Introdução
Reiteradamente produções do campo educacional têm marcado a importância do processo de reflexão sobre a prática pedagógica no trabalho docente (Garrido & Carvalho, 1999; Nunes, 2001; Hoffman-Kipp, Artiles, & López-Torres, 2003; Brito, 2006; Santos, Gauche, Mól, Silva, & Baptista, 2006; Zeichner, 2008; Carabetta Júnior, 2010; Beineke, 2012; Uhmann & Zanon, 2013; Körkkö, Kyro-Ämmälä, & Turunen, 2016; Loponte, 2017, dentre outros). Reconhecendo as contribuições do processo de reflexão no que diz respeito à qualificação das práticas de sala de aula, de investigação e de formação docente e discente, este trabalho emerge como uma reflexão que proponho compartilhada com a comunidade que atua no campo da Educação em geral e especialmente no Ensino de Ciências, dadas as peculiaridades e contexto de sua escrita.
Assim, neste ensaio apresento uma reflexão sobre o constante atrito que tenho evidenciado tanto no nível de minha prática quanto no nível da prática de outros colegas, a partir de conversações e leitura de trabalhos produzidos no campo da Educação e do Ensino de Ciências, referente à relação - sempre tensa, sempre presente e sempre produtora de efeitos sobre o ensino e a aprendizagem - entre uma ‘intencionalidade pedagógica’ e uma ‘tradição’. Entendo que a ação docente tenha um compromisso mais profundo com a primeira, enquanto a última deva sempre ser levada ao limite e tensionada. Mesmo que seja evidente a prerrogativa de uma ‘tradição’ conduzindo e marcando o passo daquilo que é dado ou regido no processo de ensino, proponho aqui que assumir uma postura produtiva no campo educacional e na formação docente implica em trabalhar numa direção em que a ‘intencionalidade pedagógica’ esteja acima da ‘tradição’ que, em muitos casos, adquire um aspecto mais ontológico do que histórico e datado.
Para realizar essa proposta, que se coloca em última instância na intenção de realizar uma hipercrítica (Veiga-Neto, 1995; 2006; 2012) sobre o processo de ensino e sobre os próprios conteúdos escolares, pretendo ao longo deste texto abordar inicialmente as diferenciações que reconheço entre ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ para, na sequência, encaminhar uma proposta de que o tensionamento entre ambas seja tido como um princípio educativo. Após realizar tais discussões, buscarei reiterar os pontos de destaque de meu argumento em favor da prevalência de uma sobre a outra, tendo por intuito problematizar e contribuir com a produção de conhecimentos no campo educacional, especialmente na formação de professores.
Definições, diferenciações e integrações necessárias entre intencionalidade pedagógica e tradição
Não necessariamente sistematizada a partir de um campo ou autor específico, mas apoiado em pesquisas (Pastoriza & Loguercio, 2014; Pastoriza, Loguercio, & Mazzotti, 2014; Pastoriza & Del Pino, 2017a), tenho sistematicamente recorrido às noções de ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ e seu tensionamento em minhas aulas de Didática da Química e Instrumentação para o Ensino de Química1, nas quais há algum tempo atuo como docente regente.
Conquanto seja possível encontrarmos inúmeros trabalhos que se debruçam sobre a questão da ‘tradição’, seus correlatos, sua localização histórica e a discutem, por diferentes vertentes teóricas (Cressman, 1930; Stabler, 1977; Freitas, 2000; Veiga, 2002; Sommer, 2007; Tezanos, 2012; Pietri, 2019; dentre outros), assim como trabalhos referentes à ideia de ‘intencionalidade pedagógica’ (Krawczyk, 2003; Sánchez & Muñoz, 2008; Vilar & Anjos, 2014; Salgueiro et al., 2015; Torres, 2015; Cerutti & Nogaro, 2017; Costa, Gomes-da-Silva, & Gonçalvez, 2017; e outros), percebo que muitas dessas discussões não atribuem uma delimitação ou definição clara para o uso desses termos. Mais do que isso, entendo que as propostas desenvolvidas nesses trabalhos colocam essas noções de ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ num sentido distinto daquilo que proponho quando me refiro a essas palavras-conceito tanto em aula, quanto aqui, nesta reflexão em texto. Analisando tais materiais, compreendo que sua maior diferença àquilo que tenho desenvolvido está em eu assumir em minha prática a necessária articulação entre elas no exercício docente, não concebendo sua potência quando analisadas em separado, e isso implica em buscar diferenciá-las, para, apropriadamente, articulá-las.
É visando à integração de tais propostas que usualmente inicio as discussões de minhas disciplinas pela marcação da presença e da diferença entre uma noção de ‘intencionalidade pedagógica’ e uma de ‘tradição’. Com esta última, enceto a discussão assumindo que nos processos de ensino escolarizado (assim como em vários outros) é possível perceber a presença de um ‘desde já, um já feito, um já consolidado’ que tem por função ‘limitar, organizar, tolher, encaminhar, indicar’ o que se fará ou deixará de se fazer nas aulas. E sinalizo que essas compreensões não são originalmente minhas, mas apontadas em diferentes trabalhos que analisaram distintos aspectos da constituição da escola e de outros sistemas, identificando a presença de determinações, orientações e práticas historicamente consolidadas (Freitas, 2000; Lopes, 2000; Veiga, 2002; Sommer, 2007; Carvalho, 2011; Silva, 2013). Essas funções, características e marcações que aqui destaco estão circunscritas na ideia e no campo da ‘tradição’.
É certo que aquilo que se constitui enquanto ‘tradição’, em determinado momento, passa por agenciamentos, intenções explícitas ou não, motivações e determinações de várias ordens, principalmente quando assumimos seu papel em termos de construção curricular, que é endereçada, selecionada, organizada sob determinada perspectiva, com sua ação normativa (Silva, 1999; Sacristán, 2000; Macedo, 2006; Young, 2014). Todavia, não no tocante à sua constituição, mas ao seu reconhecimento de elemento já consolidado, que já passou por esses momentos iniciais de organização, tais elementos (por motivações que não são facilmente explicáveis, ou por processos que nem mesmo são o escopo deste trabalho) têm por efeito a constituição de posicionamentos, orientações, assumpções e regras que não passam necessariamente por um processo formal ou explícito de verificação, mas que se produzem num recurso de reclamação ontológica de sua legitimidade (Sommer, 2007; Pastoriza & Del Pino, 2017a). Ou seja, quando se trata de ‘tradição’, evidencia-se um processo de legitimação pautado mais numa referência a um costume, a um processo longínquo que sempre ocorreu e que, portanto, se legitima no tempo remoto de sua existência, do que por conta de um motivo racionalizado (Bachelard, 1977; 1996; 2004; Fonseca, 2008; Bachelard, 2009). A esses elementos históricos e suas caracterizações, os quais são muitas vezes menos lógicos que ontológicos, os tenho denominado simplesmente de ‘tradição’, que antes mesmo de poder ser questionada, impõe-se (em diferentes níveis e intensidades) aos conteúdos e sujeitos que atuam no campo escolar.
Essa definição é evidenciada cada vez em que percebo algumas produções na área de Educação ou Ensino de Química, ou a cada momento em que experiencio docentes em formação ou já atuantes dizerem que ‘tem de dar esse conteúdo porque ele tem de ser dado’, ou que complementa tal legitimação pela afirmação categórica de que ‘cai no _____’ (sendo o tracejado aqui completado pelas usuais palavras ‘vestibular, ENEM’ ou ainda outros sistemas de avaliação). A cada momento que tais justificações menos fundadas na razão e mais alicerçadas numa base ontológica da constituição de uma disciplina, de seus conteúdos e organização emergem, fica evidente o processo de reatualização dessa ‘tradição’ e seus intensos efeitos sobre as disciplinas escolares.
Em confronto, diferenciação e articulação a essa noção, nessas mesmas disciplinas que leciono e em minhas ações docente, tenho trabalhado e militado em favor de uma ‘intencionalidade pedagógica’. Ao assumi-la, defino-a como sendo um ‘processo intencionalmente intencional, objetivamente objetivado e conscientemente consciente’. Isso porque é certo que as várias atividades realizadas no campo escolar são intencionais, têm lá seus objetivos ou são pensadas por um ser consciente e cognoscente. Todavia, ainda que sejam pensadas, assumo que tornar ‘intencional’ a ‘intenção’ de alguma tarefa é algo mais aprofundado; exige um nível mais elaborado de discussão que, numa primeira abordagem, não está posto necessariamente. Em contraponto à ‘tradição’, enquanto esta assume os ‘desde já’ e os ‘imutáveis’ de determinada prática, a ‘intencionalidade pedagógica’ busca sempre o espaço de questionamento da validade, legitimidade, coerência, justificação e abrangência de algo. Enquanto a ‘tradição’ crê em seu próprio valor, como uma obra que o tempo conferiu importância, a ‘intencionalidade pedagógica’ tem sempre o sorriso irônico da dúvida, como diria Bachelard (2008).
Essa radicalidade de buscar uma intencionalidade na própria intenção pode ser abordada por meio de um exemplo. Sistematicamente nós docentes optamos por realizar uma avaliação em sala de aula. Suponhamos que essa avaliação seja do tipo ‘prova’. É inegável que, dentre as múltiplas possibilidades de avaliação a se realizar, opta-se por esse modelo. Contudo, no momento em que se coloca em debate a questão da ‘intencionalidade pedagógica’ essa ‘intenção’ de prova não é suficiente. É preciso que haja uma ‘intencionalidade’ sobre a própria escolha, de modo que não se justifique no ‘porque sim’, no ‘porque gosto’, no ‘porque prefiro’, no ‘porque sempre fiz assim’, ou outras justificações menos objetivadas, alicerçadas sobremaneira num ‘costume’ de origens inexplicáveis ou imemoriais - destarte, numa ‘tradição’.
No campo da ‘intencionalidade pedagógica’ há que se trabalhar ‘pedagogicamente’ a opção tomada. Por exemplo, neste caso, eu poderia optar e justificar o modelo de avaliação por prova uma vez que desejo fornecer um tempo-espaço no qual meus estudantes sejam exigidos a mobilizar seus conhecimentos sem outros interferentes materiais externos. Ou, ainda, poderia optar por essa proposta por considerá-la interessante para analisar a capacidade dos estudantes (re)organizarem os conhecimentos desenvolvidos durante as aulas em uma situação que lhes exija adaptação frente a situações inesperadas (questões), num contexto de independência intelectual (individualmente) e sobre determinado nível de pressão (com tempo determinado, sob a vigilância docente etc.). Neste exemplo, não apenas a escolha pelo ‘tipo’ de avaliação está contida na ‘intencionalidade pedagógica’, mas o próprio ‘conteúdo’ ou ‘forma’ da prova e suas questões. Se eu desejo que meus alunos exercitem a capacidade abstrata de desenvolvimento do raciocínio matemático (uma vez que posso julgar ser, naquele momento, algo importante para a compreensão daqueles fenômenos estudados), certamente incluirei questões com esse aspecto. Se, por outro lado, volto-me à importância do raciocínio descritivo, o qual, como no caso de uma disciplina de Química, mesmo sem cálculos pode evidenciar a compreensão de fenômenos e suas representações, certamente optarei por questões de caráter mais discursivo e de elaboração textual.
Escolhi o exemplo do modelo de avaliação prova uma vez que é o mais comum e mais amplamente adotado (Gatti, 2003; Bonamino & Sousa, 2012). Note-se que tanto para esse modelo de avaliação quanto para outros, assim como para qualquer prática escolar, dinâmica de aula, visitação etc. entendo ser imprescindível a explicitação da ‘intencionalidade pedagógica’. E, sim, ela é complexa! Ao se falar, por exemplo, do processo intencional de escolha de um método avaliativo há que se destacar as contribuições ao processo de avaliar, assim como os aspectos negativos que este possa ter. E isso principalmente em relação aos modelos já mais consolidados e, por isso, necessários de serem discutidos mais intensamente pela ‘intencionalidade pedagógica’. Por exemplo, ao se falar do modelo de avaliação prova é nítido que “[…] sentimentos negativos em relação às provas vão sendo desenvolvidos ao longo dos anos de escolarização e, indubitavelmente, se se quiser mudá-los leva-se algum tempo [...]” (Gatti, 2003, p. 103), bem como se coloca em evidência ‘a permanência de um forte predomínio de uma concepção de avaliação como medida’ (Marinho, Fernandes, & Leite, 2014). Disso, acredito que o atravessamento da ‘intencionalidade pedagógica’ a esse modelo pode dinamizar e catalisar a mudança, pois o destaque ‘intencional à intenção’ dessa avaliação passa por um panorama complexo, que vai desde a escolha pelo modelo, sua associação a um objetivo educacional, sua construção coerente a essa objetivação, o reconhecimento de sua finalidade, até a implementação do modelo e a ponderação sobre sua efetividade frente aos objetivos e finalidades incialmente propostos (avaliação da avaliação). É devido essa característica recursiva da ‘intencionalidade pedagógica’, de ser mobilizada tanto no desenvolvimento inicial do processo educativo quanto na mobilização de um novo começo a partir daquilo que pôde extrair e produzir do processo anterior, que associo a ela a noção de hipercrítica, pois ela se vê radicalmente radical, inclusive com ela mesma (Veiga-Neto, 2006).
Falar da ‘intencionalidade’ de uma ‘intenção’ posta no processo educacional significa trabalhar no sentido de duvidar do retorno à origem (Pastoriza & Del Pino, 2017b), de problematizar a clássica visão dualista de avaliação (Marinho, Fernandes, & Leite, 2014), de questionar aquilo que nos chega tão estável e tão límpido como uma prática de ‘aplicar uma prova’. Por essa via reducionista, nada tão ‘usual’, nada tão ‘simples’, nada tão ‘óbvio’ do que um recurso como esse. Isto porque pela perspectiva da ‘intencionalidade pedagógica o óbvio não é óbvio’. Não explicitar as opções e escolhas não significa sabê-las a princípio, mas, muito possivelmente, ‘implica em não as reconhecer’. E é por isso que a ‘intencionalidade pedagógica’ deve ir aos porões (Veiga-Neto, 2012) daquilo que constitui nossas práticas e ações docentes, sejam elas referentes aos conteúdos, estratégias, métodos avaliativos ou outros.
A partir de tais elementos, a cada momento em que tenho trabalhado com a sistematização dessa discussão entre a presença e a ação para além do próprio sujeito docente de uma ‘tradição’ e a sua necessária problematização num processo que, mais do que pautado numa intenção, oriente de modo intencional as próprias intenções e escolhas, tenho evidenciado as possíveis contribuições à ação docente que o tensionamento entre ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ pode trazer. Deste modo, tenho cada vez mais trabalhado num sentido de tornar o tensionamento entre essas duas ideias um princípio educativo, o qual pode auxiliar tanto na autonomia quanto na qualificação da ação docente, e é no sentido de compreender mais elementos desse princípio que proponho a próxima seção.
Tensionamento e prática pedagógica: perspectivas de um contexto de ação
É nessa conjuntura de apontamentos e discussões que, ao longo de minha prática, tenho me interessado pela investigação sobre os conteúdos e as formas como estes são trabalhados na disciplina de Química - área em que atuo e na qual formo docentes. Particularmente, desenvolvi um gosto especial por pensar, analisar e problematizar um dos elementos mais centrais às próprias disciplinas escolares: seus conceitos. Realizando questionamentos nesse sentido, pude evidenciar uma série de recorrências que eram/são dinamizadas pelo tensionamento entre ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’, de modo que julgo válido marcar essa proposta de princípio educativo no contexto de minha ação. Em tempo, cabe apontar que ao realizar essa circunscrição não estou negando outras vertentes e interesses de pesquisa, seja no campo do Ensino de Química ou naquele mais amplo da Educação; do mesmo modo que não limito nem a potencialidade desta discussão nem as situações nas quais a mobilizo apenas a esse foco investigativo nos conceitos. Se busco apresentar aquilo que tem movido minhas investigações e reflexões docentes a partir de um recorte de minhas ações e da colocada em marcha do tensionamento entre ‘tradição’ e ‘intencionalidade pedagógica’, é porque evidencio, por meio de alguns exemplos contextuais, uma grande potencialidade de discussão desse tensionamento.
Sistematicamente, ao ler trabalhos produzidos pela comunidade acadêmica e ao ter contato com docentes em formação inicial e continuada, evidencio que, no que tange aos conteúdos conceituais da Química e suas articulações no espaço escolar, muito pouco deles é discutido sob o aspecto de uma efetiva ‘intencionalidade pedagógica’ quando o questionamento recai sobre a escolha dos ‘conteúdos conceituais’ de trabalho e seu desenvolvimento. Poucos são os estudos que apresentam uma discussão que evidencie intencionalmente a validade, legitimidade ou efetiva escolha intencional pelo trabalho com um ou outro conteúdo na área de Química (e me arrisco a sugerir que essa afirmação possa ser expandida para outras áreas). Usualmente, as intenções dos trabalhos recaem muito mais sobre a vontade de melhorar a aprendizagem sobre determinado conceito químico do que, efetivamente, discutir sua utilidade, validade, aplicação, contexto, etc. Por exemplo, vejam-se os trabalhos de Bertalli (2008), Oliveira, Silva, e Ferreira (2010), Campos, Silva, Ferreira, Ribeiro, e Felício (2017), Souza, Loja, e Pires (2018). Nesses e muitos outros textos, ainda que válidos naquilo que se propõem, não se percebe na discussão evidências claras das intencionalidades e justificativas para as escolhas dessas estratégias, recortes, processos, etc. Nessa perspectiva, nada estranho perceber a referência da importância do trabalho de um tema ou conceito ser remetida a um espaço-tempo sem fim e imemorial da constituição ontológica de uma disciplina como a Química2, principalmente pelo fato de, muitas vezes, não ser necessário discutir a validade desses conceitos, já assumida a priori (Pastoriza & Del Pino, 2017a).
Nessa conjuntura, minha crítica vai no sentido de que reiteradamente essas justificativas atribuídas ao ensino de um ou outro tema ou conteúdo aparecem revestidas de uma legitimação que leva todo o processo de escolha, delimitação e ação para ‘além da intenção docente’. Nesse sistema, essa situação leva a decisão sobre quais elementos ensinar para ‘fora’ da sala de aula e, preocupantemente, para ‘longe’ do/da docente. Assumindo que somos profissionais de um campo, e considerando nossos processos de formação, ação e qualificação, que marcam a ideia de nossa profissionalização docente (Nóvoa, 1992; 2017), acredito que a tal cenário devemos nos colocar diametralmente em ‘oposição’.
Ao buscar exercer sobre minhas práticas mais e mais da minha ‘intencionalidade pedagógica’, atribuo a mim, docente, conhecedor de meus estudantes, de minha instituição, de sua comunidade, a tarefa de ‘escolher’, ‘selecionar’ e ‘optar’ pelos métodos, conteúdos, modos e estratégias de ensino. Obviamente, ao falar dessa escolha, também atribuo a nós, docentes, um nível de ‘responsabilidade’ na ação pedagógica; responsabilidade essa que é (ou deve ser) inerente à ação docente, uma vez que não há (ou não deveria haver) alguém mais habilitado, capacitado e conhecedor daquilo que é necessário, ideal, preferível de ser trabalhado em determinado contexto real de sala de aula (Roldão, 2007). Por essa perspectiva, como bem aponta a discussão e a crítica de Fávero e Tauchen (2013, p. 237):
Por isso, o professor, além de conhecer os conteúdos de ensino, precisa ser capaz de analisar e resolver problemas; saber transformar o conhecimento científico em conhecimento ensinável; selecionar estratégias metodológicas adequadas, que facilitem a aprendizagem; organizar os saberes que possibilitem o acompanhamento dos estudantes; regular os processos de aprendizagem por meio da avaliação, entre outros saberes. São exigências intelectuais que ultrapassam o mero domínio de conteúdos conceituais ou o saber científico específico.
Se por um lado afirmo e busco a defesa pela autonomia docente e essas várias nuances de escolas, decisões e posições sobre o que trabalhar, como trabalhar e em que sentido trabalhar, tomo o cuidado em marcar que com a noção de ‘intencionalidade pedagógica’ não nego a existência de estruturas básicas curriculares, como atualmente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC; Brasil, 2018) no Brasil, ou outras propostas locais, sejam de estados (Paraná, 2018), municípios (Itatiba, 2016) ou sistemas escolares. Na conjuntura de minhas proposições, ações e reflexão, o que tenho negado é a atribuição a essas estruturas curriculares elementos decisórios e intencionais que vão ‘além daquilo que tais estruturas mesmas propõem’.
Por exemplo, a partir de minha atuação e pesquisa evidencio que na estrutura atual da BNCC não há nenhuma indicação de serem trabalhados conceitos como isóbaro, isótono e isoeletrônico, assim como não há nenhuma menção ao ensino de entalpia ou entropia. A leitura que se realiza dessas orientações curriculares, aliadas às nossas ‘intencionalidades’ e ‘tradições’ é que nos fazem compreender que, ao haver no texto da Base, trechos como
Analisar questões socioambientais, políticas e econômicas relativas à dependência do mundo atual em relação aos recursos não renováveis e discutir a necessidade de introdução de alternativas e novas tecnologias energéticas e de materiais comparando diferentes tipos de motores e processos de produção de novos materiais [...] (Brasil, 2018, p. 560),
nós entendamos que ‘isso é’ ou ‘requer’ abordar ‘entalpia’. Nesse sentido, veja-se que o texto não aborda ‘qual’ conceito deve ser trabalhado, nem ‘como’, mas, ‘intencionalmente’ ou não, alguém ‘vê/quer/deseja’ abordar as ‘tecnologias energéticas’ ou a ideia de ‘quantificação’ pela via da ‘entalpia’, por exemplo. E isso não é recente. O mesmo raciocínio se aplica a outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Neles, um trecho tal qual
O princípio físico da conservação da energia, essencial na interpretação de fenômenos naturais e tecnológicos, pode ser verificado em processos de natureza biológica, como a fermentação, ou em processos químicos, como a combustão, contando em qualquer caso com o instrumental matemático para seu equacionamento e para sua quantificação [...] (Brasil, 1999, p. 8),
tende a ter sua leitura agenciada pela mesma forma de constituir trabalho ‘entálpico’, como no caso da BNCC.
Sobre documentos como esses citados, eles
[…] constituem uma das formas de expressão do papel do Estado na busca por coesão e ordem, atuando no sentido de atingir a uniformização do currículo nacional, pela definição de um conteúdo mínimo a ser transmitido na escola básica [...] (Galian, 2014, p. 651).
mas note-se que os documentos per se não chegam ao ponto dos detalhamentos, que tendem a ser completados por uma ‘consolidação’ de quais conteúdos uma área deve trabalhar. Embora o foco aqui não seja um estudo em currículo propriamente dito, até porque há uma série de trabalhos que se debruçam mais detidamente sobre o tema (Macedo, 2017; Silva, 2018; Lima & Hypolito, 2019; dentre outros), trazer tais documentos e sua relação com uma posição amplamente aceita por docentes de Química permite evidenciar que as discussões relativas à ‘intencionalidade pedagógica’ e à ‘tradição’ podem contribuir para o estabelecimento daquilo que será objeto de estudo na dinâmica de aula e, logo, constituidor do currículo (no sentido amplo).
Inspirado por Bachelard, acredito que é em termos de problemas que se coloca o conhecimento científico - noção a partir da qual também assumo para a questão do ensino e da Educação. Mais do que isso, compreendo que “[…] é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida cientifica [e insiro aqui também a docência] os problemas não se formulam de modo espontâneo [...]” (Bachelard, 1996, p. 18, grifo do autor), e, assim, minha crítica à ‘tradição’ vem quando esta é dada como uma espontaneidade no ato de produzir saberes e conhecimentos num contexto educativo. Há que se estabelecerem tensionamentos, ou seja, produzir tensões que desalojem ou instabilizem estabilidades com o objetivo de modificar dado cenário. Contudo, há também que se tencionar isso, o que significa trazer a noção de planejamento e intencionalidade, de confrontamento a essa espontaneidade, para que seja possível formular problemas que a ela não são espontâneos. Nesse sentido, há que se tencionar a compreensão, em Química, que ‘tecnologias energéticas’ ou ‘quantificação’ ‘devam ser’ assumidas como ‘entalpia’. Nesse sentido, a pedagogia científica de Bachelard (Fonseca, 2008) pode ser uma ferramenta potente (dentre muitas outras) para esse trabalho, haja vista sua perspectiva de educação como prática social e histórica.
Dado tal confronto e articulação, milito em favor de um destaque maior à questão da ‘intencionalidade pedagógica’ do que em favor da ‘tradição’. Isso porque acredito que traçar nossas ações docentes mediadas pela ‘tradição’ implica tanto em um ‘apagamento docente’ quanto em um ‘empobrecimento’ do próprio campo de nossa atuação. Por exemplo, até hoje percebo colegas trabalhando nas escolas e discutindo questões como reações de dupla troca, simples troca, síntese e análise. Sistematicamente, ao conversar com esses colegas, a justificativa recai sobre aqueles modos ontológicos já assinalados. Ao trazer isso, não se apropriam das discussões já existentes no campo do Ensino de Química que criticam e principalmente apresentam argumentos que podem orientar e auxiliar os docentes na escolha e defesa de sua escolha por não trabalhar esses temas como, por exemplo, o trabalho de Lopes (1995). É preciso que o máximo possível dos temas e conceitos químicos sejam discutidos e confrontados, de modo a buscar uma crítica radicalmente radical a tais conceitos, temas e escolhas, bem como uma crítica que recaia sobre essa própria crítica e a problematize.
De modo geral, evidencio que ainda são poucas as investigações publicizadas que se voltam a esse aspecto da hipercrítica à própria área de constituição, organização e ensino de uma disciplina. Por exemplo, no Ensino de Química, poderia destacar em especial três trabalhos que, de certo modo, não sendo os únicos, encaminham essa problematização das escolhas à própria disciplina Química: Campos e Silva (1999), Silva (2005) e Scerri (2019). Essa hipercrítica, que no contexto de minha discussão leva necessariamente ao confronto e tensionamento entre ‘tradição’ e ‘intencionalidade pedagógica’, ainda é pouco explorada em nossa área. Assumo que isso se deva por sua complexidade e discussões que acaba mobilizando e incluindo em sua problematização. Por exemplo, ao se discutir as ‘intencionalidades das escolhas’ que constituem nossas ações, necessariamente surgem elementos que vão desde a problematização da base filosófica de nosso modelo epistemológico, dos aspectos de nossa própria subjetividade, até o questionamento dos próprios modelos de formação, da proposição de elementos convencionados por orientações curriculares ou características de sistemas de ensino, dentre outros.
Existe um esforço a ser realizado tanto intelectual quanto conjuntural em relação à ação e formação docente que temos atualmente e suas possibilidades de mudança. Por exemplo, apostar mais num trabalho coletivo (Pastoriza et al., 2017c) e analisar melhor os aspectos históricos de nossa formação para projetar ações futuras (Null, 2009) podem ser meios de aprimorar as ações para melhor nos debruçarmos sobre nossas escolhas. Complementarmente, penso que nos movimentarmos em termos da valorização e reconhecimento de nossa ação como profissionais (Nóvoa, 1992; 2017) é outro modo de qualificar não apenas o processo de problematização, mas também a própria organização desse universo e de outras problematizações que surgem em conjunto com a questão da ‘intencionalidade pedagógica’ para, dessa organização, evidenciar possíveis caminhos de trabalho, recorte e especificação dessa problematização.
Penso que, dada sua complexidade, tomar a ‘intencionalidade pedagógica’ como princípio educativo envolva, num primeiro momento, a organização do espaço de ação e a ‘escolha intencional’ (novamente) de ‘por onde’ iniciar as discussões, assim como o nível de imersão na discussão e em cada um dos pontos que ela pode suscitar. Embora ampla e complexa, acredito que é necessário a nós, nessa discussão, iniciar pelo recorte, para, dele, irmos, gradativamente, ampliando nossa problematização.
E é assim que acredito que surjam condições para um tensionamento que tem por mote assinalar o já estudado, o já estabilizado no campo (‘tradição’), e problematizá-lo em suas ‘intencionalidades’. Penso que é nesse processo que se criam espaços para a ampliação, dinamização e contribuição do ensino às disciplinas que lhe são relacionadas e à própria docência. Acredito que, sistemática e reiteradamente, após os temas de trabalho usual da Química escolar (e outras áreas) passarem por constantes questionamentos sobre sua validade (teórica e contextual), adequação (aos sujeitos e nível de ensino) e contribuições (limite explicativo e preditivo) etc., cada vez mais poderemos falar de um processo educativo que foi ‘intencionalmente’ organizado para contribuir com a produção daqueles sujeitos que o integram, implicando na ideia de construção de sujeitos atuantes, informados e capacitados a tomar decisões (Schnetzler & Santos, 2010).
Isso não implica em ‘negar’ a ‘tradição’ nem atribuir a ela uma ‘inutilidade’. Em muitos casos ela funciona como um elemento iniciador do processo de problematização e, além disso, nada impede que o confronto entre ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ assinale que tanto uma quanto outra se encontram e colaboram naquilo que é discutido. A partir de Young (2014) é possível dizer que as ‘tradições’ (das disciplinas, dos tipos e focos de estudo, etc.) têm importância basilar na constituição das áreas e suas trajetórias de desenvolvimento. Por exemplo, nessa perspectiva, o ensino da Química também tem suas tradições, as quais não podemos viver sem, mas nada nos impede de transformá-las, tensioná-las e estabelecer novas relações a partir delas. Entretanto, adequando a fala de Bachelard (1996) a esta proposta, se ocorre de ‘tradição’ e ‘intencionalidade’ se legitimarem em um ponto particular, é por outras razões que não aquelas que fundam a ‘tradição’.
Por exemplo, compreendo que a questão ‘tradicional’ de ensinar determinados modelos de ligações químicas e a questão ‘intencional’ de marcar que os processos químicos são caracterizados pela reorganização atômica (o que implica em modificação de ligações químicas), articulam-se fortemente. Nisso, reconheço, como docente, que tanto a tradicional indicação de ensino de ligações químicas quanto a minha intencional opção por tratar desses modelos é, na atual conjuntura do Ensino de Química, algo desejável e em certa medida necessário. Obviamente, como um desdobramento desse pensamento surgem análises de quais teorias e modelos de ligação abordar e, novamente, acredito que a ‘intencionalidade’ deverá selecionar, a cada caso, o melhor recorte de estudo, reconhecendo as necessidades, características, os problemas que deseja explicar etc. Conforme apontaram Barreto e Bejarano (2016), esse processo pode nos levar também a uma discussão filosófica de sua apropriação.
Menos problemático do que problematizador, a realização de movimentos com vistas à intencionalidade tendem a contribuir à organização, conhecimento, estruturação e próprio desenvolvimento da disciplina, a qual ao invés de ser proposta por outrem permite a nós, docentes, mobilizar um protagonismo profissional, de modo que acredito que assumir a ‘intencionalidade pedagógica’ como princípio de tensionamento tende a contribuir sobremaneira para esse cenário de qualificação de nossas ações docentes.
Considerações finais: encaminhamentos para a intencionalidade pedagógica
“Colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico, dialetizar todas as variáveis experimentais, oferecer enfim à razão razões para evoluir” (Bachelard, 1996, p. 24). Esta é uma das propostas de Bachelard para pensar sobre a formação do espírito científico. Ainda que apresentando diferenças de enfoque, momento histórico, conjuntura etc., acredito que suas palavras são capazes de nos fazer refletir sobre nossas ações docentes, e esta foi uma tarefa sobre a qual este texto se baseou.
Nesse processo, busquei evidenciar a necessária mobilização de nossas experiências (Bondía, 2002), de nossos saberes e conhecimentos (Veiga-Neto & Nogueira, 2010) para nos debruçarmos, com eles, à análise do nosso fazer pedagógico. Isso é o que foi almejado aqui. Necessariamente há inúmeros caminhos para esse processo, de modo que ao longo deste texto busquei problematizar um possível, na medida em que fui apontando outros. Nem tanto no nível da didática, nem tanto no nível da pedagogia; nem tanto no nível da epistemologia, nem tanto no nível do Ensino de Ciências, mas articulando esses campos, acredito que deles é possível encontrar as bases (móveis, mas inicialmente suficientes) para um trabalho hipercrítico com a questão da ‘intencionalidade pedagógica’ e seu tensionamento da ‘tradição’ que alcança nosso trabalho docente.
Note-se, ainda, que meu foco está, sim, sobre a ação docente, e embora a veja articulada com a ação discente, com a gestão, com a questão política e demais níveis. No sentido da ‘intencionalidade pedagógica’ temos de assumir nossa posição de especialistas, de profissionais de nossas áreas, de conhecedores do melhor fazer para a promoção de processos qualificados de ensino e os quais tendam a promover e produzir mais e melhores processos de aprendizagem.
Por fim, não posso deixar de destacar que o foco de minha discussão nesta reflexão é, necessariamente, parcial e interessado, de modo que outras discussões ficaram de lado. Ainda que falar de um tensionamento entre ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ implique um positivo destaque maior aos docentes em termos de responsabilidades e direitos, não abordei aqui a conjuntura frágil e deficiente que tem gerado tantas demandas a nós, profissionais da educação. Nessa conjuntura, não trouxe aqui nenhum ponto relativo à precarização das condições de trabalho, à mercantilização da educação ou da sobrecarga docente e seus problemas associados.
Optei por não abordar aspectos mais amplos, ainda que fortemente relacionados com a temática de minha análise neste texto, por duas principais razões. A primeira é que discussões referentes a esses aspectos deficitários do contexto educacional, que também considero relevantes, são trabalhadas mais e melhor do que eu poderia fazer aqui por outros pesquisadores (Borba, Diehl, Santos, Monteiro, & Marin, 2015; Jacomini & Penna, 2016; Dessbesell, Fabricio, & Kelm, 2018; Moura, Ribeiro, Castro Neta, & Nunes, 2019; Barros, Silva, Zamboni, Martins, & Cardoso, 2019). A segunda motivação está em assumir que, ainda que relevantes e constituidoras de condições para a própria problematização proposta, essas questões sobre a fragilidade, deficiências etc. não podem eclipsar as demais discussões, pois se permitirmos isso estaremos ‘perigosamente’ criando uma legitimação para possíveis estagnações e involuções. Estas, reatualizando a crítica à ontologia, poderiam levar à insolução da questão (inadequada e ineficiente) de que: ‘melhorar primeiro as condições gerais e infraestruturais é caminho para melhorar o processo educativo, ou um melhor processo educativo é meio para melhorar as questões gerais e infraestruturais?’ Esta questão é inadequada porque simplória; é ineficiente porque não conduz a nenhuma ação. Questões como esta são mais perigosas do que auxiliares, de forma que considerei mais apropriado desviar dela e propor uma discussão no sentido do que aqui expus.
Acredito que, em termos de desdobramentos deste texto, coloca-se um pensar sobre a ‘intencionalidade pedagógica’ tendo implicações que se desdobram para além dela mesma, tais como o reforço da responsabilidade docente, da formação qualificada, da autonomia e do profundo conhecimento do campo de atuação. Nesse sentido, por meio do exercício da ‘intencionalidade pedagógica’, penso que sua base nos possibilita mobilizá-la conforme nossas condições. Em passos pequenos, num movimento inicial, ou ainda em passos mais alargados, num processo já mais complexificado e compreendido pelas especificidades de cada docente, o central e o contributo maior dela é chamar-nos à ação. E, ainda que não tenhamos as condições ideais, a ‘intencionalidade pedagógica’ assevera nosso dever de constantemente pensar e repensar os diferentes aspectos de nossa ação e profissionalização. Em termos finais, vejo no tensionamento entre ‘intencionalidade pedagógica’ e ‘tradição’ um princípio educativo viável e adequado na catálise de modificações em nossa ação e prática docente e, por conseguinte, no próprio sistema educacional. Por tais razões, considerei adequado e potente para suscitar mais discussões compartilhar estas reflexões e proposições neste texto.