Introdução
Nas últimas décadas, avolumaram-se as pesquisas no campo da Educação, com o objetivo de problematizar as noções de infância (Kuhlmann Jr., 1998; Sarmento & Gouvêa, 2008) e de juventude (Peralva, 1997; Oliveira, 1999, 2004; Tomio & Facci, 2009; Pinto, 2015), que passaram a ser compreendidas como produções sociais e históricas. Muito pouco se tem pesquisado, por outro lado, sobre ‘adultez’ e ‘velhice’1, embora, conforme mostram as tendências observadas na pirâmide etária brasileira, o Brasil esteja passando por um período de acelerado envelhecimento demográfico, com o aumento proporcional de adultos e idosos, sendo a população idosa a que mais cresce (Borges, Campos, & Castro e Silva, 2015).
Diante dessa nova configuração demográfica da sociedade brasileira, diversas questões se impõem para a área de Educação, demandando estudos que tomem o idoso como sujeito/objeto de pesquisa, a fim de compreender melhor como ele próprio se vê/se reinventa como sujeito e também para subsidiar práticas pedagógicas voltadas para/construídas com ele2. A análise de autobiografias escritas por idosos na contemporaneidade pode revelar-se, nesse contexto, profícua para se problematizar diversos desses elementos.
Bruner e Weisser (1995) entendem a escrita autobiográfica como um recurso que atende a uma possível necessidade do indivíduo ‘falar de si mesmo’. Para os autores, escrever sobre a própria vida permite, entre outros aspectos, a ‘autolocalização’, que seria o resultado de “[...] navegação que fixa a posição em um sentido mais virtual do que real” (Bruner e Weisser, 1995, p. 145). Em outras palavras, para os autores, por meio da autobiografia, aqueles que a escrevem se situam no mundo simbólico da cultura. Assim, a escrita autobiográfica permite que o(a) autor(a) dê sentido às suas vivências e experiências de vida a partir do arsenal cultural que possui no momento de elaboração da narrativa. Nesse processo, a escrita de si pode ser compreendida como um processo educativo, uma vez que torna possível o conhecimento de si e do mundo a partir da tentativa de aproximação e distanciamento do ‘eu’ que o (a) autor (a) realiza ao se propor a pensar sobre suas próprias experiências. Trata-se de pensar esse tipo de escrita como instrumento de aprendizagem, considerando tal atividade como ferramenta de reflexão sobre as experiências e práticas de quem escreve. Ou seja, a produção e o relato das próprias experiências por meio da escrita proporciona uma ampliação do conhecimento de si, de quem narra (Hernández, 2010; Kroeff, 2012; Passeggi, Vicentini, & Souza, 2013).
Analisar obras escritas por autores(as) idosos(as) possibilita avaliar de modo mais ‘intenso’ os efeitos do presente sobre as memórias no processo de invenção de si, uma vez que é a partir do presente que se (re)constrói o passado. Vale dizer que o termo ‘invenção de si’ não pretende diminuir a validade desse tipo de narrativa ou, como expressam Bruner e Weisser (1995), taxá-lo como ‘auto-relato tendencioso’. O uso dessa expressão se explica pelo fato de se apresentar como a mais adequada para se referir ao movimento de organização e reflexão dos fatos e experiências vivenciadas pelo autor(a) durante a escrita. Afinal, é compreensível que, ao narrar sua vida, o(a) autor(a) busque estabelecer certa ordem e coerência aos episódios narrados, de forma a dar sentido, por meio da narrativa, à sua existência (Bourdieu, 1986).
Com o objetivo de contribuir para ampliar a compreensão acerca da invenção de si na escrita de sujeitos idosos na contemporaneidade, este texto analisa oito autobiografias: cinco delas foram escritas por homens e três foram escritas por mulheres, todos nascidos em Minas Gerais na primeira metade do século XX, como será detalhado a seguir. Além das autobiografias, foram utilizados, como fontes complementares, dados censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] dos anos de 1920 (IBGE, 1928) e 1950 (IBGE, 1959).
A opção por obras publicadas a partir dos anos 2000 se justifica por se tratar de um momento em que já se encontra bastante consolidada uma nova concepção de envelhecimento no Brasil, que se intensificou significativamente a partir da década de 1960/1970, no interior de um movimento de reconfiguração dessa etapa da vida que, de um modo geral, era tida como uma fase de perdas. Entre essas mudanças, encontra-se a substituição dos termos ‘velho’ e ‘velhice’ por ‘idoso’ e ‘terceira idade’ que, conforme aponta Marques (2004, p. 66) “[...] agrega novas visibilidades e positividades”.
Vindo ao encontro dessa nova concepção sobre o envelhecer, a partir dos anos 1990 houve um boom nas publicações de caráter biográfico e autobiográfico, fenômeno acompanhado ainda por um tímido interesse por parte dos pesquisadores, advindos principalmente do campo da literatura (Gomes, 2004). Mais recentemente, na história da educação, tem havido o crescente interesse pela análise da escrita de si como prática cultural, bem como pela utilização dessas fontes para a reflexão sobre práticas e vivências escolares ou de aprendizagens, pouco registradas em outros documentos (Lopes, 2004; Melo, 2008; Manke, 2012; Galvão, Neiva, & Jinzenji, 2018).
Neste artigo, busca-se analisar um corpus documental impresso, cuja produção, como será discutido a seguir, teve motivações e endereçamentos diversos e nem sempre precisos ou declarados. Seguindo as proposições de Lejeune (2014), considerando as diferentes manifestações do gênero autobiográfico e a impossibilidade de delimitar as obras em uma ou outra definição específica, neste trabalho utilizamos textos escritos majoritariamente em prosa (embora os autores lancem mão de outros gêneros na composição das obras) em que os(as) autores(as) falam de si, narrando episódios de suas vidas - sejam eles vivenciados por eles mesmos ou recuperados de relatados de pessoas de sua convivência.
Busca-se discutir como autoras e autores idosos, pessoas comuns, inventam a si mesmos por meio da escrita autobiográfica, identificando, em um primeiro momento, o perfil desses sujeitos no contexto escolar e editorial brasileiro. Em seguida, problematiza-se como o pertencimento de gênero delineia fortemente os referenciais eleitos por cada um/a para o processo de autoinvenção. Por fim, discutimos como os significados do envelhecer também estão relacionados à construção de identidades de gênero.
Os autobiógrafos no contexto escolar e editorial brasileiro
Os sujeitos analisados na pesquisa escreveram suas autobiografias quando se encontravam com 65 anos ou mais, e tiveram as obras publicadas a partir dos anos 2000. Nascidos (as) no interior do estado, esses (as) autores (as) se mudaram para a capital em algum momento de suas trajetórias; na maioria dos casos, migraram em busca de melhores condições de vida, por meio da continuação dos estudos e/ou à procura de melhores empregos3. Esses dados podem ser visualizados na Tabela 1.
O mercado editorial brasileiro, que no início do século XX se concentrava em algumas poucas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, ampliou consideravelmente tanto suas fronteiras quanto a diversificação dos produtos, chegando, no início do século XXI, ao marco de mais de 500 editoras comerciais ativas (El Far, 2006). Proliferaram-se, assim, principalmente nas capitais, editoras de médio e pequeno porte, voltadas para a publicações de obras e textos variados, ampliando o catálogo editorial além das obras consagradas, de autores renomados, que já possuíam espaço nesse mercado. É o caso, como se pode observar na Tabela 1, das editoras nas quais foram publicadas as obras analisadas neste estudo que, com o barateamento dos processos de impressão e com a ampliação e diversificação do público leitor, abriram suas portas para os sujeitos comuns que desejavam escrever suas memórias e autobiografias. São elas: Líthera Maciel, Sografe, Redação, Mazza Edições, Gil Braz e Imprensa oficial de Minas Gerais, ainda ativas em Belo Horizonte4. Associados a essa abertura do mercado editorial brasileiro, outros elementos auxiliam na construção do perfil desses autobiógrafos: o percurso escolar e a intimidade com o escrito.
Entre os/as oito autores/as, como também se pode constatar na Tabela 1, três possuem o ensino primário, dois possuem o ensino secundário (Normal) e três concluíram o ensino superior. Segundo o recenseamento do IBGE (1928), em 1920 no Brasil, apenas um quarto da população sabia ler e escrever. Esse índice sofre uma queda quando analisamos Minas Gerais, em que esse grupo representa pouco mais de 20% da população. A discrepância entre esses índices é ainda maior quando comparamos a capital, cuja população que sabia ler e escrever representava cerca de 60%, e os demais municípios do estado: 11% da população de Itamarandiba (local de nascimento de Vicente Guabiroba) e 21% em Bom Despacho (local de nascimento de Maria da Conceição Teles) sabiam ler e escrever.
Embora em 1950 já seja possível observar um aumento significativo no número de pessoas de 5 anos ou mais que sabiam ler e escrever nas capitais e municípios, esse número segue sendo bastante discrepante quando comparamos os quadros urbanos e rurais dos municípios. Nesses últimos, o analfabetismo representava mais de 50% da população (IBGE, 1959).
Título | Autor (a) | Editora/ Local de publicação | Ano de publicação | Número de páginas | Ano de nascimento do(a) autor(a) | Local de nascimento do(a) autor(a) | Escolaridade | Data de migração para Belo Horizonte |
Outono Dourado em prosa e verso | Maria Horta Cabral Fernandes | Líthera Maciel Belo Horizonte | 2000 | 159 páginas | 1909 | Santa Maria de Itabira/MG | Primário (1917) | 1929 |
Minha vida, meu tesouro! | Maria da Conceição de Oliveira Teles | Redação! Belo Horizonte | 2003 | 184 páginas | 1923 | Bom Despacho/MG | Diplomada normalista (1940) | 1970 |
Sem medo de se encontrar | Therezinha Gonçalves | Mazza Edições Belo Horizonte | 2003 | 135 páginas | 1930 | Pirapora/MG | Primário - 1937 a 1941 | (aprox..1947) |
Minha vida & crônicas | Abram Ribeiro | Sografe Belo Horizonte | 2002 | 165 páginas | 1920 | Amparo do Serra/MG | Primário, s.d. | 1939 |
Rascunho de uma vida | Allyrio Nunes Coelho | Mazza Edições Belo horizonte | 2001 | 128 páginas | 1921 | Guanhães/Mg | Diplomado Normalista (1938) | s.d. |
Impressões de uma vida | Vicente Guabiroba | Gil Braz Belo Horizonte | 2006 | 196 páginas | 1922 | Itamarandiba/MG | Frequenta Seminário; Bacharelado em Direito | s.d. |
Trajetória de lutas | Olney Jardim | Sografe Belo Horizonte | 2006 | 141 páginas | 1925 | Araçuaí - Vale do Jequitinhonha/MG | Odontologia (1951) | 1947 |
Vá com Deus, mãe! | Vicente de Souza | Imprensa Oficial de Minas Gerais Belo Horizonte | 2003 | 207 páginas | 1935 | Água Comprida, zona rural de Boa Esperança/MG | Bacharelado em Direito pela UFMG (1964) | 1959 |
Fonte: Acervo da pesquisa (2011-2015).
Outro fator importante que deve ser observado é que duas das três autoras do grupo pesquisado são originárias de regiões em que, tanto na zona rural quanto no meio urbano, a diferença entre homens e mulheres que sabiam ler e escrever, na década de 1950, embora existisse, não era tão discrepante. Da população urbana de Pirapora, por exemplo, local de nascimento de Therezinha Gonçalves, 39,82% dos homens e 34,96% das mulheres sabiam ler e escrever; em Santa Maria de Itabira, local de nascimento de Maria Horta, 34% dos homens e 28% das mulheres sabiam ler e escrever5. Das localidades pesquisadas, essa diferença era sensivelmente maior somente em Boa Esperança (72 a 44%) (IBGE, 1959).
Em síntese, podemos dizer que se trata de sujeitos com trajetórias atípicas no desenvolvimento de relações com a leitura e com a escrita, se considerados em conjunto e em contraste com o restante da população dos locais e dos períodos. Fazem parte da minoria da população que, tendo acesso ao ensino primário, alguns deles na zona rural dos municípios em que viveram esse período da vida (a exemplo de Vicente de Souza, nascido em Água Comprida, zona rural de Boa Esperança e Abram Ribeiro, nascido em Garapa, próximo ao arraial de Amparo do Serra), galgaram melhores condições de vida por meio da migração, sendo a trajetória de alguns marcada pela longevidade escolar e de outros pelo autodidatismo (casos de Maria Horta Fernandes, Therezinha Gonçalves e Abram Ribeiro)6, como pode ser visualizado na Tabela 1.
Além disso, trata-se de sujeitos para os quais a escrita de si se insere num conjunto maior de práticas de escrita que foram sendo desenvolvidas ao longo de suas vidas, seja por motivos profissionais ou por afinidades e interesses pessoais, embora nenhum(a) deles(as) tenha sido escritor(a) por ofício. As autobiografias indicam que os autores desenvolveram atividades profissionais que demandavam o contato rotineiro com a leitura e a escrita, a exemplo de Maria da Conceição Teles, que atuou como professora primária, Allyrio Coelho, que foi diretor de ginásio e atuou como chefe de gabinete da Assembleia Legislativa, Olney Jardim, que se graduou em Odontologia e Vicente Guabiroba e Vicente de Souza, que se graduaram bacharéis em Direito, sendo que o segundo atuou como juiz de direito em Belo Horizonte. Além dessa intimidade com a escrita, cinco dos autores inserem outros textos de autoria própria na autobiografia, sugerindo terem intimidade com a escrita além das atuações profissionais.
Para citar um primeiro exemplo, Teles (2003) escreveu e publicou sua autobiografia - Minha vida, meu tesouro!- aos 80 anos; foi normalista na década de 1930 e atuou como professora por pouco tempo. Teve 15 filhos com Emídio Teles de Carvalho e, com o objetivo de possibilitar melhores condições de estudo para os filhos, mudou-se para Belo Horizonte em 1970. Na capital, a autora passou a trabalhar como costureira e bordadeira. É autora do livro Histórias da vovó: contos populares passados de pais para filhos, publicado em 2001 (Teles, 2001) pela editora Leitura. Escreveu sua autobiografia dois anos após sua publicação anterior, pela editora Redação. Inclui, na autobiografia, dois poemas de sua autoria: Obrigada, Senhor e Nada tenho (Teles, 2003).
Allyrio Nunes Coelho nasceu no ano de 1921, em Guanhães. Em 1938, foi diplomado normalista. Casou-se com Tonha, com que teve quatro filhos. Exerceu diversas atividades durante a vida: candeeiro, vaqueiro, vendedor de pães, auxiliar de engenheiro, agente municipal de estatística, marinheiro escriturário, professor, secretário da Prefeitura de Buritizeiro, diretor e um dos fundadores do Ginásio Pirapora e chefe de gabinete da Assembleia Legislativa. Escreveu e publicou sua autobiografia aos 80 anos, em 2001, pela Mazza Edições. Insere, ao final da autobiografia (Coelho, 2001), duas crônicas: ‘Lenços molhados’ e ‘O diálogo do amor e da morte’ que, por não terem conexão com o texto autobiográfico, provavelmente foram escritas independentemente.
Como último exemplo, temos Maria Cabral Horta Fernandes. Concluiu o curso primário, foi trabalhar aos 14 anos numa fábrica de tecidos em Itabira. Casada com Ilson Fernandes de Araújo, teve onze filhos. Por volta de 1928, com sua vinda para a capital de Minas Gerais, passou a trabalhar num ateliê de costura e, mais tarde, abriu uma loja de reformas de roupas e lavanderia com seu marido. Com a morte do marido em 1978, quando ela tinha 68 anos, a autora começou a frequentar o SESC, onde relata ter se descoberto como atriz, passando a se dedicar ao teatro e aos muitos comerciais de televisão para os quais era requisitada. Aos 90 anos, Maria Cabral Horta escreveu sua autobiografia intitulada Outono Dourado em prosa e verso, publicada pela editora Líthera Maciel, no ano de 2000. Além de mencionar a escrita de algumas peças teatrais, inclui na autobiografia 26 poesias de autoria própria, com temáticas variadas, sendo algumas delas: ‘Minha infância’, ‘Ipê florido’, ‘Buscando a felicidade’, ‘Cidade no interior’, ‘Agradecimento a meu pai’.
Percebe-se que, mesmo quando outros textos foram incorporados à autobiografia, esses escritos nem sempre foram produzidos para compor a obra, mas foram produzidos em momentos anteriores da trajetória dos (as) autores (as). E embora alguns desses textos atuem como complemento das narrativas autobiográficas, nem todos apresentam relação explícita com o conteúdo das obras. Por fim, Além da afinidade e da habilidade com a escrita, o seu reconhecimento pelos familiares e pessoas próximas são elementos que possivelmente influenciaram no processo de produção de uma invenção de si por meio da autobiografia, na terceira idade.
O atravessamento de gênero nos pertencimentos eleitos para a invenção de si
Segundo Galvão et al. (2018), para a escrita autobiográfica, cada escritor(a) tende a selecionar um pertencimento identitário com o qual está fortemente engajado(a) no momento da escrita, para dar sentido e coerência à sua vida. Tal escolha não é anunciada ou deliberada e envolve circunstâncias específicas do presente que se tornam o eixo da releitura do passado. Desse modo, pode-se considerar que, em diferentes momentos da vida, releituras distintas podem ser feitas do próprio passado. Na análise das oito obras escolhidas para esta pesquisa, cinco pertencimentos se destacaram: o religioso, o familiar, o socioeconômico, o profissional e o regional.
Pertencimento religioso
Das oito autobiografias analisadas, apenas em uma, escrita por uma mulher, o pertencimento religioso é eleito como eixo da narrativa.
Em Sem medo de se encontrar (2003), Gonçalves, que escreve aos 73 anos, faz uma releitura de sua vida a partir dos saberes adquiridos através da filosofia Seicho-No-Ie7 e das várias leituras e experiências religiosas vivenciadas ao longo de sua trajetória, como o espiritualismo e o catolicismo. Sua narrativa é marcada, portanto, pelo sincretismo religioso que, no texto, se traduz em diversas citações das referidas doutrinas, mas também pela interpretação de suas experiências passadas com o viés religioso e pela superação de dificuldades emocionais por meio da religião, como no trecho abaixo:
Sabia que não era uma criança bonita, pois não ouvia essas palavras. Ao contrário: certa vez, estava com minha mãe em um parque de diversões e fui sorteada com um lindo elefante vermelho. Uma senhora, que também participava do sorteio, descontente por não ter ganhado, olhou para mim dizendo: ‘Que menina feia foi sorteada!’ Na hora, ser feia tirou-me a alegria do presente que ganhara, e o mais triste: toda vez que olhava para o elefante vermelho me lembrava da ‘menina feia’. Hoje já não existe o elefante vermelho e nem a menina feia... Existe um ser adulto, que aprendeu a buscar o belo na grandeza da vida, onde nos unimos a Deus (Gonçalves, 2003, p. 30, grifo da autora).
A motivação da autora para escrever uma autobiografia também encontra relação com seu pertencimento religioso. Ao julgar que se encontra num lugar privilegiado de saber e de autoconhecimento, resultado de suas inúmeras experiências e leituras religiosas, Therezinha busca transmitir às pessoas esses ensinamentos para que possam melhor se conhecer, tendo uma vida mais harmoniosa. A influência desse sincretismo religioso também integra o pano de fundo do perfil que a autora busca traçar para si: “Tenho o temperamento do sexto raio, visto como a energia da devoção. Essa energia me conduz a uma vida mais interiorizada e voltada para a vida espiritual. Sempre tive forte inclinação para a Vida Criativa [...]”. (Gonçalves, 2003, p. 72).
Pertencimento familiar
Duas autoras elegeram a família como eixo de suas narrativas. Teles (2003), em Minha vida, meu tesouro! escreve em resposta à demanda dos filhos que querem homenageá-la pelos seus 80 anos. Declaradamente endereçada à família, a autora busca relatar sua trajetória de forma objetiva e enxuta, com a descrição de fatos e episódios vivenciados por ela e pela família e com a exaltação das qualidades dos filhos, netos e agregados.
Na obra, é possível observar o tom conferido à figura da própria autora como alicerce ou base familiar. Para a construção desse pertencimento, a autora inicia a escrita apresentando a árvore genealógica e, ao longo do texto, insere 46 fotos relativas aos familiares, e poemas escritos por ela ou pelo marido, que remetem a situações familiares vivenciadas em sua trajetória, como o que segue:
Obrigada Senhor,
Ser esposa e amiga é ser feliz sem medidas,
É dar e receber amor sincero…
É colher do amor os frutos da vida:
Nossos filhos amados, a quem tanto quero!
Obrigada, Senhor, por crianças tão lindas,
Que em nós confiam, com tanta ternura.
Belos olhares, para gente sorrindo,
Anjos do céu, com almas tão puras!
Obrigada, meu Pai, por tudo que temos:
Coragem, saúde, fé e amor.
Juntos a vós, sei que venceremos,
E por tudo isso bendigo ao Senhor! (Teles, 2003, p. 54).
Assim, ao ler a obra, é possível perceber a pretensão da autora em corresponder às expectativas anunciadas pelos filhos, assumindo o papel de mulher, esposa, mãe e avó (supostamente) resignada e feliz, mesmo diante de situações difíceis, como a responsabilidade pela criação dos 15 filhos praticamente sozinha, com o distanciamento do marido em função do trabalho.
Da mesma forma, Fernandes, escrevendo aos 90 anos, conta sua história elegendo a família como eixo. Em Outono dourado em prosa e verso (Fernandes, 2000), busca relacionar as memórias e histórias da família a fatos históricos marcantes, como a Lei Áurea, a Lei do Ventre livre, a primeira e segunda guerras mundiais, entre outros. Quando Maria Cabral descreve a casa em que seus avós viviam, se refere a um “[...] sobrado, em estilo colonial, da primeira metade do século XIX, construído em pau-a-pique, com pé direito muito alto era todo branco, com pesadas portas pintadas de azul e talhadas e maciça madeira de lei” (Fernandes, 2000, p. 16). Em outro momento, ao se referir a Filó, uma figura do tempo de seus avós, a autora escreve: “A Princesa Isabel já proclamara a Lei Áurea, e a Filó agora era uma mulher livre. Como os demais ex-escravos, participaria da festa na Fazenda, organizada por eles, com a ajuda e o apoio do ‘Seu’ Chiquinho em comemoração ao acontecimento” (Fernandes, 2000, p. 39, grifo da autora). Ao falar das dificuldades vivenciadas por sua família, Maria Horta afirma:
Para agravo da situação, com o fim da Guerra em 1918, a grande crise mundial de 1929 estava a caminho. Graças a Deus, mamãe, apesar de tudo, já tentava superar os sofrimentos passados e estava sempre alegre e cantarolando. Tinha o temperamento de nosso avô, sentia-se feliz mesmo nas dificuldades, o que nos dava forças para continuar a caminhar (Fernandes, 2000, p. 87).
Pertencimento socioeconômico
Um autor elegeu o pertencimento socioeconômico como eixo de sua narrativa. Escrevendo aos 68 anos, Souza, em Vá com Deus, mãe! (2003), tem sua narrativa marcada pela resiliência diante da extrema pobreza vivida na infância. Em função das precárias condições a que foi submetido junto à sua família após a morte da mãe, quando tinha 8 anos, passou a viver com uma família substituta. É por meio do tom de superação da pobreza que o autor ressignifica esses eventos e faz a releitura de sua vida ao longo de toda a obra, constituindo-se, inclusive, em uma das motivações para a escrita autobiográfica: “Tive também em mente o sincero desejo de incutir nos leitores que passam por dificuldades a ideia de que sempre deve haver esperança de melhores dias” (Souza, 2003, p. 7).
Assim, é a partir da ideia de que teve uma infância difícil, de escassez e sofrimentos, que Vicente de Souza busca ressaltar seu mérito em alcançar a condição de juiz de Direito e, nesse sentido, ele se considera um ‘vencedor’. O autor também confere às humilhações vivenciadas em função da pobreza, a causa de sua personalidade tímida, introvertida e insegura, o que teria influenciado negativamente na sua atuação profissional como promotor e, posteriormente, como juiz:
Sentia-me muito inseguro quanto ao exercício da profissão que estava abraçando. É que a vida da roça na mais extrema pobreza, a perda de minha mãe aos sete anos com as consequentes demonstrações de dó por parte dos que de mim se aproximavam, a vida religiosa de onze anos sem qualquer contato com o mundo exterior, tudo contribuiu para dificultar o exercício de uma profissão cuja principal arma é a combatividade, até com certa agressividade e iniciativa de ação. Este não era meu temperamento de homem de extrema timidez, consequência desses traumas acumulados (Souza, 2003, p. 160).
Pertencimento profissional
Três autores inventam a si próprios elegendo como eixo o trabalho. Coelho escreve aos 80 anos Rascunho de uma vida (2001). Analogamente a Vicente de Souza, o autor também confere à sua trajetória um tom de superação, construída a partir do acidente automobilístico sofrido por ele no ano de 1949, aos 28 anos. O acidente, que segundo o autor tornou-o deficiente ao deixá-lo numa cadeira de rodas, fez com que se adaptasse a uma nova dinâmica de vida e trabalho. Diferentemente de Vicente de Souza, Allyrio faz a releitura de sua vida ressaltando o valor do trabalho, que aparece como o grande propulsor dessa superação. Durante toda a obra, o autor busca caracterizar sua existência como uma “[...] vida vivida, trabalhosa, cansada, mas boa” (Coelho, 2001, p. 43). É assim, por exemplo, que o trabalho ganha destaque quando o autor justifica sua escrita:
[...] com as cordas do coração e da recordação vibrando, tangidas pelas lembranças de um passado ora triste, ora alegre, como que principiando outra vez a caminhada da vida, quem sabe, quem sabe possa guardar para mim ou legar aos meus filhos e aos meus netos, como que testemunho das marcas com que, como um ferro em brasa, o trabalho me marcou, um exemplo ou um ato de ousadia de quem, embora tropeçando e caindo tantas vezes, tantas se levanta e levantar-se-á, ainda que de novo caia (Coelho, 2001, p. 25).
As fortes referências ao trabalho também marcam as lembranças juvenis do autor. Ao relembrá-las, Allyrio enfatiza as atividades exercidas (como candeeiro, vaqueiro, vendedor de pães em Guanhães, auxiliar de engenheiro, agente municipal de estatística, marinheiro escriturário, professor e diretor do Ginásio Pirapora e secretário municipal de Buritizeiro) ressaltando, ao mesmo tempo, sua identidade de ‘incansável trabalhador’. É também por meio desse pertencimento que o autor avalia sua condição atual. Com 80 anos, Allyrio demarca o vazio sentido com o afastamento do trabalho e desabafa:
Sinto muita saudade dos colegas, cujos nomes gostaria de ter espaço para citar, e da falta do trabalho, a qual me sufoca. A criatura humana não deveria ser forçada à aposentadoria, à ociosidade. Aos 80 anos, sinto que tenho muito para dar ainda, com a experiência adquirida e a coragem e vontade que me ordenam: ‘Vá, Lute. Trabalhe’. O trabalho se tornou um hábito em mim e sinto muita vontade de servir. Vou viver muito, ainda. Quero retornar ao trabalho e servir. E isso vai acontecer, se Deus quiser (Coelho, 2001, p. 21, grifo do autor).
Analogamente, aos 82 anos, Abram Ribeiro também elabora sua narrativa a partir do trabalho. Sua escrita é organizada em torno das profissões que exerceu durante a vida e os deslocamentos que fez em função delas. Nesse sentido, o autor toma o cuidado de detalhar cada uma das profissões, como quando relata que, por volta dos 13 anos, aprendeu o ofício de sapateiro:
Comecei a aprender o ofício de sapateiro, (mais talvez, para estar sempre calçado), já que naquele tempo, era muito comum ver as pessoas descalças andando nas ruas. Não era moda, mas pobreza mesmo. Na oficina de sapateiro do Sr. Antônio Gomes e de seu filho Misael, fiquei pouco tempo, mas foi bom; gostei muito e aprendi bastante. Até hoje, costumo fazer pequenos consertos em sapatos de minha mulher e meus. ‘O saber não ocupa lugar’ (Ribeiro, 2002, p. 28, grifo do autor).
Pode-se perceber que, embora a pobreza pudesse ser também um pertencimento ‘elegível’ para guiar sua narrativa, o trabalho acaba sendo central. Entre as ocupações que apresenta, encontram-se as de vendedor do Bazar Palmeirense, vendedor em uma loja de gêneros, em Amparo do Serra, balconista em uma loja do Mercado Central em Belo Horizonte, secretário em um escritório de representações, representante da Zíper (fecho-eclair), bem como gerente de um depósito da Zíper - REOR, em Belo Horizonte. Abram afirma ainda que, após se aposentar pelo INSS, aos 60 anos, passou a trabalhar como Diretor da Clínica Médica de seu filho, atividade que exerceu até o momento da escrita da obra, aos 80 anos.
O trabalho é também o eixo pelo qual Vicente Guabiroba constrói seu relato autobiográfico, aos 65 anos. Sua narrativa é centrada em suas realizações na vida pública, uma vez que Vicente teve boa parte de sua vida dedicada à política. Assim, em diversos momentos na obra, a invenção de si se ampara na ideia de uma vocação para a vida pública que, segundo ele, acompanha-o desde a infância. É o que se pode perceber quando o autor comenta as lições recebidas de sua professora no curso primário: “Foram com D. Isabel, também, as primeiras noções de sociabilidade e vida comunitária. Ela sempre citava como exemplo o trabalho comunitário na limpeza do ribeirão: -Vocês vejam bem, todos ajudam a todos em prol de todos. É isso que faz uma convivência saudável” (Guabiroba, 2006, p. 24).
A ideia de um dom para o trabalho político foi também a justificativa apresentada pelo autor quando decidiu abandonar o seminário, aos 20 anos:
Tudo isto me fazia muito feliz e, além da liderança, me despertava indagações a respeito de uma organização social mais ampla, inatingível para mim naquela forma em que eu me encontrava. [...]
Todas essas questões me puseram em dúvida quanto à minha real vocação nessa vida. Eu não queria mais viver às custas do seminário, precisava ganhar mundo, fazer algo mais, sentia um novo chamado, uma nova missão.
Resolvi, então, abandonar o seminário e tornar-me mais operante (Guabiroba, 2006, p. 40).
Embora atravessado pelo viés da política, é a partir das realizações conquistadas como fruto de seu trabalho na vida pública que Vicente Guabiroba organiza sua narrativa: “Meu dinamismo era muito, muito grande. O trabalho era minha diversão e meu lazer. Eu estava sempre pronto a empreender coisas, a me empenhar por uma causa, sem descanso ou lassidão” (Guabiroba, 2006, p. 142). Como forma de legitimar a imagem que o autor busca traçar para si, entre fotos e reportagens de jornal, o autor insere uma carta recebida de Juscelino Kubitscheck, quando se candidatou à prefeitura de Guanhães. Na carta, Juscelino ressalta o seu espírito de ‘devotado batalhador’.
Pertencimento regional/geográfico
Das oito autobiografias, a de Olney Jardim, que escreve os 80 anos, é marcada pelo pertencimento regional. O autor nasceu em Araçuaí, região do Vale do Jequitinhonha (ver Tabela 1), e organiza sua narrativa relacionando passagens de sua vida a experiências vividas/construídas em meio a esse cenário. Ao falar da infância, por exemplo, o autor ressalta a presença do Rio Araçuaí e das inúmeras fazendas frequentadas por ele, em suas lembranças:
O rio Araçuaí, assim como também as fazendas, têm muito a ver com minha infância. Foi no rio Araçuaí que aprendi a nadar. Minha mãe tinha pavor da água do rio. Meus irmãos não aprenderam a nadar. Eu, por ser mais rebelde, ia para a casa de meus primos Nala e Maninho, filhos de Narciso Colares, e com eles ia para o rio nadar (Jardim, 2006, p. 34).
Assim, em Trajetória de lutas (Jardim, 2006), é recorrente a abordagem de assuntos voltados para a descrição dos lugares e acontecimentos de Araçuaí. Dessa forma, boa parte da obra é dedicada às lembranças relativas às sete fazendas frequentadas quando criança, além das inundações ocorridas na cidade.
É interessante observar que, ao reforçar suas origens - Olney nasceu numa das regiões consideradas mais pobres de Minas Gerais -, o autor busca potencializar a posição que conquistou, de ‘doutor’ em Odontologia, delineando uma ideia de vencedor, que justifica o título da obra: Trajetória de lutas (Jardim, 2006).
Pode-se dizer que a escolha pelo pertencimento familiar e religioso, feita pelas mulheres, como fios condutores das narrativas não foram feitas ao acaso; ser mulher era/é, no imaginário social, construído historicamente, dedicar-se ao espaço doméstico. Sobretudo no período em que as autoras vivenciaram o início da adultez, em meados do século XX, o casamento e a maternidade eram os percursos ‘naturais’ das mulheres (Bassanezi, 2004). Análise semelhante pode ser realizada em relação ao pertencimento religioso, presente de forma imperiosa na autobiografia de Therezinha Gonçalves, mas que também comparece como suporte nas narrativas das demais autoras. Trata-se de uma instância que, embora (parcialmente) pública, é historicamente e de forma legítima, franqueada às mulheres. Elas não apenas podem, mas devem frequentar espaços religiosos, pois vinculam a imagem feminina à boa conduta moral. É, mais do que isso, apropriado que essa temática seja central na vida de uma mulher (Perrot, 2007). Sendo assim, é bastante previsível que essas dimensões ocupassem lugar importante no processo de invenção de si para as autoras.
Os autores homens, por sua vez, tomam o pertencimento socioeconômico e profissional como eixos norteadores da invenção de si. A preocupação com a sobrevivência e o trabalho são, historicamente, vinculados ao mundo masculino. Para os homens é importante não apenas eleger essa dimensão como eixo da vida experienciada, mas falar sobre ela em uma autobiografia é parte importante do inventar-se e publicizar-se, na escrita. É interessante observar como, nos dados analisados, a dimensão do trabalho aparece vinculada a outras dimensões de ocupação do espaço público, como o exercício de profissões de prestígio, a inserção em redes de sociabilidades e a política, no sentido estrito.
Relações de gênero e os significados do envelhecer
Os pertencimentos eleitos para a invenção de si traduzem-se igualmente na visão de autores e autoras sobre o processo de envelhecer. Para as mulheres aqui analisadas, ser idosa representa uma espécie de continuidade (ou de ressignificação) da vida que tiveram (ou inventaram), de dedicação ao espaço doméstico8. Gonçalves (2003) dedica dois capítulos da autobiografia ao tema do envelhecimento: ‘Como vejo meus setenta anos’ e ‘Nova experiência’. A autora afirma ter encontrado na religiosidade e no autoconhecimento uma forma de interpretar positivamente essa etapa de sua existência, conferindo ao mérito pessoal esse posicionamento. Assim, para a autora, é por meio da vontade de cada indivíduo que sentimentos como ‘carência’, ‘dependência’ e ‘solidão’ podem e devem ser substituídos por sensações de ‘realização’ e de ‘liberdade’, na velhice.
Maria Horta faz o seguinte relato a respeito do que lhe ocorreu após a viuvez, aos 68 anos: “[...] aos poucos, [comecei] a pensar com mais lucidez na minha vida, no que eu poderia ainda realizar. Pouco a pouco, comecei a me sentir mais leve, como se tivesse asas e quisesse voar. Não queria parar de viver, desejava ser independente, aspirava sim, a novas conquistas, que me fizessem sentir uma pessoa renovada, útil, inteligente e alegre” (Fernandes, 2000, p. 115). Escreve o capítulo ‘Nasceu Maria Horta’ dedicado ao seu envolvimento com o teatro, que se deu a partir dos 70 anos. Para conferir legitimidade à sua trajetória, relata entrevistas que deu a jornais e comerciais de TV que protagonizou e, no momento da escrita da autobiografia, aos 90 anos, diz se sentir atualizada e com saúde. Do mesmo modo, Maria da Conceição Teles, cujos filhos são proprietários de uma grande rede de livrarias e, portanto, possuía condição financeira estável, quando atingiu a terceira idade, procurou o Ministério do Trabalho para se informar sobre a aposentadoria, indicando a preocupação com a sua independência, como algo importante a ser cultivado.
Segundo Debert (2004), quando comparadas aos homens, muitas vezes as mulheres apresentam uma relação mais ‘positiva’ em relação ao envelhecimento, percebendo essa etapa da vida como mais gratificante que as anteriores, visto que se encontram desobrigadas das responsabilidades domésticas e livres para vivenciar as atividades prazerosas, cada vez mais disponíveis num contexto de mudanças sociais e culturais em torno dessa etapa da vida, além de uma tolerância cada vez maior em relação às mulheres, na atualidade.
Para os homens aqui estudados, por sua vez, a velhice representa uma ruptura, pois passam a ter limites para ocupar o espaço público e têm que lidar com diversas restrições, muitas vezes ficando reservados ao espaço privado, o que acaba gerando frustração e infelicidade. O envelhecer é associado ao sentimento de perdas, a lembranças saudosas de amigos. A ausência de sonhos e de realizações faz com que evoquem com frequência o passado, quando eram supostamente mais felizes. Segundo Abram Ribeiro, “Agora, já mais velho, recordo do que já passou como o bom tempo em que a gente era feliz e não sabia” (Ribeiro, 2002, p.103). Allyrio Coelho, para quem o trabalho teve lugar central na invenção de si, lamenta a aposentadoria forçada, dizendo sentir que tem ainda muito a contribuir. Não trabalhar é, para ele, experimentar uma vida de ociosidade e destituída de significado:
Trabalhei vinte e cinco anos na Assembleia Legislativa. Aposentei-me com 70 anos e quarenta anos de serviço público. Aposentadoria: nostalgia, depressão, dor, doença, sofrimento. Deitado, o sono não vem, a madrugada não vem. Vem a solidão, a tristeza, a angústia, a vontade de chorar. Chorava. Preso em casa, sem condições de sair à rua sozinho, tenho a ansiedade por companhia. Vou sair desta situação e vou andar como outrora. Os desafios já vencidos me animam (Coelho, 2001, p. 47).
Segundo Beauvoir (1976), a condição de mulheres as colocou, tradicionalmente, em um lugar subalterno em relação aos homens, de modo que o avançar da idade não representa grande ruptura se comparado aos homens. A condição masculina é modificada com o passar do tempo, sendo a aposentadoria um acontecimento importante que pode ser vivenciada com grande sofrimento.
Nas autobiografias analisadas, as mulheres inventam a si mesmas como pessoas adaptadas e livres, dispostas a continuar aprimorando e conhecendo novas experiências. Os homens, mais nostálgicos, fazem, com mais frequência, menção às qualidades do passado: dos brinquedos construídos por si próprios (Souza, 2003), das brincadeiras ao ar livre (Jardim, 2006), do trânsito tranquilo de Belo Horizonte do passado (Ribeiro, 2002), em contraste com os excessos e inadequações do presente.
Considerações finais
A análise realizada nos permite afirmar que o pertencimento de gênero dos idosos e idosas se apresenta como um dos fatores mais significativos no processo de invenção de si e de atribuição de diferentes significados ao envelhecimento, produzidos na escrita autobiográfica. Permite afirmar que, para esse grupo geracional, escrever não é apenas se reinventar por meio da escrita, mas a escrita se torna um modo de se apropriar de sua própria história, já que a consciência da finitude se torna cada vez mais presente. Em um momento em que a memória vai, pouco a pouco, se esvaindo, tornando-se cada vez mais envolta em névoas e em que a proximidade da morte é uma realidade, a escrita parece ‘segurar’ algo - no limite, ‘segurar’ a própria vida.
Nesse sentido, alguns estudos (Lourenço, Massi, & Lima, 2014; Dias & Campos, 2016), realizados especialmente na área da Psicologia, apontam que a escrita autobiográfica é, para os idosos e as idosas, um recurso não apenas de ressignificação da própria existência, mas um meio de expressão de pensamentos, de emoções, inclusive com fins terapêuticos.
Nas sociedades tradicionais, o idoso tem um papel social fundamental - pois é aquele que detém o conhecimento e o transmite às novas gerações -, que é esvaziado nas sociedades complexas contemporâneas. A escrita poderia representar essa tentativa de preenchimento do vazio - ao tornar o idoso produtivo e com algo a dizer, algo a transmitir (já que não há mais espaço ritual para a escuta), que, pelo menos supostamente, poderia ser lido (já que não é mais ouvido) pelas novas gerações? A análise realizada nos permite afirmar que o ato de escrever sobre a própria vida - que poderia ser potencializado em práticas educativas voltadas/construídas para/com idosos(as) - pode permitir um reposicionamento do lugar ocupado por esses sujeitos nas sociedades contemporâneas, marcadas, exatamente, pela onipresença da cultura escrita.