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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i1.48852 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

O clássico e os valores universais: uma discussão a partir dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica

El clásico y los valores universales: una discusión desde los fundamentos de la pedagogía histórico-crítica

Carolina Góis Ferreira1  * 
http://orcid.org/0000-0001-6378-5026

Newton Duarte1 
http://orcid.org/0000-0003-1837-8004

1Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Av. José Bonifácio, 1970, 14801-150, Araraquara, São Paulo, Brasil.


RESUMO.

Este artigo tem por objetivo desenvolver relações entre o conceito de clássico, tal como postulado pela pedagogia histórico-crítica e a constituição dos valores universais. Com o intuito de alcançar este fim, o texto está divido em três momentos. Em um primeiro momento abordamos a contraposição existente entre a concepção de conhecimento presente na pedagogia histórico-crítica e a concepção de conhecimento hegemônica. Em um segundo momento, apoiando-nos nas obras de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), em produções de György Lukács (1885-1971) e de autores próximos ao seu pensamento, como são os casos de Agnes Heller (1929-2019) e György Márkus (1934-2016), buscamos estabelecer as relações entre a construção dos valores universais e o clássico. E, por fim, em um terceiro momento, analisamos o trabalho educativo como um processo situado no âmbito da educação escolar e que se vincula à preservação dos valores universais condensados nos conhecimentos clássicos. Verificamos que a compreensão do clássico a partir da constituição dos valores universais é fundamental para entendermos a conformação deste como um produto da atividade humana. Os valores condensados nos conhecimentos clássicos, para além de sua vinculação sócio-histórica, transcendem em direção à universalidade. A compreensão adequada desse processo nos permite a necessária superação da antinomia entre dogmatismo e relativismo, condição fundamental para o entendimento do conceito de clássico conforme postulado pela pedagogia histórico-crítica.

Palavras-chave: clássico; educação escolar; marxismo; pedagogia histórico-crítica

RESUMEN.

Este artículo pretende desarrollar relaciones entre el concepto de lo clásico, como postula la pedagogía histórico-crítica y la constitución de los valores universales. Para lograr este fin, el texto se dividió en tres momentos. En un primer momento, abordamos el contraste entre la concepción del conocimiento presente en la pedagogía histórico-crítica y la concepción hegemónica de el conocimiento. En segundo lugar, basado en las obras de Karl Marx (1818-1883) y Friedrich Engels (1820-1895), producciones de György Lukács (1885-1971) y autores cercanos a su pensamiento, como son los casos de Agnes Heller (1929-2019) y György Márkus (1934-2016), buscamos establecer la relación entre la construcción de los valores universales y el clásico. Y finalmente, en un tercer momento, analizamos el trabajo educativo como un proceso ubicado dentro del ámbito de la educación escolar y que está vinculado a la preservación de los valores universales condensados en los conocimientos clásicos. Comprobamos que la comprensión de lo clásico a partir de la constitución de valores universales es fundamental para entender su conformación como producto de la actividad humana. Los valores condensados en los conocimientos clásicos, más allá de su apego sociohistórico, trascienden hacia la universalidad. La comprensión adecuada de este proceso nos permite superar la antinomia entre dogmatismo y relativismo, una condición fundamental para entender este concepto como lo postula la pedagogía histórico-crítica.

Palabras-clave: clásico; educación escolar; marxismo; pedagogía histórico-crítica

ABSTRACT.

This paper aims to develop relationships between the concept of classic, as postulated by historical-critical pedagogy and the constitution of universal values. In order to achieve this goal, the text is divided in three parts. Firstly, we discuss the counterpoint between the conception of knowledge present in historical-critical pedagogy and the conception of hegemonic knowledge. Secondly, based on the works of Karl Marx (1818-1883) and Friedrich Engels (1820-1895), productions by György Lukács (1885-1971) and authors close to his thinking, such as Agnes Heller (1929-2019) and György Márkus (1934-2016), we seek to establish the relations between the construction of universal values and the classic. Lastly, in the third part, we analyze educational work as a process situated in the scope of school education and linked to the preservation of universal values condensed in classic knowledge. We observed that the understanding of the classic based on the constitution of universal values is fundamental to an understanding of its conformation as a product of human activity. The values condensed in classic knowledge, beyond the social-historical link, transcend towards universality. The adequate comprehension of this process allows us to overcome the antinomy between dogmatism and relativism, a fundamental condition to understanding the concept of classic as postulated by historical-critical pedagogy.

Keywords: classic; school education; Marxism; historical-critical pedagogy

Introdução

A discussão acerca do clássico é bastante ampla e, no que diz respeito à educação escolar, perpassa vários âmbitos. Em tempos em que o relativismo cada vez mais se faz presente, o conceito de clássico encontra, inevitavelmente, mais dificuldade de ser discutido. Essa dificuldade é facilmente visualizada na rejeição e recusa em relação a este conceito, identificando-o, quase que automaticamente, com uma discussão pautada em uma concepção eurocêntrica de conhecimento. Essa rejeição deriva de um reflexo, ainda que não imediato, de uma compreensão neoliberal de sociedade e reflete enormemente nos conteúdos envolvidos no trabalho educativo. O enfrentamento a essa recusa requer que fundamentos que subsidiam o conceito de clássico sejam explicita dos.

Esse artigo aborda um dos aspectos que subsidia essa discussão, qual seja, a constituição dos valores universais. Nosso embasamento teórico pauta-se nas obras de Marx, Engels, Lukács, Márkus e Heller1. Entender a relação entre a constituição dos valores universais e o conceito de clássico é fundamental para compreendermos o que exatamente significa afirmarmos o clássico como um produto da atividade humana. É necessário entendermos como se dá, no interior da atividade humana, o processo de produção de valores, como uma necessidade ontológica, inserida em um processo que pressupõe escolhas entre alternativas, e com um consequente processo de valoração. Portanto, a relação entre o clássico e a constituição dos valores universais nos fornece subsídios para compreendermos este conceito como produto de uma atividade que possui tanto uma dimensão subjetiva e quanto objetiva.

Contraposição entre a concepção de conhecimento na pedagogia histórico-crítica e nas pedagogias hegemônicas

Para estabelecer as relações entre a construção dos valores universais e o conceito de clássico, entendemos que é necessário, em um primeiro momento, considerar algumas concepções de conhecimento adotadas pelas tendências contemporâneas do pensamento pedagógico. Essa explicitação é essencial, pois, compreendemos que a concepção hegemônica de conhecimento não coincide com o entendimento de conhecimento presente na pedagogia histórico-crítica e, por consequência, com a compreensão de clássico como postulado por essa teoria pedagógica.

A definição de clássico adotada pela pedagogia histórico-crítica caracteriza-se pela densidade teórica e pela coerência com a fundamentação marxista própria a essa teoria pedagógica. A existência da fundamentação marxista na concepção de clássico possibilita que este seja compreendido de forma a superar tanto concepções relativistas quanto dogmáticas de conhecimento. Porém, ainda assim, não é raro que esse conceito receba adjetivações negativas que o associam a atitudes etnocêntricas ou, mais particularmente, eurocêntricas. É possível observar que, muitas vezes, essas adjetivações têm origem em ideias associadas ao multiculturalismo, ao construtivismo e outras concepções pedagógicas integrantes vinculadas, de forma direta ou indireta ao que Duarte (2011, p. 83) chamou de “[...] universo ideológico neoliberal e pós-moderno”. Tanto essas pedagogias como o universo ideológico ao qual elas estão conectadas mostram-se, com raras exceções, pouco inclinados a uma análise do conceito de clássico teoricamente fundamentado.

Expressões ideológicas, como o neoliberalismo e o pós-modernismo encontram sua base material no desenvolvimento da sociedade capitalista. Desse modo, faz-se necessária a compreensão dessas expressões no interior da lógica de desenvolvimento da luta de classes na forma como ela se apresenta nesta sociedade. No início do processo histórico que leva à derrocada do Antigo Regime encontramos a burguesia adotando e assumindo uma perspectiva revolucionária, estimulando um impulso em relação ao desenvolvimento cultural. Porém, a partir do momento em que ascende ao poder, o desenvolvimento cultural passa a não ser mais do seu interesse, pois agora a questão central passa ser a de construir formas de controle que permitam sua dominação de classe sobre a totalidade da sociedade. Nas palavras de Saviani (1991, p. 23):

Se a cultura foi impulsionada e teve um grande avanço nas origens da época moderna, no início da sociedade moderna, da sociedade capitalista, isto devia-se ao fato de ter a burguesia se constituído como uma classe revolucionária e, nesse sentido, portadora de uma nova fase da humanidade que envolvia também um avanço cultural. Mas à medida que vai se consolidando no poder ela se esteriliza do ponto de vista cultural. Surge um período em que a cultura se padroniza, perde sua criatividade, perde também seu vigor, a sua sistematicidade e se torna fragmentada.

A análise exposta na citação acima nos permite compreender as possíveis relações entre o desenvolvimento do conhecimento, a sociedade moderna e a atuação da burguesia. Além disso, também nos fornece subsídios para apreender a relação entre os substratos teóricos que fundamentam o neoliberalismo e o pós-modernismo, com ênfase para o debate situado ao redor da questão do conhecimento. Importante destacar que, tanto nos escritos de Friedrich Hayek (1889-1992), quanto em características do pós-modernismo podem ser encontradas reflexões que fornecem aporte para a compreensão de conhecimento presente em algumas pedagogias hegemônicas.

A origem do neoliberalismo pode ser rastreada no livro ‘O caminho da Servidão’, escrito por Hayek (1984) em 1944. As propostas do economista austríaco vão no sentido de defender um Estado mínimo e de promover a privatização de setores ainda controlados pelo Estado (saúde, educação etc.). Além disso, é possível perceber uma concepção de conhecimento na obra de Hayek e, podemos acrescentar, ainda, que essa epistemologia mantém uma estreita relação com sua concepção de sociedade. Desse modo, em Hayek, podemos inferir uma concepção de conhecimento em que este é compreendido como algo particular, bastante tácito e limitado ao meio imediato do indivíduo (Duarte, 2016).

Segundo Netto e Braz (2012), o neoliberalismo, além de se caracterizar por ser uma doutrina econômica, também funda as bases de uma concepção de sociedade e de indivíduo que, usualmente, pressupõe uma característica contraditória entre ambos e, por extensão, a desigualdade socioeconômica adquire contornos naturalizantes. O mercado atuaria como uma entidade autorreguladora da sociedade, responsável por selecionar e premiar o esforço individual.

No âmbito dos debates travados ao longo do século XX o neoliberalismo opõe-se às ideias de John Maynard Keynes (1883-1946), que defende o investimento estatal e o pleno emprego - em suma, estipula ao Estado, e não ao mercado, a tarefa de organizar e dinamizar a sociedade. Assim, podemos caracterizar o neoliberalismo como uma antípoda do Estado de bem-estar social keynesiano, em que a estratégia da classe dominante na luta de classes era a de ceder a algumas demandas da classe trabalhadora para, dessa maneira, enfraquecer movimentos de contestação da ordem social capitalista. Após a crise do Welfare State, entre as décadas de 1970-1980, o neoliberalismo encontra um caminho livre para tornar-se hegemônico. Com isso, na sociedade atual o ideário neoliberal passa a adquirir bastante influência na constituição de uma concepção de conhecimento, daquele conjunto de teorias denominadas pós-modernas (Duarte, 2011).

O pós-modernismo pode ser caracterizado como uma expressão ideológica do neoliberalismo2 e, além disso, também pode ser considerado uma importante doutrina para a manutenção do status quo. Essa manutenção propicia uma concepção de conhecimento bastante idealista e subjetivista, que limita o campo do que pode ser conhecido àquilo que resulte das construções do sujeito. Limitar o conhecimento ao que pode ser construído pelo indivíduo acarreta a negação da objetividade, da totalidade e da existência de uma unidade histórica, impondo-se a multiplicidade de narrativas incomparáveis entre si (Moraes, 2004).

Tanto no neoliberalismo quanto no pós-modernismo é possível perceber a ausência de uma concepção historicizadora, o que resulta em uma negação da importância do conhecimento historicamente produzido. Essa negação facilmente acaba se identificando com uma negação da importância da educação e um distanciamento da ideia de que a função do professor seja a assumir a responsabilidade pela transmissão dos conhecimentos em suas formas mais desenvolvidas. Essa perspectiva pode ser visualizada sem grande dificuldade na concepção de conhecimento presente nas pedagogias hegemônicas. Reservadas as suas especificidades, essas teorias pedagógicas mantêm, de modo geral, uma concepção de conhecimento que nega a existência da totalidade, possuindo, por consequência, uma concepção de história fragmentada, composta por várias narrativas, que acaba por questionar a existência de conhecimentos universais.

Em contraposição à epistemologia pragmática, subjetivista e relativista presente nas pedagogias hegemônicas, a concepção de conhecimento que subsidia o conceito de clássico na pedagogia histórico-crítica possui uma base de entendimento em que este é constituído a partir da apreensão da realidade, por meio de processos abstratos, que permitem, dessa forma, o entendimento cada vez mais pleno da riqueza inesgotável do real. Saviani (2012) destaca que o conhecimento não é produzido a partir de um reflexo imediato da realidade; porém, a captação sincrética e relativamente imediata da realidade é o ponto de partida do processo de conhecimento. Após esse momento inicial de captação sincrética da realidade, o conhecimento passa a ser analisado de forma conceitual. O momento analítico desse movimento de aproximação à realidade concreta caracteriza-se pelo trabalho com abstrações, o que gera a impressão de que o pensamento estaria se afastando da realidade e se perdendo em especulações desprovidas de sentido. Trata-se, porém, de um percurso que leva à aproximação à realidade concreta por meio de um afastamento momentâneo, ou melhor, da superação da fusão entre pensamento e ação que ocorre na prática cotidiana. É o que faz Marx, por exemplo, no primeiro capítulo de O Capital, em que ele analisa a mercadoria decompondo-a em valor de uso e valor de troca, chegando a abstrações tão elevadas que geram a impressão de que o pensamento teria se desconectado da concretude do capital como realidade social concreta. Mas esse momento analítico e abstrato é superado pelo movimento de construção da síntese teórica em que o concreto será compreendido em sua riqueza de relações e determinações. Nas palavras de Saviani (2012, p. 61-62):

O movimento global do conhecimento compreende dois momentos. Parte-se do empírico, isto é, do objeto na forma como se apresenta à observação imediata, tal como é figurado na intuição. Nesse momento inicial, o objeto é captado numa visão sincrética, caótica, isto é, não se tem clareza do modo como ele está constituído. Aparece, pois, sob a forma de um todo confuso, portanto, como um problema que precisa ser resolvido. Partindo dessa representação primeira do objeto, chega-se por meio da análise aos conceitos, às abstrações, às determinações mais simples. Uma vez atingido esse ponto, faz-se necessário percorrer o caminho inverso (segundo momento) chegando, pela via da síntese, de novo ao objeto, agora entendido não mais como “representação caótica de um todo”, mas como “uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”.

Para a pedagogia histórico-crítica a questão da objetividade se apresenta de forma oposta àquela concebida pelas pedagogias hegemônicas. Para essa teoria pedagógica a objetividade, antes de ser uma característica do conhecimento, é uma característica do próprio ser. Em relação ao conhecimento, a objetividade se refere à capacidade deste de captar da forma mais fidedigna possível os processos existentes na realidade. Segundo Saviani (2008), a objetividade é uma questão gnosiológica, ou seja, trata da aferição da correspondência entre conhecimento e realidade.

O autor ainda nos recorda que objetividade não é equivalente à neutralidade e que, desse modo, esta última diz respeito à questão ideológica. Ao mesmo tempo, isso não implica que a apropriação de um conhecimento por um determinado grupo implique a não existência de uma objetividade referente a esse conhecimento. É relativamente frequente a defesa, por uma parte da esquerda, do necessário distanciamento de um conhecimento apropriado pela burguesia, como se fosse um conhecimento que automaticamente oferecesse perigo ou fosse desinteressante à classe trabalhadora. O que deve ser ressaltado é que esses conhecimentos são apropriados pela classe dominante e que o seu acesso à classe trabalhadora é dificultado e/ou inviabilizado. Esses conhecimentos não possuem interesse exclusivo aos burgueses, e insistir nessa concepção é um grande equívoco, pois, em muitos casos, quando realmente universais, remetem-se à dimensão humana mais ampla, que extrapola a subdivisão classista que têm marcado nossa história até então.

Esses conhecimentos são produzidos pela humanidade e, como tal, sintetizam momentos essenciais da história do gênero humano; não se limitam, portanto, somente a um determinado grupo. É aqui que se faz necessário a compreensão da relação contraditória entre o conhecimento e a ideologia. Essa relação se dá na posição de classe dos indivíduos, que é resultante do próprio processo em que estamos inseridos; desse modo, diz respeito tanto às possibilidades de classes quanto às vinculadas ao desenvolvimento histórico interno do pensamento científico.

Considerar a questão da objetividade do conhecimento não significa considerar que este seja imutável ou que afirmamos a existência de uma verdade absoluta. Segundo Engels (2015), afirmar a objetividade do conhecimento é manter uma posição que não abre espaço para relativismos e subjetivismos. Assim, a maneira por meio da qual a razão humana busca apropriar-se intelectualmente do mundo se dá por meio de aproximações sucessivas à compreensão objetiva e efetiva da realidade, sem, porém, jamais esgotá-la por completo. Portanto, o conhecimento, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, deve ser entendido na forma de um processo que possui uma objetividade, não sendo fixo, imutável, inquestionável ou insuperável.

A constituição dos valores universais e o clássico

No tópico anterior expusemos, de forma bastante breve, por meio da contraposição da concepção de conhecimento hegemônica e de conhecimento na pedagogia histórico-crítica, a concepção que subsidia o conceito de clássico. Neste tópico estabeleceremos relações entre a construção dos valores universais e o clássico. Desse modo, nosso ponto de partida é a definição deste conceito como postulado pela pedagogia histórico-crítica. Segundo a definição mais usualmente utilizada,

O clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode-se, pois, constituir-se num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico. (Saviani, 2008, p. 13-14).

O clássico, tal como exposto na citação acima, possui uma validade que independe de questão geográfica, assim como também não se limita a uma cultura específica. Compreender o clássico enquanto um valor universal não significa desconsiderar os conhecimentos relativos a culturas específicas, ou mesmo a conhecimentos populares. Entendemos o processo de desenvolvimento histórico da humanidade como profundamente contraditório e heterogêneo, ocorrendo por meio de movimentos de avanços e retrocessos. Isso significa que, ao longo do desenvolvimento da história da humanidade, não só na sociedade capitalista, a produção de bens, sejam eles materiais ou não, se deu à custa de uma grande parte da humanidade.

Além de situar o clássico enquanto um valor universal, é preciso compreendê-lo no interior de uma perspectiva que o considera como uma produção humana, ou seja, como fruto da atividade humana. Assim, no processo de satisfação de necessidades e consequente produção de meios e objetos para a satisfação destas, o ser humano, por meio de processos de objetivação e apropriação, objetiva produtos materiais e não-materiais; dentre estes últimos destacam-se algumas objetivações mais elaboradas ou elevadas, como são os casos da ciência, da arte e da filosofia.

Se pensarmos a questão do conhecimento podemos perceber que muitos conhecimentos que nos apropriamos hoje foram produzidos em condições históricas não favoráveis a boa parte da humanidade presente naquele momento histórico (que se pense nas sociedades grega e romana, para ficarmos nos exemplos mais usuais). Muitas culturas e variados potenciais conhecimentos foram, de certa forma, perdidos nesse processo; o que não indica indiferença a essas perdas, mas sim que temos consciência da contradição e da exploração que ocorreu e ainda ocorre no bojo da produção dessas objetivações.

Portanto, o reconhecimento do caráter contraditório e exploratório desse processo nos permite ter a clareza de alguns aspectos que permeiam a produção de conhecimento. Um primeiro ponto que devemos ter clareza é que nesse processo ocorreram perdas de determinadas culturas e, inclusive, de civilizações inteiras. O segundo ponto diz respeito à clareza em relação a como se deu o processo de produção dos conhecimentos que hoje nos apropriamos e que muito nos ajudam a compreender a situação de exploração em que estamos inseridos. O terceiro e último ponto diz respeito à fundamental necessidade de também a classe trabalhadora incorporar esses conhecimentos, apropriados em grande maioria por membros da classe dominante, para que possamos tomar consciência de nossa situação e, potencialmente, superá-la. Segundo Duarte (2017, p. 109)

Nesse sentido, defender a socialização do conhecimento objetivo sobre a realidade natural e social não significa ingenuidade em relação à história, mas sim reconhecimento de que há conquistas que devem ser preservadas.

Uma dessas conquistas a serem preservadas pela escola é o compromisso com a verdade. A Terra não está no centro do universo. A espécie homo Sapiens surgiu a partir de um longo processo de evolução espontânea da vida. A sociedade é resultado das atividades humanas e não de alguma força ou vontade superior ou transcendente. A luta de classes existe objetivamente, não é uma invenção dos socialistas.

O que implica que um produto surgido em uma sociedade anterior pode possuir uma essência mais rica em termos de desenvolvimento humano se comparada com a sociedade atual. Do mesmo modo, um produto surgido no atual contexto histórico não possui, necessariamente, um valor superior a produtos de sociedades anteriores. Que se pense, por exemplo, em Shakespeare. A riqueza, em termos de história do gênero humano presente em suas obras, ultrapassa tanto artistas e obras que foram seus contemporâneos quanto atuais.

Porém, o entendimento do clássico enquanto uma produção da atividade humana, mesmo que permeado por contradições, ainda não justifica a escolha por um determinado conhecimento como clássico. A caracterização deste como produção humana somente justifica a questão do clássico possuindo uma base material. Ainda é necessário destacar que, mesmo no interior desse processo de produção desses conteúdos, estes estão limitados a determinados aspectos subjetivos e objetivos. Esse ponto pode ser explicitado pela relação entre teleologia e causalidade, ou seja, entre necessidade e liberdade.

Lukács (2013), destaca que, no processo de objetivação, os indivíduos pré-configuram mentalmente os objetos que desejam produzir. Desse modo, a atividade de trabalho só pode definir-se enquanto tal na medida em que esta pressupõe uma consciência de finalidade; logo, o objeto do trabalho existe idealmente, na mente do indivíduo, antes de sua explicitação. Portanto, segundo o autor: “O trabalho não pode se produzir senão como um ato teleológico […]” (Lukács, 1982, p. 39, tradução nossa)3.

Ainda segundo o filósofo húngaro (Lukács, 2013), a teleologia só pode adquirir materialidade enquanto se expressa como pôr de um determinado fim, ou seja, quando se efetiva como atividade de concretização da finalidade. Isso significa que, a partir do ato do pôr, a consciência dá início ao processo teleológico. O indivíduo, ao colocar a natureza como objeto de uma ação consciente, objetiva uma natureza agora humanizada, pois passa a fazer parte de uma causalidade posta; ou seja, como resultado da atividade de trabalho; e, dentro de determinadas circunstâncias histórico-sociais, forma-se a base para o desenvolvimento dos seres humanos. Portanto, a noção de causalidade posta relaciona-se a uma causalidade que foi colocada em movimento pela antecipação mental de um objeto já possuidor de características humanas. É justamente a relação entre o pôr teleológico e a causalidade do trabalho que possibilita o surgimento do ser social e a consequente universalização humana.

Da relação entre teleologia e causalidade podemos apreender que o processo de constituição dos conteúdos clássicos tem uma base subjetiva e objetiva. Afirmar que esse processo tem uma base subjetiva não implica conceber que esses conteúdos se dão de forma inteiramente subjetiva, inteiramente dependente da vontade dos indivíduos. Do mesmo modo, afirmar o aspecto objetivo não implica que o clássico se imponha como decorrência automática do desenvolvimento histórico. O destaque da relação entre teleologia e causalidade é feito na medida em que é fundamental entender o que significa afirmar o clássico como um produto da atividade humana e, como tal, inserido na práxis histórica. Marx (2011a, p. 25), sintetiza esse aspecto da seguinte forma: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

Para entender essa relação entre objetivo e subjetivo na formação dos valores, além da compreensão da natureza sócio-histórica desses, é necessário destacar também a necessidade ontológica na formação dos valores. Desse modo, no processo da construção dos valores, o ser humano, ao procurar meios para satisfazer suas necessidades (não sendo, necessariamente, materiais), depara-se com escolhas entre alternativas para alcançar determinado fim. Nessas escolhas, está implícita uma valoração, uma escolha de algo que se avalia ter maior potencial de auxiliar a atividade numa determinada direção. Para além do ato de valoração, acresce que os valores, tomados em si, possuem realidade objetiva; nas palavras de Heller (2008, p. 16) o valor é: “[...] independente das avaliações dos indivíduos, mas não da atividade dos homens, pois é expressão e resultante de relações e situações sociais”. Trata-se, portanto, de uma necessidade ontológica, que pressupõe uma objetividade social. Desse modo,

No ato da alternativa está contida necessariamente também a escolha entre o que tem valor e o que é contrário ao valor; temos assim, por necessidade ontológica, tanto a possibilidade de escolher o que é contrário ao valor quanto a possibilidade de errar, mesmo tempo escolhido subjetivamente o que é de valor. (Lukács, 2012, p. 409).

Se, no início do processo de desenvolvimento do ser humano a escolha entre alternativas estava mais ligada a uma utilidade prática, ao longo do desenvolvimento do gênero humano, essa escolha entre alternativas passa a demandar, cada vez mais, uma correta compreensão da realidade e dos conhecimentos envolvidos nesse processo. Não se trata, portanto, de um valor puramente subjetivo. Pois o critério objetivo para a determinação do valor está condicionado à consciência dos indivíduos inseridos na prática social e, também, a discriminação das características dos objetos que o tornam adequado para ser empregado como meio da ação é um processo mental de análise da ação. O processo de escolha do valor é sempre subjetivo e objetivo, universal e singular, pois está inserido nas ações humanas.

Também é necessário reforçar que não basta a existência do clássico, pois é necessário que os indivíduos se desenvolvam - e aqui inclui também seus órgãos do sentido - para que possam se apropriar dos conteúdos clássicos. Portanto, o ser humano precisa se apropriar de “[...] cada uma das suas relações ‘humanas’ como o mundo, ver, ouvir, cheirar, saborear, tatear, pensar, intuir, sentir, querer, ser ativo, amar [...]”, e fazer dessas aptidões “[...] órgãos de sua individualidade” (Marx, 2015, p. 349, grifo do autor). A relação entre produção e consumo, tal como apresentada por Marx (2011b) é fundamental para entender o processo de formação das necessidades humanas. Além de não existir produção sem consumidor, as necessidades dos consumidores são determinadas pela produção. Podemos, assim, pensar a educação escolar, como um processo gerador de demandas, que visa a construção de necessidades cada vez mais elevadas no indivíduo (Duarte, 2016).

É no interior das relações explicitadas acima que são constituídos os valores. O ser humano produz objetos para a satisfação de necessidades e os objetos que são produzidos, sejam materiais ou não-materiais, constituem valores de uso. Isso significa que no valor de uso está contido algo que possui uma utilidade, que tem por característica e finalidade a satisfação de necessidades. Portanto, os valores se constituem a partir da atividade de trabalho e, desse modo, têm origem na atividade ontológica fundamental do homem. Mais especificamente, os valores surgem da produção dos meios empregados na atividade de obtenção daquilo que o ser humano necessita para a sua subsistência. É a partir dessa atividade primária de produção de instrumentos que se funda a possibilidade de desenvolvimento dos valores.

Explicitar que esses valores se formam e se constituem implica discutir como ocorre essa preservação. Heller (2008), destaca que, mesmo quando alteradas as formas de subsistência, os valores permanecem. Quando ocorrem mudanças na estrutura da sociedade, como o caso da passagem para a sociedade capitalista, verificam-se mudanças nas estruturas não-econômicas. Além disso, a forma dos valores depende da constituição da sociedade em que são construídos. E aqui devemos destacar a questão da validade dos valores produzidos ao longo do desenvolvimento do gênero humano. Segundo Lukács (2012, p. 413-414), no decorrer do desenvolvimento histórico do gênero humano, os “[...] valores autênticos [...]” experimentam um eventual desaparecimento. Porém, esse desaparecimento não é por completo, pois ele também está sujeito ao desenvolvimento histórico do gênero humano. Esse desaparecimento não por completo pode ser entendido se pensarmos em situações em que surjam valores que a sociedade ainda não tem condições de incorporar de forma mais efetiva às suas práticas, mantendo-os, em razão dessa situação, à margem dos grandes processos sociais. Portanto, nesse sentido, podemos dizer que seu desaparecimento é relativo.

A questão da preservação dos valores e do desaparecimento em potencial destes pode ser exemplificada pela reflexão sobre a arte. A arte possui em sua essência um valor objetivo, que extrapola um subjetivismo individual de apreciar ou não determinada obra. Kosik (1976) argumenta que não se pode medir a grandeza de uma obra de arte somente pela recepção em seu período de formulação. A relação entre o valor e o clássico nos ajuda a compreender que não significa que o valor artístico deva ser atribuído por uma crítica especializada. O valor é intrínseco ao objeto artístico, ainda que sua identificação não seja um processo automático ou mesmo imediato. A obra de arte possui a característica de ser um elemento constitutivo de seu tempo, não se reduzindo a um simples condicionamento histórico, mas sim portadora de uma autêntica historicidade. Dessa forma, a eficácia da obra de arte não é dada por uma característica física da obra em si, mas pela capacidade que possui de sintetizar experiências humanas e reavivá-las para cada nova geração humana.

Nesse sentido, a categoria valor nos ajuda a entender o motivo de grandes obras clássicas terem destaques em períodos distintos daqueles em que foram formuladas. Desse modo, os valores podem conservar-se nas objetivações, como é o caso das obras de Homero, Shakespeare, Goethe, Balzac ou Machado de Assis. Ao analisar a questão do valor percebemos com clareza a questão de que o valor não é algo contínuo e que, nesse sentido, está sempre sujeito a relação entre realidade e possibilidade.

Portanto, o valor é aquilo que caracteriza o humano, que faz a cultura se ampliar, se enriquecer e se desenvolver. Ou seja, tudo aquilo que corrobora para o desenvolvimento das esferas de objetivação. Nos valores estão contidas características do gênero humano que possuem potencial para promover a explicitação e o desenvolvimento da essência humana.

Toda atividade humana é orientada para a produção de valor. Porém, na sociedade capitalista essa produção vem acompanhada do fenômeno da alienação. O que faz com que os valores mais elevados produzidos pelo gênero humano sejam negados à maioria dos indivíduos. Com a sociedade capitalista surgiu a possibilidade de uma universalização da cultura, ainda que sob condições alienantes. Antes da sociedade capitalista não existia a possibilidade de uma cultura universal.

Como afirmado anteriormente, pensamos a questão do clássico relacionada aos valores universais. Para isso, a categoria universalidade precisa ser devidamente compreendida para que se possa avançar a discussão. É necessário entender que o desenvolvimento de necessidades e capacidades humanas, como da arte, da ciência e da filosofia, contribui para o desenvolvimento da universalidade do gênero humano. A questão é que o processo de universalização do gênero humano não coincide com a universalização do indivíduo. Ao contrário, a universalização do gênero humano pode ocorrer numa sociedade em que os indivíduos se tornem extremamente unilaterais. Esse é o caso da sociedade capitalista em que a universalização ocorre por meio da mundialização das relações econômicas nas quais o valor de troca das mercadorias se transforma no elo que une a todas as pessoas. É uma universalização unidimensional que, embora crie os pressupostos da individualidade livre e universal, impede, na maior parte das circunstâncias, o desenvolvimento desse tipo de individualidade. Nas palavras de Márkus (2015, p. 115-116):

Transcender a alienação significa a abolição desta contraposição entre essência e existência humana - isto é, a criação das condições para um desenvolvimento histórico que encerra a relação inversa e antagônica entre a riqueza e multilateralidade da vida social e da limitação e unidimensionalidade da vida dos indivíduos. O fim da alienação, portanto, significa a criação de condições sociais em que será possível julgar o nível geral de desenvolvimento da sociedade, do progresso humano pelo nível de desenvolvimento dos indivíduos, quando a universalidade e a liberdade do gênero humano serão expressas diretamente na vida livre e multilateral dos homens.

Portanto, superar essa forma alienante de universalização das relações sociais e construir formas ricas de universalidade da cultura e da vida é imprescindível para que cada pessoa, em toda a diversidade das formas de vida e de cultura, seja, de fato, um representante ativo da riqueza material e espiritual do gênero humano.

O trabalho educativo na preservação dos valores

Abordaremos a questão do trabalho educativo enquanto um processo fundamental para a preservação dos valores, pensado no âmbito da educação escolar. Segundo Saviani (2008, p. 13), “[...] o trabalho educativo é o ato de produzir direta e intencionalmente em cada indivíduo singular a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. O trabalho educativo diz respeito à reprodução nos indivíduos da produção humana objetivada na cultura. É um processo de humanização intencional dos indivíduos, de formação humana.

O trabalho educativo caracteriza-se como intencional na medida em que pressupõe uma intencionalidade por parte de quem ensina. Ou seja, pressupõe que o professor tenha domínio tanto dos conteúdos quanto das melhores formas para atingir esse fim. Um aspecto importante dessa questão é a discussão acerca da formação dos professores, que, além do processo de alienação, que abarca toda a sociedade, encontra-se também em um processo de precarização do qual estão ausentes, muitas vezes, os clássicos das várias áreas de conhecimento e da própria área pedagógica.

A realização exitosa do trabalho educativo garante, de forma direta e intencional, a ampla permanência dos conteúdos clássicos no decorrer do desenvolvimento do gênero humano, na medida em que esses conteúdos poderão ser apropriados e incorporados à individualidade do sujeito. Além disso, a escola, ao ensinar esses conteúdos, abre a possibilidade de um desenvolvimento objetivo e subjetivo mais pleno do indivíduo. Desse modo, quanto mais o indivíduo se apropria dos valores conservados nesses conteúdos clássicos, maiores são as possibilidades que seu desenvolvimento alcance níveis próximos às máximas potencialidades da essência humana criada pela prática social.

Um aspecto bastante importante para que o trabalho educativo se desenvolva de forma mais plena possível é o currículo. Assim, é possível compreender o currículo como instrumento que norteia o trabalho educativo. Como já destacado por Saviani (2008), o clássico pode ser um bom critério para a escolha dos conteúdos nucleares que devam fazer parte do currículo escolar. Desse modo, para se definir um currículo é necessário ter clareza em relação aos conteúdos que farão parte desse currículo. A explicitação dos fundamentos do conceito de clássico fornece mais subsídios para discussões sobre a formulação do currículo, de maneira que os conteúdos que deverão fazer parte deste não sejam tratados como elementos aleatórios.

Algumas ressalvas em relação à defesa de que os conhecimentos clássicos façam parte do currículo e, por consequência, do trabalho educativo, são geralmente no sentido da possível estreita vinculação destes com a realidade e do que eles poderiam fornecer à formação do indivíduo. Ou seja, são, no limite, reflexões e ressalvas acerca da utilidade desses conhecimentos. Um destaque a ser feito é que, como apresentado acima, o clássico possui uma ligação bastante estreita com a realidade; porém, essa relação não se dá de forma explícita e imediata. O que causa, em uma análise mais superficial, a impressão da sua não vinculação com a realidade.

Do mesmo modo que sua relação com a realidade não é percebida de forma imediata, o que esses conhecimentos proporcionam à formação do indivíduo também não é, muitas vezes, percebido de forma instantânea. Entendemos que uma das mais importantes influências dos clássicos na formação dos indivíduos reside na ampliação da visão de mundo, na medida em que essa mudança na concepção de mundo só é possível pela apropriação dos conhecimentos mais elevados. Portanto, o domínio de conhecimentos clássicos, no âmbito da ciência, da arte e da filosofia não constitui um fim em si mesmo. Gramsci (1982, p. 129, 130), explicita que

As noções científicas entravam em luta com a concepção mágica do mundo e da natureza, que a criança absorve do ambiente impregnado de folclore, do mesmo modo como as noções de direitos e deveres entram em luta com as tendências à barbárie individualista e localista, que é também um aspecto do folclore.

Assim, o trabalho educativo contribui para a superação de concepções de mundo transcendentais e individualistas. Porém, essa transformação não é imediata, ou seja, não é pelo simples contato que ocorrerá a mudança na concepção de mundo do indivíduo, da mesma forma a mudança não se dá sempre de forma consciente. O desenvolvimento da individualização da concepção de mundo é conectado às relações em que o indivíduo está inserido. Daí a importância da transmissão e da apropriação dos conhecimentos clássicos enquanto conteúdos que condensam ricas experiências humanas.

Podemos estender essa reflexão sobre a concepção de mundo para a questão da criatividade. É bastante difundida a interpretação do clássico como algo que não propicia o livre desenvolvimento da criatividade do indivíduo, ou seja, como algo que impede o desenvolvimento do seu potencial criativo. Ao contrário dessa posição, entendemos que a apropriação desses conteúdos é justamente o que possibilita o desenvolvimento da criatividade e da originalidade. Desse modo, somente quando o indivíduo se apropria do que já existe de mais rico produzido pela humanidade é que se abre a possibilidade do desenvolvimento de conhecimentos novos e originais. Saccomani (2016, p. 189) aborda de maneira bastante sintética essa questão ao afirmar que “[...] a criatividade é ensinada quando o aluno é levado a se apropriar da síntese da experiência humana acumulada nos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos [...]”. Portanto, a criatividade não deve ser entendida como um processo natural, espontâneo, mas sim como parte constituinte do processo de apropriação dos conhecimentos clássicos.

Por fim, para que o trabalho educativo ocorra de forma plenamente efetiva é importante a existência de um sistema nacional (Saviani, 2013) que defina o que deva ser ensinado. Da mesma forma em que é necessária a clareza em relação aos objetivos da escola enquanto uma instituição cuja especificidade é a socialização do saber sistematizado, bem como, clareza sobre os objetivos de um sistema nacional de educação. Para que ambos os objetivos sejam alcançados é preciso construir-se um sistema nacional de educação público, gratuito e laico, que garanta a todas as pessoas as condições para a devida apropriação dos clássicos das ciências, das artes e da filosofia.

Conclusão

O clássico, tal como entendido aqui, não possui seus fundamentos pautados em concepções relativistas, da mesma forma que não é possível compreendê-lo no interior de concepções rígidas e inalteráveis. Faz-se necessária sua compreensão como um produto da atividade humana e, nesse sentido, dotado de contradições que permeiam o desenvolvimento histórico da humanidade.

Se, por um lado, é necessário que a educação escolar possibilite o acesso aos conhecimentos mais essenciais produzidos historicamente pela humanidade, por outro lado, é essencial que se tenha clareza em relação aos processos contraditórios no interior dos quais ocorre a produção desses conhecimentos. Ao proceder dessa forma, superando a antinomia entre relativismo e dogmatismo, estaremos em condições de avançar em direção a uma superação por incorporação das produções humanas mais elaboradas, na medida em que, sem estas, a árdua tarefa de construir uma alternativa societária para além da alienação e do capital se mostra extremamente dificultada.

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1Importante destacar que as obras de Heller e Márkus às quais nos remetemos dizem respeito ao período em que estes autores ainda se encontravam no campo marxista.

2Marilena Chauí (2001) compreende o pós-modernismo como uma ideologia do capitalismo em seu estágio neoliberal. Fredric Jameson (2000) chega a uma conclusão semelhante, e postula o pós-modernismo como sendo a lógica cultural do capitalismo tardio.

3“El trabajo no puede producirse sino como acto teleológico [...]”.

9NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 25 de Julho de 2019; Aceito: 23 de Janeiro de 2020

* Autor para correspondência. E-mail: carolina.gois88@gmail.com

Carolina Góis Ferreira: Mestra e Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus Araraquara - SP, é Professora Temporária vinculada à Prefeitura Municipal de Irati - PR. É membro do Grupo de Pesquisa ‘Estudos Marxistas em Educação’. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6378-5026 E-mail: carolina.gois88@gmail.com

Newton Duarte: Doutor em Educação, é Professor Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus Araraquara - SP. De agosto de 2003 a junho de 2004 realizou pós-doutorado na Universidade de Toronto, Canadá e de agosto de 2011 a julho de 2012 foi pesquisador visitante na Universidade de Sussex, Inglaterra. Coordena o grupo de pesquisa ‘Estudos Marxistas em Educação’ que conta com pesquisadores de várias universidades brasileiras. É pesquisador associado ao Institute for the Humanities, University of Simon Fraser, Vancouver, Canadá, onde desenvolve estudos, como pesquisador visitante, no período de setembro de 2019 a junho de 2020. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1837-8004 E-mail: newton.duarte@unesp.br

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