Introdução
Uma reflexão sobre o Ensino de História na Educação Básica brasileira se faz cada vez mais necessária. Não só pela importância do ensino de História enquanto disciplina, mas também pela premente necessidade de se refletir sobre alguns conceitos inerentes ao conhecimento histórico como a problematização do presente por meio da Historicidade das reflexões como a importância de entender a História dos Conceitos. E, o mais importante, a promoção de uma literacia histórica no processo de formação dos sujeitos históricos. Sendo essa uma das maneiras de se entender a importância do Ensino de História, seja formal ou não formal, se houver uma definição do que se entende por educação histórica.
Peter Lee nos traz uma conceituação para tanto:
A Educação Histórica não deve apenas confirmar formas de pensar que os alunos já têm: ela deve desenvolver e expandir seu aparato conceitual, ajudar os alunos a verem a importância das formas de argumentação e conhecimento e assim permitir que decidam sobre a importância das disposições que fazem essas normas atuantes. Ela deve desenvolver um determinado tipo de consciência histórica - uma forma de literacia histórica - tornando possível ao aluno experimentar diferentes maneiras de abordar o passado (incluindo a história) incluindo a si mesmo como objeto de investigação histórica. A história pode ser entendida, como outras formas públicas de conhecimento, como uma tradição metacognitiva, na qual pessoas têm lutado há tempos para torná-la uma prática possível (Lee, 2016, p. 140).
A partir da citação acima, se torna necessário esclarecer e debater sobre o conceito de Consciência Histórica. No entanto, não é possível fazer uma abordagem aprofundada e tão complexa em apenas algumas linhas deste artigo. Mas é fundamental trazer a discussão a partir de Maria Auxiliadora Schmidt que nos permite compreender a proposta conceitual de Jörn Rüsen (2014, p. 42):
a categoria da cultura histórica teorizada por Rüsen aponta a consciência histórica como uma realidade elementar e geral da explicação humana do mundo e de si mesmo, com um significado inquestionável prático para a vida, propondo que da consciência histórica há somente um pequeno passo à cultura histórica. Se se examina o papel que tem a consciência histórica na vida de uma sociedade, aparece como uma contribuição cultural fundamentalmente especifica que afeta e influi e quase todas as áreas da praxis da vida humana.
A diferenciação entre a Consciência Histórica e a Cultura História a partir da prática cotidiana é fundamental no meio escolar, principalmente quando se identifica um processo de literacia histórica por meio de vários recursos didáticos. A produção de games pela indústria do entretenimento usando elementos que refletem a consciência e a cultura histórica do presente é uma realidade que está no cotidiano de muitas pessoas no mundo contemporâneo. São trazidos vários elementos históricos em suas narrativas que permitem ao professor de História e, principalmente, ao ‘gamer’ fazerem as inferências históricas nestas narrativas. Especificamente neste artigo escolheu-se buscar elementos que remetem à temporalidade específica identificada como História Antiga. No entanto, este é apenas um exercício que pode ser aplicado a qualquer temporalidade ou narrativa dos games que trazem o mote histórico como forma de entretenimento.
É importante salientar que estas reflexões só são possíveis diante do contexto historiográfico atual e das várias discussões teóricas a respeito dos conceitos apresentados acima. Elas fazem parte de um processo histórico e didático das últimas décadas. Não pode se dizer que estas preocupações sobre a Educação Histórica sempre estiveram presentes ou foram inerentes ao historiador e sua produção de conhecimento. Muito pelo contrário. Esta preocupação é recente e, no Brasil, se iniciou na década de 80 do Século XX, e, a partir de então, a academia vem assumindo o Ensino de História na Educação Básica como objeto de pesquisas. Este processo se iniciou com as mudanças no processo de formação do professor de História que se deslocou das Faculdades de Educação e suas especificidades para um processo de reflexão no próprio curso de História, abrangendo as áreas de filosofia e teoria da História.
Segundo Marcos Antônio da Silva e Selva Guimarães Fonseca (2010, p. 15-16, grifo nosso), dois pesquisadores de larga referência sobre o tema no Brasil,
[...] Os textos dos documentos curriculares ‘prescritos’ são reveladores de objetivos, posições políticas, questões teóricas que configuram não apenas o papel formativo da História como disciplina escolar, mas também estratégias de construção/manipulação do conhecimento histórico escolar. Isso nos remete às primeiras perguntas: ‘Tudo é História? Se tudo é História, por que às escolas de Educação básica são endereçados determinados conteúdos específicos, selecionados, elaborados em diferentes lugares de produção? Por que, nas diferentes realidades escolares, na construção curricular cotidiana, outros conhecimentos são selecionados e ensinados? De quais formas os currículos de História, ‘prescritos e vividos’ operam no sentido de selecionar para quê, o quê e como ensinar em História?’
A partir destes questionamentos sobre o que é História, como e para quê ensinar História que as problematizações deste artigo vão se nortear. É importante salientar que, nesta perspectiva, a História enquanto disciplina escolar assume características específicas e divergentes do ensino de História no meio acadêmico universitário e que a prática do ensino de História na Educação Básica é uma questão política, cultural e social. Não se deve entender essa prática como uma mera reprodução e replicação das propostas curriculares e das diretrizes institucionais. Portanto, ainda usando os dois autores citados como referência, é fundamental salientar que o professor de História na Educação Básica pode assumir funções múltiplas e que vão além da questão curricular na reprodução de conteúdos:
Ao Ensino de História cabe um papel educativo, formativo, cultural e político, e sua relação com a construção da cidadania perpassa diferentes espaços de produção de saberes históricos. Desse modo, no atual debate da área, fica evidente a preocupação em localizar, no campo da História, questões problematizadoras que remetam ao tempo em que vivemos e a outros tempos, num diálogo crítico entre a multiplicidade de sujeitos, tempos, lugares e culturas. Portanto, a(s) configuração(ões) da(s) história(s) vivida(s) e ensinada(s) pelos professores, entre as quatro paredes da sala de aula e, também, fora dos limites dos territórios escolares, bem como das histórias que os alunos aprendem nesses e noutros espaços, é bem mais complexa do que muitos supõem. As dimensões curriculares ora se aproximam, se mantêm, ora se distanciam, ora se contrapõem num movimento real, dinâmico, dialético, logo, histórico. (Silva & Fonseca, 2010, p. 24-25)
Assim, ao se propor uma reflexão sobre a Literacia Histórica e um recorte específico sobre a História Antiga, não se pretende analisar questões de conteúdo mas, sim, promover uma reflexão sobre o uso de elementos do cotidiano dos alunos e professores e torná-los objetos de análise e meio de promoção do pensamento crítico-histórico a respeito do seu presente. Além disso, outra questão que aqui se coloca é o uso de objetos que, tradicionalmente, não são identificados como documentos históricos ou fontes que possam proporcionar uma educação histórica e uma reflexão sobre o conhecimento histórico e suas narrativas: os ‘games’ com suas narrativas textuais e visuais.
Os estudos sobre o uso de jogos digitais, aqui identificados como ‘games’, nos ambientes escolares ainda é um espaço a ser desbravado no estado da ciência atual, principalmente em relação ao ensino de História. Há pesquisas desenvolvidas por outras áreas mas cabe ainda um avanço sobre a perspectiva dos historiadores.
Um dos estudos sobre o uso dos games no ensino de História relata uma experiência de pesquisadoras vinculadas à Universidade do Estado da Bahia, UNEB. No seu relato e análises da aplicação dos ‘games’ no ensino de História, é possível identificar algumas questões importantes como a inserção dos games na sociedade contemporânea, assim como o sucesso destes jogos digitais junto a determinados segmentos sociais e sua faixa etária.
As autoras ressaltam estas características:
Todo esse desenvolvimento dos jogos digitais vem chamando muita atenção e não passa despercebido por algumas instâncias da nossa sociedade, principalmente pelos centros propulsores de ensino e pesquisa.
Somente agora os jogos digitais se tornaram importantes e seus entusiastas estão sendo ouvidos nas academias por que esse assunto deixou de ser encarado como tolice infantil e passou a ser entendido como propulsor da materialidade tecnológica da sociedade contemporânea.
Conforme afirma Xavier [2010], as percepções sobre esse elemento cultural começaram a mudar no âmbito acadêmico, quando os pesquisadores passaram a visualizá-lo para além da concepção de mero artefato tecnológico não sério, utilizado como ocupação temporária de tempos livres e voltado apenas para atividades lúdicas que se encerram em si mesmo, isto é, no seu próprio ato (Neves, Alves, Fuentes, & Flores, 2010, p. 104).
Na última década, houve avanços sobre a pesquisa do tema. No entanto, ainda há que se fazer algumas discussões que levem a abordagens mais avançadas e profundas em termos de teorias do conhecimento histórico, seu ensino e aprendizagem no âmbito da educação básica.
Um importante pressuposto derivado destas discussões e pesquisas já realizadas é a conclusão de que o campo de estudo dos ‘games’, suas relações com a cultura e o comportamento humano, é de natureza interdisciplinar e um gênero híbrido.
A interdisciplinaridade evidente dos games tem atraído para seu estudo áreas diversas do conhecimento como a filosofia, a semiótica, a psicologia, a antropologia, as ciências da computação, a engenharia elétrica, as telecomunicações, as ciências cognitivas, a publicidade, o marketing, as comunicações, o design, a computação gráfica, a animação, a crítica literária e da arte, a narratologia, a ludologia, a educação, todas elas em relação direta com as múltiplas e integradas características dos games. Tem-se aí, de fato, um campo híbrido, poli e metamórfico, que se transforma a uma velocidade surpreendente, não se deixando agarrar em categorias e classificações fixas, uma vez que é movido pela inovação tecnológica. A atualidade de um game raras vezes passa de seis meses e pode ser medida pelo desaparecimento das menções que são feitas a eles nos news groups (grupos de discussão sobre temas de interesse nas redes). Games são híbridos porque envolvem programação, roteiro de navegação, design de interface, técnicas de animação, usabilidade, paisagem sonora (Santaela & Feitoza, 2009, p. xii).
Diante dos elementos conceituais e introdutórios a respeito do Ensino de História e o uso de ‘games’ como meio de reflexão sobre o conhecimento histórico, abordar-se-á questões pertinentes a conceitos fundamentais para responder a questão: ensinar e aprender História para quê? Para responder esta pergunta, é necessário entender o conceito de Historicidade nos ‘games’ e as relações entre passado, presente e futuro.
A Historicidade nos games: o presente, o passado e a produção de sentidos
Antes de se chegar ao objeto de análise deste artigo, a historicidade e as narrativas históricas nos ‘games’, é importante que alguns conceitos sejam abordados e esclarecidos.
Peter Lee, em outro artigo que tem como proposta a reflexão sobre o motivo de se aprender e ensinar História, traz algumas ideias que promovem uma análise de conceitos históricos e seus significados. Nesta abordagem, é possível entender a dinâmica temporal inerente ao conhecimento histórico e a elaboração de significados. Segundo o autor, a construção do passado se dá a partir das relações com o presente que atribui sentido aos conceitos ‘encapsulados’ a partir de determinadas temporalidades.
Não se escapa do passado. Ele é construído a partir de conceitos que nós empregamos para lidar com o dia a dia do mundo físico e social. Algumas vezes os conceitos encapsulam o passado sob a forma de processos causais (ex. ‘árvore’, ‘mãe’, ‘bombas’). Algumas vezes, é envolvido um passado institucional - no caso de se falar em um governo ou uma criança ilegal, ou em casos que alguns critérios de legitimidade não foram encontrados. Mas, o controle do passado é sempre menos formal (Lee, 2011, p. 20, grifos do autor).
O presente, que se cerca de elementos sociais cotidianos, é o que atribui significado às palavras e aos conceitos elaborados com sentidos específicos e estão vinculados ao momento histórico vivido. É por essa dinâmica que as linguagens textuais e gráficas presentes nos ‘games’ trazem elementos de natureza histórica e atraem o público ao qual está destinado. Mesmo que estes elementos não tragam metodologias teóricas para a construção de um conhecimento histórico científico e acadêmico, eles geram significados e sentidos, pois estão inseridos em meios sociais que recebem os conceitos institucionalizados e normatizados culturalmente. Isso só é possível pois o conhecimento cultural e social está pleno de sentidos históricos a partir de uma memória coletiva.
Portanto, ensinar e aprender História traz uma dinâmica que visa promover um processo de reflexão sobre as questões do presente. É justamente este presente que produz elementos para as historicidades de cada uma das temporalidades vividas conforme propõe François Hartog (2013, p. 11-12):
[...] um regime de historicidade é apenas uma maneira de engrenar passado, presente e futuro ou de compor um misto das três categoriais, [...] o termo expressa a forma da condição histórica, a maneira como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no tempo.
O conceito de historicidade está estabelecido em regimes que produzem sentidos a partir de cada uma de suas temporalidades. Para isso, é importante retomarmos o que nos trouxe o Hartog (2013, p. 13):
O uso que proponho do regime de historicidade pode ser tanto amplo, como restrito: macro ou micro-histórico. Ele pode ser um artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico [...] ou a de um homem comum; com ele, pode-se atravessar uma grande obra (literária ou outra) [...] pode-se questionar a arquitetura de uma cidade, ontem e hoje, ou então comparar as grandes escansões da relação com o tempo de diferentes sociedades, próximas ou distantes. E, a cada vez, por meio da atenção muito particular dada aos momentos de crise do tempo e às suas expressões, visa-se a produzir mais inteligibilidade.
A noção de tempo e de temporalidade é inerente ao processo de constituição conceitual proposto por François Hartog. A proposta do estudioso francês permite entender o rompimento com o conceito linear de tempo e que as crises histórico-sociais promovem as mudanças de concepções históricas e de memória. Com estas crises, se quebra a relação dinâmica estabelecida entre passado, presente e futuro. É justamente a relação entre presente e passado que possibilita entendermos e diferenciarmos História de Historicidade pois esta, a partir do presente, promove significados e compreensão do passado.
Ao melhor definir o conceito de Historicidade, Hartog se remete ao conceito de tempo histórico elaborado por Koselleck e permite o entendimento sobre a relação que deve ser estabelecida entre o presente, o passado e o futuro na possibilidade de constituição de vários tipos de História.
Com o regime de historicidade, tocamos, dessa forma, em uma das condições de possibilidade da produção de histórias: de acordo com as relações respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados tipos de história são possíveis e outros não.
O tempo histórico, se seguirmos Reinhart Koselleck, é produzido pela distância criada entre o campo da experiência, de um lado, e o horizonte da expectativa, de outro: ele é gerado pela tensão entre os dois lados. É essa tensão que o regime de historicidade propõe-se a esclarecer [...]. Mais precisamente ainda, dos tipos de distância e modos de tensão (Hartog, 2013, p. 39).
Diante destes argumentos, o que se pretende neste artigo é defender que as narrativas históricas possíveis a partir de games não podem ser relacionadas às narrativas histórica pautadas em metodologias tradicionais que visam a produção de um conhecimento acadêmico científico mas que, sim, se pretende refletir sobre as várias possibilidades de se promover uma literacia histórica a partir da reflexão sobre o conhecimentos histórico em seus vários sentidos e significados. Com isso, o conhecimento histórico a partir do fato e de conteúdos defendidos como premissas do ensino de História na Educação Básica devem ser rebatidos com uma possibilidade de promoção de processos cognitivos que levem ao entendimento de que a História e o conhecimento produzido não são narrativas estanques e produzidas por estruturas rígidas.
A partir das reflexões conceituais abordadas, se pretende, a partir de agora, analisar alguns ‘games’ que, por uma questão de recorte cronológico, abordam narrativas históricas que têm a História Antiga como objeto de reflexão.
Games, Literacia Histórica e as narrativas sobre a História Antiga
Não há dúvidas que se trata de um truísmo afirmar que a Antiguidade, e cabe aqui realmente frisarmos, em suas várias espacialidades, seja do Mundo Clássico ao universo comumente denominado de ‘Oriental’, está presente no mundo atual. O necessário para sair deste lugar-comum é observarmos por quem, de quais formas e com que diferentes finalidades esta presença é buscada e quais os sentidos históricos podem ser identificados.
De maneira específica, se pretende realizar uma reflexão à pergunta: ‘História Antiga para quê?’. O uso e o consumo da Antiguidade pela indústria cultural contemporânea permitem respondermos a questão - ao menos em parte - considerando, de um lado, a relevância da Antiguidade como um nicho influente da cultura ‘pop’, sobretudo o que tange o mundo dos videogames e, de outro lado, o papel do historiador no desenvolvimento desses produtos que não são considerados objetos de narrativas históricas científicas.
Inicialmente, pensando a relação da Antiguidade com a indústria cultural ‘pop’, é facilmente observável como ‘motifs’, personagens, estórias e narrativas do e sobre o passado são continuamente e repetidamente cooptados, reimaginados e recontados em diferentes produtos. Esta amplitude de significados, no presente, pelo presente e para o presente, remete a elementos constituídos historicamente pelo passado.
No mundo dos ‘games’, os exemplos destas narrativas são os mais diversos tanto no quesito gênero quanto temática: De jogos que simulam grandes batalhas antigas como ‘Rome Total War’ (2003) e sua sequência ‘Rome Total War II’ (2013); Jogos inspirados na mitologia antiga como a trilogia ‘God of War’ (2005-2010) e ‘Age of Mythology’ (2002); a jogos mais recentes ao estilo ‘civilization’ como ‘Agressors: Ancient Rome’ (2018) e, que está a ser lançado ainda este ano, ‘Imperator: Rome’ (2019). Chamamos a atenção em especial a dois jogos pertencentes a uma mesma franquia - tema ao qual voltaremos posteriormente - e que desde 2007 busca uma relação ‘especial’ com a História: ‘Assassin’s Creed Origins’ (2017) e ‘Assassin’s Creed Odyssey’ (2018), o primeiro se passando no Egito entre os anos de 49 e 44 AEC, e o segundo no período da Guerra do Peloponeso.
Desta listagem - de maneira alguma exaustiva - uma coisa certamente fica clara: independentemente da qualidade ou crítica realizada a esses diversos produtos, do alcance de público e suas especificidades de mídia, ou ainda da clareza ou pesquisa histórica envolvida em seu desenvolvimento, hoje em dia a História Antiga e suas temáticas, em primeiro lugar, entretêm. Ela está viva e pulsante em nosso presente e plena de simbologias do passado.
O valor do passado como entretenimento em nossa cultura atual não pode e nem deve ser subestimado. Para a maioria das pessoas, o entretenimento não é apenas a porta de entrada para outras temporalidades, mas também sua conexão mais perene com o passado e tudo isso em uma grandeza praticamente inimaginável ao historiador.
Tomando como exemplo o jogo ‘Assassin’s Creed Origins’, o site especializado ‘VGChartz1’ aponta para uma venda, apenas para o console ‘Playstation 4’, de pouco mais de 4 milhões de cópias. O site ‘TECHSPOT2’, por sua vez, relata vendas do mesmo jogo para PC através da plataforma ‘Steam’ entre 1 e 2 milhões de cópias.
Em outras palavras, sem considerar a venda em outro importante console de videogame desta geração, vendas de mídia física para PC, ou mesmo vendas digitais em outras plataformas, seu alcance gira de 5 a 6 milhões de jogadores ao redor do mundo. Seria uma covardia, por exemplo, comparar esses números com o alcance de uma produção historiográfica, como um artigo científico, que tratasse da mesma temática - a luta de poder entre Cleópatra e Ptolomeu, e o papel de Roma e Júlio César nos conflitos políticos do Egito.
A História Antiga é experimentada pelo público em geral no presente, primeiro e sobretudo como um produto que diverte e uma pequena fração da indústria do entretenimento. Ela tem seu espaço bem definido e relevante, tendo em vista, conforme apontado, os inúmeros produtos continuamente lançados com suas temáticas. A Antiguidade é, no caso em que pretendemos analisar, consumida com voracidade por uma legião de jogadores ao redor do mundo. Frente a essa realidade, é justo que nos perguntemos: Qual o papel da História Antiga e do historiador nessa e para com essa indústria?
A resposta para esta questão é consideravelmente complexa, pois passa, necessariamente, por certas discussões conceituais como já visto anteriormente. Com a reflexão necessária a respeito do passado, a partir do presente e pelo presente, é premente entender que se pode identificar diferentes discursos acerca deste passado, ou ainda, as diferentes formas de se produzir narrativas sobre ele.
Nesse sentido, reforça-se a problematização e diferenciação do fazer historiográfico, isto é, a conceituação de uma escrita acerca do passado amparada por um conjunto teórico-metodológico de análise e inscrita em uma série de pré-requisitos que lhe atribuem caráter científico (Barros, 2014), de tipos diferentes de narrativas do passado que, galgadas em outros pressupostos teóricos-metodológicos, lhe conferem um caráter de meramente ficcional ao de, por exemplo, uma metaficção historiográfica (Hutcheon, 1991).
Esta diferenciação entre historiografia e diferentes narrativas sobre o passado em produtos da indústria cultural (do cinema ao videogame, por exemplo), mostra de maneira elementar que estas últimas, baseadas em um regime de saberes completamente distinto, não precisam se pautar pelos mesmos parâmetros que a escrita do historiador. Como consequência direta, toda crítica ou julgamento que se realize tomando a historiografia como medida, acaba sendo insipiente.
Por outro lado, cada vez mais observa-se que estes mesmos produtos têm buscado, inclusive como característica que elevaria seu valor monetário, passar uma ideia de ‘historicidade’ / ‘realidade histórica’ para seus consumidores, gerando consigo uma série de novos problemas.
Podemos tomar, por exemplo, o jogo ‘Assassin’s Creed Origins’. Seu desenvolvimento pela empresa Ubisoft Montreal contou com a supervisão de uma equipe de historiadores - equipe essa permanente dentro da empresa - bem como de outros profissionais tais como filólogos, e até mesmo o arqueólogo francês Jean-Claude Golvin, responsável por criar uma série de pinturas com reconstruções de sítios arqueológicos que foram modelados em 3D para o jogo3.
Ao mesmo tempo que há esse ‘investimento’ na direção histórico-científica do desenvolvimento do jogo, é o próprio chefe da equipe de historiadores, Maxime Durand, que aponta para o fato de que há outros elementos a serem considerados ao afirmar que “[...] nós pesquisamos em enciclopédias, então em outros livros, e então assistimos filmes e séries de TV para ver como a indústria do entretenimento abordou o assunto” (The Guardian, 10/09/2017).
Em outras palavras, o historiador demonstra que há uma preocupação em lidar com as expectativas do público a respeito de dada temática histórica a partir de sua relação, não apenas com a historiografia, mas sim da produção de narrativas da cultura ‘pop’.
Nesse sentido, tanto Durand quanto Ashraf Ismail, diretor geral do jogo, são uníssonos em pontuar o caráter primariamente ficcional e de entretenimento deste produto, ainda que possua um embasamento histórico:
Eles [historiadores] estão lá quando nós estamos conversando sobre a narrativa [do jogo], eles estão sempre lá para serem um pouco críticos no que tange a credibilidade - é uma via de mão dupla, para nós criarmos um meio termo feliz, no qual nós possamos ainda criar uma ficção pura, mas uma alicerçada na história (Ismail, The Guardian, 10/09/2017)
Eu penso que alguns historiadores nunca irão ver o valor disto [do jogo], ou irão apenas ver seu valor como produto de entretenimento, e isso está okay, porque é para isso que ele foi criado em um primeiro momento (Durand, The Guardian, 10/09/2017).
A questão para nós, entretanto, não deveria se pautar por uma discussão a respeito do papel da História Antiga ou do historiador como um controle de qualidade ‘histórica’ de determinado produto, prestando-nos a distribuir um equivalente a ‘selo de qualidade’. Em última análise, esse tipo de discussão equipara-se a ter uma visão sobre ‘certo’ e ‘errado’ a respeito do passado, ou ainda retratar os ‘fatos como eles realmente aconteceram’.
Propomos que o papel do historiador, e da História Antiga no que tange às suas temáticas, seja de propiciar aos consumidores destas narrativas não profissionais, e partir delas, uma ideia de ‘literacia histórica’.
Como aponta Schmidt, um conceito de literacia histórica envolve:
A construção de sujeitos historicamente letrados, que sejam minimamente capazes de [...] realizar algumas coisas, como:
ter uma imagem do passado que lhes permita orientarem-se no tempo, a qual exige o domínio de determinados conteúdos históricos ou uma compreensão substantiva coerente do passado;
um conhecimento de como desenvolver uma explicação e narrativa do passado, o que pressupõe o domínio de ideias substantivas e de ideias de segunda ordem que colaborem para organizar o passado, fazendo com que o conhecimento do passado possível (Schmidt, 2009, p. 17-18).
Embora Schmidt esteja tratando, sobretudo, de uma questão do ensino de História, parece-nos razoável extrapolar esta orientação para além do ambiente escolar, mas da nossa própria comunidade.
A ideia de literacia histórica aparece de forma intrínseca com o conceito já exposto por Rüsen (1992) de construção de uma ‘consciência histórica’, isto é, um modo ‘específico de orientação’, que possibilita a compreensão da realidade passada para compreender a realidade presente.
Na articulação dos conceitos de literacia e consciência histórica, observamos que existe uma preocupação com a capacidade de leitura das diferentes narrativas sobre o passado, cujo resultado, ou ainda, cujo objetivo seria permitir aos sujeitos problematizarem a si próprios (Schmidt & Garcia, 2005), e por si próprios, procurando respostas na relação entre passado e presente.
O sujeito consciente e com literacia histórica, portanto, é capaz de orientar-se no tempo, utilizando de seus conhecimentos para a tomada de uma série de decisões de seu presente, de modo que o importante ao lidar com as narrativas sobre o passado não é sua acuidade histórica, mas a capacidade de problematizá-la.
Nesse exato sentido podemos fazer uma reflexão sobre os games, conforme McCall (2016) aponta ao falar de jogos de simulação como Assassin’s Creed:
Se a História, entretanto, é primariamente um registro do passado, um tipo de narrativa mestre precisa, que precisa ser transmitida aos alunos, a flexibilidade aberta dos jogos de simulação essencialmente minam essa empreitada. [....] Se entende-se a História de alguma forma como sendo pré-determinada, o jogo histórico - com diversos finais e possibilidade uma variedade de resultados - não tem lugar. Em troca de se jogar com o passado, entretanto, pode-se ganhar um entendimento muito mais rico do porquê de certas possibilidades terem sido mais prováveis do que outras, e o porquê de certos atores, em última instância, agiram conforme fizeram (McCall, 2016, p. 528).
Ao retirar-se a preocupação da narrativa histórica como registro, e centrar-se no universo de questões do pensar historicamente, ou ainda de orientação temporal conforme observamos, pode-se ver que os jogos têm um papel importante a ser desenvolvido pelo historiador para com a comunidade.
De um lado, é mais simples pensarmos nessa relação junto ao ambiente escolar, onde os jogos podem ser problematizados dentro da sala aula, suas narrativas questionadas, e propiciar aos alunos atividades no sentido de construir sua consciência e literacia histórica.
Nesse sentido, é determinante o papel do/a professor/a na sala de aula enquanto mediador do conhecimento, pois, se conforme observamos com McCall (2016), jogar com o passado torna-se menos uma atividade sobre transmitir uma informação de datas e acontecimentos, mas abrir um leque consideravelmente maior de perguntas e conceitos aos estudantes, então a atividade docente deve ser entendida, entre outros pontos, como aquela que: estimula a imaginação criativa, a construção de conhecimento e de consciência histórica com os alunos, inserindo-os, por fim, em uma cultura histórica (Parisoto & Telles, 2016).
Por outro lado, para aqueles fora do ambiente escolar, o papel do historiador talvez estaria na própria produção do jogo. Como foi observado, a ideia de historicidade vem ganhando espaço em diversas produtoras, muitas que inclusive contam com equipes de historiadores e outros acadêmicos para suas produções.
A atenção desses grupos tem se voltado em passar de um apoio crítico sobre ‘credibilidade’ histórica, do que aconteceu ou deixou de acontecer, para um apoio que torne explícitos os contextos históricos envolvidos, inclusive podendo haver a produção de um conteúdo mais específico a esse fim.
Nesse sentido, não se pode deixar de chamar a atenção ao modo ‘Discovery Tours’, produzido para o jogo ‘Assassin’s Creed Origins’, que, pensado pelos seus produtores como uma ‘ferramenta de ensino’ e um ‘Museu Virtual’4, proporciona aos jogadores a interação com diversos elementos da vida no Egito Antigo.
Ainda que se tenha severas críticas a certos pontos desse modo de jogo, que não cabem aqui por uma questão de espaço (cf. Bondioli & Lima, 2019), acredita-se ser louvável a iniciativa de uma grande empresa da indústria de jogos em desenvolver um produto que tem por objetivo direto levar a uma reflexão histórica.
Considerações finais
A partir das discussões realizadas, pode-se fazer alguns apontamentos. Em primeiro lugar, reafirmar que não cabe ao historiador fazer julgamento às narrativas sobre o passado que não se adequam à historiografia, justamente por não fazer parte de uma metodologia científica ou criadas alternativamente a ela.
De mesmo modo, também não parece ser o papel do historiador, ou da História, servir como medidor de autenticidade/veracidade histórica das diversas narrativas sobre o passado. Como já argumentado inicialmente neste texto, não pode ser este o objetivo do Ensino de História ou qualquer forma de reflexão sobre o conhecimento histórico.
Acredita-se que o papel do historiador está em criar uma ponte entre essas narrativas sobre o passado, nos diversos produtos da indústria cultural, e a criação de uma literacia histórica nos sujeitos, isto é, uma capacidade de se orientar no tempo e de pensar historicamente.
Nesse sentido, os ‘games’ têm um importante papel a desempenhar: maciçamente consumidos ao redor do mundo e, com grande apelo especialmente entre adolescentes e jovens adultos, pode servir como um ponto de referência para se pensar diferentes temporalidades. Ao historiador cabe agir em duas pontas: tanto no consumo desses produtos e a sua utilização em sala de aula, quanto no processo de elaboração desses produtos dentro das equipes de desenvolvimento.
A Antiguidade e suas temáticas entretêm, e a História Antiga, nessas condições, tem um papel, não de ser uma ‘killjoy’ censuradora de outras narrativas sobre a Antiguidade mas de servir como intermediadora entre o sujeito, sua diversão, e a construção de um conhecimento histórico.