Introdução
Filho de D. Afonso III (1247-1279) e da infanta Beatriz de Castela e Gusmão, rainha de Portugal (1253-1303), D. Dinis era neto de Afonso X (1252-1284), o ‘Sábio’, de Castela. Foi aclamado rei aos 18 anos de idade, em Lisboa, após a morte de seu pai, e administrou o reino de Portugal por 46 anos1.
Ao nos referirmos a esse monarca, duas questões nos inquietaram: qual o lugar social de D. Dinis? O que fez por seu reino? Diante de tantas dúvidas, resta-nos a certeza de que historiadores e cronistas fizeram desse monarca um rei competente e bom administrador. Embora, o cronista Rui de Pina (1729) e estudiosos das letras e da poesia como Fernández (2009), tenham em muito elevado seus feitos, sabemos que há um certo exagero na tentativa de enaltecer o monarca e o reino português. Quanto a escrita das crônicas, não é novidade que este gênero literário tenha a função de elaborar um esboço configurando boas memórias e realizações aprazíveis de pernonas, para que tais figuras sejam rememoradas na posteridade, portanto obras dessa envergadura carecem de análises mais detidas quanto a sua historicidade e seus exageros.
Contudo, a esse respeito, podemos ressaltar que sua diplomacia ao lidar com as questões políticas, sociais e religiosas em seu governo possibilitou-lhe destaque entre os demais governantes de seu reino. Dentre as suas principais atividades administrativas, destaca-se a iniciação do processo que posteriormente desencadearia numa certa identificação nacional2 portuguesa. Nesse sentido, a identificação nacional da qual José Mattoso (2001) fala, se caracteriza pela unicidade de elementos, como o uso comum da língua, dos costumes e dos hábitos de um povo. Assim, a tentativa desse historiador se depreende em mostrar que apesar de ainda não ser possível falar em Estado, como o compreendemos na atualidade, naquele momento já havia o início da formação de uma organização política centralizada.
De acordo com os sociólogos, os motivos que conduzem os indivíduos a creem na existência de uma comunhão ‘nacional’, baseada em ações comunitárias, são diversas. Dentre eles, destaca-se a base normal dessa motivação, que se centra na ‘comunidade de língua’. O ‘Estado nacional’ e o ‘Estado’ se tornaram idênticos quanto ao conceito, baseando-se na homogeneidade da língua. Ao lado das associações políticas, constituídas sobre a base ‘nacional’ no sentido linguístico, encontra-se considerável número de outras que abrangem várias comunidades de língua e que inúmeras vezes, preferem selecionar ou escolher determinada língua para a vida política. Embora, não seja o bastante ser a comunidade identificada apenas pela língua, pelo menos no que se refere ao sentido pleno, formada por membros que utilizem o mesmo idioma. Mas, de outro modo, as diferenças de línguas também não se traduzem em obstáculos para o desenvolvimento do sentimento de uma comunidade ou grupo.
Existem, portanto, diversos graus de univocidade qualitativa da crença na comunhão ‘nacional’. A sensação de comunidade de ‘costumes’ e de certos bens comuns da ‘cultura sensual’ é condicionada por rememorações políticas. Como exemplo, estão as relíquias que, para o estranho, são necessárias para despertar o sentimento de ‘nação’ como: a bandeira, capacetes militares e de bombeiros com símbolos da pátria. Portanto, os sentimentos de comunidade designados pela coletividade de ‘nacional’ não são unívocos, contudo podem ser nutridos a partir de fontes diversas, como distinções na estruturação social e econômica e na estrutura de dominação interna, influenciando os ‘costumes’. Assim, as lembranças políticas comuns, a confissão religiosa e, por fim, a comunidade de língua podem atuar como fontes, tanto quanto o habitus racialmente condicionado. Encontramos, ainda, associada ao conceito de ‘nação’ a relação com o ‘poder’ político como seria o caso da análise sobre a administração dionisina da qual tratamos nesse estudo. O sentimento ‘nacional’, se for algo semelhante, cria uma espécie de comoção, num grupo unido por uma comunidade de língua, de confissão, de costumes ou de destino, vinculados à ideia da organização de uma unidade política própria, que já exista ou que ainda se aspira, a qual se torna mais específica quanto mais ênfase for dada ao poder (Weber, 2009).
Nesse sentido, torna-se relevante mencionar que a historiografia portuguesa demonstra que há um processo de identificação em curso, que é próprio de Portugal, ao qual Mattoso (2001) divide em três fases operacionais: a primeira delas remete a alguma forma de expressão política, que, em algum momento da história, tenha se manifestado através da apropriação do poder baseado num certo grau de autonomia. Verifica-se esse fato na atuação de D. Afonso III, de D. Dinis e D. Afonso IV, que deram continuidade ao processo de busca pela autonomia régia em Portugal, iniciada, ainda, pelo primeiro rei D. Afonso Henriques (1143-1185). A segunda operação evidencia a necessidade de delimitação do território, mesmo que essas fronteiras tenham variado ao longo do tempo. Já a terceira sugere que a autonomia política em junção com a composição territorial sejam fatores imprescindíveis para a solidez e o aprofundamento da identidade nacional (Mattoso, 2008). Em ‘A formação da nacionalidade’, Mattoso sugere que não seria possível encontrar vestígios coerentes de uma nacionalidade portuguesa anterior à fundação do Estado. O que, de fato, teria ocorrido seria a eclosão de pequenas formações políticas autônomas (Mattoso, 2001).
As práticas políticas desenvolvidas por D. Dinis não nos autorizam a afirmar que sua intenção fosse a de criar um Estado-nação, mas podemos asseverar que a ação desse monarca se pautou na afirmação e fortalecimento do poder régio, em nome do qual não se furtou à prática de diversas ações que lhe garantissem desenvolver o processo para alcançar o objetivo proposto. Quanto à criação de uma identidade nacional, o que se pode evidenciar é a existência de um processo de identificação nacional, constituído por meio da instituição do português como língua oficial do reino, delimitação territorial e busca efetiva da autonomia régia, nos âmbitos político e econômico, no período de seu reinado.
Se não podemos identificar um sentimento de nacionalidade que permeasse toda a sociedade do período, evidencia-se, entretanto, que a constituição de uma consciência inicial de nação já existia para uma minoria ligada à intelectualidade local, primeiramente constituída por membros da chancelaria condal e régia; depois essa noção ganhou lugar entre os clérigos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Posteriormente, essa ideia teria se disseminado em grande parte do coletivo português, alcançando os membros da corte e funcionários da administração que se apresentavam como delegados do rei e mais tarde os membros do clero, ordens militares e oligarquias dos concelhos (Mattoso, 2001).
Buscaremos elencar as ações políticas de D. Dinis que poderão corroborar essa visão. Ressalta-se que D. Dinis definiu as fronteiras de Portugal em relação a Alcanizes, instituiu o português como língua oficial do reino, libertou as Ordens Militares em território nacional da influência estrangeira e deu prosseguimento à afirmação e à organização régia portuguesa, iniciadas no reinado de D. Afonso III. Conforme afirma o historiador Oliveira Marques, “[…] aprendia-se, portanto, a ler e a escrever em latim, mas ninguém falava latim no Portugal dos séculos XII a XV, a não ser os embaixadores estrangeiros” (Marques, 1964, p. 187). Acrescenta também que, provavelmente no âmbito eclesial, monástico e secular, pode ter ocorrido o mesmo processo. O autor destaca ainda que, desde D. Dinis, o português foi convertido em língua oficial: as escolas, bem como os mestres particulares não ensinavam o português até o final da Idade Média, este era apenas ouvido pelos portugueses desde a infância. Assim, falava-se o português com naturalidade e escrevia-se (os que tinham acesso à educação) sem ter aprendido a língua de maneira formal. Por tal motivo, a linguagem escrita se aproxima da linguagem falada (Marques, 1964).
De acordo com Mattoso, sua política administrativa fomentou ações que contribuíram para o crescimento econômico do reino, como a criação de diversos concelhos e feiras. Criou o cargo de corregedor3,cujo intuito consistiu em aperfeiçoar o sistema judiciário; por meio da organização do notariado, e pela formação do corpo de escrivães régios junto aos conselhos. Estabeleceu maior controle das eleições dos magistrados municipais, recrutou um corpo regular de besteiros4 cedidos pelos concelhos, cerceou os direitos senhoriais e conferiu a noção de justiça régia para combater os crimes nos territórios portugueses (Mattoso, 2001). A administração das propriedades régias e as reformas jurídicas receberam atenção especial em seu governo na tentativa de manter o domínio sobre aparato régio.
Quanto aos campos, salienta-se que D. Dinis desenvolveu uma política agrária específica para o plantio das terras, tornou os campos aráveis e férteis, incentivando as sociedades locais a desbravar as terras e a semear os campos, os quais foram ampliando seus povoamentos, essa iniciativa favoreceu para que o sexto rei português, recebesse o título de rei ‘Lavrador’, mas nesse quesito seus interesses demostram que esteve preocupado em povoar essas terras para mantê-las mais seguras e produtivas. Américo Cortez Pinto em ‘Diónisos: poeta e rei’, assinala que o crescimento populacional e o acréscimo da produção agrária e mineira (estimulada pela produção de ferro) fomentaram o comércio, que se estendeu de norte a sul de Portugal. As feiras e os mercados onde se comercializava os produtos da terra também se desenvolveram nesse período. Visando fixar a sociedade litorânea portuguesa, D. Dinis providenciou o alargamento das atividades relativas à piscicultura, objetivando favorecer a população agrícola que vivia no litoral. Às ações empreendedoras deste monarca acrescentam-se, a fomentação e o aperfeiçoamento da construção naval. Pois, as madeiras retiradas dos pinheiros e dos pinhais que foram plantados em Leiria e em outras localidades próximas, serviam como matéria prima para a construção de novas embarcações a esse tempo. Também, criados estabelecimentos marítimos nos portos portugueses, possibilitando o tráfego de navios e o comércio de exportação para os reinos vizinhos. Suas ações, seguiam na tentativa de ampliar os recursos econômicos do reino.
Uma de suas distrações, consistiu em dedicar-se as artes e as letras, pois o rei escreveu cantigas de amor e de amigo, criou sátiras e contribuiu na elaboração de poesias trovadorescas. E, por isso foi denominado de o Rei Trovador, suas construções poéticas fez com que chamassem também de Poeta. Recebeu igualmente os títulos de Rei Sábio e Justo: sábio em sua atuação régia e justo nas questões que envolviam a mediação de conflitos. Há indícios de que D. Dinis pode ter sido o primeiro rei português alfabetizado5, pois ele foi o primeiro monarca até seu tempo a assinar seu nome completo. Recebeu educação privilegiada e se manteve por longos períodos na corte de seu avô o Sábio de Castela6. Esses ensinamentos, fez dele um homem instruído7 em relação às letras e às ciências, impulsionando a tradução de inúmeras obras literárias para o português. Dentre elas constam os tratados8Las Siete Partidas9, de seu avô Afonso X, de Castela. Criou a primeira universidade portuguesa, sediada em Coimbra.
Como pode-se observar nas cartas de forais e em outros documentos régios do tempo de seu pai D. Afonso III, a língua vulgar não se fazia presente nos hábitos administrativos do reino português até os primeiros anos da década de 1280, período em que Portugal estava sob o governo de D. Dinis. Mas, mesmo nos primeiros anos de sua administração, percebe-se que a documentação régia continuou a ser redigida em latim, tendência que se inverteu, sobretudo, a partir de 1284, ano em que o avô de D. Dinis, D. Afonso X, o sábio de Castela faleceu (Miranda, 2012).
A produção trovadoresca de D. Dinis é a mais intensa e de mais variadas temáticas que se conservou em galego-português, para além das cerca de quatrocentas cantigas marianas de seu avô, a língua vulgar utilizada no campo cortês, foi considerada por D. Dinis como uma língua digna para a elaboração da poesia, fator relevante para a construção da marca identificadora da corte do rei e, também, de seu Reino e senhorio. (Osório, 1993).
Antônio Martins Gomes (2016), assinala que D. Dinis, instituiu o Português como língua oficial do reino, na expectativa de que por meio de sua prática ao nível oral e da escrita, o uso desta seria um instrumento de fortalecimento político, religioso e cultural, bem como um fator agregador dos membros da comunidade portuguesa (Gomes, 2016).
Frei Brandão em Monarquia Lusitana, salienta que D. Dinis, contribuiu para “[…] enriquecer a língua portuguesa, e como esse fim, mandou traduzir diversos livros [...]” que se encontravam em outras línguas. Introduzindo o uso da língua portuguesa oficialmente no reino (Brandão, 2008, p. 7). Contudo, de acordo com estudos recentes, como os de Ana Maria Martins e José António Souto Cabo (2002); António Emiliano e Susana Pedro, o uso da língua portuguesa, já era possível em maior ou menor grau, e foram utilizados antes mesmo do reinado de D. Dinis, em modalidades como blocos compactos em romance, acentuando a ideia de que escrever em português era aceitável desde pelo menos um século antes deste ser regulamentado e usado na escrita oficial (Castro, 2006).
Esse contexto, associado as ações administrativas de seus 46 anos de reinado, demonstram que D. Dinis buscou desenvolver uma política governamental e legislativa, sob a qual suas decisões foram empreendidas a fim desenvolver um ideal organizador e controlador do aparato régio e nesse sentido, a incorporação da língua vulgar à documentação oficial do reino a esse tempo pode ter facilitado seu ideal de controle governamental em terras lusitanas. Lembrando que, nesse tempo em Portugal os monarcas dividiam as responsabilidades do poder régio com seus assessores e mantinham também certo diálogo com seus súditos, embora nem sempre esse diálogo fosse direto.
Conquanto, nos remetemos a Raquel Kritsch, a qual assinala que, em Portugal, podemos observar picos de centralização política e dos movimentos que engendraram essa centralidade (Kritsch, 2002). Observa-se que, nesse reino, normalmente, os monarcas contavam com o apoio de intermediários (representantes), para desenvolver melhor a administração do reino, logo, pode-se perceber que essa centralização apontada por Raquel Kritsch, no reino português, ocorria de forma mais diplomática.
D. Dinis inaugurou a possibilidade de apelação régia, o trabalho legislativo desenvolvido em seu reino, focou principalmente nas questões de justiça processual, evitando as delongas judiciais e os abusos por parte de juízes e procuradores. Sem desmerecer D. Afonso III e D. Pedro I, historiadores como Homem (Coelho, 1996) e Fernandes (2004), assinalam que D. Dinis e seu sucessor, D Afonso IV, se destacaram quanto a elaboração e cumprimento da legislação em Portugal.
Na relação com sua família, D. Dinis deixou a desejar, pois destratava seu filho herdeiro, o infante Afonso (futuro D. Afonso IV), o qual não era seu favorito. Quanto ao seu convívio com sua consorte D. Isabel, não era muito pacífico também, cometia muitos excessos, dentre os quais o mais absurdo confere ao rei ter entregue a sua esposa os frutos de seus adultérios para que ela os criasse (Pizarro, 2005). Por conta do desprezo ao seu filho legítimo Afonso, D. Dinis teve graves problemas durante seu reinado. Deste modo, chegou a solicitar ao papa João XXII para legitimar seu filho bastardo Afonso Sanches, tendo em vista que caberia somente ao sumo pontífice liberar os filhos ilegítimos dos laços de bastardia. D. Dinis afirmava que Afonso Sanches estava bem mais preparado para assumir o trono que seu filho legítimo. Para se vingar da preferência que D. Dinis devotava a Afonso Sanches, o Infante Afonso, filho da rainha Izabel, “[…] e seus partidários percorreram o Norte do país praticando violências” (Brandão, 2008, p. 117).
Em 1320, ele invadiu Leiria que posteriormente foi recuperada por D. Dinis em 1321, o infante voltou a invadir “Coimbra e Montemor-o-Velho, dirigindo-se depois para Gaia, Castelo da Feira, Porto e Guimarães” (Brandão, 2008, p. 117). Essa contenda só foi apaziguada quase no final do reinado de D. Dinis, em 1322, por intervenção da rainha Izabel, quando D. Dinis ampliou os senhorios do filho, cedendo-lhe Coimbra e Montemor-o-Velho, e os castelos de Gaia, Porto e Feira. Mas, em 1323, o infante reiniciou a luta, retomando a trégua já em 1324, quando o rei se encontrava indisposto e partiu de Lisboa para Santarém. Nesse período, a rainha Izabel mandou chamar o infante D. Afonso em Leiria, avisando-lhe da gravidade do estado de saúde do pai. Por influência de sua mãe, o infante beijou10 a mão do rei, em reconhecimento a sua soberania. Já em dezembro do mesmo ano, sem ter melhora alguma, o monarca reordenou seu testamento em Santarém, concedendo ao Infante Afonso o direito de sucessão ao trono.
Não se tem muitas informações acerca da constituição física de D. Dinis. Sabe-se somente que ele tinha aproximadamente 1 metro e 65 centímetros de altura. Faleceu aos 63 anos de idade, fez seu primeiro testamento aos 61 anos e, durante todo o seu reinado, mostrou-se ativo. Viajava muito. Participava de guerras mesmo em idade avançada e, aos 60 anos, ainda tinha o hábito de caçar.
As traduções, a escrita e sua importância no fortalecimento do poder régio e na redação documental medieval portuguesa
O século XIII foi marcado pela efervescência de ideias, com a atuação de inúmeros intelectuais: os pensadores por profissão, cientistas, sábios e os professores. Jacques Le Goff salienta que o intelectual, assim como o profissional urbano, devia sua formação às universidades, que os conduziam a conhecimentos necessários para, através do exercício da profissão, ter acesso ao poder (Le Goff, 2003). Jacques Verger corrobora o pensamento de Le Goff e acrescenta que, nos fins da Idade Média, ‘homens de saber’ atuaram eficazmente, visto que eram dotados de valores culturais importantes para o exercício de inúmeras profissões envolvidas com o poder e, até mesmo, no desempenho das atividades eruditas (Verger, 1999).
Nesse sentido, o ensino universitário representou forte contributo para a formação dos intelectuais, capacitando-os também no campo político e social. Percebe-se, portanto, que, por meio do ensino universitário, os estudantes consolidavam uma visão mais ampla de mundo, pois aquele baseava-se na filosofia natural de Aristóteles, transmitida pelos árabes, e também na arte da análise minuciosa de textos. Essa prática, porém, incluía várias etapas que iam desde a exposição do texto aos comentários e às discussões. Nesse sentido, vale lembrar a relevância da criação do Studium Generale promovido em Portugal por D. Dinis em 129011.
O desenvolvimento da filosofia natural, incrementado pelo movimento realizado por intelectuais nas grandes traduções de filósofos antigos, do árabe para a língua vernácula, garantia, assim, novos instrumentos para análise social e para uma nova abordagem política. A realidade social era alterada, portanto, em consequência da emergência desses novos atores urbanos e pela cultura letrada gerada pela universidade (Kritsch, 2002).
Nesse período reis, imperadores e papas dispuseram de autênticas equipes de apoio, formadas por teólogos, filólogos e juristas. A introdução das obras aristotélicas dentro da língua latina, a disseminação e a assimilação daquelas que se referem, sobretudo, à filosofia natural (a física e a metafísica) transformou a vida intelectual no Ocidente europeu. Essas obras contribuíram para a transformação do pensamento político medieval e forneceu espaço para o surgimento de uma nova fundamentação do poder e, por conseguinte, uma nova forma de conceber a relação entre os poderes espiritual e temporal.
Na Península Ibérica a disseminação destas obras também não tardou, mas para refutá-las, ou para que os leitores tivessem maior acesso a elas, precisavam ser traduzidas. Então, mesmo contestando sua cultura, ou restringindo a participação ativa de judeus e mulçumanos no cotidiano da vida citadina e na participação efetiva em cargos públicos da coroa. A Igreja necessitou de seus préstimos para traduzi-las. Na Espanha em Toledo, se desenvolveu um grande centro de tradutores, constituído por equipes eruditas de cristãos, judeus e árabes, que traduziam as obras relativas à medicina, astronomia, aritmética, álgebra, trigonometria ou filosofia, do grego ou árabe, para o latim.
As obras em grego, não apresentavam número muito representativo. Até o século XII, não se conhecia na Europa, senão um pequeno quantitativo de textos científicos da antiguidade, dentre os quais citamos, Timeu de Platão, algumas obras de lógica de Aristóteles - Logica Vetus -, o De natura rerum, de Lucrécio, o Tratado de Arquitectura, de Vitrúvio, as Questões Naturais, de Sêneca, a História Natural, de Plínio, dentre outras de autores dos séculos V e VI (Gimpel, 1976).
Dentre as primeiras obras a ser traduzidas na Escola de Toledo, está o Cânone da Medicina, do sábio persa Ibn Sina (980-1037), conhecido no Ocidente pelo nome de Avicena. O Cânone de Avicena, escrito em árabe sob o título Al Qãnun, foi uma das obras de maior influência na medicina e foi traduzida em várias línguas como, persa, latim, hebraico e catalão. O prestígio crescente desta escola, atraiu poetas, gramáticos, filósofos, médicos e demais sábios, que contribuíram para que Toledo se constituísse como principal centro cultural, proporcionando à Europa traduções latinas de obras que dificilmente teriam sido conservadas na tradição ocidental.
Sob o governo de D. Afonso X (1252-1284), rei de Leão e Castela, cognominado o Sábio, viveu seu período áureo. Para além das traduções realizadas neste período, produziu-se um grande quantitativo de livros, que constituíram em uma das maiores riquezas do mundo ocidental. Amante das letras e das ciências, este monarca estendeu mão protetora aos judeus12 que apresentavam larga cultura e conhecimento das línguas, das letras e de diversos ramos do saber humano. Convocando-lhes a auxiliá-lo em seus trabalhos de tradução e construção do saber. Confeccionando as Tábuas Astronômicas ou Afonsinas, monumento notável para aquela época. Tomou parte além de outros judeus, Yshac Ibn Sid13 (Remedios, 1895).
Toledo se tornou o foco dos estudos, as sinagogas foram reabertas, local utilizado pelos rabinos para explicar e ensinar a sociedade a letra da lei, erigiram-se cadeiras de hebreu, construíram judiarias. Obras filosóficas, como de Platão e Aristóteles e médicas, como as de Avicena e Euclides foram divulgadas também graças a esta efervescência de estudos, que Afonso X propiciou. Ao tempo deste rei, foram redigidos ainda outros livros, a saber, Libro de las Leys (Siete Partidas), Estoria de España, o Libro de los juegos, ou Libro de Acedrex.
A Escola de Medicina de Montpellier, também contou com a atuação de judeus como mestres universitários, para além de tradutores. O registro mais antigo de suas atividades data 1180. Quando o conde Guilherme VII, senhor de Montpellier, propiciou o intercâmbio cultural publicando um edito. Permitindo, a livre licença para lecionar e exercer a Medicina na cidade, independente da religião e da procedência do mestre. Conquanto, vários judeus passaram a atuar no ensino desta Escola de Medicina. Esse momento, propiciou ainda, a formação de uma comunidade cultural com a participação de judeus, como Abrham bar Hivva al Bargeloni, Abrham Ezra de Tudela e Juda bem Saul. De início, os mestres e seus alunos se reuniam ao redor da Igreja de São Firmino e, só mais tarde, o curso foi transferido para o mosteiro Beneditino, ao lado da Catedral de São Pierre. Seus primeiros estatutos versam o ano de 1220. Decretado pelo cardeal Conrad de Urach, legado do papa Honório III (1216-1227). Em que reconhecia oficialmente a existência da escola, que ficou sob a proteção do bispo de Maguelone, o qual deveria ser reconhecido por seus mestres e alunos (Santi, 1987 apud Fagundes, 2015).
Em Portugal, os estudos jurídicos e de outras áreas do conhecimento estavam a todo vapor em decorrência da criação da Universidade de Coimbra. Nesse sentido, Maria Helena da Cruz Coelho assinala que, “[…] num tempo em que escrever era téchnê dominada por uns quantos e o poder sobre a escrita pertencia aos grandes, o escrito era memória dos feitos a lembrar” (Coelho, 1996, p. 166). Deste modo, merece destaque também os escritos de Jorge Osório em que ele fomenta a ideia de que os monarcas medievais se fizeram valer das redações documentais para fortalecer e difundir seu poder, “[…] a atenção à língua escrita deve ser percebida como um dos traços da concepção do Estado cada vez mais identificado com a vontade política do rei” (Osório, 1993, p. 32).
Nesse sentido, é válido mais uma vez evocar a fundação da Universidade portuguesa por D. Dinis. Pois, sua criação foi dinamizada pela participação ativa de membros do clero a partir de 1290, os quais estavam entre os homens mais letrados do reino.
As estratégias de criação de ‘estudos gerais’ quanto à ideia de que a individualidade do Reino não dependia só das armas, mas também das leis, o que deixa claro o motivo mais poderoso que orientava este monarca. [...] afirmação do poder régio, orientado para uma administração cada vez mais forte e directamente dele dependente. D. Dinis não deixou um conjunto de escritos de natureza teórica e programática como Afonso X, o Sábio. No entanto, é bem visível que, para além da similitude dos problemas que teve de enfrentar, as soluções que encontrou se podem dizer marcadas pela doutrina do seu avô materno. Tal manifesta-se através de outros sintomas, sobre os quais só mais recentemente se tem fixado a atenção dos investigadores. Se é certo que pouco sabemos de uma especialização das funções administrativas relativas aos tempos anteriores a D. Afonso IV, a verdade é que no reinado de D. Dinis se notam já indícios de mudanças que exteriorizam a vontade de o rei pretender alcançar uma dependência cada vez menor em relação à fidalguia na gestão dos assuntos públicos (Osório, 1993, p. 32, grifos nossos).
Essa citação nos mostra o quanto D. Dinis se preocupou em criar um corpo burocrático e eficaz em Portugal, que fossem capazes de redigir a documentações régia pautada nas leis e na organização estrutural do reino. Quanto à segurança fronteiriça e a delimitação territorial, podemos observar sua especial atenção na citação abaixo.
[...] um dos sinais de que o rei procura ser o responsável pela integridade do território do seu Reino, como principal garante da sua segurança, reside na atenção que concedeu à defesa da fronteira terrestre com Castela, mediante obras de reconstrução e de renovação de muitas fortificações. E no domínio da fronteira marítima convém não esquecer a constituição de uma armada, com a ajuda de um perito de origem genovesa. Há, todavia, um pormenor que merece destaque: a atenção concedida a aspectos da urbanização da cidade de Lisboa, onde ‘fez ha rua nova’ (Osório, 1993, p. 33, grifos nossos).
Mediante esse contexto, observa-se que D. Dinis esteve tanto preocupado com a escrita da documentação régia, quanto com os feitos fronteiriços e militares portugueses. Deste modo, verifica-se a criação de obras literárias de diversas naturezas, de cunho religiosos (Biografias de Santos), políticos (Crônicas, Chancelarias) e militares, marcados pelo poder atribuído a diversas autorias, fossem elas marcas de um monarca, um nobre, um papa, ou importantes eclesiásticos, os quais eram enaltecidos pelas crônicas ou em biografias literárias. Guardavam-se as memórias da ação destes e, no que se refere a atos praticados pela cúria régia ou pontifícia, estes assumiam a perenidade da escrita. Enquanto os eclesiásticos de origem secular ou regular cuidavam da redação daquilo que queriam privilegiar nesses feitos, a escrita nos fóruns destacou primeiro atos individuais, dirigidos a particulares e a instituições.
Os documentos nos fornecem dados intencionais voltados para a inquirição, o arrolamento ou mesmo a descrição de algo. “Essencialmente bens, rendas, direitos, obrigações” (Coelho, 1996, p. 166). Pois, nesse período, à medida que o poder régio foi se consolidando, o monarca tentava orientar-se quanto ao seu contingente de homens, porque, se necessitasse deles para a guerra ou a defesa de terras, seria mais fácil, a partir desses dados, criar estratégias. A Igreja, ainda cedo, exigiu a discriminação de seus bens de raiz e rendimentos e a listagem das inúmeras circunscrições eclesiásticas. Foram elaboradas, portanto, fontes indiretas, de índole militar, fiscal e religiosa, as quais revelam informações sobre os homens e a sua distribuição. Entretanto, na medida em que os séculos foram avançando, a leitura e a escrita, foram se tornando indispensáveis ao exercício das atividades administrativas públicas e privadas, pessoais ou coletivas.
Conclusão
As estratégias políticas e administrativas adotadas por D. Dinis em seu governo nos mostra sua perspicácia no desenvolvimento de uma visão política que ia para além de seu tempo, baseada numa percepção que ia de encontro com os interesses do Reino em desenvolver certa ‘individualidade’ política e social tendencialmente livre de outros laços de poderes. Especialmente, no que diz respeito da criação dos Studium Generale, da “[…] unidade da natio e do seu território e a identidade da língua” (Osório, 1993, p. 34), ações que demonstram claramente as intenções de fortalecimento do poder régio local frente a qualquer outro.
Na administração dionisina, percebe-se que as traduções, assim como a escrita teve grande relevância, mas era privilégio de poucos. Pois, somente aqueles que, por razões sociais, ou condição religiosa, tinham a obrigação de aprender a ler e a escrever. No medievo português, vários são os testemunhos do alto valor concedido à escrita e ao reconhecimento de seus resultados. A coroa, os mosteiros e outras instituições demonstraram, desde cedo, especial valor à escrita, por tal motivo não hesitaram em empregá-la de forma apócrifa. Na Chancelaria régia temia-se a falsificação, bem como os furtos às cartas, como prova a própria legislação. Assim, a escrita foi tida como uma forma de acumular, perpetuar e justificar o conhecimento que se constituiu na Idade Média como principal meio de gestão política, legislativa, econômica e religiosa. Desse modo, não há como ignorar a importância e a função da escrita nos registros de livros da Chancelaria régia, pois nestes concentravam-se grande parte do poder e da força política dos reis. Não há como deixar de ressaltar ainda a importância política que tiveram as ‘Inquirições’ no tempo de D. Afonso II, D. Afonso III e D. Dinis. Essas fontes documentais retratam o valor atribuído à escrita desde os tempos mais remotos, em detrimento da oralidade.
A escrita deve ser “[…] atribuída a um ideal social, imperioso, suas qualidades de memória, perenidade e legitimidade lhe conferem um estatuto de poder ofensivo ou defensivo, caracterizado por um mecanismo de controle e de propaganda que era usado para governar” (Santos, 2010, p. 279). Cabe ao bom governante a tarefa de coordenar, impor a ordem e incrementar o desenvolvimento do reino. O principal centro de produção de documentos no reinado de D. Dinis foi atribuído a um órgão de governo, a Chancelaria régia, cujas tarefas de documentar ficava a cargo de chanceleres, escrivães, notários e outros profissionais dotados da capacidade de escrita.
Há livros escritos em pergaminhos e encadernados nos tempos do reinado de D. Dinis: um é original e o outro é cópia, o conhecido Livro das Lezirias del Rei Dom Dinis, composto por 74 cartas públicas registradas por Lourenço Eanes (1305-1315), tabelião de Lisboa (Santos, 2010). Sabe-se ainda da existência de diversas atas das Cortes instaladas por esse monarca. Estas continham registros das leis outorgadas conforme os problemas cotidianos das cidades em que as Cortes itinerantes se estabeleciam. Essas leis ditadas e registradas em atas anos depois vieram a compor o Livro das Leis e Posturas (1971) e as Ordenações Afonsinas (1984), documentos legais do reino português, que constituem, portanto, o direito consuetudinário do período medieval.