Introdução
A obra República (Politeia) de Platão é, sem dúvida, uma das referências fulcrais para compreender a sua filosofia e, neste caso, apontar para a melhor forma de governo. Segundo Platão, o Rei devia ser perfeito como o verdadeiro filósofo e, portanto, ser sábio e virtuoso, ou seja, o mais bem preparado para ser o “[...] chefe da Cidade” (Platão, 2017, p. 484b).
A nossa intenção é, no contexto da temática destas ‘jornadas’, apresentar uma reflexão sobre a elevação espiritual, de acordo com o que Platão nos apresenta neste Livro VI, portanto, estando atentos à dimensão ontológico-metafísica aqui presente, como fundamento quer da política, quer da educação. Como em todas as obras de Platão, temos um diálogo que implica o interrogar e o responder, neste caso começaremos pela interrogação acerca da natureza do filósofo. Nesse sentido, Sócrates, que é quem interroga, representa para Platão o verdadeiro filósofo e constitui-se como o veículo do seu próprio pensar.
O verdadeiro filósofo
No Livro VI, Platão, pela fala de Sócrates interroga: quem é o filósofo? A resposta é : os “[...] que estão sempre enamorados pelo tipo de saber que lhes possa revelar algo daquela essência que é eterna” (Platão, 2017, p. 485b). Dado que também é uma sua preocupação a verdade, então, têm aversão à mentira. Assim sendo, sabedoria e verdade estão relacionadas (Platão, 2017). Contudo, aquele que está apaixonado pela sabedoria, verdade e justiça é alguém que cuida da sua alma, dando um mínimo necessário de atenção a tudo o que é da ordem do sensível e que tem a ver com o corpo. Tal atitude que, com efeito, é própria dos que têm amor ao saber, só é protagonizada pelo autêntico filósofo (Platão, 2017), que não tem como vocação adquirir riquezas, bens materiais, assim como não praticam a ‘baixeza’, nem a ‘mesquinhez’ e isto porque a sua “[...] alma pretende alcançar sempre a totalidade e a universalidade do divino e do humano” (Platão, 2017, p. 486a). Porque possui uma alma superior almeja contemplar “[...] a totalidade do tempo e do ser” (Platão, 2017, p. 485b). Este desejo implica uma preparação, uma elevação racional, que leva o filósofo a não temer a morte (Platão, 2017). De facto, o filósofo não teme a morte. Esta uma das suas teses acerca da excelência espiritual (virtude) do filósofo, relativamente a todos os outros homens (Leroux, 2012).
Mas, então, coloca-se a questão: o que distingue uma alma filosófica de uma não filosófica? Aqui uma distinção é necessária: a alma filosófica é justa, cordata, comedida e dotada de memória, por contraposição à não filosófica, que é insociável e selvagem (Platão, 2017). De facto, uma alma que se guia pelas ideias de sabedoria, justiça e verdade, tem uma disposição para aceder à forma de cada ser, ou seja, à ideia de cada ser. É essa alma, que corresponde à alma do filósofo e que, por isso, o leva a interrogar: não será que é esta alma aquela que está mais apta para “[...] chegar à plena e perfeita apreensão do Ser?” (Platão, 2017, p. 486e).
Daqui decorre uma outra interrogação: o filósofo que ama o saber, a justiça e a verdade, do ponto de vista politico, não seria o homem ideal para governar a cidade? Claro que este é um desiderato colocado por Platão nesta obra, mediante as palavras e a argumentação de Sócrates. O filósofo, segundo pensa, é aquele que é: “[...] por natureza dotado de boa memória, de facilidade de aprender, magnanimidade, graciosidade e amabilidade, amigo e aliado da verdade, da justiça, da coragem e da temperança”? (Platão, 2017, p. 487a). E no seguimento a seguinte interrogação. “Ora, prossegui, não seria a homens assim, aperfeiçoadas pela educação e pela maturidade, e só a esses, que gostarias de confiar a Cidade?” (Platão, 2017, p. 487a).
De facto, o filósofo é aquele que está apto para atingir o Ser, ou seja, contemplar o ser; e dizemos contemplar porque o filósofo por mais que se eleve espiritualmente nunca tem a possibilidade de atingir o Ser, apenas tem a possibilidade de contemplar, o que significa um distanciamento insuperável. Tal situação deve-se ao facto de a perfeição humana, mesmo para o filósofo, o mais perfeito de todos os homens para Platão, não ser totalmente perfeito, enquanto homem composto por alma e corpo. Contudo, o filósofo é aquele que possui as qualidades naturais para ser cada vez mais um homem perfeito, dado que é o único que, verdadeiramente, está apaixonado pela verdade, pela justiça e pelo saber, de tal modo que a sua alma está orientada para o Ser.
Como já foi referido, esta obra de Platão é um diálogo e, portanto, podemos reparar que está a ser utilizado um método que consiste em ‘interrogar e responder’, a que corresponde o método socrático, que usa a ironia (fingir a ignorância) e a maiêutica (arte de dar à luz o espírito). Ora, este interrogar e responder dá-se mediante um encadeamento lógico, que conduz, progressivamente e mediante um circuito longo, ao apuramento daquilo que Sócrates quer atingir (Platão, 2001, 107-c). Neste caso, Sócrates ao interrogar acerca do verdadeiro filósofo vai orientando o discurso para a afirmação de que só este tem a possibilidade de verdadeiramente, contemplar o Ser (ou seja, as Ideias, as Formas), mediante um movimento dialéctico de elevação da alma racional.
Os sofistas
A contemplação do Ser implica, como ideias perfeitas, a contemplação da verdade e da justiça, mediante a aquisição do saber. Mas, usando o método socrático, Platão mediante o interrogar de Sócrates sente a necessidade de voltar “[...] à questão da natureza dos verdadeiros filósofos [...]” (Platão, 2017, p. 490d), e isto porque existem homens que se dizem filósofos mas não o são de verdade, porque não praticam uma vida filosófica. Então há que distinguir quem é filósofo de quem se diz filósofo mas não o é. Platão tem em vista os Sofistas, que o filósofo considera serem corruptores da juventude (Platão, 2017, p. 492a-e).
De facto, nesta época, os Sofistas que relativizavam a verdade, ao considerarem como Protágoras o ‘homem medida de todas as coisas’, eram os educadores das futuras elites dirigentes das cidades gregas; tinham o dom da oratoria, procuravam agradar e, nesse sentido, o seu discurso visava a persuasão e não a verdade. Platão apelidava-os de ‘mercenários’, sem se preocuparem com a verdade, justiça, beleza e bondade (Errico, 2014)
Nesta sequência de crítica aos sofistas, Sócrates interroga: será que todos os homens se preocupam com o cuidar da sua alma, ou são alertados para isso, como faz o verdadeiro filósofo? Será que o verdadeiro filósofo é aceite, naturalmente, por todos os homens? A resposta é negativa, porque a maioria dos homens não entende o verdadeiro filósofo, e porque não o entende, então, prefere e segue os sofistas. Como comentário, podemos dizer que Platão procura restaurar a verdade do Ser que os sofistas, seus contemporâneos, não consideravam. Também Aristóteles pensava deste modo, acerca dos sofistas. Para ambos, os sofistas não se interessavam pelo saber, mas eram mestres de retórica e de erística (gosto pela disputa, arte de defender teses contraditórias, sem ter em conta a verdade), vendendo os seus conhecimentos aos jovens que estavam destinados a serem governantes da polis (Chevalier, 1955).
Podemos apresentar aqui uma breve conclusão, no sentido de afirmar que Platão quer uma cidade governada pelos melhores políticos, sendo que e esses são os que estão em sintonia com aquilo que é superior e eleva, como Sócrates que, no seu entender, é o verdadeiro filósofo e está, inequivocamente, orientado para a sabedoria e a virtude.
Platão, nesse sentido, não pode deixar de criticar os sofistas e, por isso, defende a tese de que é o verdadeiro filósofo aquele que está melhor preparado para o governo da polis e que há que preparar homens (o futuro rei - filósofo) de acordo com os preceitos que Sócrates já tinha exposto em termos de sabedoria e virtude, e que o leva a mencionar: “[...] que um verdadeiro amor da filosofia verdadeira, por qualquer inspiração divina, se apodere ou dos filhos dos homens que estão agora no poder ou dos que são agora soberanos” (Platão, 2017, p. 499c).
Distinção entre sensível e inteligível
De novo retorna a questão relativa ao verdadeiro filósofo, que “[...] fixa o seu espírito na contemplação das essências [...]” (Platão, 2017, p. 500b), que se comporta segundo a razão, procurando aproximar-se, tanto quanto possível, do divino. Este, de facto, olha, ou contempla “[...] a essência da justiça, da beleza, da temperança e virtudes semelhantes e para a representação que delas estão fazendo nos seres humanos” (Platão, 2017, p. 500b). Está aqui afirmada a distinção entre mundo das ideias e mundo sensível, em que o verdadeiro mundo é o das ideias ou essências e o mundo sensível é o da representação, mundo ilusório e aparente, no qual vive o homem que não faz o percurso filosófico. São estes filósofos os únicos que estão apaixonados (têm amor) pelo Ser, pela verdade e pelo supremo bem. Por isso considera, relativamente ao bom governo da cidade, que os homens mais perfeitos para a governarem são os filósofos.
Contudo, a alma, para poder contemplar a perfeição constituída pelas Ideias, como a Verdade, Justiça, Beleza e no culminar de todas elas a Ideia de Bem, tem de, como é afirmado no texto, “[...] para chegar a contemplar do modo mais perfeito estas virtudes, seria preciso dar uma volta mais longa” (Platão, 2017, p. 504b). Ora, esta grande volta assinala o caminhar gradualmente para a perfeição, mas em que é necessário o esforço a fim de esta poder ser, efectivamente, alcançada. É por isso que o filósofo que compreende que tem de empreender este caminho longo, tem a possibilidade de contemplar para lá da justiça a ideia de Bem, a mais elevada e que, como refere no Lv VII , “ se entrevê a custo”. O Bem é, de facto, a ideia suprema, mas a sua contemplação, que implica esforço, é fundamental, porque o bem é o alvo último e mais difícil de atingir.
Mas, então, o que é o bem? Será o prazer? Certamente que esta não é a resposta; o Bem é o saber e a virtude, de que Sócrates falava a propósito de quem tinha a preocupação relativamente ao cuidar da sua alma. Mas esta palavra bem é misteriosa, assim como o seu sentido. Toda a alma, contudo, de um modo racional, procura o bem (Platão, 2017, p. 506e), ou seja o saber, pelo que Sócrates afirma, respondendo de um modo conclusivo: “Não vês que as doutrinas divorciadas do saber fazem todas uma triste figura? (Platão, 2017, p. 506c). Aqui, Platão está, por um lado, a afirmar qual o desígnio da filosofia - o saber; por outro, está implicitamente a criticar os sofistas, que não tinham esta preocupação desinteressada.
Neste momento, Sócrates é solicitado a apresentar uma exposição sobre esse saber supremo, o Bem. Mas, nesta lógica do caminho longo, responde:
[...] deixemos, por agora, a natureza do bem em si; ele parece-me demasiado alto para que o impulso que dá asas ao meu presente voo possa atingir por agora o meu pensamento acerca dele. O que desejo expor-vos, se também o desejardes, é o que me parece ser filho do bem e muito semelhante a ele (Platão, 2017, p. 506e).
De facto, chamam-se essências às ideias de belo em si, bom em si, justo em si, verdadeiro em si. Estas ideias são inteligíveis e não visíveis. Mas também consideramos que há coisas justas, verdadeiras, belas e boas e que as podemos ver. Interroga Sócrates : “[...] por qual das faculdades vemos o que é visível”? Resposta: “[...] por meio da vista”. Mas será que podemos ver, só porque temos olhos? Para ver não será necessária a luz? E que luz será essa? (Platão, 2017, p. 507b -508a). A resposta é o Sol, o qual é, como afirmava Sócrates, o filho do bem. E acrescenta:
Compreende agora - prossegui - que é o sol, que eu considero ser o filho do bem, que o bem gerou á sua semelhança, bem que é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e aos objetos inteligíveis, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à vista e aos objetos visíveis (Platão, 2017, p. 508c).
A partir desta afirmação, relativamente à supremacia do ver e, portanto, da visão sobre os outros sentidos, Sócrates vai expor a diferença entre o mundo inteligível, ou mundo das ideias, e o mundo sensível, ou mundo das sombras, de onde a seguinte afirmação:
[...] aplica esta comparação à alma deste modo: quando ela, de modo firme, se fixa num objecto iluminado pela verdade e pelo Ser, apreende-o, conhece-o e parece inteligente; mas quando se inclina para aquela regiãona qual se misturam as trevas, o mundo do que nasce e morre, não tem senão opiniões, vê turvo, muda de opiniões de um extremo a outro, e parece ter perdido toda a inteligência (Platão, 2017, p. 508d).
Está aqui bem explícita a contraposição entre mundo inteligível e mundo sensível, pelo que, podemos afirmar que temos referida, claramente, a distinção entre sensível e inteligível que, no entanto, tem de ser, segundo pensa, mais bem explicitada. Podemos encontrar uma boa interpretação acerca desta diferença ou ‘fosso intransponível’ em Rogue (2002). Assim, para melhor explicar a diferença entre o mundo das ideias e o mundo sensível é apresentada a metáfora da linha (Platão, 2017).
A metáfora da linha
Com esta metáfora Sócrates pretende explicar o sentido da analogia em que usa a visão para referir o que é inteligível e, ao mesmo tempo, dar-nos o movimento da alma que se vai elevando do sensível para o inteligível. O primeiro segmento da linha corresponde ao momento em que vemos apenas imagens (eikasia), o segundo segmento da linha corresponde ao momento em que temos a crença (pistis) - estas duas: imagens e crenças, pertencem ao mundo da opinião (doxa), a que corresponde o mundo sensível (que não é o verdadeiro mundo, pois é aparência, ilusão, sombra). Deste modo, temos aqui dois traços ou segmentos da linha que se assemelham e como que formam a 1ª parte da linha. A opinião nunca pode ser considerada critério de verdade. Mas a segunda parte da linha também possui dois segmentos. O terceiro segmento, que se situa na segunda parte da linha, diz já respeito à razão, a qual mediante um processo ascensional eleva-se ao plano discursivo (dianóia), fundado sobre hipóteses, a que corresponde o saber matemático (para Platão a matemática era considerada a ciência mais perfeita, ela era o topo e o coroar das ciências), por fim, o quarto e último segmento corresponde ao saber dialéctico (noesis), que significa a capacidade de discutir racionalmente, relacionar ideias, contemplando-as. Este trabalho da dialética é o momento superior em que a alma, tendo-se elevado mediante uma ascese racional, contempla as Ideias em si, tendo por objectivo último e superior contemplar o Bem. Estes dois segmentos da linha correspondem ao saber verdadeiro e estão orientados para o Mundo das Ideias, o verdadeiro mundo e razão de ser do mundo sensível. Como se relacionam estes dois mundos? Mediante a participação, ou seja , pela teoria da participação, Platão apresenta uma fundamentação ancorada na convicção de que o mundo sensível necessita do mundo inteligível, que o primeiro é a razão de ser do segundo. O saber supremo, para o homem, está na dialética, a que corresponde o nível filosófico e pressupõe que a alma terá de fazer este percurso. Esta elevação corresponde à tarefa do próprio filósofo, que é aquele que, mediante esta dialética ascencional, contempla o Mundo das Ideias, ou seja, o verdadeiro mundo.
Conclusão
Para concluir esta explicação do Livro VI (Platão, 2017), diremos que o verdadeiro filósofo, sendo aquele que está apaixonado pelo saber, faz este percurso, longo e difícil, abdicando, tanto quanto possível, do comércio com o sensível, para se fixar no inteligível. Este percurso, ao mesmo tempo, corresponde a uma purificação da alma. Temos aqui desenhado, sem dúvida, o itinerário filosófico de Platão, que coloca em Sócrates e na sua fala aquilo que quer apresentar, fundado na sua Teoria das Ideias que, como já foi mencionado, é a trave mestra da sua filosofia. No que se refere à questão relacionada com a República a intenção de Platão é mostrar que uma República governada por homens de bem, cultos e virtuosos, será uma República de homens felizes, que vivem segundo os ditames do espírito e não do que é material. Contudo, mediante a crítica aos sofistas, mostra também que esta é uma tarefa difícil.
Os sofistas na arte de persuadir levam multidões atrás de si. Então, será que o verdadeiro filósofo deve desistir? De algum modo, temos aqui o repto de Platão, pois a resposta é não. Bem pelo contrário, o filósofo deve persistir em mostrar em que consiste a verdadeira realidade, a fim de procurar implementar uma República tão perfeita quanto possível, dado que o homem, por muito perfeito que seja, enquanto homem, mesmo sendo o verdadeiro filósofo, é sempre imperfeito (Lerroux, 2012).
Ora, o Rei, que deve ser o mais perfeito de todos os homens, deve ser como o filósofo, culto e virtuoso, corajoso, temperante, generoso, justo. Se o Rei preencher estes requesitos será um Rei-Filósofo, agindo segundo a verdade, a beleza, a justiça e o bem.
Agora a nossa pergunta final: será que esta posição filosófico-político-educativa de Platão ainda nos pode interpelar, no sentido de a não considerarmos utópica? Certamente que nos interpela, no sentido de obrigar a pensar e encontrar justificações para a sua atualização.