Introdução
A produção histórica de verdades próprias de um modus operandi do campo da formação docente é co-extensiva a uma série de relações de forças cuja energia se desprende da vida que vivemos em nossos campos de atuação. No Brasil, por exemplo, a formação inicial dos professores esteve fortemente marcada pelo investimento e presença da disciplina de Didática Geral nos cursos de formação.
Com o passar dos anos, e da mobilização de forças individuais e coletivas combinadas entre si, houve uma passagem da utilização da Didática Geral para a Didática Específica/Especial no campo da formação inicial de professores. Levando em conta essa passagem, o presente estudo interessa-se em perguntar pelas condições de possibilidade que contingenciaram tal passagem, focando, principalmente, no campo da formação inicial de professores de Química. A formação inicial de professores de Química é, no presente estudo, o viés pelo qual se analisa a emergência das Didáticas Específicas/Especiais a partir da Didática Geral. Este movimento de passagem é comum à formação de professores em todas as áreas específicas conhecidas, no jargão educacional, como ‘ensino de’, ou seja, formação de professores para o ensino de Física, Geografia, Matemática, Artes Visuais, Música, etc.
Com base nesse intuito, desenvolve-se uma genealogia (Foucault, 2015) dessa passagem, combinada a uma busca realizada em acervo documental, onde se pergunta pelo jogo de forças que lhe conferiu necessidade, coerência e atuação, com vistas a apresentar as proveniências que estiveram no entorno desse movimento no Brasil. Acerca da genealogia é importante ponderar que:
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende demarcar o território único de onde viemos, essa primeira pátria a qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam (Foucault, 2015, p. 82-83).
Uma genealogia constrói um movimento na busca pela compreensão das condições de possibilidade, nos domínios do poder e do saber, das descontinuidades, rachaduras que produziram a superfície de emergência de enunciados e de práticas específicas. Essas condições contribuem para a estruturação dos campos discursivos e das lógicas produtoras de subjetividades, inclusive quando se trata da produção de uma noção de escola e da formação inicial dos seus respectivos professores, nesse caso os docentes em Química.
Assim, com base na atenção para as forças que estiveram em fluxo para a consolidação de modos específicos para pensar a Didática pelo viés da formação inicial de professores de Química no Brasil, é que esta genealogia se delineia, tateando pontos insuspeitos e, muitas vezes aparentemente desconexos, que permitem desenvolver uma historicidade dessa passagem no Brasil.
Um fazer genealógico: as Didáticas no Ensino de Química
Os cursos de formação inicial de professores de Química no Brasil, assim como os demais cursos, estiveram alicerçados, desde a sua criação, na compreensão de Didática proposta por Jan Amos Comenius (2006).
A noção de Didática de Comenius (2006) está vinculada a sua obra Didática Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos, publicada em 1657. Esta é abalizada como ‘fundadora’ da pedagogia moderna, contribuindo para que Comenius (2006) seja tomado como principal referência no contexto dos cursos de formação inicial de professores no Brasil.
Comenius (2006) percebe a Didática como arte de ensinar tudo a todos. A noção de Didática que move os seus escritos e inspirou/inspira boa parte dos cursos de formação até o contemporâneo é a seguinte:
Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda. Finalmente, demonstramos essas coisas a priori, partindo da própria natureza imutável das coisas, como se fizéssemos brotar de uma fonte viva regatos perenes, que se unissem depois num único rio para constituir uma arte universal, a fim de fundar escolas universais (Comenius, 2006, p. 13).
Atentando a essa concepção de Didática de Comenius (2006), é inevitável remeter o pensamento ao contexto onde esse texto foi produzido, estreitamente relacionado à religiosidade cristã e também à noção de moralidade e de virtude que circundava seus preceitos religiosos. Essa Didática pensada por Comenius foi mobilizada em meados dos anos 1600, auge da produção manufatureira por parte da Burguesia.
Cordeiro (2007) apresenta alguns temas e problemas atrelados à Didática, contemplando alguns pontos importantes para tensionarmos a Didática em Comenius (2006). Para Cordeiro (2007, p. 166), a Didática Magna de Comenius tem relação com o empreendimento de caráter coletivo dos chamados “[...] intelectuais europeus do século XIII de construção de uma explicação científica e racional do mundo, em que estiveram envolvidas figuras como Galileu, Descartes e Bacon”. Essa Didática ensinaria tudo e todos, “[...] mediante a adoção de um método único e universal que abreviaria o trabalho do professor e tornaria mais acessíveis os conhecimentos para os alunos” (Cordeiro, 2007, p. 166).
Encontrava-se fortemente marcada por Métodos, os quais compõem, de forma incisiva, os capítulos subsequentes de sua obra Didática Magna. Para Comenius, podemos pensar a seguinte noção de método:
Que a proa e a popa da nossa didática sejam: buscar e encontrar um método para que os docentes ensinem menos e os discentes aprendam mais; que nas escolas haja menos conversa, menos enfado e trabalhos inúteis, mais tempo livre, mais alegria e mais proveito; que na república cristã haja menos trevas, menos confusão, menos dissensões, mais luz, mais ordem, mais paz e tranquilidade (Comenius, 2006, p. 12).
Com base nessa perspectiva de pensar o método em Comenius (2006), torna-se possível vincularmos a proveniência desse discurso da Didática ao sofístico1 do período da renascença (desde o século XVII), que é atravessado pelo ensino de doutrina por meio de exercícios de natureza espiritual capturados por práticas de caráter cristão.
Comenius tratou da emergência dessa noção de Didática Magna do seguinte modo:
Esta arte de ensinar e aprender, no grau de perfeição a que agora, ao que parece, quer alçar-se, foi em grande parte desconhecida nos séculos passados: por isso, no mundo das letras e das escolas sempre se acumularam canseiras e enfado, incertezas e falhas, erros e imperfeições, razão pela qual somente os dotados de engenho superior podiam aventurar-se em busca de uma instrução mais sólida (Comenius, 2006, p. 15-16).
Nesse tom, pode-se inferir que a Didática passa pela promessa de tornar um indivíduo professor, um sujeito capaz de ensinar tudo a todos, como uma arte de ensinar com grau de perfeição divina, como uma prática que conduz à aprendizagem do estudante de um ponto A para, inevitavelmente, um ponto B.
Essa promessa da Didática encontra-se vinculada como um meio pelo qual alguém se torna professor, como uma forma de organizar tecnicamente e racionalmente a prática pedagógica, como a chance de “[...] resultar na aprendizagem com maior sucesso” (Cordeiro, 2007, p. 21) e, ao mesmo tempo, estabelecer “[...] com precisão das regras desse método” (Cordeiro, 2007, p. 22).
Conforme Gonçalves, em seu volume I do livro Didática Geral (1982), utilizado no Brasil como referência nos cursos de formação inicial principalmente das décadas de 1980 e 1990, a Didática é caracterizada: “a) Quanto ao objeto: é uma disciplina pedagógica, eminentemente prática e normativa, que tem por objeto específico a técnica de ensino. b) Quanto ao conteúdo: é um conjunto sistematizado de princípios, normas e técnicas específicas de direção da aprendizagem” (Gonçalves, 1982, p. 48).
Nesse viés, a Didática aparece como responsável pela técnica educativa, tendo como objeto o ensino2 e sua respectiva aprendizagem3 (Gonçalves, 1982). É essa promessa da Didática de caráter Geral que dá coerência à distinção entre os cursos de bacharelado e de licenciatura. Distinção alimentada pelo que Dallabrida (2001, p. 26) chama de “[...] conjunto de dispositivos que inclui o ementário, os programas de ensino, os manuais e compêndios e os materiais didáticos diversos das disciplinas-saber”. Além disso, essa mesma Didática emerge com base na concepção de que o homem, para ser homem, precisa ser formado. Nas palavras de Comenius (2006, p. 72), para que o homem aprenda “[...] será preciso ensiná-lo, aos poucos a sentar-se, a ficar ereto, a andar, a mexer as mãos para realizar uma operação [...]”, ao passo que essas mesmas prerrogativas para que o homem aprenda estendem-se a todos “[...] a educação é necessária para todos” (Comenius, 2006, p. 75), o que toma relevo enquanto disseminação de normas de conduta comportamental para todos (modo de sentar, modo de ‘prestar atenção’ se destacam como importante mobilização para que o homem, supostamente, aprenda).
Essa mesma educação encontra-se vinculada ao que Comenius denomina de exercício de comando:
A quem um dia caberá comandar outros, como reis, príncipes, magistrados, pastores, e Doutores da Igreja, a estes, mais que a ninguém, é necessária a educação profunda na sabedoria, assim como os guias precisam ter os olhos treinados, e os intérpretes a língua, a trompa precisa ser capaz de tocar, e a espada de cortar. Do mesmo modo, os súditos precisam ser iluminados, para que saibam obedecer com prudência os que comandam com sabedoria: não com obrigação e com servil obséquio, mas de bom grado e por amor à ordem. Isso porque uma criatura racional deve ser guiada pela razão, e não por meio de gritos, cárcere, pancadas. E aqueles que agem de modo diferente ofendem a Deus, que neles também pôs sua imagem, e os assuntos humanos estarão cheios - como estão - de violência e descontentamento (Comenius, 2006, p. 76).
A noção de exercício de comando proposta por Comenius (2006) apresenta uma utilização das pessoas para um fim que considera maior, nesse caso a igreja e uma embrionária centralização estatal enquanto fios condutores da arte, que supõe dar viabilidade, que trata de ensinar tudo a todos.
A Comenius endereçamos duas perguntas aparentemente ingênuas. A primeira pergunta, ‘o que é tudo?’, tensiona que “Um rol de conhecimentos universais de caráter científico, provenientes dos centros de cultura colonizadora e mercantilista do ocidente compõem o que se chama ‘tudo’” (Corrêa, 2000, p. 78, grifo nosso). Afinal, o que é tudo para um pastor religioso que vivia na região da Europa central entre 1592 e 1670?
A segunda dirigida a Comenius, é: ‘quem são todos?’. Com propósito de deixá-la pairando no texto, tal pergunta aponta “[…] os contingentes de indivíduos colonizáveis e possíveis de serem reduzidos ou tornados normais, encerram o que se diz ser todos” (Corrêa, 2000, p. 78). Aí:
Afora ‘tudo’ e ‘todos’, [resta] um conjunto inominável de saberes e modos de viver que não ocupa espaço no tempo histórico nem na geografia a que temos acesso por meio dos programas escolares e dos seus prolongamentos que veiculam os meios de comunicação de massa (Corrêa, 2000, p. 78, grifo nosso).
O que Corrêa (2000) tensiona com esse movimento está diretamente ligado à preocupação daquilo que escapa à noção de ‘tudo e todos’, anunciada por Comenius (2006) no século XVII. Com isso, podemos ainda questionar: e o que escapa desse tudo? O que escapa desaparece? É inexistente?
Essa pergunta toma corpo, uma vez que tudo aquilo que é desenvolvido em outros espaços-tempos que desviam dessa noção parece não compor com esse modo de pensar educação. Há, aí, a ênfase de que tudo passa por um crivo moral e, ao mesmo tempo, por um crivo que coloca em cheque a própria existência, como foi o esforço empreendido pelos jesuítas quando se perguntavam ‘Os índios são alguém?4’.
“É dentro dos limites dessa seleção de saberes, ou a propósito dela, que adquire coerência tudo que se diz, na instância das leis ou da pedagogia, de modo que a escolarização parece encerrar nela mesma as possibilidades da educação” (Corrêa, 2000, p. 78). Produção de uma narrativa que dá coerência ao modo como opera e acontece a distribuição e a seleção do conhecimento no espaço escolar, o qual, de certa forma, condiciona o modus operandi do campo da formação dos seus respectivos professores.
Como contingência para pensar o campo da Didática, o livro Didática do Ensino Superior, de Antonio Carlos Gil (2007), é importante instrumento pois aponta que a Didática inicialmente encontrava-se relacionada ao campo da Filosofia, por sua vez, “A partir do final do século XIX, a Didática passou a buscar fundamentos também nas ciências, especialmente na Biologia e na Psicologia, graças às pesquisas de cunho experimental” (Gil, 2007, p. 2). A respeito dessa contingência podemos considerar que:
No início do século XX, por sua vez, surgiram numerosos movimentos de reforma escolar tanto na Europa quanto na América. Embora diversos entre si, esses movimentos reconheciam a insuficiência da didática tradicional e aspiravam a uma educação que levasse mais em conta os aspectos psicológicos envolvidos no processo de ensino. Costumava-se reunir essas tendências pedagógicas sob o nome da Pedagogia da ‘Escola Nova’ ou da ‘Escola Ativa’. A literatura referente a essas tendências é muito extensa e envolve obras de autores como: Ovide Decroly (1871-1932), da Bélgica, Georg Kershensteiner (1854-1932), da Alemanha, Roger Cousinet (1881-1973), da França, Édouard Claparède (1873-1940), da Suíça, e John Dewey (1859-1952), dos Estados Unidos. Esses movimentos surgiram dentro de um contexto histórico-social que teve como foco principal o processo de industrialização, com a burguesia industrial firmando-se como classe hegemônica e interessada, consequentemente, na difusão de ideias liberais (Gil, 2007, p. 2-3).
Essa modificação da compreensão Didática, agora vista sob o prisma das teorias psicológicas, atravessou o Brasil em meados da década de 1920 por meio de: Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho. No cerne da Escola Nova e do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), com sua promessa de ‘renovação pedagógica’, inspirada principalmente pelos escritos de John Dewey e Edouard Claparède, era anunciada uma transformação técnica, “[...] que buscava aplicar na prática educativa os conhecimentos derivados das ciências do comportamento” (Gil, 2007, p. 3).
No Brasil, entre os primeiros anos da década de 30, Francisco Campos, Ministro da Educação, criou a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo ainda em 1934. Com isso, deu o pontapé inicial para que a Didática adentrasse pela primeira vez os cursos que formam professores, mais especificamente com o Art. 20 do Decreto-Lei nº 1.190 do ano de 1939. Para Veiga (1988, p. 30), “No início, a parte pedagógica existente nos cursos de formação de professores era realizada no Instituto de Educação” e, a Didática “[...] foi instituída como curso e disciplina, com duração de um ano” (Veiga, 1988, p. 30).
Anos mais tarde, a Lei Orgânica do Ensino Normal, Decreto-Lei nº 8.530 de 1946, previa cursos de especialização e de administração escolar. Na especialização havia os seguintes ramos: “[...] educação pré-primária; didática especial do curso complementar primário; didática especial do ensino supletivo; didática especial de desenho e artes aplicadas; didática especial de música e canto” (Decreto-Lei nº 8.530, 1946).
Em meados de 1950, o campo da racionalidade técnica e da busca por eficácia afetou diretamente a concepção Didática em fluxo no país. A neutralidade científica e o tecnicismo impulsionava que, nos cursos de formação de professores, fosse dada ênfase na disciplina de Didática Geral à produção de planos de ensino/planos de aula “[...] a formulação de objetivos instrucionais, a seleção de conteúdos, as técnicas de exposição e de condução de trabalhos em grupo e a utilização de tecnologias a serviço da eficiência das atividades educativas” (Gil, 2007, p. 4). Tramada por todos esses elementos, conforme aponta Gil (2007, p. 4), “A Didática passou a ser vista principalmente como um conjunto de estratégias para proporcionar o alcance de produtos educacionais, confundindo-se com a Metodologia de Ensino”.
O Parecer do Conselho Nacional de Educação [CNE] CNE/CP nº 009 (2001) afirmou, anos mais tarde em seu item 2.1.4, que “Os conteúdos a serem ensinados na escolaridade básica devem ser tratados de modo articulado com suas didáticas específicas” (Parecer CNE/CP nº 009, 2001, p. 39), o que permite afirmar que a Didática antes dotada de um caráter Geral passa, nesse momento, a ser um ponto particularizado da disciplina Específica, também conhecida como Especial.
Os professores em formação precisam conhecer os conteúdos definidos nos currículos da educação básica, pelo desenvolvimento dos quais serão responsáveis, as didáticas próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam. É necessário tratá-los de modo articulado, o que significa que o estudo dos conteúdos da educação básica que irão ensinar deverá estar associado à perspectiva de sua didática e a seus fundamentos (Parecer CNE/CP nº 009, 2001, p. 39).
A afirmação do Parecer CNE/CP nº 009 (2001) enfatiza a produção de uma Didática própria dos setores especializados de cada disciplina integrante do currículo (Didática Específica/Especial). Isso produz um deslocamento da Didática Geral que vinha sendo desenvolvida até o momento para uma Didática Específica/Especial da disciplina, com um objeto de estudo independente.
A Didática, centrada primeiramente nas produções oriundas da Pedagogia5 e posteriormente especializada para os cursos de licenciatura, passou a dar ênfase a uma transposição pedagógica de conteúdos da área do conhecimento em espaços de ‘aula’, como é o exemplo da Didática da Química. Esse movimento de especificação da Didática concentrada nos cursos de licenciatura passou a exigir, principalmente nos concursos públicos docentes, a necessidade de profissionais da área primeira de formação, como é o caso da Química, para exercerem a profissão nos cursos afins, levando em conta a publicação das Diretrizes para a formação de professores da Educação Básica, em cursos de nível superior, do ano de 2001 (Parecer CNE/CP nº 009, 2001).
Quando esses profissionais começaram a ocupar espaço nas experiências formativas, por meio da regência na disciplina de Didática Específica/Especial, iniciou-se um movimento fortemente alavancado pelos programas e organismos internacionais e do campo das Ciências Naturais experimentais, adentrando nos horizontes até então criados com a promessa de direcionar o pensamento no ensino e na transposição Didática do conhecimento cientificamente estabelecido. Essa contingência acabou por reduzir, gradativamente, o lugar de pertinência e de significação da Didática Geral nos cursos de formação inicial de professores, já que a Didática Específica/Especial passou a corresponder a cada ciência específica, dito de outro modo, produziu-se uma vinculação da Didática com o conhecimento de determinada área (Bedoya, 2005).
O direcionamento para a necessidade de uma Didática Específica/Especial dos demais cursos de licenciatura acabou produzindo a falta de força da necessidade de existência da Didática Geral que era desenvolvida pelos profissionais formados na área da Pedagogia, ancorada na promessa de que essa mesma Didática Geral não daria mais conta de formar os professores do campo específico das demais licenciaturas.
O estudo elaborado por Freitas preconiza que esse deslocamento da Didática Geral para Didática Específica/Especial levou à circunstância de que:
[...] o processo pedagógico passou a ser estudado na medida em que estivesse ligado ao ensino de uma determinada disciplina, pelo profissional que dominava o conteúdo dessa disciplina. Ao físico coube estudar o ensino de física, ao químico o ensino de química, etc., concluindo-se, em seguida, que o pedagogo era dispensável. Tal situação conduziu à idéia de que a pedagogia é domínio de todos. O ensino de física, por exemplo, só pode ser estudado e ensinado por físicos, mas as disciplinas específicas da pedagogia, por exemplo, a didática geral, podem ser ensinadas por qualquer um que tenha interesse. Esse ‘loteamento’ estabeleceu uma grande divisão na área [...]. Enfatizaram-se as diferenças existentes entre o ensino dessa e daquela disciplina (Freitas, 1985, p. 15, grifo do autor).
Freitas (1985) ainda reforça que, a partir desse movimento, houve uma contrariedade com os percursos já estabelecidos pela própria ciência, no sentido que “A ciência não evolui pela ênfase ou busca de diferenças. Antes, evolui buscando regularidade, uniformidade” (Freitas, 1985, p. 15), o que, a partir de uma visão unilateral, “[...] a prática pedagógica foi repartida entre inúmeros profissionais trabalhando isoladamente em suas disciplinas” (Freitas, 1985, p. 15).
A noção de trabalho pedagógico reforçou a dualidade entre ensino e aprendizagem com a mesma lógica da teoria e da prática, sendo a teoria abstrata e a prática empiria (Freitas, 1985), ao passo que boa parte das teorias pedagógicas que emergiram daí foram importadas das teorias psicológicas, convertendo-se em ‘quintal’ da psicologia, principalmente a psicologia comportamental (Freitas, 1985, p. 16), cultivando a promessa de que o comportamento de cada pessoa daria conta de externalizar se ela estava aprendendo ou não.
Um exemplo disso é a ascendência das teorias gerais de dinâmicas de grupo, preenchimento de relatórios, entre outros nas disciplinas de Didática na formação dos professores. Tratando das dinâmicas de grupo, essas se justificavam como meio para que o homem pudesse, de fato, aparecer. Um grupo como meio para logicizar o amor e amortizar a lógica, como integração de conduta. Em Jean Piaget é que boa parte das dinâmicas se materializaram, aparecendo, nesse caso, como esforço didático.
Direcionando a atenção para os materiais utilizados por professores que formavam professores de Química na década de 1980 e 1990 no Brasil, encontrados por meio de busca realizada em acervo doado para um dos docentes vinculado aos Laboratórios de Metodologia do Ensino do Departamento de Metodologia do Ensino de uma Universidade Pública brasileira, foi possível ter acesso a uma gama de informações que materializavam o trabalho das Dinâmicas de Grupo.
O treinamento em Dinâmica de Grupo é tomado como um esforço didático para levar os indivíduos ao pensamento operatório, bem como uma situação que propicia amplo relacionamento humano. No grupo, o pensamento aparece como forçado a tornar-se operatório e a conduta a tornar-se cooperativa. Aqui, a operacionalidade permitiria a existência do grupo e o grupo promoveria sua operacionalização. Nesse tom, haveria, pois, uma lógica de amor tão desejável quanto a lógica do pensamento e a lógica da conduta. Esse treinamento da Dinâmica de Grupo forçaria o indivíduo a, pelo menos, compreender o ponto de vista contrário ao seu, levando à operação mental.
Esse movimento visaria à interiorização do grupo, após a logicização e a cooperação, tendo em vista que essa estratégia aproximaria um impasse fundamental do ser humano, que aparece como uma inteligência amorizada. De modo resumido, esse treinamento colocaria o homem natural (intuitivo, egocêntrico, etc.) para agir operatoriamente, por meio de uma regulação, uma psicoterapia de grupo que equilibraria inteligência e afetividade. Logo, a pedagogia da Dinâmica de Grupo permitiria conciliar o conflito entre individualização do educando, de vez que o indivíduo só apareceria em sua dimensão dentro do grupo. Sendo assim, técnicas de estudo individuais seriam compatíveis com técnicas de socialização (indivíduo aprenderia com o grupo, grupo aprenderia com o indivíduo). Com isso, técnicas Didáticas alternar-se-iam entre trabalho individual com vistas ao trabalho de grupo, e o trabalho do grupo, com vistas ao que chamaria de motivação individual. Tudo passaria em uma espécie de treino de um time de futebol em que o preparo físico individual não dispensa o treino em conjunto.
Acerca do trabalho do professor nas Dinâmicas de Grupo, esse aparece como alguém que precisaria evitar que o processo individual se transformasse em vedetismo e que, ao mesmo tempo, a coesão do grupo se transformasse em nivelamento para baixo. Isso seria constantemente revisto pelo grupo-análise, onde os progressos individuais resultantes desse, poriam o grupo em permanente estado de reequilibração sob pena da quebra da coesão grupal. Com essa perspectiva, a pressão do grupo em progressão poria cada elemento em estado de tensão para manter-se no que chamavam de nível do grupo.
A Dinâmica de Grupo seria um meio eficaz para expressão individual, meio termo entre massa e indivíduo. Um recurso de desmassificação em que o indivíduo pode ter um comportamento individual.
Vale lembrar que um dos pontos fortes da Didática Geral corroborou com a aposta nas técnicas de ensino como recurso básico para formação de professores. O domínio das técnicas de ensino seria o requisito básico da atuação do profissional da educação em qualquer área de concentração. Daí a justificativa de uma Didática Geral aplicável a qualquer disciplina. Junto à ênfase em técnicas de ensino emerge uma série de equipamentos, materiais e dispositivos técnicos auxiliares ao trabalho do professor. Da popularização de folhas de cartolina, passando por mimeógrafos, retroprojetores, projetores de slides até, no contemporâneo, a predominância das tecnologias de informação e comunicação corporificadas nos recursos didáticos digitais, as disciplinas do espectro didático correm o risco de se tornarem promotoras de venda de equipamentos, materiais e recursos bem como da alienação da qualidade do trabalho educacional à disponibilidade, ou não, desses recursos.
Tendo em vista essas contingências que atravessaram o campo da formação no Brasil, com a emergência da Lei nº 5.692 de 1971, criaram-se condições para a necessidade de formar compulsoriamente professores nas áreas Específicas/Especiais do conhecimento científico, para exercer estratégias de aula nas escolas. Sob égide das estratégias desenvolvimentistas e comportamentais, conduzidas pela política educacional dos militares, isso acaba por abrir espaço para demandar uma formação Didática característica do conhecimento escolar determinado.
Nesse viés, a Didática Geral oriunda da Pedagogia6 perde força e espaço, em favor de uma Didática vinculada às áreas de formação específica das demais licenciaturas. Tratando-se especificamente da questão escolar, a noção de transposição didática emerge com força promovendo a inteligibilidade dos conteúdos próprios de determinada ciência (Física, Química, Biologia, entre outras) restando, ainda, a possibilidade de restringir-se à legitimação do conhecimento escolar potencializando o dualismo ensino-aprendizagem.
Aí, os conteúdos da linguagem científica da ciência aparecem veiculados como conhecimento escolar para fins da aprendizagem, devido: “[...] às condições oferecidas pelo aparelhamento burocrático, científico e tecnológico que estes [militares] puderam organizar, os ideais educacionais de Francisco Campos, voltados para o fortalecimento do governo pela obediência das massas” (Corrêa, 2005, p. 181).
Conforme Corrêa (2005, p. 181), a partir da década de 1970, a avaliação na escola passou a significar “[...] aplicação de técnicas, de fórmulas científicas para obtenção dos valores do desempenho de cada um [...]”, o que colocaria a ação pedagógica do professor como “[...] ação [...] completamente neutra e impessoal [...]” (Corrêa, 2005, p. 181), por meio da elaboração de instrumentos de avaliação, reduzida ao que o autor chama de ‘soma de escores’. Uma mensuração objetiva da aprendizagem atingiu não apenas as escolas, mas também os exames vestibulares e os concursos públicos docentes, os quais acabaram tendo como finalidade conectar um “[...] sujeito a uma totalidade. [...] pode-se dizer que é próprio dos jogos de verdade fazer parecer, não deixar dúvidas, de que tudo e todos estão implicados” (Corrêa, 2005, p. 182).
Passados os anos que operacionalizaram de uma vez por todas os mecanismos avaliativos e de controle escolar, a emergência da Lei nº 9.394 de 1996 e a força expressiva da interferência das agências internacionais em solo brasileiro, podemos pontuar que, com as Diretrizes para a formação de professores da Educação Básica (Parecer CNE/CP nº 009, 2001), se materializa um olhar também importante para as questões Didáticas,
Nenhum professor consegue criar, planejar, realizar, gerir e avaliar situações didáticas eficazes para a aprendizagem e para o desenvolvimento dos alunos se ele não compreender, com razoável profundidade e com a necessária adequação à situação escolar, os conteúdos das áreas do conhecimento que serão objeto de sua atuação didática, os contextos em que se inscrevem e as temáticas transversais ao currículo escolar. Entretanto, nem sempre há clareza sobre quais são os conteúdos que o professor em formação deve aprender, em razão de precisar saber mais do que vai ensinar, e quais os conteúdos que serão objeto de sua atividade de ensino. São, assim, frequentemente desconsideradas a distinção e a necessária relação que existe entre o conhecimento do objeto de ensino, de um lado e, de outro, sua expressão escolar, também chamada de transposição didática. Sem a mediação da transposição didática, a aprendizagem e a aplicação de estratégias e procedimentos de ensino tornam-se abstratas, dissociando teoria e prática. Essa aprendizagem é imprescindível para que, no futuro, o professor seja capaz tanto de selecionar conteúdos como de eleger as estratégias mais adequadas para a aprendizagem dos alunos, considerando sua diversidade e as diferentes faixas etárias (Parecer CNE/CP nº 009, 2001, p. 20-21).
Sob esse aspecto e também sob a crescente da ênfase para a questão Didática voltada para as Específicas/Especiais áreas do conhecimento (Didática da Química, Didática da Física, Didática da Biologia, por exemplo), é que também se tramou, concomitantemente, a emergência do Ensino de Ciências no contexto educacional brasileiro e da formação dos docentes.
Desse modo, a promessa ultrapassou e tomou a cena da possibilidade de realizar a arte de ensinar tudo a todos. Isso se transformou em um slogan aplicável a qualquer situação educacional, independente do seu sucesso ou não como estratégia no chão da escola e da sala de aula. Mais que um conjunto de métodos que garantiriam a universalização e a efetivação de seus objetivos escolares, a Didática Específica/Especial teve/tem como impulsionadora a promessa-slogan geradora da crença de que a frequência às aulas de um conjunto de disciplinas coerentemente conectadas, segundo uma lógica que vai do simples ao complexo, do concreto ao abstrato, garantiria a produção de um agente educacional capaz de constituir os indivíduos submetidos a suas estratégias educacionais promovendo, com leveza e prazer, aprendizagens.
Aqui aparece uma bifurcação entre um corpo coerente de conhecimentos transmissíveis pelo ato pedagógico: o dito, e o corpo concreto, vivo, movente e insuportável do não dito. O dito opera dissociado do que é vivido, do que acontece. As recomendações, as teorias, as ideias mentais, o que ‘deve ser feito’. O não dito são as garantias da escolarização que dão coerência ao dito. Garantias:
[...] são os elementos mais ativos da escola enquanto dispositivo. Estas garantias envolvem todo um complexo de controle sobre o tempo, sobre os saberes e sobre os corpos que são exercidos por meio de programas de ensino, seleções de conteúdos, leis, horários, avaliações, etc. que fazem penetrar a disciplina, o disciplinamento, por toda a sociedade (Corrêa, 2000, p. 75).
Inventar espaços próprios para a educação; Controlar o tempo em que se desenvolvem as atividades; Selecionar saberes e dar a eles caráter de universalidade; Inventar uma relação saber-capacidade; Desqualificar outras práticas em educação; Obrigar a frequência; Seriar; Avaliar; Certificar, são garantias “[...] que qualquer trabalho em educação escolar deve respeitar” (Corrêa, 2000, p. 82). Operações sobre o não dito para fazer o dito ter coerência.
Desse modo, o empreendimento dessa analítica conecta-se àquilo que Foucault (2001, p. 1099) chama de “[...] abalo simultâneo [...]”, entre o discursivo e o não discursivo. Sob esse prisma, o campo de produção de uma elaboração Didática Geral e Didática Específica/Especial toma relevo como o dito do processo educacional e também na formação inicial de professores de Química. No entanto o processo educacional não é feito do dito, apenas, há a dimensão corporal da aprendizagem que é inibida pelo próprio ambiente escolar e suas garantias imprescindíveis, que passam desde a definição de horários pré-estabelecidos para a permanência dos corpos infantis e juvenis nos espaços arquitetonicamente planejados de sala de aula, horário de entrada, horários de saída, tempo de lanche/intervalo, tempo de avaliações, entre outros.
Aprender a tornar-se professor, para além do certo e do errado, do bem e do mal, é contingenciado fortemente no Brasil pela dependência na promessa-slogan produzida pela presença da Didática Geral e/ou Específica/Especial na formação inicial de professores. Enquanto isso, muitos outros componentes disciplinares da área exata (Química Geral, Química Orgânica, Química Analítica, entre outros) estão no âmbito da formação inicial dos professores de Química e, pouco, ou quase nada dialogam com as disciplinas de caráter pedagógico que, assim como a Didática Específica/Especial corroboram para a engrenagem que gera e alimenta a crença da formação docente. Um descompasso que, em certa medida, corrobora o modus operandi dos cursos de formação docente em Química, bem como demais componentes das Ciências no cenário nacional.
Considerações finais
O presente artigo permitiu apresentar o panorama genealógico das forças que concorreram para a passagem da noção de Didática Geral para a Didática Específica/Especial pelo viés da formação inicial de professores de Química no Brasil. Passando por Comenius (2006), bibliografias utilizadas na formação docente no Brasil (Gonçalves, 1982), até tensionamentos e problematizações acerca desse campo (Gil, 2007; Corrêa, 2000, 2005, 2006; Cordeiro, 2007; Dallabrida, 2001), é possível tramar relações de forças que contingenciaram esse movimento de passagem no Brasil.
De modo geral, toma relevo que a Didática, em um sentido amplo, tem dado ênfase ao seu funcionamento como uma máquina discursiva plena, em detrimento de suas potências para problematizar a relação ensino-aprendizagem, ultrapassando-a.
Seja na Didática Geral ou Específica/Especial nos cursos de formação inicial de professores, o dito e o não dito sempre estão presentes. Não se trata de simplesmente alternar entre dito e não dito, de abalar ou pensar ora o dito, ora o não dito. De que se trata então? As disciplinas do espectro da Didática nos cursos de formação inicial de professores constituem a confluência entre os conhecimentos específicos de uma área e a criação de estratégias educacionais capazes de promover a compreensão e a utilização dos conceitos dessa mesma área pelos estudantes.
Quando se tenta promover a compreensão e a utilização dos conceitos de uma disciplina, a tendência generalizada é a de permanecer nos limites do ensino-aprendizagem e sua relação direta com as garantias da escolarização: não sendo possível ultrapassar o âmbito do dito.
Por exemplo, é comum na mecânica própria das práticas de ensino-aprendizagem promover o ensino de determinado conteúdo/conceito tendo como finalidade a obtenção de suficiência em uma avaliação por meio de prova/exame. Essa é a maneira mais comum de dissociar o conceito de sua realidade, de suas potências ativas, de sua capacidade de modificar nossa atuação transformando o que acontece. Nosso poder de alteração, de transformação do que se vive fica, assim, privado da ferramenta conceitual que foi objeto desta ou daquela situação de ensino. Outra maneira de dissociar um conceito de suas potências ativas pode ser apreciada na ênfase, cada vez mais comum, em circunscrever o trabalho pedagógico na habilidade de manejar tecnologias da informação e comunicação. Corre-se aí, o risco de preterir as potências de movimentação do pensamento e da ampliação do repertório de estratégias de mobilização dos conceitos, em favor da detenção, por parte do professor, de habilidades técnicas de exposição de conteúdos escolares.
O trabalho dentro de uma disciplina como a Didática Específica/Especial nos cursos de formação de professores, tem a oportunidade de experienciar uma dinâmica de promoção do pensamento, em detrimento de uma mecânica de estímulo ao ‘estudo’ para a obtenção de pontos e aprovação em provas de conhecimento, consubstanciadas na dualidade teoria-prática.
A Didática Específica/Especial pode ser esse ponto de encontro alegre e atento entre a ampliação do repertório de estratégias educacionais, pela via da promoção do pensamento, do gosto pela experiência de pensar questões vivas, de se sentir expandindo os limites do já pensado, em favor de um pensamento metamórfico, de um pensamento por vir.
Ao invés de uma estimulação de caráter behaviorista, comportamentalista, por meio da competição para obtenção de escores, as disciplinas do espectro didático tem o poder de dar ênfase aos movimentos de pensamento e promover ações inéditas em educação. Há que se considerar as potências não discursivas do trabalho educacional, para que a Didática Específica/Especial ultrapasse a lógica de ensinar, por meio de uma coleção de técnicas de ensino, ‘uma parte’ de tudo a todos.