Introdução
Nas últimas décadas, a escola básica brasileira tem sido chamada a vincular-se de forma mais efetiva ao enfrentamento da pobreza e da vulnerabilidade social, buscando atuar sobre seus efeitos na persistência das desigualdades educacionais. As políticas compensatórias implementadas com esse objetivo assumem diferentes configurações e finalidades, tendo como premissa, o rompimento do ciclo perverso da pobreza intergeracional pela via da escolarização. Este formato de política educacional se estabelece no bojo das transformações observadas no âmbito das reformas implementadas a partir da década de 1990, quando os processos de descentralização, desconcentração e responsabilização situam a escola como o espaço da gestão.
Esse deslocamento, apontando para a possibilidade de uma gestão mais próxima de cada realidade escolar, vai aproximar a gestão da escola do contexto local, fortalecendo o discurso comunitário e elegendo o território e suas singularidades como o espaço da ação pública para a equidade social e melhoria dos indicadores quantitativos de qualidade da educação, cabendo à escola a responsabilidade pela mudança de sua realidade e do seu entorno, seja a partir da criação de projetos locais ou pela adesão à programas de natureza diversa (Ben Ayed, 2012; Nóvoa, 2008).
Dentre as políticas destacam-se aquelas que buscam como objetivo a ampliação do tempo de permanência dos estudantes na escola, ofertando, em sua maioria, o que se tem denominado como escola de tempo integral ou escola integrada. Esse formato é justificado tanto como uma estratégia para elevar a qualidade da educação, compreendida como possibilidade de melhoria dos indicadores de aprendizagem, quanto para a equidade, pelo pressuposto de que poderia atuar na diminuição dos efeitos das desigualdades sociais sobre as desigualdades educacionais, quando elege os alunos mais vulneráveis como prioritários na participação da jornada ampliada (Moehlecke, 2018; Cavaliere, 2014).
Ao estabelecer como objetivo a permanência dos alunos no contra turno, os programas que derivam desse formato de política educacional demandam uma reestruturação da organização interna da escola para garantia de sua execução. Nesse sentido, são incorporados ao cotidiano escolar novos sujeitos docentes, novas formas de organização do tempo e do espaço e, sobretudo, novas e diversas demandas de trabalho e de formação para os gestores escolares. São mudanças que contribuem para amplificar o caráter complexo da gestão, demandando a atuação como docente, educador e gestor, administrando os projetos pedagógicos, as metas do sistema, as interações com a comunidade escolar e as questões que surgem no dia a dia da escola. Isso tudo pode ser amplificado para os gestores que exercem essa função em escolas localizadas nos territórios de alta vulnerabilidade social, característica das escolas pesquisadas.
É na perspectiva de melhor compreensão deste cenário que se situa o presente estudo, desenvolvido a partir de resultados de pesquisa que investigou a gestão em escolas de tempo integral1. O objetivo é conhecer as demandas e os desafios que as políticas de ampliação da jornada escolar apresentam para a gestão da escola, analisando, também, a demanda e a oferta de formação continuada para esses gestores. Nesse sentido, o artigo problematiza as relações e tensões que surgem na triangulação entre as políticas compensatórias, a gestão escolar e as propostas formativas.
A pesquisa foi desenvolvida em duas escolas públicas localizadas em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, que ofertam a etapa do ensino fundamental. As escolas são participantes de programas de ampliação da jornada escolar promovidos em suas redes, uma no PEI (Programa Escola Integrada) que é desenvolvido na rede Municipal de Educação de Belo Horizonte e outra que integra o PROETI (Projeto Educação em Tempo Integral) da rede Estadual de Educação de Minas Gerais.
O desenho metodológico da pesquisa compreendeu as seguintes fases: revisão bibliográfica e documental; observação etnográfica nas escolas e entrevistas com os gestores escolares2. O levantamento documental teve como foco os marcos legais e normativos orientadores da implantação dos programas de jornada ampliada e dos programas dos cursos de formação de gestores escolares ofertados no âmbito federal, estadual e municipal. A pesquisa bibliográfica incluiu artigos e diferentes documentos, como relatórios, bases de dados estatísticos oficiais que tratam desses programas e o material pedagógico referente à oferta de formação para os gestores).
O interesse estava concentrado nas seguintes dimensões: percepção do projeto; organização do tempo e do espaço; processo de trabalho; estratégias utilizadas na mediação entre os sujeitos das jornadas regular e ampliada; a adequação entre as demandas e as ofertas de formação continuada para os gestores.
A escolha das escolas foi determinada pela oferta de programa de tempo integral, pela dependência administrativa e por sua localização geográfica, estando ambas situadas em regiões consideradas de atenção prioritária, de acordo com o indicador municipal de vulnerabilidade denominado: Índice de Vulnerabilidade Social (IVS)3.
Para organizar a apresentação dos principais resultados da pesquisa, este texto está estruturado em três partes: a primeira apresenta o contexto de emergência dos programas de ampliação da jornada escolar no Brasil e nos contextos da pesquisa, evidenciado as tendências, os objetivos e a evolução nos últimos anos; a segunda parte é dedicada aos dados da pesquisa e na terceira trata-se dos programas e das iniciativas das redes de ensino para formação dos gestores.
A(s) integralidade(s) na educação brasileira
A concepção de uma Escola de Tempo Integral (ETI), baseada na ampliação do tempo de permanência dos alunos na escola, é um formato relativamente novo, embora a noção de integralidade na educação remonte períodos nem tão recentes. Entendimentos de natureza diversa do que seria a Educação Integral podem ser localizados no pensamento educacional das décadas de 1920 e 1930, quando destacava-se por um lado a perspectiva liberal, com propostas de formação ampliada, contemplando as dimensões afetiva, cultural, política, cognitiva e o fortalecimento da escola como instituição. Por outra vertente, surgem as proposições mais moralizadoras, como a perspectiva integralista, o que valoriza a disciplina, o sacrifício e a obediência, visando o desenvolvimento da escola como a instituição distribuidora dos indivíduos na hierarquia social (Cavaliere, 2014; Moll, 2010; Teixeira, 2007).
Ao longo da segunda metade do século XX, algumas experiências de educação integral são observadas, mas é na década de 2000 que vai se consolidar o modelo atual. O período final do século XX apresenta um deslocamento do ideal de integralidade, que vai tomando novos delineamentos, se aproximando do enfrentamento das desigualdades sociais e educacionais, tendo a dimensão do tempo sobrepondo-se às demais como orientadora das ações. É nesse cenário que o modelo de escola de tempo integral vai ganhando forças para chegar ao formato atual. Os marcos legais e normativos referentes ao tema se configuraram como fonte importante do entendimento dos conceitos de educação integral e educação de tempo integral como elaborações discursivas e pedagógicas em movimento, que ora se complementam e ora se distanciam, prometendo uma educação integral e, muitas vezes, não conseguindo ir além de uma escola de tempo integral (Libâneo, 2014).
A ampliação do tempo de permanência dos alunos é posta em pauta a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996 (Lei nº 9.394, 1996) e referendada no Plano Nacional de Educação de 2001-2010 (Lei nº 10.721, 2001). O ano de 2007 é um marco importante para os programas de ampliação da jornada escolar com a aprovação da lei que institui o Fundo Nacional para a Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) (Lei nº 11.494, 2007), que passa a destinar um acréscimo de recursos aos estados e municípios que tenham alunos em tempo integral nas escolas. No mesmo ano, também, é lançado pelo Governo Federal o Plano Desenvolvimento da Educação (PDE), dentro do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, ao qual estão associados diversos programas, dentre os quais se ressalta o Programa Mais Educação (PME), sendo este último responsável pelo fomento da educação em tempo integral dos alunos por meio de aporte financeiro e técnico para as escolas públicas brasileiras. O PNE 2014-2024 (Lei nº 13.005, 2014) consolida essa modalidade de matrícula, com a educação de tempo integral se estabelecendo normativamente como uma de suas metas. A meta 6 trata de oferecer educação em tempo integral, sendo 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, com uma cobertura de, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos estudantes (Clementino, 2013; Moehlecke, 2018). O quantitativo de matrículas nesse formato confirma essa evolução, no ano de 2011 eram 3.164.544 estudantes matriculados na jornada integral e, no ano de 2019, esse quantitativo sobe para 5.002.641 matrículas, sendo 334.503 em Minas Gerais (Ministério da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [MEC/INEP], 2019).
Considerando os sistemas educacionais brasileiros, podem ser identificadas diferenças entre os programas de ampliação da jornada. Nas redes estadual de Minas Gerais e municipal de Belo Horizonte, onde estão localizadas as escolas da pesquisa, a jornada ampliada se consolida por meio do PROETI (rede estadual), criado em 2007 com objetivos diversificados: melhorar a aprendizagem dos alunos do Ensino Fundamental; reduzir os índices de reprovação; propiciar a vivência de experiências culturais e esportivas, a partir da ampliação do tempo de permanência do aluno na escola, reduzindo sua permanência em contextos de vulnerabilidade social. O PEI, (rede municipal) foi implantado no mesmo ano, em 2007, tendo como objetivo: a formação integral dos alunos do Ensino Fundamental ofertando atividades diversificadas no contraturno escolar, com prioridade de matrícula para os alunos que vivem em territórios de maior vulnerabilidade social.
Na próxima seção serão apresentados os resultados das entrevistas e das observações realizadas com os gestores das duas escolas e, considerando as orientações da ética na pesquisa, estes terão seu sigilo resguardado e serão identificados como: Diretor PEI e Diretora PROETI.
A gestão administrativa
Uma das demandas que a ampliação da jornada escolar apresenta para a gestão da escola é o seu caráter de permanência no contraturno ser restrito aos estudantes, não havendo previsão no PEI e no PETI de aumento da carga horária dos docentes do turno regular e, tampouco, a incorporação de novos profissionais à equipe gestora. Desse modo, cabe aos gestores da escola lidar com um quadro de trabalhadores muito ampliado, sem o necessário apoio.
Aqui na escola, no conjunto total de trabalhadores são 120 pessoas, contando todo mundo. Desse total, tem os professores, as cantineiras, o pessoal da limpeza e os auxiliares da inclusão. A equipe do PEI, também, está nesse total de 120, são entre 25 e 30 pessoas entre oficineiros, estagiários, professores de reforço. A contratação dos trabalhadores do PEI é feita aqui na própria unidade, eu e a vice-diretora entrevistamos e olhamos o currículo de acordo com sua habilidade em arte e cultura, esporte e temos também os estagiários que são aqueles que estão fazendo curso de graduação e trabalham no projeto para contar como estágio. No dia a dia aumentou o trabalho porque temos que cuidar de toda papelada de contrato, pagamento e frequência. Ainda tem as reuniões quinzenais que são feitas com a equipe do PEI da Gerência de Programas (Diretor PEI).
A nossa escola atende só do 1º até o 5º ano, então eram 50 funcionários entre professoras secretaria, limpeza, cantina e coordenação, depois com o PROETI entraram mais 18 pessoas, o número varia entre 15 e 20 funcionários no PROETI. Entraram os oficineiros, os monitores e as estagiárias do apoio pedagógico. A seleção foi feita aqui mesmo, a maioria é da comunidade, porque o salário é pouco e não vale a pena para quem mora longe. No trabalho, o projeto tem as suas demandas, entrevistar, fazer o contrato, vale transporte, tem o uniforme e também o pagamento (Diretora PROETI).
O aumento no quantitativo de funcionários gera uma carga de trabalho aumentada para os gestores, ainda mais se considerarmos os cortes de pessoal observados ao longo dos últimos anos no setor público. De acordo com os dados do questionário do Diretor, aplicado como um dos instrumentos contextuais na Prova Brasil (2017)4, com 69.562 respondentes, a falta de pessoal de apoio à gestão é uma realidade nas escolas públicas, nas respostas às questões sobre recursos humanos 50% dos diretores responderam que faltam funcionários administrativos e 48% relataram a falta de pessoal de apoio pedagógico à gestão (supervisores, coordenadores, orientadores). Além disso, 84% dos trabalhadores dos projetos, considerando as duas escolas da pesquisa, têm contratos temporários sem qualquer vínculo empregatício, o que segundo os gestores concorre para uma grande rotatividade, fazendo com que todo o processo de seleção e de contratação tenha que ser repetido algumas vezes durante o ano letivo. Importante ressaltar que algumas das rotinas administrativas dos programas (contratos, gestão da frequência, vale transporte, controle de material) se repetem para a gestão dos trabalhadores da jornada regular.
As demandas aumentadas refletem no tempo de trabalho dos gestores, no mesmo questionário contextual (Prova Brasil, 2017), 26% relatam cumprir uma jornada de trabalho superior a 40 horas semanais. Na observação etnográfica nas escolas foi possível perceber que uma parte significativa do tempo de trabalho dos gestores é dedicada às reuniões externas em órgãos diversos (Secretarias de Educação, de Saúde, de Assistência Social, de Abastecimento, na Gerência Regional, no Conselho Tutelar, dentre outros).
A gestão e a organização do trabalho na escola
Compreende-se, aqui, a organização - como a forma que o trabalho na escola é estruturado - a fim de atingir os objetivos da escola ou do sistema. Assim, a organização do trabalho escolar refere-se à forma como as atividades estão discriminadas, como os tempos estão divididos, os ritmos determinados, a distribuição das tarefas e competências, as relações de hierarquia que refletem relações de poder, entre outras características inerentes à forma como o trabalho é organizado (Oliveira, 2002).
Entretanto, essa organização do trabalho vem se estabelecendo em bases diversificadas e dinâmicas nas últimas décadas. A escola com um diretor, os professores, os trabalhadores da limpeza, cantina e, por vezes, um zelador, foi cedendo espaço a uma organização mais complexa, com um contingente diversificado de trabalhadores, como é o caso das escolas de tempo integral:
A inserção de novos sujeitos docentes na educação em tempo integral pode ser compreendida como um processo mais amplo, que tem sua gênese no Brasil nas reformas educacionais dos anos 1990. Nesse período, observa-se a inclusão de novos profissionais atuando em atividades que visam a responder às demandas trazidas pelos programas sociais assumidos pela escola e dirigidos aos mais pobres. Esse processo acarretou novas atribuições aos docentes e promoveu a reestruturação do trabalho pedagógico, repercutindo diretamente nas condições de atuação na escola (Clementino & Oliveira, 2017, p. 101).
Para a gestão da escola, as repercussões das mudanças na composição do quadro de funcionários, também se traduzem em novas demandas, intensificando o trabalho, pois além das atribuições administrativas e pedagógicas, as relações na escola se tornam mais complexas quando considerada a heterogeneidade de sujeitos envolvidos na ampliação da jornada. Umas das dimensões mais afetadas é o tempo, e apesar da carga horária de trabalho na escola ser intensificada, percebe-se que as demandas administrativas se sobrepõem em relação à dimensão pedagógica, conforme apontado pelos gestores:
O horário, não tem uma carga horária certa, tem dias que eu fico na escola 12 até 13 horas, não é sempre, mas pode acontecer, e quando tem atividade no fim de semana eu passo muito das 40 horas semanais. Nem sempre é todo o tempo na escola, tem muitas reuniões externas, que acabam tarde e eu dou uma passada na escola depois para ver se está tudo certo ou algum problema que surgiu. No pedagógico a gente fica meio afastado, antes eu sabia os nomes de quase todos os alunos e acompanhava mais essa parte da sala de aula, agora ficou mais distante, a Coordenação é que cuida mais sozinha mesmo (Diretor PEI).
A minha vida é na escola, eu abro o portão de manhã e nos dias que tem projeto social de um policial voluntário que dá aula de futebol na quadra, eu só saio daqui depois das 21:00. Fim de semana eu revezo com a vice, porque tem oficinas para a comunidade e não podemos falhar. Se for contar direitinho as horas não têm nenhuma semana que eu faço 40 horas, é sempre um pouco mais, ainda mais agora que as reuniões pedagógicas acontecem à noite ou no sábado. Do pedagógico eu tento acompanhar e estar a par de tudo que acontece com os alunos e acompanhar as professoras, mas isso é quando dá tempo (Diretora PROETI).
Na observação etnográfica, foi possível perceber que apesar do tempo aumentado de permanência, os gestores têm uma diversidade de atividades que comprometem a sua dedicação equânime ao administrativo e ao pedagógico. O diretor escolar atua em um papel contraditório, uma vez que tem que exercer a função de educador, tendo em vista os objetivos educacionais da escola, e, concomitantemente, administrar a escola nos termos das orientações do sistema de ensino, que, muitas vezes, são de natureza burocrática e confiscam longo tempo de trabalho do diretor, causando, inclusive, a resolução dos problemas cotidianos da unidade escolar, perpassando a estrutural e material, indo até a pessoal.
Diante deste cenário, a função de educador desse diretor se relega a um plano secundário. Além disso, o diretor também fica exposto a situações diversas, envolvendo os trabalhadores da escola, os discentes e seus pais, com as diferentes reivindicações de melhores condições de trabalho, de ensino e assistência pedagógica. Ainda, também fica exposto ao poder público nas diversas esferas, uma vez que, como o funcionário, tem que cumprir as orientações superiores (Paro, 2015).
Além disso, a diversidade dos sujeitos e das atividades no formato do PEI e do PROETI estabelecem uma nova divisão do trabalho na escola, trazendo para o interior da escola diferentes sujeitos, admitidos por meio de formas de contratação igualmente diversas. As atividades desenvolvidas e a formação inicial dos trabalhadores desses programas determinam as novas hierarquias, a preferência no uso dos espaços e o grau de autonomia na realização as atividades.
As professoras do regular reclamam do projeto, não todas, tem algumas que os filhos até participam, criticam o barulho, dizem que perderam o espaço da quadra, da sala de vídeo e do pátio. E falam também que os monitores não têm qualificação e não conseguem controlar as crianças. Depois que entrou a oficina de apoio pedagógico elas gostaram, porque agora elas têm alguém para o reforço e para ajudar no para casa, só que a oficina não é para isso, ela é para incentivar a leitura e fazer alguma intervenção para os meninos com alguma dificuldade. Só que as professoras deixam tarefas e tratam os monitores como ajudantes, como se eles fossem ajudantes delas e isso gera conflitos, eles reclamam (Diretora PROETI).
Aqui na escola o espaço é grande então não tem muita confusão por causa de uma professora querer usar um espaço e ele estar reservado para o Projeto, ainda mais que a escola utiliza espaços externos para as atividades da Integrada. Tem umas que reclamam do barulho, falam até que se algum dia forem diretoras vão acabar com o projeto na escola. O maior problema é que algumas tratam os “meninos” (monitores) como subalternos, chamam para ajudar nas atividades e, às vezes, até mandam para ficar no projeto algum aluno indisciplinado, o que não pode, o projeto não é para isso. Já deu mais conflito, mas hoje considero que está mais tranquilo (Diretor PEI).
É possível perceber nos relatos dos gestores e no formato dos programas de ampliação da jornada escolar, que a gestão da escola é o locus de realização de ações e de atribuições que parecem extrapolar o estabelecimento escolar e a própria função docente. As atividades desempenhadas se localizam em dimensões diversas e em natureza distintas: na administração financeira; gestão de pessoal com diferentes enquadramentos funcionais; gestão pedagógica; interlocução com órgãos da administração direta; melhoria do desempenho da escola em avaliações e na interlocução com alunos e familiares. O foco de toda ação gestora na educação é centralizada na escola, um movimento que começou a ser delineado nas reformas da década de 1990, a partir das ações de descentralização, desconcentração de transferência de responsabilidades dos órgãos centrais para a escola.
Além disso, com o propósito de modernizar e melhorar a eficiência dos sistemas educacionais e o rendimento escolar, são implementados mecanismos de avaliação externa, que atrelados às ações reformistas já descritas induzem a gestão a um processo de adesão aos planos e propostas do Governo Federal sem a devida discussão com a comunidade escolar, um processo que auxilia na compreensão da centralização das decisões na figura do gestor e do consequente acúmulo de atividades. A almejada modernização entra em cena com a adoção de um modelo gerencialista, com o resultado sobrepondo-se ao processo e à construção coletiva da gestão. O cumprimento de metas definidas externamente aproxima-se muito mais de um modelo de gestão gerencial, do que de uma gestão democrática e participativa. Nesse cenário, o envolvimento da comunidade escolar nas decisões que dizem respeito às peculiaridades locais é comprometido (Cabral Neto, Castro, & Barbalho, 2014). A partir dessa perspectiva de estruturação da política educacional e da necessidade de adequar a gestão da escola ao novo modelo, na década de 2000, observa-se a oferta de programas de formação de gestores nos três níveis de governo.
A Formação inicial e continuada para a gestão escolar
A natureza da gestão escolar e o perfil de formação inicial dos seus gestores são definidos nos marcos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, 1996), que define no Artigo 3º, inciso VIII o caráter democrático da gestão escolar (em acordo com o definido na Constituição Federal de 1988), a gestão democrática é ainda reafirmada no PNE (2014-2024), que define entre suas metas a promoção da gestão democrática da educação pública. Quanto à formação inicial dos gestores, a LDB/96 define em seu Artigo 2º do § 67 que a gestão escolar é uma função do magistério, podendo ser exercida por professores que atuam na Educação Básica e especialistas em educação.
No caso das escolas da pesquisa, as duas redes as quais elas se vinculam regulamentaram a gestão democrática em lei própria e adotam a eleição de diretor como um dos seus instrumentos. Apesar dessa premissa legal ser mantida, algumas mudanças foram ocorrendo no âmbito da gestão, sobretudo, como já mencionado, a partir da segunda metade da década de 2000, com mudanças no processo de escolha dos candidatos ao cargo de gestor, com a introdução de uma prova que certifica os candidatos (na rede Estadual) e a implementação da formação continuada.
Eu considero que a formação é necessária em todos os campos, mas uma formação escolar mais aprofundada também para gestão eu não diria que o principal seria essa formação, essa formação pode se dar no processo da gestão, eu percebo, por exemplo, colegas que não tem formação específica em gestão escolar, mas que tem um sensibilidade e um comprometimento, tem uma visão de gestor e acaba buscando essa formação complementar. O problema é que antes havia um pequeno setor que era a caixa escolar. Hoje existe uma empresa de médio porte com muito recurso financeiro e que o diretor tem que administrar, quer dizer, essa comparação deixa claro as demandas da administração financeira, hoje, que não estavam postas antes, isso duplicou o trabalho do gestor, já aconteceu de eu administrar mais de dez contas no banco. Não sobra tempo nem para a formação, eu mesmo comecei duas vezes e tive que parar, porque não é só o financeiro não, tem o resto também (Diretor PEI).
Para ser diretor ele tem que gostar de trabalhar, porque não basta ter formação, não basta ter habilitação, tem que ter vontade, né! Vontade de transformar, tem que ser uma habilitação com o trabalho. Porque a escola tem muitas demandas, agora o que mais pesa é a prestação de contas, a parte financeira, porque são muitas contas e tem que administrar separado, eu faço, mas tem mês que um contador me ajuda. Com a escola integrada, as contas aumentaram bastante porque tem o almoço, o lanche, os passeios, os funcionários, monitores, cada coisa é uma conta separada. A formação para tudo isso, a secretaria oferece todo ano e tem temas variados, mas é pela internet, e cadê o tempo? São boas, mas eu faço quando dá (Diretora PROETI).
A oferta dessas formações justifica-se na adoção pelo Estado de novas racionalidades, que estão na base das políticas educacionais e da consequente escolha dos gestores como os agentes centrais nesse processo. São eles que deverão incorporar em seu cotidiano as matrizes normativas da eficiência e da eficácia, que orientam esses novos modelos de organização e de administração do Estado e de suas políticas sociais. As pesquisas no campo da educação e, mais precisamente, da gestão escolar, apontam algumas das principais tendências que nos auxiliam na compreensão da realidade apresentada pelos gestores. Elencamos aqui duas dessas tendências, o objetivo é compreender o papel do gestor como agente principal da execução e difusão da política educacional no Estado gerencial e, também, verificar as possíveis relações desse papel com as propostas de formação de gestores.
A escola como organização e o diretor/gerente
A partir das reformas da década de 1990 e da desejada ‘modernização’ do Estado e de sua política educacional, percebe-se uma aproximação com as teorias da administração empresarial. Uma das vertentes deste pensamento buscava compreender a gestão escolar na perspectiva da Teoria das Organizações, o que consistia em desenvolver um conjunto de conceitos que permitissem descrever situações administrativas, que para serem cientificamente úteis e replicáveis para qualquer contexto, deveriam ser operacionais, isto é, o seu sentido deveria corresponder a fatos ou situações observáveis. Assim, ao estabelecer a tomada de decisão a partir de bases racionais, era possível estabelecer padrões decisórios, organizacionais e comportamentais, homogeneizando os estabelecimentos, sem levar, necessariamente, em conta, suas trajetórias, valores, características e perfil da comunidade escolar. A transposição de modelos, sem paralelo de difusão, propõe a transposição para a gestão escolar das teorias que, por um lado, pela facilidade e, por outro lado, pela sua diversidade interna, tem sido criticamente reunidas sob a designação genérica de gerencialismo, definido como a orientação para a gestão, excesso ou abuso no recurso a teorias da gestão de extração empresarial (Barroso, 2005; Lima, 2018).
Observa-se que essa teoria esteve na base dos estudos sobre eficácia escolar e da difusão de boas práticas de gestão, definindo as variáveis explicativas de uma boa escola, de uma boa gestão, determinando assim os parâmetros a ser seguidos por todas. Não são incorporadas considerações de valores, finalidades, escolhas éticas e morais, nem o saber da experiência dos praticantes. Predomina uma visão técnica e instrumental da escola, do professor e da equipe escolar, cujo trabalho seria seguir, de forma precisa, as regras e ações previamente definidas (Moehlecke, 2018).
Uma das principais características do Estado gerencial na educação é a adoção de metas quantitativas de desempenho dos alunos, da regulação por resultados e da construção de escalas universalizantes e comparáveis ao longo do tempo, tanto no contexto nacional quanto internacional, como ferramentas de apoio à gestão. Essa perspectiva orientou a criação de sistemas nacionais de avaliação na maioria dos países, que são necessários para alimentar a regulação por resultados.
O Estado gerencial traz subjacente a sua estruturação uma nova forma de justiça, a justiça escolar, pois ao estabelecer indicadores auto centrados - que desconsideram as dimensões objetivas e subjetivas que são diferenciadoras entre as escolas - elabora-se a percepção de que a melhoria da educação depende de que cada escola melhore o seu indicador, afastando o sistema desse processo e fortalecendo a centralidade e a responsabilidade dos gestores escolares (Derouet, 2009).
O planejamento estratégico e a gestão escolar
A partir da década de 2000, o planejamento estratégico passa a ser o guia da gestão escolar, percebe-se que a planificação, nesse período, ocorre com a União agindo como indutora das políticas e ações na escola, entretanto, sem deixar totalmente de lado a autonomia dos gestores, reforçando a papel central do gestor. Mas, definindo externamente modelos e métodos de ação para a melhoria dos indicadores de desempenho e responsabilizando os gestores pelo seu cumprimento. Os programas implementados pelo governo federal apontam esse caminho, como o Plano de Desenvolvimento da Escola (PDE-Escola) em 2001; o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) em 2007; o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (2007), no âmbito do PDE; o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), caracterizado como o PAC da Educação, em 2007 e o Programa mais Educação, no mesmo ano.
A maioria deles tem como mecanismo de ação o estabelecimento de acordos entre as escolas e o governo federal, revelando o desenvolvimento de uma engrenagem de responsabilização pelo controle de resultados e pela competição administrada, em que as agências públicas são submetidas a processos competitivos e à perseguição de metas predeterminadas no planejamento estratégico. No contexto educacional, em virtude da modernização da gestão pública, as políticas implantadas apresentam o modelo de planejamento estratégico como instrumento fundamental da gestão (Cabral Neto et al., 2014).
Interfaces entre a escola integrada e a formação continuada
As tensões e exigências são aumentadas no âmbito das escolas com jornada ampliada, uma vez que toda essa contratualização que os gestores assumem ao aderir aos planos e programas ocorrem em dobro, com as demandas da escola regular e da integrada sendo atendidas por um mesmo gestor. As dificuldades surgem na pesquisa como uma demanda constante de formação por parte dos gestores, que têm uma percepção de que, dada a complexidade que a função assume, sua formação não é suficiente, o que é corroborado pela maioria dos gestores da Educação Básica (Prova Brasil, 2017), que nas respostas ao questionário contextual apontaram: ter participado de alguma formação nos últimos dois anos (82%), consideraram que a formação impactou fortemente o seu trabalho (26%), gostariam de participar de mais formações (90%). Para Lück (2009), é preciso observar que uma das dificuldades da formação dos diretores de escola se constrói pela complexidade das atividades a serem exercidas, por haver diversas dimensões implicadas na gestão, o que exige múltiplos conhecimentos, habilidades e atitudes.
Os programas de formação para gestores começam a ganhar força quando definidos como uma das ações integrantes do PDE (2007). No âmbito do Ministério da Educação é então criado o Programa Nacional Escola de Gestores da Educação Básica Pública, com objetivos muito próximos do perfil de gestão que se pretende: “O Programa surgiu da necessidade de se construir processos de gestão escolar compatíveis com a proposta e a concepção da qualidade social da educação, baseada nos princípios da moderna administração pública e de modelos avançados de gerenciamento de instituições públicas de ensino” (Ministério da Educação, 2020).
No estado de Minas Gerais, o curso de formação para os gestores é ofertado desde 2001 com o objetivo de: “[...] valorização e apoio aos gestores escolares, atores fundamentais para o sucesso das políticas educacionais” (Secretaria de Educação de Minas Gerais, 2020). Da mesma forma, a Prefeitura de Belo Horizonte iniciou a oferta da formação para os gestores no ano de 2014: “[...] o curso é ofertado com o objetivo de fortalecer a gestão e capacitar os gestores para todas as dimensões do cotidiano escolar [...]” (Prefeitura de Belo Horizonte, 2017). Apresentamos na Tabela 1 uma síntese do conteúdo programático das três formações.
Um olhar para o conteúdo dos programas de formação de gestores, ofertados nos três níveis de governo, aponta para uma aproximação da formação com as características esperadas para o gestor no modelo gerencialista. As propostas atendem muita mais as demandas dos sistemas do que a necessidade das escolas. Percebe-se que as três propostas se distanciam da realidade das escolas, não havendo diferenciação entre aquelas que ofertam a jornada ampliada e as demais. Além disso, as diferentes formas de organização no que diz respeito à divisão do trabalho, que pode ser diferente entre os estabelecimentos, é tratada na perspectiva homogênea da gestão de pessoas, por fim a discussão sobre a comunidade escolar, suas relações com a escola e as perspectivas mais democráticas da gestão também não se configuram como tópicos relevantes nas formações.
Dependência Administrativa | Temáticas abordadas | Formato Pedagógico |
Rede Municipal de Belo Horizonte | Gestão de Pessoas-Coaching e Liderança Comunicação Assertiva e Feedback Conflito e Tomada de Decisão Planejamento Estratégico | Presencial |
Rede Estadual de Minas Gerais | Gestão Administrativa Gestão Financeira da Caixa Escolar Gestão de Pessoas | Distância |
Governo Federal | Escola pública e desafios atuais Planejamento e Organização da escola: Gestão democrática colegiada e qualidade da educação Gestão financeira nas instituições educacionais | Distância |
Fonte: Elaboração própria.
Considerações finais
As impressões obtidas na observação da rotina de trabalho e no desenvolvimento das demais etapas da pesquisa permitiram evidenciar a gestão nas escolas de tempo integral, como um espaço constituído de dimensões e de proposições de natureza e objetivos diversos e, por vezes, contraditórios. Na consecução do seu trabalho diário, o gestor escolar busca o cumprimento de objetivos propostos externamente por meio de metas de desempenho de estudantes, assume a planificação estratégica como ferramenta de gerenciamento e elabora a complexidade da nova divisão do trabalho, consequência da jornada ampliada, na perspectiva homogênea da gestão de pessoas.
Ao mesmo tempo, é possível perceber em suas ‘falas’, o reforço das singularidades, vulnerabilidades e necessidades específicas da comunidade na qual a escola está inserida. Observou-se, ainda, que a contradição se apresenta no reconhecimento/negação daquilo que é singular em detrimento do que é generalizante, uma contradição presente no próprio Estado gerencial, que estabelece um modelo híbrido ao buscar a equidade sem abandonar a ideia universalizante da igualdade. Formulando e implementando políticas e programas focalizados e compensatórios nos territórios vulneráveis e, por outro lado, definindo metas homogêneas e rankings de desempenho. Em ambos os casos, transfere-se para a escola e sua gestão, a responsabilidade pela melhoria da educação e pelo enfrentamento das desigualdades, difundindo uma ideia de que a melhoria da educação depende de que cada escola aumente seu indicador de desempenho e que cada gestor assuma a liderança e faça a sua parte.
Por fim, conclui-se que a homogeneização dos métodos e das metas de gestão aliados à complexidade da gestão financeira, ao tempo demando pelo gestor em reuniões e atividades externas e ao modelo formativo acabam por centralizar as decisões na figura do gestor. Afastando, assim, a comunidade dessa gestão, restando a ela, na maioria das vezes, a função burocrática de avalizar notas e documentos, distanciando a gestão dos princípios da participação e da construção coletiva, princípios fundantes da gestão democrática da educação.