinheiro que produz o pinhão, de que tanto gostas” (Puiggari & Barreto, 1931, p. 84-87), pertencendo Zilda, portanto, aos três reinos.
A ‘Série’ privilegiou também a história do Brasil. Dentre as muitas lições uma que Álvaro escreveu em seu caderno, tratava sobre as muitas minas de ouro e diamante que havia nos sertões do Brasil. Na busca pelo ouro e diamante, Puiggari e Barreto (1931) apresentam os bandeirantes como desbravadores valentes e perseverantes que lutavam contra os índios e animais selvagens e venciam a maioria das disputas. Descrevem ainda a intensa busca e concorrência pela exploração das minas, fator gerador de graves contendas e o conflito entre paulistas e portugueses na disputa de minérios denominada guerra dos emboabas: “Os colonos portugueses também imitavam os paulistas na exploração do ouro. Os paulistas não gostavam dos portugueses e, por isso, para ridicularizá-los, chamavam-nos emboabas” (Puiggari & Barreto, 1931, p. 142).
Os livros de leitura da Série Puiggari˗Barreto procuravam formar a criança, que, no futuro, se converteria em homem e faria o progresso do país. Não há espaço para abstenção, pelo contrário, os autores levam ao termo e ao cabo um projeto civilizador pela via da leitura. Estão sempre presentes nas lições frases que expressam quais são os atributos de um cidadão bem educado e de bom caráter, tais como: “[...] a felicidade de um homem depende só de si mesmo, isto é, da sua coragem e amor pelo trabalho; do modo correto e honesto como se dirige na sociedade; da sua tenacidade, da sua força de vontade” (Puiggari & Barreto, 1909, p. 13). O cidadão aqui referido é o que valoriza o trabalho, sendo sempre perseverante, polido, educado e útil. “A polidez é própria da boa educação, ninguém se arrepende nunca de ser educado” (Puiggari & Barreto, 1909, p. 13), diz tio José para Paulo.
Piccolo mondo e a leitura para as escolas étnicas italianas6
Em fins do século XIX é possível encontrar indícios de distribuição e circulação de livros italianos entre os imigrantes e seus descendentes (Luchese, 2014; Panizzolo, 2016a, 2016b). Na Itália, a partir de 1880 foram organizadas diversas conferências pedagógicas pelo Ministério da Instrução com o objetivo de discutir os livros escolares, que em 1871 ultrapassavam dois mil títulos, número que quase dobraria em dez anos. Em 1890, o Ministro da Instrução Pública Paolo Boselli afirma que a situação editorial voltada para a escola é uma verdadeira anarquia7 e que desejava organizar aquele emaranhado de publicações 8 (Chiosso, 2007, p. 8).
Um destes muitos livros produzidos na Itália é Piccolo mondo, letture per le scuole elementare, para a escola feminina e masculina. Em estudos realizados Panizzolo (2016a, 2016b) aponta que a série é composta pelo silabário, livro complementar ao silabário, livro de leitura para a segunda classe, livro de leitura para a terceira classe, livro de leitura para a quarta classe, livro de leitura para a quinta classe, de autoria de Fanny Romagnoli, professora integrante da Sociedade de professores bolonheses e Silvia Albertoni (ainda não foram localizadas informações sobre a autora), publicada pela importante editora Fiorentina Bemporad, que ao lado da Editora Mondadori detinham o maior número de livros aprovados pelo Ministério (Galfré, 2005).
Piccolo mondo foi aprovado para ser adotado nas escolas da península italiana e nas escolas italianas no exterior. De acordo com Barausse (2008) a Circular Ministerial n. 75, de 24 de setembro de 1900 aprovara o livro complementar ao silabário, com destaques às gravuras presentes. No ano de 1905 os livros foram também indicados para províncias específicas, conforme se vê na Tabela 2:
Região | Material adotado | |||||
Palermo, Genova, Ascoli- Piceno, Arezzo, Pisa, Como, Parma, Firenze, Catania | Piccolo Mondo - Sillabario | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | Piccolo Mondo- Per la 2ª classe | Piccolo Mondo- Per la 3ª classe | Piccolo Mondo- Per la 4ª classe | Piccolo Mondo- Per la 5ª classe |
Venezia | Piccolo Mondo - Sillabario | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | Piccolo Mondo- Per la 2ª classe | Piccolo Mondo- Per la 4ª classe | Piccolo Mondo- Per la 5ª classe | |
Caserta | Piccolo Mondo - Sillabario | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | Piccolo Mondo- Per la 2ª classe | Piccolo Mondo- Per la 3ª classe | ||
Reggio Calabria | Piccolo Mondo - Sillabario | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | ||||
Massa-Carrara Siracusa | Piccolo Mondo - Sillabario | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | ||||
Cuneo | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | Piccolo Mondo- Per la 2ª classe | Piccolo Mondo- Per la 3ª classe | |||
Potenza Piacenza Pesaro-Urbino | ||||||
Chieti Ancona | Piccolo Mondo - Sillabario | Piccolo Mondo- Per la 2ª classe | Piccolo Mondo- Per la 3ª classe | Piccolo Mondo- Per la 4ª classe | Piccolo Mondo- Per la 5ª classe | |
Cremona | Piccolo Mondo - Sillabario | |||||
Lecce | Piccolo Mondo - Compimento al Sillabario | Piccolo Mondo- Per la 2ª classe | Piccolo Mondo- Per la 4ª classe | Piccolo Mondo- Per la 5ª classe |
Fonte: Tabela construída pela autora a partir de Barause (2008).
O exemplar objeto de estudo neste artigo é de 1910 e refere-se ao volume indicado para o ensino de meninos e de meninas da quarta classe. O livro, de formato pequeno (10 cm de largura por 17 cm de altura) é composto por 311 páginas distribuídas por 156 historietas e poesias, sendo mais de um terço delas ilustradas. Os textos são produzidos em sua maioria pelas autoras, havendo, no entanto, excertos de textos de outros autores italianos. Piccolo mondo tem como núcleo central uma família, o pai, o Sr. Rosati, engenheiro da ferrovia, a mãe, a Senhora Clotilde, mulher educada que cuida da educação das crianças e os três filhos, Alberto de treze, Isabella de onze e Giorgio de nove anos. As histórias se desenvolvem em torno do núcleo familiar, relacionamento entre pai, mãe e filhos, e dos âmbitos de socialização dos quais seus membros tomam parte, a escola e o círculo de amigos. Uma menor parte dos textos pode-se considerar avulsa, desvinculada deste universo acima descrito.
Piccolo mondo apresenta uma preocupação com o ensino científico e com a valorização das Ciências Naturais. Nas historietas estão presentes temáticas voltadas à higiene, à saúde, à morte adulta e infantil, à nutrição, aos remédios e vacinas e às plantas. Um exemplo é a história de Giacinta, menina apresentada como de modesta condição, mas com uma aparência miserável: “[...] mesmo a pessoa de Giacinta deixava muito a desejar pela limpeza: o rostinho, seria muito bonito, era desfigurado em uma floresta de cabelo mal penteado, despenteado; e a brancura da pele era marcada com imundície ...” (Romagnoli & Albertoni, 1910, p. 12).
Por meio de textos descritivos que têm por finalidade fornecer noções básicas ao leitor, a natureza é apresentada harmoniosamente organizada e classificada, com um funcionamento eminentemente prático. Alguns exemplos são as historietas sobre os elementos grandes e pequenos do mundo vegetal, sobre tipos específicos de plantas, além das plantas de uma horta e de um bosque.
Há historietas voltadas aos saberes da Geografia, dessa forma as autoras dão continuidade ao ensino de Ciências Naturais, através de conteúdos que abordam diversos aspectos do meio ambiente. Os textos oferecem ao pequeno leitor algumas noções simples, especialmente sobre a água, presente em suas diferentes formas. As crianças são ensinadas também a respeitar e valorizar as estações do ano e seus respectivos climas e temperaturas, além dos diferentes tipos de relevos e o cultivo da terra. Com relação aos conteúdos que privilegiam o homem, Piccolo mondo descreve as experiências humanas com a caça, a pesca, o trabalho na agricultura e na indústria, além das invenções como o trem e o navio.
Quanto aos conteúdos que privilegiam a vida em sociedade, as autoras apresentam um relato sobre a Exposição de 1898 que aconteceu em Torino para explicar as diferentes raças humanas, a caucásia, etiópica, a amarela, a americana e a malásia. Ao fazê-lo, as autoras categorizam9 os seres humanos destacando os traços físicos observáveis nas crianças usando para isto adjetivos como belo, feio, grosso, liso, crespo, e apresentando ao seu leitor uma verdadeira hierarquia entre os seres humanos, conforme se lê abaixo:
As crianças da Terra Santa, os árabes e as meninas do alto Egito, com a pele quase branca, com perfil regular, com seus belos olhos, pareciam muito com o tipo europeu, pertencentes, na verdade, também a raça caucasiana; enquanto que as pequenas atrações eram o tipo perfeito da raça negra ou etíope: lábios grossos, nariz achatado, cabelos crespos e com aparência de lã: eram feios de fato [...] A raça amarela foi representada por meninos chineses; os meninos tinham aparência astuta e não eram muito feios; mas os mais velhos inspiravam pouca simpatia, com aquela pele amarelada, esticada sobre maçãs do rosto salientes, com olhos oblíquos e expressão estranha, e como aqueles cabelos negros e lisos, presos em rabos de cavalo [...] Vieram à Exposição alguns representantes da raça Americana ou vermelho-cobre, que se vieram da Terra do Fogo, na América do Sul meridional [...] Eu não vi qualquer representação da raça Malásia, e eu não acho que houvesse mesmo10 (Romagnoli & Albertoni, 1910, p. 42-45).
Ainda nesse mesmo texto, os países de origem das crianças são apresentados como semibárbaros ou completamente bárbaros, no entanto, como as crianças foram salvas pelos missionários italianos, que as libertaram da escravidão em que viviam ou da orfandade “[...] alguns puderam ensinar o idioma a muitas crianças nascidas e crescidas sob o belo sol da Itália” (Romagnoli & Albertoni, 1910, p. 46).
Estes textos sobre a vida em sociedade nos permitem compreender como uma realidade social é construída e pensada a partir das representações sociais determinadas pelos interesses dos grupos que as criam e que, portanto, não são neutras, ao contrário, são conduzidos por estratégias que visam legitimar seus discursos. Chartier (1994, p. 104) as define como um conjunto de “[...] representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os esquemas de percepção e apreciação a partir dos quais estes classificam, julgam e agem”.
O ensino da História, e especificamente da ‘história da pátria’, ocupa lugar de destaque nas páginas de Piccolo mondo, provavelmente considerada pela elite intelectual que pensava a educação na Itália, como sendo uma disciplina fundamental para a nação recém-unificada para a construção do patriotismo e do nacionalismo do povo italiano (dentro e fora da Itália). É ofertado ao leitor um passeio pelo país por meio de descrições e imagens de lugares e monumentos importantes da Itália: Caverna Del Farneto em Bologna; os canais e as gôndolas, a Scala dei Giganti, a Ponte dos Suspiros, a Ponte de Rialto, a igreja da Madonna da Saúde, de São Giovanni e Paulo, a Basílica de San Marco, a Torre do relógio em Veneza; a Arena, a Piazza dell’erbe e a igreja de Santa Maria in Organo em Verona; o Duomo dedicado a San Ciriaco, a igreja de São Francisco e de Santo Agostinho, as ruas e praças de Ancona; a Via Nazionale, a Via Roma, o Vesúvio em Napoli; o Etna em Catania; o Foro Romano, o Arco de Tito, o Arco de Costantino, o Foro Traiano, a Basílica de San Pietro, a Piazza de San Pietro e o Vaticano, a Fontana dell’acqua Paola em Roma etc.
Ao longo das historietas são apresentados também os heróis nacionais, de modo a unificar o país, através da construção de uma imagem idealizada, de uma representação com vistas a congregar diversos espaços e tempos e, sobretudo, unir o povo de diferentes regiões da península, sonho almejado pelo Risorgimento. As descrições das virtudes acompanhadas das imagens do Rei Umberto I, da Rainha Margherita, do Rei Vittorio Emanuele III e de Garibaldi estão presentes em Piccolo mondo.
O livro de leitura, no mais das vezes, era o único livro utilizado na escola primária brasileira, tanto para o ensino da leitura quanto para o ensino da Moral, do Civismo e da História Pátria, talvez o mesmo acontecesse na Itália. Aprendia-se a ler lendo um determinado padrão de conduta e aprendia-se a amar a pátria lendo pequenas historietas, notícias biográficas e depois excertos de leitura sobre importantes episódios da história que contribuíam para a formação do amor à Pátria.
Cabia ao livro de leitura o desafio de edificar na recém-unificada Itália a ideia de Pátria como o lugar onde as pessoas se identificam pela origem, costumes, língua e principalmente, pelo sentido agregador e unificador da Pátria-mãe, que acolhe a todos, criando assim uma identidade comum. Neste sentido, a temática da emigração tão presente na realidade social italiana também esteve presente no Piccolo mondo. Os emigrantes são apresentados como os que foram praticamente constrangidos a abandonar a terra natal em busca de sobrevivência e trabalho, enfim para ganhar o pão em terra estrangeira: “[...] eles deixaram o que de mais caro têm no mundo, a aldeia natal, a casa, os velhos pais, a igreja, o cemitério onde dormem muitos de seus entes queridos: tudo deixaram; logo dirão adeus também à Itália” (Romagnoli & Albertoni, 1910, p. 234).
Das historietas de Piccolo mondo emergem normas de convivência social e regras de condutas individuais e coletivas consideradas à época os pilares de uma sociedade ‘moderna’, portanto, as autoras pretenderam, em vez de descrever a sociedade, transformá-la. Neste sentido, a visão de infância e de crianças é idílica, revelando mais a imagem que se desejava do que a verdadeira imagem quer seja a imagem de uma criança forte, estudiosa, adaptada ao ambiente familiar, escolarizada, regrada, bem-comportada e higiênica.
Algumas considerações acerca da construção de identidades nacionais por meio da leitura
Puiggari, Barreto, Romagnoli e Albertoni, estiveram muito atentos por meio de suas historietas em disciplinar a alma e o coração das crianças, procurando ensinar a todos um código de civilidade, por meio da coerção do corpo e da imposição de normas de comportamento sociável.
As histórias e lições são, portanto, tratadas como “[...] instrumentos diretos de condicionamento ou modelação, de adaptação do indivíduo a esses modos de comportamento, que a estrutura e a situação da sociedade onde vive tornam necessários” (Elias, 1994, p. 95). Comportamentos usuais e compartilhados, em situações públicas, são substituídos por novos; aqueles se tornam aversivos, repulsivos, condenáveis, em uma palavra, ‘primitivos’; esses passam a ser esperados, tornam-se necessários, porque corretos, adequados, em uma palavra, ‘civilizados’. Àqueles comportamentos pouco a pouco abandonados, diz Elias (1994, p. 80), correspondiam “[...] um padrão de relações humanas e uma estrutura de sentimento”; aos novos comportamentos adquiridos, correspondem outro padrão de relações e outra estrutura de sentimento. Enfim, dizem respeito a outro padrão cognitivo e outra estrutura cognitiva.
É do processo civilizador, constata o autor, não só a mudança gradual dos comportamentos por força da mudança também gradual dos controles externos; na longa duração, o imperativo do controle sobre os comportamentos desloca o seu peso do grupo para o indivíduo, que passa a ser o principal policial do próprio comportamento (Elias, 1994). Aí está o instrumento mais poderoso de mudança comportamental do qual emerge o homem ocidental moderno e que as duas duplas de autores fartamente fazem uso em suas lições.
Neste processo de construção de civilidade, a obediência deve ser aprendida e apreendida por meio do autocontrole, que disciplina a vontade. Segundo Leão (2007, p. 64) o próprio ato de ler pode ser considerado “[...] um exercício permanente de autocontrole”. Neste sentido ao aprender a ler os textos, as lições e as historietas dos livros de leitura as crianças se inscreveriam num determinado aprendizado social, o de aprender a dominar suas emoções.
Os modelos de civilidade apresentados nos livros de leitura que circularam nas escolas étnicas italianas e nas escolas públicas de São Paulo entre fins do XIX e início do XX disseminaram as artes de bem conduzir-se em casa, na escola, na rua, na igreja, enfim, na sociedade. A boa leitura dos mesmos, por meio de uma leitura fluida, corrente, expressiva, encadeada já implicava em um cada vez maior domínio das emoções, levando à transformação sempre no sentido de um maior controle e restrições.
Os autores da ‘Série graduada Puiggari˗Barreto’ e de Piccolo mondo apresentam uma infância idealizada, tendo a preocupação constante em divulgar uma imagem de criança corajosa, sincera, respeitosa, amorosa, mas, principalmente, bondosa, obediente e digna. Os novos costumes são assim, pouco a pouco, impostos às crianças, obrigando-as a reprimir seus desejos impulsivos, vândalos, fracos e vingativos, substituindo-os pela prudência, bondade e sinceridade, ao mesmo tempo em que são afastadas da preguiça e impulsionadas ao trabalho. Os autores investiram sistematicamente para que as crianças leitoras de suas ‘Séries’ atingissem um nível de controle das emoções e que formassem determinados padrões de vergonha, de comedimento e de pudor que as habilitasse ao convívio social.
O estudo destes livros destinados à leitura na escola primária ou elementar indica muitas similitudes entre eles, como a recorrência das temáticas relacionadas à História, às Ciências Naturais, e à Higiene, além da inculcação de condutas morais e de valores, por meio da apresentação de uma infância idealizada e de crianças virtuosas, obedientes, cumpridoras das normas e preceitos considerados adequados à época, enfim, de crianças civilizadas. Mas o que as produções brasileira e italiana apresentam de especificidade e de divergência?
Ao que parece o ensino das Ciências Naturais e da Higiene são comuns. Mas há especificidades quanto ao ensino da lingua e da História. O livro Piccolo mondo expressa uma preocupação presente entre os que defendiam a criação de uma italianidade, por meio da imprensa, das instituições e associações de imigrantes italianos e, sobretudo, da escola italiana. Para atingir o intento de formar a alma, o caráter e a fé das crianças e adolescentes, a escola italiana deveria manter e aprimorar as características étnicas italianas, conservando estreitos os laços com a mãe-pátria, por meio do ensino da língua italiana e do estudo da história.
Do lado de cá, reclama-se as mesmas disciplinas, mas desta feita, voltadas ao Brasil e à língua portuguesa. No Anuário do ensino do estado de São Paulo de 1907, o Inspetor Miguel Carneiro Junior apresentou as escolas italianas como “[...] verdadeiramente perniciosas para nós, porque transformam em cidadãos italianos as crianças brasileiras que as frequentam” (São Paulo, 1907, p. 397). Argumento semelhante apresentou o Inspetor João Lourenço Rodrigues no mesmo Anuário:
Nestas condições, taes escolas serão verdadeiramente perniciosas em seus effeitos, porque preparam, de brazileiros natos, uma geração futura de italianos que serão, em face das nossas leis, cidadão brasileiros, terão de partilhar comnosco a vida nacional, serão chamados um dia a desempenhar um papel em nossa organisação econômica e política (São Paulo, 1907, p. 43).
Os livros de leitura de Puiggari˗Barreto aprovados e adotados nas escolas primárias paulistas atenderiam a estes reclamos, imprimindo em suas páginas historietas em lingua materna, além de ensinamentos que enalteciam a História, com seus vultos, nomes e feitos.
Piccolo mondo oferece ao longo de seus livros a aprendizagem dos saberes elementares do ler, escrever e da História, mas também, ensinamentos constituidores do patriotismo, sobretudo, a responsabilidade em ‘italianizar’ os que para cá vieram de uma Itália recém-unificada, ‘italianizar’ justamente por meios dos livros de leitura.
A ‘Série Puiggari˗Barreto’, valorizando e ensinando estes mesmos saberes busca constituir o cidadão brasileiro, mas o faz a partir do modelo paulista, dos valores, heróis, monumentos paulistas, emblemático o excerto apresentado anteriormente sobre os bandeirantes. Pode-se dizer, que nesse movimento, ao mesmo tempo em que internamente, especificamente em São Paulo almeja-se ‘paulistanizar’ os que aqui chegaram, que como estrangeiros eram reconhecidos e como italianos nomeados, para além das fronteiras do estado de São Paulo, intenta-se ‘paulistanizar’ os brasileiros do país (Panizzolo, 2013).
Romagnoli, Albertoni, Puiggari e Barreto expressaram em seus livros um projeto civilizatório, em que a formação do cidadão, o amor à pátria, o reconhecimento e a valorização dos heróis, dos valores, da língua, dos grandes feitos, dos monumentos e das paisagens ganharam proeminência. Os autores reivindicaram em seus livros de leitura, produzidos nos dois lados do oceano Atlântico as marcas de uma identidade nacional almejada.