Introdução
O debate sobre o ensino de Sociologia no Brasil tem se consolidado como um tema de pesquisa na agenda das Ciências Sociais brasileiras, ainda que siga ocupando um lugar relativamente periférico nesse campo, podendo ser interpretado como um subcampo ou ainda como um campo em processo crescente de autonomização. Nesse cenário, um dos principais espaços de legitimação desse debate tem sido o Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica (Eneseb), promovido pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) bianualmente desde 2009.
Compreendemos que há também outros espaços de legitimação nesse campo, que perpassam o próprio Grupo de Trabalho (GT) sobre o Ensino de Sociologia, presente no Congresso Brasileiro de Sociologia (CBS), além da comissão de ensino da SBS, e da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS)1, que também promove seus encontros nacionais, podendo-se somar ainda a essa lista outros eventos na área de Educação e das Ciências Sociais2. Todavia, dado o forte vínculo com a principal associação científica nacional na área de Sociologia, podemos afirmar que o Eneseb se constitui como um locus central para compreendermos as dinâmicas próprias ao debate nacional sobre o tema.
Visando contribuir para esse debate, realizaremos, neste artigo, realizar um balanço acerca das discussões realizadas no Eneseb, tomando como fio condutor as temáticas dos GTs, atividade que passou a integrar a programação do evento a partir da terceira edição. Buscaremos observar quais agentes estão implicados na elaboração dessa agenda - com foco nos coordenadores dos GTs -, assim como as mudanças e permanências do debate ao longo das últimas edições. Para a realização dessa análise, utilizaremos principalmente as coletâneas publicadas a partir das edições do Eneseb (Gonçalves, 2015; Gonçalves, Mocellin, Meirelles, 2016; Caruso & Santos, 2019; Oliveira, Engerroffo, Greinert, & Cigales, 2021), nas quais constam os balanços dos GTs realizados pelos coordenadores, agregando-se ainda a programação do 7º Eneseb, tendo em vista que ainda não há uma publicação referente a essa edição do evento.
Para contextualizar melhor o leitor, organizaremos o artigo a partir de três seções: a) na primeira, apresentaremos como o debate sobre o ensino de Sociologia tem se colocado no interior do CBS, incluindo-se aí a formação do GT dedicado a essa temática; b) na segunda, realizaremos uma breve apresentação do Eneseb, contextualizando as edições realizadas até o momento; c) por fim, faremos o mapearemos os agentes e os debates que vêm sendo promovidos nesse espaço.
O Ensino de Sociologia no CBS
O CBS ocorreu pela primeira vez em 1954, na cidade de São Paulo, presidido por Fernando de Azevedo (1894-1974) e tendo como tema ‘O ensino e as pesquisas sociológicas; organização social; mudança social’. Tal temática aponta para a relevância da discussão sobre o ensino já nesse momento. Considerando-se o fato de que a Sociologia estava ausente dos currículos escolares desde 19423 e que os cursos de Ciências Sociais estavam ainda se consolidando, havia naquele momento apenas 11 cursos de graduação em Ciências Sociais (Liedke Filho, 2005). Podemos inferir, portanto, que o objetivo mais geral dessa temática do evento seria discutir os desafios para o ensino de Sociologia no ensino superior.
É importante mencionar ainda que nesse período havia uma intensificação do debate no campo das Ciências Sociais na América Latina como um todo, o que se desdobrava também numa discussão sobre a formação de sociólogos e seu ensino. Um ano antes do CBS, o Brasil havia sediado o Congresso Latino Americano de Sociologia, que ocorreu no Rio de Janeiro e em São Paulo, tendo sido presidido por Manuel Diegues Júnior (1912-1991). Ainda no âmbito das Ciências Sociais, também em 1953, no Rio de Janeiro, havia ocorrido a 1ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA).
Em 1956, aconteceu no Rio de Janeiro o I Seminário Sul-Americano para o Ensino Universitário das Ciências Sociais, seguindo-se da fundação, em 1957, também no Rio de Janeiro, do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais e da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, em Santiago, Chile. Tais instituições constituíram espaços privilegiados de formação e circulação de pesquisadores na América Latina, sendo marcos significativos para a institucionalização das Ciências Sociais na região (Beigel, 2009; Lippe Oliveira, 2005).
Observamos com isso que, longe de representar uma ação pontual, o CBS estava inserido num espectro mais amplo do processo de institucionalização das Ciências Sociais brasileiras. Nesse sentido, chama a atenção o fato de que um dos temas considerados centrais naquele momento fosse o ensino de Sociologia. Havia naquele congresso 12 linhas temáticas gerais, nas quais se organizavam as comunicações e exposições, estruturadas do seguinte modo:
I - O ensino e as pesquisas sociológicas. 1 - O ensino da sociologia e disciplinas afins nos diferentes centros culturais do país; 2 - As pesquisas sociológicas e antropológicas no Brasil; 3 - O sistema estatístico nacional - sua utilização como fonte de dados sociológicos; 4 - A contribuição da Sociologia para a solução dos problemas sociais. II - Organização social. 1 - Estrutura da comunidade indígena (indígena, rural, urbana, rural-urbana); 2 - Sistemas gerais e sistemas específicos (de família e parentesco, econômicos, políticos, jurídicos, pedagógicos, etc.); 3 - Relações étnicas. III - Mudança social. 1 - Correntes migratórias internas e estrangeiras; 2 - O impacto do desenvolvimento econômico sobre estrutura social dos países menos desenvolvidos; 3 - Transformações técnicas e mudanças sociais; 4 - Efeitos da urbanização e da estratificação sobre a estratificação social do Brasil; 5 - Mudanças sociais e problemas sociais (Sociedade Brasileira de Sociologia, 1955, p. 13).
Longe de figurar como uma preocupação secundária, o Ensino foi um eixo central no debate dos primeiros congressos brasileiros de Sociologia. É no bojo dessa discussão que Florestan Fernandes (1920-1995) apresentou sua comunicação O ensino de Sociologia na escola secundária brasileira, que não apenas indicava a potencialidade do ensino de Sociologia, como também apontava alguns entraves para sua efetivação (Fernandes, 1980).
É importante perceber que efetivamente as discussões presentes nos primeiros CBS, mesmo naqueles realizados no período após a redemocratização, estavam mais voltadas para o Ensino de Sociologia no ensino superior, no âmbito da formação de sociólogos. Podemos compreender, portanto, que o ensino de Sociologia foi interpretado como relevante no processo de institucionalização da Sociologia no ensino superior, porém na educação básica perdurou como uma questão secundária. Em parte, refletia o fato de que a Sociologia como disciplina não estava presente no currículo escolar nesse período, e que, a rigor, as licenciaturas em Ciências Sociais formavam predominantemente professores que lecionavam outras disciplinas escolares, como História, Geografia e, a partir da década de 1960, Organização Social e Política do Brasil (OSPB).
Efetivamente, tem ocorrido uma mudança nessa área a partir dos anos 2000, período no qual podemos observar uma aceleração da reintrodução paulatina da Sociologia nos currículos estaduais (Bodart, Azevero, & Tavares, 2020). O principal reflexo desse movimento a nível acadêmico foi a criação, em 2005, de um GT voltado para o debate sobre o Ensino de Sociologia junto ao CBS - esse grupo passou a ser um dos principais espaços de articulação dos pesquisadores dedicados ao tema na Sociologia brasileira4. Um dos principais articuladores desse grupo desde a sua fundação foi Amaury Cesar de Moraes, professor da Universidade de São Paulo (USP), que o coordenou entre 2005 e 2013. Também tiveram um papel proeminente na coordenação outros pesquisadores, como as professoras Ileizi Silva, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Anita Handfas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Danyelle Ninlin Gonçalves, da Universidade Federal do Ceará (UFC). Concomitante à criação do GT houve também a fundação da Comissão de Ensino de Sociologia, coordenada inicialmente pela professora Heloísa Martins, também da USP.
Enquanto essas ações ocorriam no âmbito da SBS, havia um conjunto de outras iniciativas que tinha como palco principal as disputas curriculares. Em 2006, foram publicadas as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, escritas por Amaury Cesar de Moraes, Nelson Tomazi, professor da UEL, e Elizabeth Guimarães, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Tal documento teve um papel decisivo na delimitação disciplinar da Sociologia no currículo escolar. No mesmo ano foi aprovado o Parecer CNE/CBE nº 38/2006 acerca da inclusão obrigatória das disciplinas Sociologia e Filosofia no ensino médio. E, em 2008, foi aprovada a Lei nº 11.684 (2008), que tornava obrigatório o ensino de Sociologia e Filosofia em todas as séries do ensino médio5.
Esta breve sumarização acerca do percurso da Sociologia no currículo escolar e na SBS visa situar o leitor acerca de algumas transformações que ocorreram tanto no campo da Sociologia quanto em outros campos e que impactaram diretamente o processo de constituição e autonomização do subcampo do Ensino de Sociologia. Foi esse processo que emoldurou a emergência do Eneseb, consolidado hoje como o principal evento acadêmico da área do Ensino de Sociologia.
O Eneseb e a consolidação da temática do Ensino de Sociologia
Conforme pôde ser observado na seção anterior, houve um conjunto de ações acadêmicas e no âmbito das políticas educacionais que possibilitaram a consolidação do Ensino de Sociologia como objeto de reflexão das Ciências Sociais. Diversos balanços realizados nos últimos anos, envolvendo principalmente a produção de teses e dissertações, assim como a publicação de artigos em revistas especializadas, têm confirmado essa tendência (Bodart & Cigales, 2017; Bodart & Souza, 2017; Brunetta & Cigales, 2018; Caregnato & Cordeiro, 2014; Handfas, 2011; Handfas & Carvalho, 2019; Handfas & Maçaira, 2012), ainda que também possamos afirmar que essa temática não se consolidou como central no âmbito da Sociologia, como podemos perceber pela ausência de linhas de pesquisa específicas nos programas de pós-graduação da área. Em meio a esse processo de consolidação, o Eneseb tem constituído um importante espaço de legitimação da temática e de solidificação de um subcampo em processo de autonomização.
É importante perceber que quando a primeira edição do Eneseb ocorreu em 2009, havia um conjunto de fatores institucionais que viabilizaram sua existência. Por um lado, no âmbito das políticas educacionais, havia sido aprovada a legislação que tornava o Ensino de Sociologia obrigatório em todo o ensino médio brasileiro; por outro, no campo acadêmico, a criação do GT e da Comissão na SBS, voltados especificamente para esse debate, legitimava a existência de uma discussão acadêmica no âmbito da Sociologia brasileira acerca desse tema.
A Comissão de Ensino da SBS é a organizadora oficial do evento e, tendencialmente, o realiza nos dias que antecedem o próprio CBS, normalmente ocorrendo na mesma cidade6. Observamos também que o evento tem concentrado a maior parte de suas atividades nos finais de semana, tornando-se mais inclusivo, especialmente para professores da educação básica, que podem participar do evento ainda que não tenham a liberação das atividades docentes de seus respectivos trabalhos7.
A primeira edição do Eneseb ocorreu no Rio de Janeiro, sediado na Faculdade de Educação da UFRJ. O evento contou com uma conferência de abertura, proferida pelo sociólogo francês François Dubet, além de duas mesas-redondas, cinco Grupos de Discussão (GD) e quatro oficinas pedagógicas.
É importante mencionar que em 2008 ocorreu o Encontro Estadual de Ensino de Sociologia (Ensoc) do estado do Rio de Janeiro, possibilitando, assim, um acúmulo de experiência na organização e articulação de um evento específico voltado para o Ensino de Sociologia. Acerca da realização dessa primeira edição, Handfas (2021, p. 28) indica o seguinte:
A realização do 1º Eneseb atestou a importância da criação de um espaço próprio de discussões e práticas sobre o ensino de Sociologia na educação básica. A presença mais expressiva e ativa de professores da educação básica, além de licenciandos e pesquisadores, impulsionou significativamente os debates e, sobretudo, possibilitou o intercâmbio das experiências pedagógicas. As temáticas das mesas-redondas, dos GDs e das oficinas pedagógicas ocorridas no evento nos permitem localizar o estado da arte do conhecimento sobre o tema que havíamos acumulado até aquele momento que, como vemos, era fortemente marcado pela problemática da mediação didática do conhecimento sociológico e da formação do professor de sociologia.
Observamos que além da existência de conferências e mesas-redondas, o Eneseb possui duas atividades que não existem no CBS: GDs e oficinas pedagógicas. Os GDs diferenciam-se dos GTs na medida em que sua organização em eixos temáticos ocorre a posteriori da aprovação dos trabalhos, diferentemente dos GTs, que recebem trabalhos a partir de uma temática específica; o Eneseb organizou as comunicações orais recebidas em GDs até sua segunda edição. As oficinas pedagógicas, por outro lado, são pensadas para a prática docente em Sociologia, voltando-se principalmente para professores que estão atuando em sala de aula, assim como para professores em formação.
A segunda edição do Eneseb ocorreu em 2011, na cidade de Curitiba, sediada na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao passo que o CBS foi sediado na Universidade Federal do Paraná (UFPR). O evento a estrutura presente no evento anterior, tendo sido a palestra de abertura proferida pela professora Heloísa Dupas Penteado (USP).
O 3º Eneseb ocorreu em 2013, em Fortaleza, sediado na Universidade Federal do Ceará. Essa foi a primeira vez que o evento aconteceu em uma cidade distinta do CBS, que naquele ano foi sediado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador. Os dois eventos também ocorreram com um distanciamento temporal maior, já que o Eneseb ocorreu entre 31 de maio e 3 de junho e o CBS entre 10 e 13 de setembro. Nesa edição do Eneseb, a palestra de abertura foi proferida por Bernard Lahire, que não pôde comparecer devido a um imprevisto no âmbito pessoal, tendo enviado seu texto para leitura, que foi posteriormente publicado. Essa edição foi especialmente significativa na medida em que ocorreram duas mudanças: a) os trabalhos apresentados passaram a se organizar a partir de GTs, havendo uma chamada pública para a proposição dos grupos e, só então, para a submissão de trabalhos nos grupos aprovados; b) inaugurou-se uma tradição de se organizar uma coletânea resultante do evento, na qual os coordenadores dos GTs realizam um balanço das discussões ocorridas em seus grupos.
O 4º Eneseb aconteceu na cidade de São Leopoldo, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), ao passo que o CBS ocorreu em Porto Alegre, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A conferência de abertura foi proferida por Luiza Helena Pereira (UFRGS), mantendo-se a estrutura do evento anterior. Já a quinta edição do Eneseb ocorreu na Universidade de Brasília, mesma instituição que sediou o CBS, contando em sua palestra de abertura com a exposição da professora Ileizi Fiorelli Silva (UEL).
Apesar de uma estrutura básica praticamente inalterada desde o 3º Eneseb, no 6º Eneseb, ocorrido na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - mesma instituição sede do CBS -, optou-se por realizar uma mesa de abertura em vez de uma conferência, contando com uma professora do ensino superior, uma professora da educação básica e uma estudante da licenciatura, respectivamente: Haydée Caruso (Universidade de Brasília), Ana Carolina Torres (Secretaria da Educação do Estado do Ceará/Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional, ProfSocio) e Naomi Neri (UFSC).
O 7º Eneseb ocorreu de forma on-line devido ao contexto da pandemia da Covid-19, assim como o CBS, ambos organizados pela Universidade Federal do Pará. A palestra de abertura foi realizada por Luiz Henrique Eloy Amado Terena, Indígena Terena da Aldeia Ipegue (MS) que, naquele momento, realizava um estágio pós-doutoral em Antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.
É importante observar que para além dos encontros nacionais têm ocorrido inúmeros encontros estaduais e regionais voltados para o debate sobre o ensino de Sociologia. Além do Ensoc, já citado anteriormente, podemos destacar como exemplos o encontro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) de Ciências Sociais da Região Sul, o Simpósio de Formação de Professores de Sociologia do Paraná, o Encontro Regional Mineiro de Ensino de Ciências Sociais, dentre outros.
Nas avaliações que vêm sendo realizadas sobre o evento, reafirma-se a relevância que ele possui em termos de socialização e compartilhamento de experiências pedagógicas entre professores de diversas partes do país. Como destaca Gonçalves (2015, p. 314):
Durante esses anos, o encontro foi capaz de colocar em maior contato profissionais da educação básica, da educação superior e alunos das licenciaturas de todas as regiões do país. Por ser um evento de caráter nacional, já foi realizado no Sudeste em uma ocasião (Rio de Janeiro, em 2009), no Sul, em duas ocasiões (em 2011, no Paraná e no Rio Grande do Sul, em 2015) no Nordeste (em 2013), sendo o próximo no Centro-Oeste (no DF, em 2017). Apesar de os participantes do Norte serem a minoria nesses eventos, todas as regiões já estiveram representadas nas edições. Da mesma forma, se caracteriza pela pluralidade de participantes (alunos da licenciatura, profissionais da educação básica e da educação superior são a maioria), sendo estimulada a participação desses três grupos em todas as fases do evento: desde a sua concepção, preparação à sua realização, além da proposição de oficinas pedagógicas.
Podemos compreender assim que o Eneseb ocupa um espaço não apenas de consolidação do debate acadêmico em torno de uma temática em particular, mas também de formação continuada para os professores da educação básica e de troca de experiências. Nessa mesma direção, desenvolve um papel relevante para a complementação da formação pedagógica e acadêmica dos estudantes que estão cursando a licenciatura em Ciências Sociais. Como destacam Raizer, Mocelin e Meirelles (2016) ao realizarem o balanço do IV Eneseb, o evento também se constitui como um espaço de socialização e organização política, citando a mobilização junto ao Ministério da Educação (MEC) para que membros da comissão de ensino da SBS integrassem o grupo que estava elaborando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Ao longo de sua existência como congresso acadêmico, o Eneseb acompanhou também o incremento de um conjunto de dispositivos institucionais que reforçaram o lugar da Sociologia no ensino médio, como a introdução dessa disciplina no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em 2011, e a criação do primeiro mestrado profissional voltado para o ensino de Ciências Sociais, em 20138. Do mesmo modo, acompanhou alguns reveses também no campo das políticas educacionais, como a perda da obrigatoriedade da Sociologia com a Reforma do Ensino Médio de 2017 e a publicação da versão final da BNCC, que esvaziou o sentido disciplinar da Sociologia no currículo escolar.
Temáticas dos GTs do Eneseb: continuidades e rupturas
Como já indicamos, as duas primeiras edições do Eneseb não contaram com GTs, mas sim com GDs, que possuíam outra estrutura organizativa. Porém, não deixa de ser sintomático que desde a primeira edição tenha havido eixos organizativos que refletiam o debate. Segundo Handfas (2021), na primeira edição do Eneseb havia cinco GDs: conteúdos programáticos e metodologias do ensino; livros e materiais didáticos; recursos didáticos: dos textos clássicos às novas tecnologias; formação de professores: organização curricular e estágio supervisionado; pesquisa: objeto e instrumento de conhecimento na escola básica.
Interessa-nos, neste momento, por um lado, mapear as temáticas exploradas ao longo das diferentes edições do Eneseb; por outro, mapear também os agentes que propuseram os GTs. A nível metodológico, é importante ressaltar que nossa análise parte principalmente das publicações e não dos anais resultantes desse evento, dada a indisponibilidade de consulta. Assim sendo, nossa análise se circunscreve aos GTs que realizaram o balanço de suas atividades, o que pode não incluir a totalidade dos que efetivamente ocorreram naquela edição do evento. Apresentaremos a seguir quatro quadros que sintetizam os GTs promovidos em cada edição (Tabela 1).
GTs III Eneseb | GTs IV Eneseb | GTs V Eneseb | GTs VI Eneseb | GTs VII Eneseb |
Mídia, educação e linguagem: novos espaços de socialização | O Pibid e a formação docente em Ciências Sociais | Atualidade do trabalho docente no ensino de Sociologia | Culturas juvenis na escola | A docência de Ciências Sociais/Sociologia no mundo digital: as metodologias de ensino em Ciências Sociais na educação básica |
Formação de Professores de Ciências Sociais | Metodologias e práticas de ensino em Ciências Sociais | Percepções, representações e situações de violências no ambiente escolar e seu entorno social | Ensino de Sociologia e as questões de gênero e sexualidade na educação básica: práticas, reflexões e estratégias | Afro-americanidade no ensino de Sociologia: contribuições e atravessamentos nas práticas pedagógicas |
Os saberes docentes e a formação profissional do professor de Sociologia da educação básica | Livros didáticos de Sociologia | Culturas juvenis na Escola | Ensino de Sociologia nas modalidades diferenciadas de ensino | Culturas juvenis na escola |
Ensino de Sociologia e intervenção social | Formação de professores de Ciências Sociais | O ensino da diversidade na Sociologia do ensino médio: estratégias para educação de gênero e relações étnico-raciais na escola | História do ensino de Sociologia no Brasil | Currículo e políticas educacionais: o ensino de Sociologia frente à BNCC |
Educação para a diversidade: saberes locais e protagonismo juvenil no ensino de Sociologia | História do ensino de Sociologia no Brasil | O ensino de Sociologia nas escolas técnicas do Brasil | Livros didáticos de Sociologia: o que sabemos até agora? Estado da arte, balanços e comparações de experiências | Dialogando com as Ciências Humanas: experiências práticas de formação docente e interdisciplinaridade |
Por uma transposição didática das teorias das Ciências Sociais: teorização sobre as práticas de ensino em Ciências Sociais | Escola, culturas juvenis e sociabilidades | Os professores de Ciências Sociais/Sociologia no mundo digital: as metodologias de ensino em Ciências Sociais na educação básica | O ensino da Sociologia e as políticas educacionais | Diálogos de saberes tradicionais, populares e sociológicos na educação básica |
O livro didático de Sociologia | Modalidades diferenciadas de ensino de Sociologia | História do ensino de Sociologia no Brasil | O ensino de Sociologia e a educação profissional e tecnológica | Ensino de Sociologia e estudos amazônicos |
O ensino de Sociologia e as políticas educacionais | Política no ensino de Sociologia: desafio didático e formativo | O livro didático de Ciências Sociais: avanços e desafios | O universo digital no espaço das metodologias de ensino de Ciências Sociais/Sociologia na educação básica: experiências, lacunas e perspectivas | Ensino de Sociologia nas modalidades diferenciadas de ensino |
Culturas juvenis na escola | O ensino de Sociologia e a categoria trabalho | Ensino de Sociologia nas modalidades diferenciadas de ensino | Percepções, representações e situações de violências no ambiente escolar e seu entorno social | Formação de professores/as e ProfSocio: produção de conhecimentos e práticas de ensino de Sociologia na educação básica |
Sociologia no ensino médio: docência, metodologias e pesquisa | Gênero e sexualidade: o que o ensino de Sociologia/Ciências Sociais na educação básica tem a ver com isso? | Formação de professores de Ciências Sociais | Políticas públicas e a formação docente em Ciências Sociais: limites e possibilidades | História do ensino de Sociologia no Brasil |
O Pibid e a formação docente em Ciências Sociais: limites e possibilidades | A dimensão ambiental no ensino de Sociologia e as experiências interdisciplinares | O Pibid e a formação docente em ciências: limites e possibilidades | Relações afroindígenas e o ensino de ciências sociais no Brasil | Livros didáticos de Sociologia |
Contribuições da Sociologia para a pesquisa em educação | Teorias e métodos para a pesquisa sobre ensino de Sociologia | Relações entre currículo e avaliação no ensino de Sociologia na educação básica | O currículo da Sociologia na educação básica | |
O lugar da pesquisa no ensino de Sociologia | Os conhecimentos de política na disciplina de Sociologia no ensino médio: conteúdos, metodologias e recursos didáticos | Teorias e métodos em pesquisas sobre ensino de Sociologia | O ensino de Sociologia e o fazer científico: a pesquisa como ferramenta didática | |
O ensino de Sociologia na educação básica e as modalidades ativas na aprendizagem | ||||
Políticas públicas e a formação docente em Ciências Sociais: limites e possibilidades | ||||
Relações entre currículo e avaliação no ensino de Sociologia na educação básica | ||||
Teorias e métodos: como fazer do ensino de Sociologia um campo de pesquisas? | ||||
O ensino da diferença na Sociologia - como pensar gênero e outras categorias de articulação em sala de aula? |
Fonte: Elaboração própria (2021).
O primeiro dado que chama a atenção é a existência de um número relativamente estável de grupos ao longo das edições (13, 11, 13, 13, 18), com um leve aumento no sétimo encontro, o que em parte pode ser explicado devido ao fato de ser um congresso on-line, possibilitando assim uma participação mais ampla de pesquisadores de diferentes regiões do país.
Poderíamos agrupar as temáticas mais recorrentes em seis categorias: a) formação de professores; b) recursos didáticos; c) metodologias de ensino; d) pesquisa sobre ensino de Sociologia; e) currículo; f) ensino de Sociologia e diversidade. Obviamente que essa classificação possui suas limitações, uma vez que há temáticas que poderiam estar enquadradas em mais de um desses temas.
Alguns GTs têm perdurado em todas as edições do Eneseb ocorridas até o momento, são eles: ‘Culturas juvenis na escola’ e ‘Livro didático de Sociologia/Ciências Sociais’. Por outro lado, outros GTs estão presentes em ao menos quatro edições do evento: ‘História do ensino de Sociologia no Brasil’ e ‘Ensino de Sociologia nas modalidades diferenciadas de ensino’. Em ao menos três edições encontramos um GT sobre teorias e métodos para a pesquisa no ensino de Sociologia e sobre o ensino de Sociologia no mundo digital, ainda que possa haver alguma pequena alteração na nomenclatura do grupo. Observamos que o debate sobre a formação de professores ganha centralidade no evento, havendo recorrentemente mais de um GT voltado para essa temática, seja de uma forma mais genérica seja voltado mais especificamente para alguma política educacional de formação inicial e continuada, como o Pibid e o ProfSocio. Igualmente, o currículo ganha destaque no debate, tendo havido três GTs sobre o tema ao longo das edições, um deles voltado exclusivamente para o debate sobre a BNCC.
Refletindo ainda a expansão da agenda de pesquisa sobre gênero e raça, assim como sobre as perspectivas afro-indígenas, tem havido, ao menos desde o IV Eneseb, GTs que têm articulado essas questões com o ensino de Sociologia. Esse movimento parece refletir, ao mesmo tempo, a consolidação desses debates no campo das Ciências Sociais (Barreto, Rio, Neves, & Santos, 2021; Franch & Nascimento, 2020) e também a emergência de uma perspectiva cada vez mais plural de Sociologia, que passa a perceber a existência de cânones para além da perspectiva eurocêntrica (Connell, 2019).
Observa-se assim uma agenda relativamente estável, na qual os temas debatidos nos primeiros GDs do 1º Eneseb continuam tendo espaço, ao mesmo tempo que novas temáticas emergem. Podemos inferir ainda que, apesar da inexistência de linhas de pesquisa específicas de investigações voltadas para o ensino de Sociologia nos programas de pós-graduação stricto sensu no Brasil9, a diversidade das linhas de pesquisa existentes nos programas em Ciências Sociais/Sociologia e também em Educação - principais espaços de formação dos pesquisadores na área - tende a incidir sobre a agenda do ensino de Sociologia, ao pautar debates no campo das Ciências Sociais.
Os agentes do Eneseb: uma periferia no campo da Sociologia brasileira?
Ainda que as regras de proposição de GTs no Eneseb tenham se modificado ao longo dos anos, mantém-se como regra mais geral o fato de que os grupos são coordenados por mais de um pesquisador e resultam de uma chamada pública. Diferentemente do que ocorre no CBS, cujos GTs são organizados a partir da diretoria da SBS, no Eneseb abre-se uma chamada para a proposição de GTs a cada edição e esses grupos são analisados pelo comitê científico/organizador do evento. Na medida em que os GTs são aprovados, são abertas as inscrições para a submissão de comunicações nos eventos.
Ainda como uma distinção em relação ao que ocorre no CBS, apesar de o Eneseb ser um evento organizado pela SBS, não é necessário ser filiado a essa entidade para organizar GTs, propor oficinas ou participar de mesas. Essa flexibilização mostra-se como fundamental para que o evento seja bastante inclusivo, principalmente quanto a professores da educação básica e a estudantes que estão cursando a licenciatura em Ciências Sociais.
Tal como ocorre em outros eventos acadêmicos, a coordenação de GTs normalmente fica a cargo de pesquisadores que capitanearam o debate em determinada área do conhecimento. Considerando-se que a comunidade de pesquisadores dedicados ao ensino de Sociologia ainda está se consolidando, podemos observar também a consolidação de lideranças nesse debate a partir dos GTs.
É importante perceber que ao longo das sete edições houve 99 coordenadores dos 68 GTs, sendo que destes 29 coordenaram GTs em mais de uma ocasião. Quinze pesquisadores coordenaram GTs em duas edições, sete coordenaram em três edições, quatro coordenaram em quatro edições e três pesquisadores coordenaram grupos em cinco edições. Esse cenário tende a apontar para uma consolidação das lideranças acadêmicas que têm debatido o ensino de Sociologia no Brasil. Chama a atenção que durante o 6º Eneseb apenas dois GTs foram coordenados por pesquisadores que não estavam presentes em outras edições do evento. Na Figura 1 indicamos os pesquisadores que atuaram no maior número de edições do Eneseb como coordenadores.
Podemos observar com esse gráfico que os pesquisadores de maior participação na coordenação de GTs no Eneseb, consequentemente aqueles que possuem um significativo capital simbólico na área, pertencem predominantemente a instituições periféricas no campo acadêmico da Sociologia brasileira, estando vinculados a instituições sem pós-graduação stricto sensu na área ou ainda que não estão no topo da hierarquia da avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), cursos nota 6 e 7. Esse dado é relevante na medida em que demonstra também a relevância de instituições periféricas no sistema acadêmico nesse debate, assim como a existência de outros critérios de legitimação desses pesquisadores.
Outro dado relevante com relação ao perfil desses pesquisadores é que diferentemente do perfil dos participantes do CBS cuja identidade profissional se constitui a partir da pós-graduação, pois como bem indicam Dwyer, Barbosa, e Braga (2013, p. 156-157):
No caso dos associados da SBS, apenas 73,0% dos respondentes tem diploma de graduação em Ciências Sociais. Isto porque o que caracteriza este grupo é a posse de um diploma de pós-graduação em Ciências Sociais. [...] em nossa disciplina, é na pós-graduação que a perspectiva de uma das possíveis identidades profissionais se firma.
No caso dos 99 coordenadores de GTs do Eneseb, apenas oito deles são graduados em outras áreas do conhecimento, predominando, portanto, a formação inicial no campo das Ciências Sociais. No caso da formação pós-graduada, 47 deles possuem a titulação mais alta na área de Ciências Sociais. Poderíamos interpretar esse dado a partir da hipótese de que o debate sobre o Ensino de Sociologia vincula-se, sobretudo, a questões elaboradas a partir da graduação, associadas à atuação dos cientistas sociais no campo educacional.
Devemos destacar ainda a presença de pesquisadores que tiveram como objetivo de investigação em seus trabalhos de pós-graduação, em nível de mestrado e/ou doutorado, o Ensino de Sociologia. Assim sendo, podemos perceber que a formação de quadros de pesquisadores voltados para essa temática tem se desdobrado na elaboração de lideranças acadêmicas nesse debate, que tendem a se inserir em diferentes espaços institucionais. Ressaltamos para além da formação pós-graduada em Ciências Sociais, aquela em Educação é também profundamente relevante para esse campo, considerando que muitos coordenadores de GTs são doutores em Educação, ainda que de forma predominante graduados em Ciências Sociais, o que reflete os próprios trânsitos que são comuns nessa interface entre as Ciências Sociais e a Educação.
Ainda é importante perceber que apenas de forma minoritária temos pesquisadores vinculados à pós-graduação. Dentre os coordenadores, 24 deles são integrantes de programas de pós-graduação acadêmicos, sendo que 16 atuam em programas de Sociologia/Ciências Sociais, cinco em Educação, dois em Ensino e um interdisciplinar. Observamos, no entanto, que majoritariamente são pesquisadores vinculados a programas que podem ser considerados periféricos ou mesmo ‘fora do eixo’ (Barreira, Cortês, & Lima, 2018), uma vez que apenas dois coordenadores estão vinculados a programas de Sociologia com notas 6 ou 7 (UFRGS, Unb)10. Do mesmo modo apenas dois pesquisadores que coordenaram GTs nesse evento eram bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq - vinculados à UFSC e à Unb - sendo este um dos elementos distintos mais centrais no campo acadêmico brasileiro (Oliveira, Melo, Pequeno, & Rodrigues, 2022).
Esse ponto nos leva à hipótese acerca da relevância da periferia para a inovação no campo, uma vez que as instituições que estão no topo da hierarquia acadêmica do campo da Sociologia brasileira possuíram uma agenda de pesquisa mais consolidada. De forma homóloga ao que é posto por Bastos (2002, p. 201, grifo do autor), indicando que “[...] a análise a partir da periferia permite indagar sobre os princípios que articulam o sistema [...]”, ao refletir sobre a escola paulista, podemos compreender que a partir da periferia do campo da Sociologia brasileira é possível captar melhor a dinâmica do ensino de Sociologia.
Os dados aqui brevemente apresentados possibilitam a percepção da existência de certas características mais gerais acerca dos coordenadores de GTs do Eneseb, o que ao mesmo tempo também revela aspectos importantes do próprio campo do ensino de Sociologia. Isso não significa, em absoluto, que a comunidade de pesquisadores dedicados ao ensino de Sociologia compartilhe necessariamente das mesmas características, no entanto, esse levantamento nos dá pistas interessantes para pensarmos uma morfologia desse campo a partir de seus agentes.
Considerações finais
Neste breve trabalho buscamos examinar a dinâmica do Eneseb desde seu surgimento, partindo dos GTs como unidades analíticas, considerando tanto suas temáticas quanto o perfil de seus pesquisadores. É importante reafirmar, no entanto, que a comunidade de pesquisadores não se reduz aos coordenadores desses grupos, tampouco ao próprio Eneseb, considerando a existência de outros espaços institucionais nos quais os agentes dedicados a essa temática circulam. O que se buscou visibilizar foi a existência de determinadas agendas e agentes centrais nesse debate que se articulam a partir desse evento, que tem se consolidado como o principal fórum nacional de discussão sobre o ensino de Sociologia no Brasil.
Como se pôde observar, algumas temáticas exploradas nos GTs possuem certa estabilidade ao longo das diferentes edições do Eneseb, ao mesmo tempo que também incorporam novas discussões, que têm ganhado proeminência no campo das Ciências Sociais de modo geral, como aquelas relacionadas à raça e gênero. Isso demonstra que, apesar de ser um campo impactado pela agenda das Ciências Sociais de forma mais geral, possui uma autonomia relativa, que possibilita a emergência de debates próprios. Em outros termos, podemos indicar a partir desses dados que há um indicativo de que o ensino de Sociologia seja um campo em processo de autonomização.
Com relação aos agentes, também há indicativos da existência de uma comunidade estável de pesquisadores dedicados ao tema, inseridos em diferentes instituições no país, em especial em instituições relativamente periféricas no campo acadêmico das Ciências Sociais. Esse dado tende a reforçar nossa hipótese apresentada no parágrafo anterior, de que esse é um campo em processo de autonomização, pois os agentes situados em instituições centrais no campo da Sociologia não necessariamente ocupam uma posição dominante.
Os elementos trazidos aqui nos possibilitam vislumbrar certa morfologia do campo do Ensino de Sociologia no Brasil, ainda que a discussão sobre o fato de o ensino de Sociologia se constituir como um campo ou um subcampo no Brasil ainda esteja em aberto (Rêgo Ferreira & Oliveira, 2015; Bodart & Souza, 2017)11. É necessário avançar na agenda, considerando outros espaços de circulação de agentes que integram esse campo, assim como outros espaços de distinção e disputa acadêmica.