Introdução
O título deste artigo se refere à prática da leitura de textos, no âmbito da universidade medieval, e diz respeito ao ensino cultivado por mestres e alunos segundo normas pedagógicas institucionalizadas. Nos dias atuais, numa palestra ou em sala de aula, vale a pena recordar as palavras de Paulo Freire, para quem a leitura “[...] se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (Freire, 1989, p. 9). Mas, afinal, o que é ler? Para uma resposta inicial, seria mais prudente nos atermos à leitura do texto escrito, deixando de lado outros tipos de leitura, igualmente importantes, como, por exemplo, aquelas relacionadas com a atribuição de significados às coisas que vemos, quando dizemos que alguém ‘leu’, nas nuvens escuras do céu, a chuva que estava por chegar. Quero ressaltar a importância da leitura do texto escrito. Será que, na leitura do texto escrito, alcançamos a totalidade daquilo que é proposto pelo autor? Por grande esforço que façamos na leitura e compreensão do texto, não fica algo (ou muito) de ilegível? Por vezes, o que é escrito é marcado pela insuficiência de conteúdo e ideias, ou de seu oposto, pelo excesso, que nos distancia da sua compreensão.
Poder-se-ia dizer, num primeiro momento, que ler não significa prender-se à literalidade das palavras ou à simples fruição delas, mas ao desprender-se do texto, abandonando certa passividade, a fim de construir laboriosamente a realidade mental não dita no texto. Em outras palavras, ler não é apenas a assimilação gramatical do texto (sintaxe e léxico), mas o esforço de compreender o que é dito. A assimilação gramatical é a parte ‘exterior’ da leitura e a compreensão a sua parte ‘interior’, porque marcada pela reflexão. Tomemos como ilustração determinada prática do ensino de filosofia, no âmbito universitário, onde ensinar se baseia no ler e no ensinar a ler, de modo que a formação filosófica se dá através da leitura dos textos filosóficos constituídos como tais pela história da filosofia. Na leitura da obra filosófica, há de se ressaltar o equilíbrio entre a objetividade do texto e a subjetividade do leitor, pois não se trata de retomá-lo literalmente, nem deformá-lo pela intervenção do leitor. Nesse sentido, Merleau-Ponty convida o leitor a ‘pensar de novo’, no momento em que lê uma determinada obra filosófica, de sorte a reencontrar as significações postas pela mesma: “[...] e pensar de novo não é repetir, é renovar pensando aquilo que se esconde entre o significado e a significação explícita” (Chauí, 1980, p. 431).
O exercício da leitura foi uma preocupação constante entre os mestres do período medieval, algo consignado, seja nas advertências daquelas leituras que não edificam a formação do caráter do cristão, por cultuarem tão somente a eloquência e não a virtude da sabedoria (Isidoro de Sevilha), seja pela importância dada ao saber ler e aos modos pelos quais devemos ler determinado texto (Hugo de São Vítor), a fim de formar um ‘leitor cuidadoso’ (Abelardo) e preparado para enfrentar os grandes temas da filosofia, como aqueles oferecidos nas escolas do século XII, ou na futura universidade do século XIII. A leitura faz parte, primeiro, do ensino das escolas e, depois, das universidades. Na escolástica, há a tomada de consciência do ato de ler como o traço distintivo do ensino, conforme bem frisou Chenu, um estudioso a quem devemos vários estudos de filosofia medieval: “[...] toda a pedagogia medieval baseia-se na leitura de textos, e a escolástica universitária institucionaliza e aplica este trabalho” (Chenu, 1950, p. 51). Veremos, neste artigo, como se consubstancia a leitura, na tradição medieval presente no ‘método’ preconizado pelos autores da escolástica e, em particular, destacaremos a ‘leitura’ de Tomás de Aquino do tratado Sobre a Trindade, de Boécio, no tocante ao tema da classificação do saber teórico.
O método escolástico: quaestio et auctoritas
Ao abordarmos a lectio/lectura para os medievais, entramos na questão do ‘método escolástico’, um procedimento pedagógico da principal instituição da sociedade medieval, a universidade, a qual é organizada como uma corporação de ofício (de mestre e alunos), com regras muito bem delimitadas. Essa universidade medieval é inseparável daquilo que, na esfera da cultura da época, se denomina ‘escolástica’, cujo ensino magistral é o foco e o elemento irradiador da mesma universidade. A corporação de professores e alunos define os textos que serão objetos de leitura, isto é, de comentário, bem como aqueles textos que são proibidos. O texto, quer filosófico, quer teológico, exige a preparação do leitor, o domínio de técnicas de aprendizado e a superação de dificuldades. Mas, antes de tratar desse procedimento pedagógico, convém estabelecer previamente a origem do método escolástico e o papel da autoridade, que lhe pertence de modo essencial.
O ‘método escolástico’ tem o seu lugar de nascimento na Idade Média latina dos sécs. XII e XIII, sendo amplamente desenvolvido na prática pedagógica das universidades. Antes disso, não era possível aludir a método como forma de aquisição de saber, mas de um ‘ideal cultural’, como aquele preconizado por Agostinho, ao fazer o denso e elaborado trabalho de recepção de elementos da cultura antiga (Jeauneau, 1980). A sua obra, A Doutrina cristã, forneceu o exemplo dessa formação cultural para o cristão, ao defender a apropriação cultural dos antigos (filósofos) em benefício dos cristãos: “[...] os que são chamados filósofos [...] é preciso não somente não serem temidos nem evitados, mas antes que reivindiquemos essas verdades para o nosso uso” (Agostinho, A doutrina cristã, II,41,60). Mario Vitorino, tradutor de Porfírio e autor de obras de gramática e de teologia trinitária, pode ser citado também como um autor importante para o estabelecimento desse ideal cultural cristão.
Mas é com Boécio (2005), um filósofo romano que viveu na passagem do século V para o VI, que será possível depreender as origens do método escolástico e sua influência sobre os teólogos da Idade Média. É como tradutor de Aristóteles (especialmente o Órganon) e autor de obras filosóficas (A consolação da filosofia) e teológicas (A santa trindade), que Boécio fornecerá um modelo de exposição filosófica na qual são apresentados temas como a predicação divina, a relação entre razão e fé, a divisão da filosofia em especulativa e prática, da qual resulta a instigante discussão sobre o estatuto da lógica, se ela é uma arte ou uma ciência, e ainda se devemos considerá-la como parte da filosofia, ou apenas como instrumento e a serviço dela. Esses temas são decisivos para a filosofia medieval do século XII e, como veremos mais abaixo, para o século XIII, na leitura feita por Tomás de Aquino.
Pode-se sustentar que o elemento central do método escolástico está consignado naquilo que Boécio entende por quaestio, no sentido de uma propositio dubitalis, isto é, uma proposição cuja formulação apresenta uma dúvida e cujos membros formam uma contradição. No cabeçalho de sua obra A santa trindade, surge o título que pode ser tomado como uma pergunta: Como a Trindade é um Deus e não três deuses - uma questão que coloca em jogo as noções de unidade e pluralidade em Deus. Há que se ressaltar, nessa questão acerca da Trindade, o tema da predicabilidade divina, pois uma coisa é predicar uma categoria dos seres compostos, outra é a predicação divina. Por exemplo, ao dizermos ‘Deus’ como substância, não estamos a dizer qualquer substância, como uma pedra ou rio, mas aquilo que está para além da substância. Não aceitar isso gera dúvidas e controvérsias.
No início da escolástica, ou da primeira escolástica, conforme alguns historiadores da filosofia a chamam, um autor como Anselmo de Cantuária (1984) mais de uma vez utilizou o termo quaestio. Para Anselmo, esse termo está relacionado com um problema a ser resolvido, o qual é interno à própria argumentação ou, em certos casos, provém de uma dificuldade externa e serve como um tópico de reflexão. Mas o seu uso mais incisivo está na sua última obra, o De concórdia (Sobre o acordo), que comporta objetivamente três ‘questões’: 1) sobre a presciência e o livre-arbítrio; 2) sobre a predestinação e o livre-arbítrio e, 3) sobre a graça e o livre arbítrio. Trata-se, enfatiza Anselmo, de três difíceis questões (dificiles quaestiones), de grande relevância no seu pensamento moral. Como exemplo da estruturação de uma questão, basta citar a terceira, uma vez que ela nasce (ista questio nascit) do fato de que a sagrada escritura parece atribuir, em certos momentos, apenas à graça o trabalho de salvação (corroborado pelas seguintes passagens bíblicas: Jn 15,5 e 6,44; 1Co 4,7: Rm 9,16-18) e, noutros momentos, apenas ao esforço do livre-arbítrio (como nas seguintes passagens: Is 1,19; Sl 33,13-15; Mt 11,28-29). A questão, assim apresentada, parece opor graça e livre-arbítrio, como se fossem termos inconciliáveis, sendo a sua tarefa desfazer a aparente contradição e a dificuldade suscitada. A apresentação de teses contrárias permite que a questão seja abordada, e a sua solução será estabelecida numa estrita argumentação dialética.
O núcleo essencial do método preconizado por Boécio, o qual fora usado preliminarmente por Anselmo, será colocado à prova, com toda a clareza, por Abelardo, no prefácio de seu Sic et non (‘Sim e Não’), uma obra pioneira no estabelecimento do método escolástico. Essa obra reúne uma coletânea de citações extraídas da autoridade dos padres da Igreja, que dão margem a determinada “[...] questão por causa de alguma discordância que pareçam ter, de modo que incitem os leitores iniciantes ao exercício máximo da pesquisa da verdade e os tornem mais penetrantes por meio da pesquisa” (Abelardo, 2015, p. 127). Essas questões apresentam uma peculiaridade, inscrita no fato de que elas não só parecem diversas, mas são adversas. Isso não diz respeito à contradição entre os textos, todavia, aos limites de nossa compreensão:
[...] para perceber que eles não se contradizem e, portanto, reconciliá-los, devemos ter em conta que seus autores muitas vezes se exprimem de um modo inusitado, usando, por exemplo, a mesma palavra em sentidos diversos; que muitos escritos apócrifos se misturaram com os autênticos; que textos foram as vezes alterados e corrompidos, o que ocorre inclusive com as Escrituras (Nascimento, 1988, p. 47).
A interrogação meticulosa e o papel da dúvida serão o caminho para o entendimento. A verdade é para ser descoberta, e todo ponto de vista, certa opinião, pode ser melhorada. O leitor e estudioso de um tema, seja ele filosófico, seja teológico, deve estar atento às diferentes significações dos termos nas suas diversas enunciações, segundo prescreve a regra quatro do Sic et non de Abelardo. Quando dois autores possuem posições divergentes sobre um mesmo assunto, ou uma mesma fonte apresenta opiniões divergentes, cabe investigar qual o contexto em que seus juízos foram emitidos e o valor das significações dos termos aí empregados. A ciência não é o reflexo estático da ordem divina, nem a repetição das teses com valor de autoridade, contudo, é um conjunto de proposições humanas que devem ser aperfeiçoadas. Abelardo, quando faz o seu ofício de teólogo, discute a significação das três pessoas da Trindade; ao refletir sobre a ética, quer saber a definição de pecado (Jolivet, 1987). A regra principal do método é apoiada numa análise lógico-semântica. A lógica terminista levará a cabo essa tarefa. Abelardo era um professor de dialética, cujo objetivo, dentre outros, era ensinar seus alunos a aguçar o espírito em vista das discussões e lhes fornecer conteúdos para os exercícios em teologia, conforme atesta Jolivet (1987, p. 28): “[...] o autor do Sic et non não é um teólogo que conhece dialética, como muitos outros autores do sec. XII. É um teólogo que, de início, foi dialético e assim permaneceu toda a sua vida trabalhando ao mesmo tempo nos dois domínios”. Em suas diversas obras, encontraremos uma grande contribuição à técnica da quaestio, de maneira que podemos afirmar, com segurança, que o método escolástico tem aqui a sua certidão de nascimento. Ao lado de Abelardo, nesse século XII, devemos acrescentar o nome de Gilberto Porretano e Clarembeau d’Arras.
Conceito importante para abordar o método escolástico é aquele de autoridade (auctoritas). Os medievais, no tocante à produção do conhecimento, não partiam do zero, não faziam tabula rasa do conhecimento, mas buscavam autores e textos da tradição, os quais eram o fundamento de suas reflexões, ponto de partida e suporte para suas considerações. Trata-se aqui das autoridades. Fazer uma citação, relembrar a tese de um autor, não era um recurso de ornamento retórico, porém, uma peça central na argumentação e contra-argumentação.
A origem do termo auctoritas pertence à esfera jurídica, onde significava a prova escrita que afiançava, dava garantia, numa relação de negócios. O auctor/authenticus significava aquele que dava a credibilidade, aquele que era crível, verídico. Uma autoridade, na Idade Média, é aquela em que as opiniões e decisões faziam autoridade em função de sua posição, quer canônica, quer jurídica ou intelectual. Interessa-nos aqui a autoridade intelectual, pois é aquela que representa a verdade, porque a viu ou a disse. Assim a auctoritas augustini (autoridade de Agostinho) implica que os textos de Agostinho são verdadeiros garantidores da verdade. São Boaventura é considerado o doutor mais ‘autêntico’ (que contém valor de verdade), dentre os exegetas da Sagrada Escritura. O texto da autoridade não é um mero suporte externo, uma peça de verdade racional. A auctoritas torna-se uma verdade, racional ou revelada, colocada em palavras, isto é, escrita em vista de um emprego útil para a posteridade. Vale observar que não é correto vincular de um modo direto essa ideia de autoridade de um texto com a autoridade doutrinal da Igreja, não obstante ser um fato que, a partir de 1220, a Igreja (seus bispos e sínodos) reforçava a autoridade intelectual, proibindo a leitura de certos autores, como é o caso da condenação das obras de Aristóteles e do chamado averroísmo latino.
É a partir da ideia de textos de autoridade que a Idade Média irá estabelecer quais são os verdadeiros auctores que serão tomados como leitura obrigatória. Desse modo, em Teologia, encontramos a Bíblia, os Padres da Igreja e Pedro Lombardo; para as disciplinas do trivium, em gramática, temos Donato e Prisciano, em lógica, Aristóteles e Boécio, em retórica, temos Cícero; em Direito, o monge Graciano; em Medicina, o Cânon de Avicena; em Filosofia, Platão (antes de 1200), Calcídio, Macróbio, Boécio e, depois de 1200, já em pleno século XIII, Aristóteles.
A Lectio
A religiosidade cristã conhecia o emprego do termo lectio no chamado mundo monástico, no qual a principal ocupação do monge era a lectio divina, a leitura do texto da Sagrada Escritura, especialmente os livros sapienciais. O livro tornava-se, assim, um dos principais instrumentos da prática cotidiana dos monges, de modo que era preciso possuí-los e ser capaz de lê-los. Um traço característico dessa lectio monástica era o fato de ser uma leitura em voz alta, uma ‘leitura acústica’, bem diferente da leitura silenciosa que se consolidou posteriormente. O legere (ler) não está dissociado do audire (ouvir), de maneira que a atividade de leitura para os monges, como o canto e a própria Escritura, ocupa “[...] todo o corpo e o espírito” (Leclercq, 1990, p. 32). A assimilação da leitura realizada dava-se pelo intermédio da meditatio (meditação), algo pessoal e demarcado pela interioridade. Isso também pode ser depreendido no mundo monástico, como aquele vivido por Anselmo. A ocupação principal do monge - a lectio divina - inclui a meditação. Esta se constitui numa conquista progressiva da interioridade, em vista de um autoconhecimento da alma, para buscar o Deus assumido pela fé: um itinerário da mente para Deus. O sentido geral de meditari é pensar e refletir; logo, é um termo correlato a cogitare e considerare, ambos muito utilizados por Anselmo. Em seu sentido prático, é pensar em algo com o objetivo de realizá-lo, o que contém em si a ideia do preparar-se e antecipar-se. No âmbito do mundo cristão, meditari está relacionado primeiramente e diretamente com a lectio: para os antigos, meditar é ler um texto e tê-lo dentro de si, para poder expressá-lo com a boca, fixá-lo na memória, apreendê-lo com a inteligência e colocá-lo em prática com a vontade.
Um testemunho eloquente da importância da lectio, na tradição cristã da pré-escolástica, é oferecido por Isidoro de Sevilha (século VII), no seu comentário às Sentenças, ao enaltecer a assiduidade do cristão na leitura das Escrituras e dos santos Padres, e de adverti-lo do perigo representado pela ‘ficção dos poetas’, pois pelo prazer das fábulas se produz o incentivo da luxúria. Qual o proveito, dirá ainda, em aumentar o conhecimento das doutrinas mundanas e tornar-se vazio das doutrinas divinas, posto que as sentenças dos gentios brilham exteriormente pela eloquência, mas interiormente são desprovidas da sabedoria da virtude (Isidoro de Sevilha, 2009). Na leitura, deve ser apreciada a verdade e não as palavras. O ensino dos gramáticos até pode ter utilidade à vida, se for bem empregado. Ainda que a leitura seja útil à instrução, mais importante que ela é a prática do diálogo, “[...] pois é melhor conversar do que ler” (Isidoro de Sevilha, Los tres libros..., III,13,1), uma vez que o diálogo facilita a aprendizagem.
Para tratarmos com propriedade do tema da lectio, devemos voltar aos autores do século XII. Não se pode deixar de mencionar, na história do papel da lectio, o lugar essencial que é reservado à obra Didascalicon (da arte de ler), de Hugo de São Vítor1, escrita em 1127 e que se configura como uma introdução ao estudo - eis o sentido aqui de lectio - das artes e da ciência, ocupação maior da filosofia. O título da obra é um termo grego que significa a arte de ensinar ou instruir, e lectio diz respeito ao estudo. O prefácio da obra é instrutivo a esse respeito: “Há duas coisas por meio das quais uma pessoa adquire conhecimento, a leitura e a meditação (lectio et meditatio)” (Hugo de São Vítor, Didascalicon, I, 1). Hugo fala das regras (praecepta) da leitura: “[...] primeiro saber o que se deve ler; segundo, em que ordem se deve ler; terceiro, como se deve ler” (Hugo de São Vítor, Didascalicon, I, 1)2. A lectio medieval comporta três fases: a littera, que é a explicação literal do texto, voltada para a clarificação das palavras empregadas; o sensus, que é a explicação do conteúdo do texto; e a sententia, que é a explicitação da significação e intenção profunda do texto. Esta última é vista como o coroamento do trabalho interpretativo. Hugo de São Vítor assinala que a compreensão profunda do texto somente é possível pela exposição ou interpretação (Hugo de São Vítor, Didascalicon). Além da ordem da leitura, torna-se importante a forma pela qual ela se desenvolve: das coisas finitas para aquilo que é infinito; das coisas que são por nós mais conhecidas para o que é mais oculto. Tal trabalho de divisão é o próprio operar da razão na qual investigamos, “[...] ao descermos do universal para os particulares, dividindo e investigando a natureza de cada coisa” (Hugo de São Vítor, Didascalicon, III, 9). Isso posto, Hugo é instado a fazer a classificação das ciências e estruturar o edifício científico, compondo a lista mais completa e detalhada do saber de seu tempo. A filosofia, conjunto das artes ou ciências, divide-se em quatro grandes áreas:
Ciências teóricas ou especulativas: a teologia, a matemática e a física;
Ciências práticas: a solitária (ética); a privativa (doméstica) e a pública (ou civil);
Ciências mecânicas: lanifício, guerra (arquitetônica e metalurgia); navegação, agricultura, caça, medicina, teatro;
Lógica: gramática (letras, sílaba, dicção, oração); arte de argumentar (demonstração provável, dialética, retórica, sofística, poesia)3.
No âmbito das escolas urbanas, o legere está associado à ideia de leitura de um texto, conforme preconizado por Hugo. Outro autor desse período, João de Salisbury, aponta a ambiguidade do termo legere, o qual designa ao mesmo tempo o ato de ensinar e o ato de ler. A passagem deve ser citada na íntegra:
Mas pelo fato do termo legere ser ambíguo tanto para o trabalho daquele que ensina e daquele que aprende, quanto para a atividade daquele que examina as Escrituras por si mesmo, que seja utilizada uma palavra específica concernente à troca entre o docente e o discípulo (para utilizar o termo de Quintiliano), a de praelectio; para referir-se ao exame atento das escrituras usa-se uma outra, chamada simplesmente lectio (João de Salisbury, Metalogicon, I,35 ).
O termo praelectio refere-se ao ensino, e o termo lectio, à leitura pessoal4. Essas obras do século XII - um período de transição - são fundamentais para se pensar a leitura medieval, e pode-se sublinhar que são testemunhos de como os medievais concebiam o ensino (o acesso ao saber), a leitura e a maneira de argumentar. É desse período que encontraremos certos instrumentos de trabalho os quais são indispensáveis para a leitura e a compreensão de temas estudados em diversas áreas, como a Glosa ordinária, na compreensão do texto bíblico, o Decreto de Graciano, para os estudos da área jurídica, e o famoso Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, uma verdadeira suma do saber dos padres da Igreja, indispensável para o estudo da teologia. O seu prefácio é revelador de sua intenção: “[...] reunir num breve volume a opinião dos padres a fim de que o pesquisador não tenha necessidade de consultar uma grande quantidade de livros, ele a quem a brevidade dos resumos reunidos oferece sem esforço o que procura” (Pedro Lombardo, Les quatres..., praefatio).
Jacqueline Hamesse destaca que o desenvolvimento progressivo dos florilégios, compilações, resumos e concordâncias levou a um empobrecimento do texto lido, uma vez que, por razões de rapidez e acessibilidade das informações, deixava-se para um segundo plano o texto original (Hamesse, 1998). Na Faculdade de Artes, circulava entre os alunos florilégios da filosofia aristotélica, com o intuito de resumir e explicar teses difíceis do estagirita. Os quatro volumes das Sentenças de Lombardo eram resumidos num único volume, com índices, subdivisões e resumos das principais teses expostas. Fazia-se uma consulta rápida, em busca da informação desejada. Obviamente, aqui se apresenta o problema da seleção dos textos compilados e de sua qualidade, o que implica a recepção do pensamento do autor estudado.
Tomás de Aquino e comentário ao De Trinitate, de Boécio
Um exemplo da prática pedagógica do ensino na Idade Média pode ser entrevisto no comentário de Tomás de Aquino ao tratado Sobre a Trindade, de Boécio. Ao ler e expor o texto de Boécio, Tomás de Aquino apresenta a sua maneira de entender o estatuto científico da teologia, bem como aquelas questões a ela pertinentes, como a cognoscibilidade de Deus, a relação entre razão e fé, a distinção entre a teologia e as outras ciências especulativas (física e matemática), e o modo de proceder do discurso teológico. Esse comentário de Tomás de Aquino remonta ao seu primeiro ensino parisiense, entre 1252-1259, sendo a sua redação concluída entre o fim de 1258 e o início de 1259. Tomás de Aquino foi o único autor do século XIII a comentar esse texto de Boécio, em contraste com o século XII, que teve mais de 20 comentários, período conhecido por ‘Idade Boeciana’. Antes da introdução e afirmação do texto aristotélico da Metafísica, o pensamento especulativo tinha em Boécio, principalmente nesse estudo obre a Trindade, um aprofundamento metafísico a propósito da questão do estatuto ontológico e do alcance das categorias, já que a possibilidade de interpretar as pessoas da Trindade através da categoria de relação leva à reconsideração da totalidade do quadro categorial.
O comentário de Tomás ao texto de Boécio apresenta-se sob um duplo aspecto: primeiro, como uma exposição literal do texto de Boécio; segundo, como uma série de questões que examinam de modo detalhado passagens do texto comentado5. A exposição de Tomás se refere ao proêmio, ao capítulo primeiro e a uma parte do capítulo segundo e, a cada uma dessas três seções, seguem-se duas questões com quatro artigos cada uma, totalizando seis questões e 24 artigos. Tais artigos seguem a estruturação clássica da ‘disputa’: para cada tema proposto, fornecem-se os argumentos a favor de uma possível solução; depois, os argumentos a favor da solução oposta (sed contra) e, por fim, a exposição da própria solução (responsio) e a respectiva réplica de todos os argumentos apresentados a favor da solução rejeitada (ad argumenta)6. O tema da divisão da filosofia especulativa e da distinção de seus modos de proceder aparecem, respectivamente, nas questões 5 e 6.
É oportuno ressaltar dois temas filosóficos que serão considerados por Tomás de Aquino, no artigo primeiro da questão 5: a determinação conceitual do par especulativo/prático, no domínio das ciências, e a sua posição quanto à divisão estoica da filosofia.
A distinção entre as ciências especulativas e as ciências práticas fundamenta-se na finalidade visada por cada uma delas: as primeiras têm por fim a verdade, enquanto as segundas têm almejam a ação. Admitido que a matéria de uma ciência é sempre proporcional ao seu fim, temos que a matéria das ciências práticas consiste naquilo em que podemos realizar, “[...] coisas que podem ser feitas por nossa obra [...]” e que, de alguma forma, estão em nosso poder, diferentemente da matéria das ciências especulativas, as quais não dependem de nós (Tomás de Aquino, Comentário ao tratado..., q.5, a.1, respondeo). A distinção entre as ciências especulativas é pensada a partir da consideração do objeto a que se refere cada ciência, concebido por Tomás de Aquino como objeto de especulação ou especulável, ou ainda como objeto do conhecimento científico teórico. Esse especulável deve comportar dois traços: ser imaterial e necessário, isto é, destituído de movimento. É a partir desse quadro que temos especuláveis que dependem da matéria para serem e aqueles que não dependem da matéria: a física se ocupa dos primeiros, ao passo que a matemática, do segundo. À teologia, ou ciência divina, referem-se os especuláveis que não dependem da matéria de forma alguma (como Deus e os anjos) ou aquilo que é negativamente imaterial (substância, qualidade, ente, ato e potência). A teologia também “[...] é chamada de metafísica, isto é, além da física, porque ocorre a nós, que precisamos passar do sensível ao insensível, e de filosofia primeira, na medida em que todas as outras ciências, recebendo dela seus princípios, vêm depois dela” (Tomás de Aquino, Comentário ao tratado..., q.5, a.1, respondeo). Cabe frisar que essa compreensão da ciência divina, para Tomás, revela o ‘caráter unitário da metafísica’ seja na medida em que entende Deus como principal matéria a ser considerada, seja na ordem do aprendizado, visto que vem depois da física, seja ainda porque ela estuda os princípios do conhecimento7.
O outro ponto a salientar é a posição crítica de Tomás em face da divisão da filosofia, não somente na sua acepção de origem estoica (em racional, natural e moral), como também na divisão clássica das sete artes liberais, conforme apresentada por Hugo de São Vitor8. Quanto à divisão estoica, Tomás afirma que a lógica é um auxiliar para as outras ciências: “[...] a lógica não está contida sob a filosofia especulativa com parte principal, na medida em que fornece à especulação seus instrumentos, isto é, os silogismos, definições e similares, dos quais necessitamos nas ciências especulativas” (Tomás de Aquino, Comentário ao tratado, q.5, a.2).A propósito da divisão da filosofia nas sete artes liberais, Tomás é enfático: “[...] as 7 artes liberais não dividem de maneira suficiente a filosofia teórica”( Tomás de Aquino, 1999, q.5, a.2). As sete artes têm apenas o papel propedêutico para aqueles que desejam estudar a filosofia, como atesta a autoridade de Hugo de São Vítor e também a de Aristóteles, “[...] porque o modo de proceder deve ser procurado antes nas ciências” (Tomás de Aquino, Comentário ao tratado..., q.5, a.3). O segundo aspecto diz respeito ao sentido do termo ‘arte’ (artes liberais), distinto das ciências teóricas e mesmo das artes mecânicas. São chamadas artes, “[...] porque implicam, não só conhecimento, mas uma obra que procede imediatamente da razão, como a construção de um silogismo, de uma oração” (Tomás de Aquino, Comentário ao tratado..., q.5, a.3).
Conclusão
A respeito das práticas pedagógicas da universidade medieval, no tocante à quaestio e à lectio, há de se reconhecer que não há ‘um’ ‘método escolástico’ mas ‘vários’, em consonância com a pluralidade das filosofias e teologias da Idade Média. Pensar o contrário seria admitir um mesmo método para toda a Idade Média e certa doutrina como normativa para o período, como se pudéssemos sustentar que o século XIII fosse o ponto alto da escolástica, o que veio antes não era ainda escolástica e o que veio depois foi o seu declínio. Isso seria tomar a escolástica pelo seu método escolástico. À escolástica pertence o aspecto escolar e didático da prática da teologia e das filosofias, que se caracteriza pelo emprego de um método. Escolástica é um nome coletivo que designa aqueles que praticam a filosofia e a teologia, e não está ligado, necessariamente e exclusivamente, ao período medieval, haja vista que encontramos escolásticos no mundo moderno, como é atestado pelos pensadores ibéricos do século XVI e XVII, em Portugal e Espanha. Uma forma de considerar as relações entre a história e a filosofia é saber que não há uma história dos problemas filosóficos (razão e fé, eternidade do mundo, transubstanciação), como se fossem autônomos e eternos; mas que são, antes, oriundos de questões institucionais, ou da interpretação de textos, que devem ser lidos e comentados. Esses problemas filosóficos são produtos da cultura e não são condições prévias para o saber filosófico.