Introdução
A presença da Filosofia e da Sociologia na Educação Básica brasileira corresponde à trajetória da democracia, da cidadania e dos direitos sociais. Assim, nos momentos de crise da democracia, essas disciplinas são postas à deriva. Contudo, a defesa da sua presença no Ensino Médio é permanente na sociedade brasileira; há uma constante reivindicação histórica dessas áreas por parte dos profissionais da Educação e do próprio campo científico. As flexibilizações dessas disciplinas no novo Ensino Médio (2018) foram mudanças institucionalizadas no contexto do avanço da extrema direita, sob o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). O conservadorismo, a ‘pauta dos costumes’, a ‘escola sem partido’, a defesa da família e da religião cristã são posições de diversos grupos e interesses, que identificam nas disciplinas de Filosofia e Sociologia a extensão do progressismo na escola e, portanto, defendem que elas devem ser combatidas. Para os representantes do autoritarismo brasileiro, os debates interseccionais, sobre classes sociais, gênero e raça, sobre direitos humanos, ética, democracia e cidadania, por exemplo, estariam associados, no imaginário social, às lutas sociais progressistas e do campo da esquerda, processos que teriam forjado ideologicamente as teorias presentes no currículo, nas ementas e nas práticas pedagógicas da Filosofia e Sociologia na educação básica.
Filosofia e Sociologia foram abordadas conjuntamente nas diretrizes e bases da Educação nacional (Lei nº 9.394/1996, Seção IV), e foram incorporadas ao Ensino Médio através da Lei nº 11.684/2008. Em substituição a tal diretriz, a Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) estabelece a inclusão obrigatória de ‘estudos e práticas’ de Filosofia e Sociologia, através das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Resolução nº 3, de 21 de novembro de 2018). Assim, o novo Ensino Médio reposicionou essas disciplinas, flexibilizando sua presença enquanto meros ‘estudos e práticas’ que compõem a ‘formação geral básica’ na Base Nacional Comum Curricular e fazem parte do itinerário formativo da área de conhecimento ‘Ciências Humanas e Sociais Aplicadas’, vinculadas à História e à Geografia. Com isso, não há um lugar específico para as disciplinas, a presença da Filosofia e Sociologia está distribuída nas competências e habilidades apresentadas e deve estar relacionada a outros conteúdos, principalmente dentro dos itinerários formativos.
Em termos da força de trabalho, a carga horária para professores/as de Filosofia e Sociologia é menor na Educação Básica, a incorporação de novos professores à força de trabalho da educação básica segue ritmo lento, configurando a desregulamentação e precarização desses profissionais. Em termos do campo, a forma como essas disciplinas permanecerão no novo Ensino Médio ainda está em disputa e se apresenta de forma contingente, variando conforme os estados, a disponibilidade e formação de professores/as e a forma como serão estruturados os itinerários formativos. De todo modo, há uma presença não-linear destas disciplinas, que não estão de fato garantidas em sua extensão no assim chamado novo Ensino Médio.
O currículo enquanto espaço de poder e, consequentemente, de disputas abertas dentro do campo e na relação com os outros campos (Bourdieu, 2004) impõe conflitos no processo de institucionalização na educação básica de determinados conteúdos, autores, escolas de pensamento e temas integradores. A reformulação do Ensino Médio em contexto de crise democrática e avanço da extrema direita tensionou ainda mais a problematização de temas e teorias pretensamente associados ao progressismo que poderiam estar presentes na BNCC. O questionamento ora posto se dirige ao fato de que as disciplinas de Filosofia e Sociologia não contavam com um currículo institucionalizado, limitando-se ou à decisão do docente na Educação Básica, ou aos livros didáticos utilizados como componente curricular. Para complicar ainda mais a situação, a reformulação do Ensino Médio (2018) aconteceu 10 anos após a lei de inclusão da Filosofia e Sociologia (2008), e a disputa dessas disciplinas desde 2018 enfrenta outra conjuntura política, de conflitos a respeito de teorias e políticas principalmente associadas ao gênero e à raça, de combate aos direitos humanos.
Se a síntese por uma educação pela cidadania e pela democracia figurava como princípio e destino manifesto da sociedade brasileira nos anos 2000, a relativização das Ciências Sociais e da Filosofia, na era da pós-verdade (McIntyre, 2018), imputa novos problemas nesse processo de institucionalização no Ensino Médio, previsto para 2023. Nesse contexto, os Institutos Federais e as instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica representam, em termos de educação pública, a sobrevivência das disciplinas de Filosofia e Sociologia nos cursos técnicos integrados ao ensino médio, oferta da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM). Nessas instituições, elas estão presentes no currículo, com ementas específicas de cada área e são ministradas por docentes com habilitação correlata. Assim, a permanência dessas disciplinas no Ensino Médio representa um traço de distinção na educação pública brasileira. Porém, as pressões para a adaptação dos institutos federais à nova BNCC se adensam e buscam a incorporação de itinerários formativos, diminuindo a especialização disciplinar no Ensino Médio. Os possíveis danos referentes à incorporação da BNCC pelos IFs necessitam de análise específica, o que não está proposto aqui.
Tendo em vista o cenário delineado, esse trabalho problematiza os condicionantes de permanência das disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio em contexto de crise democrática, primeiro, no que se refere aos campos da Filosofia e da Sociologia, a partir da contemporização dos principais temas e das tensões políticas para a permanência destas disciplinas na educação básica, e, em segundo lugar, visa refletir sobre a sobrevivência das duas disciplinas no ensino médio integrado da Rede Federal. O caminho aqui proposto para essa análise foi partir de um breve delineamento da ideologia Olavo-bolsonarista em torno da educação, buscando analisar os vínculos do campo político do progressismo com essas duas disciplinas na Educação Básica. Como veremos, o debate e as formulações de cada campo, da Filosofia e da Sociologia, se deslocaram entre 2008, quando ocorre a inclusão dessas disciplinas no Ensino Médio, e a reforma de 2018, transformação ainda em curso e que se apresenta até o atual cenário de crise democrática. Analisamos no segundo momento a relação entre a entrada dessas disciplinas no Ensino Médio e a transformação nos campos das Ciências Sociais1 e da Filosofia, buscando apontar reflexões sobre a institucionalização destas disciplinas na educação básica nesse período. Identificamos o questionamento dos cânones admitidos por essas disciplinas, os objetivos políticos formulados e os currículos ainda em adaptação. No terceiro momento, sugerimos algumas observações sobre a sobrevivência da Filosofia e Sociologia na Rede Federal, posicionando essas disciplinas a partir da leitura de cenário de crise democrática aqui realizada. O que interessa é apresentar elementos que reforçam a presença da Filosofia e da Sociologia na Rede Federal em contexto político adverso, e que sinalizam um traço de distinção na educação pública de nível médio.
A ascensão do autoritarismo e o discurso Olavo-bolsonarista em torno da educação
A ascensão de governos e ideologias autoritárias observada nos últimos anos talvez já possa ser contemplada como um dos maiores e mais tenebrosos legados do neoliberalismo. É certo que os contornos dessa ascensão diferem ao redor do mundo e precisam ser compreendidos em compasso com arranjos sociais, geográficos e históricos específicos. Porém, há também aspectos genéricos que vêm sendo apontados por diferentes pensadores. De modo geral, observamos um processo desigual e combinado, que, ao menos especificamente no caso brasileiro, esteve amplamente repousado em uma guerra cultural (Cesarino, 2019; Rocha, 2021) que teve na educação um de seus eixos centrais.
Antes de apresentar argumentos mais específicos dessa constelação, vale lembrar alguns aspectos mais genéricos das novas soluções autoritárias e algumas de suas especificidades. Desse ponto de vista mais amplo, como uma das hipóteses mais recorrentes para explicar o fenômeno aparecem as tendências do capitalismo neoliberal pós-2008, que contribuíram para romper com aquilo que Nancy Fraser (2017) chama de neoliberalismo progressista. A aliança entre economia neoliberal e algumas políticas parciais de reconhecimento desatreladas da redistribuição teriam associado ‘ideais truncados de emancipação e formas letais de financeirização’, mas esse modelo acabou sendo rejeitado por eleitores de Donald Trump nos Estados Unidos, por exemplo, em prol de um neoliberalismo autoritário. Wendy Brown (2019) também vislumbra uma nova forma de neoliberalismo associada à expansão de ideais de extrema direita e denomina de neoliberalismo Frankstein a nova e radical associação entre exploração do capital e negação do social e da coletividade.
Um dos aspectos que mais intrigam analistas é o fato de que as soluções autoritárias contemporâneas não se baseiem na tomada violenta do poder nem em ditaduras ostensivas, como ocorreu no período da Guerra Fria, mas no voto e na consequente subversão das instituições democráticas por líderes eleitos, de forma gradual, sutil e mesmo legal (Levitsky & Ziblatt, 2018). Essa deterioração da democracia ancorada nas eleições tem como um de seus esteios a constituição de uma subjetividade neoliberal. Wolfgang Streeck (2019) argumenta que o neoliberalismo posto em marcha a partir dos anos 1970 trouxe consigo a noção de governança global, acordos de livre comércio, privatizações, flexibilização do mercado de trabalho, redução de custos e declínio dos sindicatos e dos partidos políticos. Com a diminuição da necessidade de força de trabalho humana, as promessas de prosperidade para todos foram descumpridas e inaugurou-se o que Streeck chama de política pós-factual. Ela seria marcada por mentiras criadas por especialistas para dar conta da frustração dos cidadãos. Entretanto, afirma Streeck, os perdedores da globalização crescentemente foram ocupando as redes sociais, ao mesmo tempo em que voltaram a ir às urnas para expressar seu descontentamento. Líderes autoritários souberam canalizar esse descontentamento que germinou em democracias neutralizadas pelo capital.
Nesse passo, vale interpelarmos melhor as relações entre esses fenômenos e a educação, tendo como referencial o caso brasileiro. Nos últimos anos, esses movimentos autoritários formados pelas hordas de cidadãos frustrados com as promessas não cumpridas da prosperidade neoliberal, porém incapazes de reconhecer seu inimigo na ordem econômica, passaram a conceber inimigos contra os quais se posicionar. Se nos países centrais o inimigo aparece constantemente personalizado na figura do imigrante, em países como o Brasil ele tomou outros contornos, delineados especialmente a partir da concepção de ‘marxismo cultural’. De acordo com essa perspectiva, após a redemocratização, a esquerda teria deixado de pregar ideias estritamente comunistas ligadas ao movimento de trabalhadores e passado a disseminar ideias sobre família, moral sexual, bases do direito penal e civil etc. Paulatinamente, ela teria ocupado setores como a imprensa, o poder judiciário e a universidade. O autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, por exemplo, define o marxismo cultural como a ‘destruição da civilização’. Por meio dessa forma de atuação, a ideologia de gênero, o ‘abortismo’ (como ele se refere às lutas pela legalização do aborto), o ‘gayzismo’ (como chama atuações ligadas ao movimento lgbtqiapn+) teriam adquirido centralidade.
Alguns autores defendem que o conceito de ‘marxismo cultural’ teria inicialmente sido disseminado pela alt-right estado-unidense a partir dos anos 90 (Mirrless, 2018). Outros dirão que, desde os anos 1920, pensadores brasileiros de direita teriam antecipado, de forma autônoma e original, ‘diagnósticos sociais e estratégias de resposta de direita’, incluindo a ‘defesa da família’ e da ‘moralidade’ para combater o ‘marxismo cultural’ por meio de uma ‘guerra cultural’ inversa (Wink, 2021).
O certo é que o eixo da educação é considerado como central para esses movimentos e disciplinas como a Filosofia e Sociologia aparecem como alvos cruciais a serem combatidos. É nesse sentido que Olavo de Carvalho, provavelmente o maior ideólogo do bolsonarismo, mencionava uma ‘brutal politização marxista das escolas’, um controle eficaz do ‘sistema de ensino’ pela esquerda, uma ‘estupidificação geral da meninada’ via “[...] hegemonia das doutrinas ‘construtivistas’ de Jean Piaget, Emilia Ferrero, Paulo Freire e tutti quanti” (Carvalho, 2016, p. 77).
É como se a educação incorporasse todas as pautas execradas pelos movimentos regressivos da extrema direita brasileira contemporânea. Assim, pautas ligadas à emancipação das mulheres, aos movimentos lgbtqiapn+, à valorização da diversidade racial e cultural, ao combate às desigualdades e diferenças etc. são estigmatizadas como corruptoras dos valores das famílias, do cristianismo, da meritocracia etc. Nesse sentido, há afirmações como “[...] não se espante quando seu filho voltar da escola seguro de que o teorema de Pitágoras é uma imposição cultural arbitrária, de que Jesus Cristo era gay ou de que existem campos de concentração em Israel. Afinal, a realidade é pura construção” (Carvalho, 2016, p. 77). Movimentos como ‘Escola sem partido’ e de defesa do Homeschooling também estão associados a essa forma de encarar o sistema educacional como uma instituição cooptada pela esquerda.
Vale ter em mente que as ameaças às disciplinas Filosofia e Sociologia foram concebidas durante o governo Bolsonaro sob diretrizes autoritárias dessa ordem. Mas por que essas disciplinas assombram tanto a extrema direita? Ao recuperarmos suas trajetórias específicas de inserção no Ensino Médio, é possível compreender que a ideologia autoritária contemporânea as toma como bode expiatório justamente porque elas estão bastante atreladas a perspectivas de educação marcadamente democráticas, ainda que seu curso de inserção no currículo nacional ainda estivesse em debate antes da aprovação da Reforma do Ensino Médio.
As Ciências Sociais e as novas emergências para a Educação
As Ciências Sociais nasceram no século XIX como uma tentativa de compreender e controlar uma realidade social cada vez mais complexa, que tinha mudado de forma dramática nos últimos séculos, como consequência de transformações na tecnologia, nas formas de produção econômica e nas relações sociais. Foi num momento em que as forças sociais se revelaram abertamente gerando novas configurações de vida, novas instituições e formas de participação política, originalidades e impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista que a Sociologia, especificamente, se consolidou como uma espécie peculiar de pensar o mundo moderno. Tal situação passou a desafiar o pensamento de uma nova forma, a partir de sugestões epistemológicas apresentadas por diversos pensadores (Ianni, 1989).
Se os temas que sobressaem nos clássicos são capitalismo, religião, classes sociais, individualização, burocracia, entre outros, a importância desses autores se dá por serem responsáveis por simbolizar, condensar e representar uma série de compromissos diferentes, por oferecerem uma contribuição singular e permanente à ciência da sociedade. No entanto, a teoria sociológica contemporânea aponta para a multiplicidade de temas, problemas e objetos que emergem a partir de um acúmulo teórico que está em consonância com as reivindicações e tensões promovidas pelas exigências de novas configurações e demandas presentes na sociedade.
No mesmo sentido, João Marcelo Maia (2011) aponta que a teoria, um conjunto de enunciados sistemáticos e gerais supostamente universalizável, dotado de alto grau de abstração, que busca responder a questões básicas que motivam o conhecimento sobre a sociedade, não é composta por um grande paradigma teórico compartilhado pela comunidade científica, sim de uma pluralidade deles. O chão sobre o qual se ergue a discussão teórica contemporânea justifica o exercício de releitura e interpretação desses trabalhos. O projeto de autonomia intelectual não se orienta para a produção de teorias nacionais ou indígenas, na compreensão do autor, mas sim para a investigação de tradições alternativas ao discurso hegemônico que possam ser incorporadas ao repertório compartilhado da Sociologia como uma ciência ‘verdadeiramente global’.
As últimas décadas estão marcadas por uma grande preocupação em repensar os pressupostos teóricos e metodológicos sobre os quais se assenta a compreensão científica do mundo, a partir da perspectiva sociológica. Como se tem evidenciado cada vez mais, a teoria social carrega a marca de um viés eurocêntrico e androcêntrico, conforme Alatas e Sinha (2017), daí a necessidade de questionar sua pretensa universalidade e objetividade. As reações a essa crise contemporânea são as mais variadas, no entanto, um elemento parece ser compartilhado por todas elas, a expansão do cânone. Deste modo, refletir sobre a articulação entre o plano macrofundante das Ciências Sociais e a sua tradução para o plano emergente de novas ordens e estruturas sociais é fundamental para pensar qual a relação entre os clássicos da disciplina com realidades para além do contexto europeu.
Muito influenciado por esta perspectiva que buscou expandir o cânone, não substituir ou desprezar, Celso Castro (2022) organizou a coletânea intitulada ‘Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais’. O livro é composto por 16 capítulos, e tem como objetivo central ampliar a visão sobre a sociologia canônica, exclusivamente hegemônica, de tradição europeia ou norte-americana. O investigador ressalta que os autores e as autoras mencionados na obra deveriam também integrar a galeria de autores que comumente encaramos como clássicos. Castro aponta que no Brasil esta discussão ainda é nova, apesar do debate sobre racismo, feminismo e das teorias do sul terem ingressado nas agendas de pesquisa das Ciências Sociais.
Dentre os autores e autoras que ganharam centralidade na coletânea, mencionamos a inglesa Harriet Martineau, o haitiano Anténor Firmin, a indiana Pandita Ramabai, o norte americano W.E.B. Du Bois, a alemã Marianne Weber e o mexicano Manuel Gamio. Dentre os temas debatidos por estes intelectuais temos: moral e costumes, problematização da hierarquia racial pautada em teorias biológicas, a opressão da mulher hindu e a construção social da infância, a sociologia urbana, autoridade e autonomia no casamento, preconceitos que recaem sobre os indígenas, ou seja, temáticas que segundo o organizador da coletânea servem para ampliar e colorir as Ciências Sociais, além de serem contribuições fornecidas no mesmo contexto que os autores considerados clássicos, como Auguste Comte, Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, que produziram suas teorias até hoje encaradas como únicas.
Raewyn Connell (2012) comenta em seu texto ‘O Império e a criação de uma Ciência Social’ que nós temos fortes razões para duvidar do retrato convencional da criação da Sociologia. Para tanto, precisamos analisar a história da disciplina como um produto coletivo, as preocupações compartilhadas, suposições e práticas que construíram a disciplina em vários períodos, bem como o formato dado para a sua consolidação como ciência.
Observamos que esse debate sobre a necessária renovação das Ciências Sociais e humanas como um todo ganha cada vez mais força e vitalidade a partir de um movimento transnacional em direção a um consenso de que os pressupostos epistêmicos de uma teoria e seu desencadeamento pedagógico devem se atentar às políticas identitárias diversas. Essas expressões sugerem pensarmos sobre a necessidade de alterações da ordem institucional dos espaços reprodutores das hierarquias, principalmente a escola e a universidade.
No caso brasileiro, nas últimas três décadas tivemos avanços importantes na criação de políticas públicas educacionais que colocaram em foco a hierarquia racial, como a Lei n. 12.711/2012 que criou a política de reserva de vagas para alunos de escola pública, pretos, pardos e indígenas em todo o sistema de educação superior e ensino médio federal, e a Lei n. 11.645/2008 que determina a inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos da Educação Básica. Além disso, a sexualidade também passou a ser discutida no ambiente escolar a partir da década de 1990, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que propunha que o tema fosse trabalhado transversalmente, perpassando todas as disciplinas, em consonância com uma visão ampla de sexualidade, incluindo seu caráter cultural, social e histórico (Brasil, 1998).
Nesse sentido, observa-se o potencial heurístico em torno dos estudos sobre a necessidade de inserção de novos temas na educação básica a partir da Sociologia, no que se refere à articulação entre demandas sociais de populações tradicionalmente excluídas dos currículos. A partir de políticas sociais conquistadas nas últimas décadas, esses estudos impulsionaram a formação de alunos e pesquisadores que trouxeram esses olhares para o espaço educacional, que passou a se fundamentar para além dos textos canônicos, considerando também autores descoloniais, pós-coloniais, subalternos, afrocentrados, feministas e queers.
Trata-se de um contexto bastante propício de atuação profissional na educação básica, principalmente pela intersecção entre novas formas de aprender, a partir da incorporação de temas emergentes da agenda contemporânea, e de ensinar Sociologia para uma geração de alunos que realizam tensionamentos resistentes às lógicas hegemônicas de agência na sociedade.
Desse modo, a Sociologia é uma ciência que possui a especificidade de trazer questionamentos o tempo todo, ao redimensionar princípios explicativos e teorias, produzindo novas interpretações, reincorporando polêmicas e debates metodológicos:
Ocorre que a Sociologia pode tanto decantar a tessitura e a dinâmica da realidade social como participar da constituição dessa tessitura e dinâmica. Na medida em que o conhecimento sociológico se produz, logo entra na trama das relações sociais, no jogo das forças que organizam e movem, tensionam e rompem a tessitura e a dinâmica da realidade social (Ianni, 1997, p. 25).
Por tematizar a realidade social em movimento, poderíamos trazer para a nossa análise o seguinte questionamento: diante da predominância de questões atreladas às ditas pautas de costumes, que giram em torno de debates até então discutidos nos diversos contextos educacionais como relevantes, resultados das transformações sociais, geracionais, como mobilizar a Sociologia como disciplina, sem desprezar sua natureza científica, já que o ato de ensinar implica a transmissão do conhecimento científico e cultural sistematizado. Estaríamos perdendo espaço no currículo porque estamos polemizando o ensino, ou porque estaríamos nos aproximando demasiadamente de uma prática de ensino pautada unicamente pelas demandas trazidas por novos atores emergentes?
Essa situação nos coloca diante de uma temática a ser enfrentada por nós professores da área das ciências humanas na contemporaneidade, que possui relação orgânica entre educação, conjuntura e o ensino: como desafiar as mais diversas formas de manifestações conservadoras e retrógradas em meio a tantas conquistas importantes advindas do campo educacional nas duas últimas décadas?
Conforme Iliezi Silva (2010), as relações entre os dois campos do conhecimento - o da ciência e o da educação - e as relações entre as áreas e os sistemas científicos e educacionais também são elementos importantes quando pensamos sobre a constituição do ensino de qualquer disciplina no interior dos currículos.
As discussões sobre o ensino da disciplina de Sociologia no Brasil já possuem certa tradição, que, conforme Moraes (2003), foi iniciada por Fernandes, em 1954, durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Sociologia. Naquele momento, Fernandes colocou a questão da presença do ensino da disciplina nos cursos secundários como um dos temas de maior responsabilidade dos sociólogos. Essa demanda, suscitada nos anos de 1950, permanece até o presente momento inconclusa. Atualmente, presenciamos a retomada do questionamento sobre a presença/ausência da disciplina no contexto de reforma do Ensino Médio, que propõe que o novo currículo seja norteado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Estamos diante de um retorno desse debate iniciado no século passado, mas a contemporaneidade nos coloca diante de desafios que até o momento pareciam ser consensuais. Como apontam Pochmann e Ferreira (2016), na educação a igualdade não deve ser concebida como um princípio abstrato, mas como uma crítica às desigualdades. Uma vez que:
As diferenças sociais não devem ser ligadas nem à nascença, nem à fortuna dos pais, nem aos hábitos culturais, nem à religião, nem ao sexo, nem à cor da pele etc. Todas as discriminações devem ser combatidas. A igualdade de direitos deve garantir o poder da escolha para cada cidadão. Por sua vez, a justiça é aquela alicerçada na contribuição das pessoas ao bem comum (Pochmann & Ferreira, 2016, p. 1245).
Se o princípio da igualdade aqui descrito pelos autores estava bastante consolidado na mentalidade coletiva, o que enfrentamos nos últimos anos é justamente uma conjuntura que solapou concepções que há anos vinham sendo discutidas e aventadas para a consolidação de uma sociedade democrática.
Cumpre destacar que essa pauta de discussão sobre cidadania, democracia e igualdade vem sendo ressaltada de modo intenso por diversos setores da sociedade, dentre eles os principais agentes envolvidos são os estudantes. Entre 2015 e 2016 tivemos uma série de ocupações das escolas de estudantes secundaristas, nas quais ficaram publicizadas as tensões entre escola e segmentos estudantis de diversos pontos do país. Os estudantes se apoderaram da escola num amplo sentido, fenômeno que deve ser lido como resultado de um espaço político mais amplo e também como efeito das manifestações de rua ocorridas em 2013.
As ocupações trouxeram materialidade às críticas e frustrações que vêm sendo documentadas pela literatura a respeito da relação dos jovens com a escola. A pouca resposta das políticas educacionais aos anseios juvenis - e a presença crescente desse público nas escolas - deve ter colaborado para a eclosão do conflito. As imagens oferecidas pelos jovens nas ocupações - atuando, discursando, cozinhando e limpando - contrastam com as imagens tradicionais de estudantes calados e enfileirados nas salas de aula (Corti, Corrochano, & Silva, 2016, p. 1171).
As ocupações estudantis organizadas coletivamente interrogaram as políticas educacionais a partir de novas estratégias e linguagem. Poderiam ser vistos como novíssimos movimentos sociais (Gohn, 2016), por estarem marcados por um ideário organizacional mais horizontalizado, a partir de um novo repertório de ação e uso sistemático das redes sociais. Os estudantes apontaram a necessidade de discussão sobre a gestão democrática, exigindo a participação a partir dos Grêmios e Conselhos Escolares, entendidas como instâncias fundamentais para a vida democrática nas escolas. Tema que emerge justamente a partir das tensões que surgem da estrutura das organizações escolares, a fim de torná-las mais abertas e sensíveis a outros conhecimentos e demandas educacionais.
As ciências humanas produzidas no século 21, como um todo, insurgem como instâncias legítimas capazes de potencializar a divulgação e rotinização de temas emergentes entre os diversos setores da sociedade, principalmente impulsionados pelas pautas de estudantes secundaristas. Podemos mencionar como exemplo emblemático da alteração das formas de conhecimento, organização escolar, os últimos vestibulares e o próprio Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que vêm cada vez mais trazendo pautas ligadas às questões de gênero, sexualidade, racismo, dentre outros.
Esse exercício sugere um fato aparentemente óbvio, mas nem sempre considerado em nossos meios acadêmicos: o envolvimento das pessoas com o pensamento sociológico representa uma oportunidade de romper com o isolamento e a burocratização dos discursos especializados. O debate sobre as dimensões públicas do ensino, portanto, não se limita a difundir os conhecimentos sociológicos numa linguagem clara e acessível aos estudantes. Refere-se, sobretudo, ao movimento de abertura para outras maneiras de produzir conhecimentos nas ciências sociais - com engajamentos e responsabilidades diferentes daquelas tradicionalmente esperadas nos meios universitários (Carniel & Bueno, 2018, p. 682).
Significa apontar que a Sociologia se estruturou enquanto um campo disciplinar que contribui com a possibilidade de circulação dos conhecimentos acadêmicos para além da universidade. Podemos mencionar, por exemplo, os nomes de autoras como Lélia González, sendo tema de questões envolvendo a interseccionalidade entre raça, gênero e classe social no Brasil. Carolina Maria de Jesus e as letras dos Racionais MC’s presentes na lista de vestibulares como o da Universidade Estadual de Campinas, por exemplo.
Atualmente observamos que apesar das conquistas diversas mencionadas aqui nos deparamos com reações contrárias, as quais podem ser notadas a partir de movimentos como por exemplo Escola sem Partido, responsáveis por inserirem projetos curriculares antagônicos. O fracionamento dos conteúdos da Sociologia no itinerário formativo das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas no novo Ensino Médio, fatores sobre o Ensino de Sociologia que ainda necessitam ser pesquisados, na mensuração da efetiva presença nesses itinerários, mas que previamente já indicam o isolamento dessa área na formação de nível médio, assim como da Filosofia. A sociologia contemporânea que se reposiciona diante dos cânones, e se abre à multiplicidades de autores e temas, com vinculações muito mais orgânicas à realidade social e à ordem vigente, periférica, subalterna, ao mesmo tempo que acentua a relevância de temas interseccionais, raciais, de gênero, sobre as desigualdades sociais, o trabalho, a cultura, a ação política, os movimentos sociais, que são alguns dos temas constitutivos da área, sofrem as consequências exatamente por serem estas as suas reflexões. Se o vigor da Sociologia, assim como das Ciências Sociais, está em proporcionar um diálogo transversal, formulando questões sobre a realidade social que são fundamentais para diversas áreas do conhecimento, essa disciplina e os seus conteúdos, diante do avanço autoritário, são fragilizados na educação básica, podendo estar sombreada ou mesmo desaparecer no novo Ensino Médio.
Inclusão e deserção da Filosofia no Ensino Médio
Quando das tentativas de inclusão da Filosofia e da Sociologia como componentes curriculares obrigatórios no Ensino Médio, a partir de 2006, reforçou-se o papel da Filosofia e da Sociologia como áreas do conhecimento necessárias ao ‘exercício da cidadania’, tal qual expresso no artigo 36, § 1º, inciso III, da lei de diretrizes e bases da educação (Lei nº 9.394/96, 1996), garantindo a esses componentes a qualidade de ‘disciplina’, ou seja, um lugar próprio e autônomo no currículo básico.
À época, o Parecer nº 38/2006 CNE/CEB (Conselho Nacional de Educação, 2006), no qual o MEC se manifestava favorável à inclusão dessas disciplinas no âmbito do Ensino Médio, argumentava que a Filosofia enquanto disciplina obrigatória presente em todo o itinerário possibilitaria ao estudante ‘o exercício da cidadania’ e o ‘pensamento crítico’. Mais tarde, em 2008, o Legislativo ratificaria o posicionamento do Executivo, manifestando-se a favor dessa inclusão com base na publicação da Lei nº 11.684/2008.
Além desses argumentos, reivindica-se a presença da Filosofia como disciplina responsável por fomentar o diálogo interdisciplinar entre as componentes já presentes no currículo básico, bem como o diálogo desses componentes com a realidade dos estudantes. A Filosofia se tornava, assim, como argumenta Silvio Gallo (2006), responsável pelo desenvolvimento do pensamento crítico, pelo diálogo interdisciplinar e pelo preparo para o exercício da cidadania.
Contudo, apesar de nobre a funcionalidade que se atribuía ao pensamento filosófico, verifica-se que o problema político quando da inserção da Filosofia na educação básica residia justamente na atribuição de ‘funções’ à disciplina, instrumentalizando-a ao processo educacional e justificando-a por sua suposta utilidade. Com um olhar mais atento, verifica-se que as atribuições conferidas à Filosofia (criticidade e interdisciplinaridade) deveriam - ou ao menos poderiam - estar presentes em todas as outras disciplinas do currículo básico.
Esta postura em definir a filosofia como responsável pelo pensamento crítico e questionador limita as possibilidades de se conceber a Filosofia a partir de diferentes modos. Dentre os principais modos de conceber a Filosofia, destaca-se as concepções dela como sistema de pensamento (pensamento sistemático e elaborado de modo a diferenciar e relacionar diferentes áreas da Filosofia), como visão de mundo (que permite um modo global de compreender a realidade desde uma perspectiva pré-definida), autoconhecimento (que possibilita um processo de autorreflexão, do voltar-se para si) e como sabedoria de vida (que valoriza as experiências da trajetória de cada um para direcionar suas condutas), tais como apresentados por Franco e Marcondes (2011). Tais posturas, contudo, são encobertas pela postura enviesada e pouco producentes de se conceber a área, pois retira-lhe suas qualidades históricas, epistemológicas e metodológicas próprias.
Não bastasse, ao atribuir tamanha responsabilidade como sendo eminentemente da Filosofia, atribuição que deveria perpassar os demais componentes curriculares, os mesmos argumentos que levavam à obrigatoriedade da Filosofia na educação básica facilmente se converteriam no fracasso e na incompetência da disciplina, tendo em vista que ela não conseguiria desenvolver ‘uma função’ que não é exclusivamente de sua competência. Foi assim que a “[...] defesa de sua importância pode facilmente converter-se em justificativa de sua incompetência, validando sua retirada definitiva do espaço escolar” (Gallo, 2006, p. 21).
Por sua suposta utilidade ou funcionalidade, passava-se a reafirmar no imaginário social a Filosofia como a disciplina responsável pelo desenvolvimento de sujeitos críticos e conscientes de sua realidade. Considerando a realidade subalterna em que sobrevive a maioria dos estudantes das escolas públicas no país, a disciplina passava a ser vista como uma via pela qual tais estudantes tomariam consciência de suas condições de vida e se rebelariam contra as formas de dominação às quais estão submetidos.
Essa caricatura do pensamento filosófico se torna mais evidente quando contraposta à educação profissional. A implementação desta, quase sempre, decorre da retirada da educação filosófica. Pautada em uma perspectiva tecnicista de base pragmática, a educação profissional no Brasil se institucionalizou para atender demandas do capitalismo (Araujo & Rodrigues, 2010), reforçando uma contraposição ou uma aproximação contraditória entre educação e trabalho que persiste até os dias atuais (Saviani, 2007).
Em outros termos, ao concentrar esforços para a conformação de sujeitos às demandas do mercado com a oferta de cursos rápidos e práticos, historicamente a educação profissional brasileira não conseguiu conjugar a formação omnilateral e integral dos estudantes com a educação profissional, implementando projetos educacionais excludentes entre si: de um lado, propunha-se uma formação prática e técnica, de outro, reivindicava-se uma formação teórica e humanista. É nesse viés que o dualismo educacional se perpetua nas estruturas e práticas educacionais (Moura, 2007).
Vinculada à formação teórica e humanista, a concepção de educação filosófica se tornaria inconjugável com a educação profissional de cunho prático e técnico. Nesse sentido, compreende-se em certa medida os esforços políticos que os governos neoliberais produziram para exclusão da disciplina de Filosofia do Ensino Médio concomitante aos esforços de implementação da educação profissional. A utilidade da Filosofia não se conjugaria com as demandas do mercado.
A inutilidade do pensamento filosófico diante das políticas neoliberais força sua deserção dos currículos educacionais. Cria-se um duplo esforço para exclusão da Filosofia da educação básica, de um lado, com a ascensão de governos autoritários e de pautas conservadoras, com a consequente crise democrática, ao mesmo tempo que se argumenta sobre a ineficácia dessa disciplina na produção de cidadãos críticos para o exercício da democracia. Por consequência, justamente a tomada do poder por governos alinhados a pautas neoliberais argumenta a sua inutilidade para formação de profissionais capazes de satisfazer as demandas do mercado.
Em contraposição a esse movimento de oposição entre Filosofia e formação profissional, de forma concomitante à obrigatoriedade da Filosofia no Ensino Médio, ocorreu no país a reestruturação da Rede Federal de Educação Profissional, pela qual foram criados os Institutos Federais de Ensino (IF’s) - Lei nº 11.892/2008). A ocorrência desse duplo movimento na Educação Básica forjou uma reaproximação entre educação profissional e educação filosófica que, como se verá adiante, vem, desde então, se propondo a uma formação profissional omnilateral ou integral. Conforme definido por Ciavatta (2005, p. 2): “A formação integrada sugere tornar íntegro, inteiro, o ser humano dividido pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar”.
Considerando ser a formação integral imprescindível para a formação profissional, Ciavatta (2005) propõe que a educação precisa se apoiar em três dimensões: o trabalho, a ciência e a cultura. Nesta última, estaria a possibilidade da experiência do pensamento filosófico, visto não precisar responder a demandas ou funções estruturais ou institucionais. Na dimensão cultural estariam os processos de reprodução da vida (e não apenas os processos de reprodução da produção). Ao se vincular à dimensão cultural, a Filosofia ampliaria as possibilidades de reflexão sobre as trajetórias individuais e coletivas, sobre os sentidos da vida e das atividades humanas. Possibilitaria, assim, ressignificar e dar sentido às ações cotidianas que fazemos por intermédio do trabalho e explicamos por meio da ciência.
Diante disso, e retomando os movimentos de deserção da Filosofia dos currículos do Ensino Médio, a alegada inutilidade do pensamento filosófico poderia se converter em movimento de defesa da permanência da Filosofia nos currículos de Ensino Médio, seja na educação profissional seja no ensino regular. Reconhecer que a Filosofia é insuficiente - ao menos sozinha - para formação do pensamento crítico ou para o exercício da cidadania é, por outro viés, reconhecer que “[...] a filosofia resiste a ser tutelada, a ser instrumentalizada. Pelo menos desde Aristóteles, a filosofia se caracteriza como um fim em si mesma. Instrumentalizá-la numa política educacional pode significar, pois, sua própria morte” (Gallo, 2006, p. 21).
Seria a possibilidade de converter o ‘fracasso da filosofia’ em potência para sua permanência na educação básica, seria a oportunidade de retomar a filosofia como experiência de pensamento. A experiência de pensamento vinculada à produção de conceitos, que se distingue da ciência e das artes, configuraria a especificidade da educação filosófica. No intuito de reequilibrar o currículo excessivamente científico da educação básica é que se justificaria a permanência da Filosofia nesse nível de ensino (Gallo, 2006).
A permanência da Filosofia na educação básica como possibilidade de exercitar o pensamento criativo por conceitos - ao lado de disciplinas como a Arte e a Sociologia - a recolocaria em seu lugar próprio, sem necessidade de lhe atribuir funções ou metas, sendo justificada por si, em sua especificidade que se distingue de todas as demais. Por fim, conforme argumenta Silvio Gallo (2006), ao reconhecer que o pensamento filosófico possui um fim em si mesmo, a Filosofia no Ensino Médio talvez seria uma das únicas oportunidades de milhares de estudantes, que não acessam o ensino superior ou que quando acessam se profissionalizam em áreas distintas, de ter contato com essa experiência de pensamento.
Sobrevivência da Filosofia e Sociologia no ensino médio integrado
As disciplinas de Filosofia e Sociologia sobrevivem nas instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Rede Federal EPCT)2 enquanto disciplinas obrigatórias do núcleo comum, presentes nos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio. Trata-se das únicas instituições públicas em nível de Ensino Médio a ofertarem regularmente essas disciplinas, e o mesmo se passa com a disciplina de Artes, que possui trajetória similar. A caracterização desta sobrevivência, que se deve à autonomia da Rede Federal, de não adequação às determinações da BNCC, é um traço de distinção da Educação Profissional e Tecnológica (EPT), e são elementos que ainda não foram analisados suficientemente pela literatura, que não identificou os elementos políticos e sociais que respaldam a permanência destas disciplinas. Mediante o processo de reformulação do Ensino Médio, a permanência foi motivada indiretamente pelo próprio campo científico e dos profissionais, como também pelas forças exteriores a essas áreas, diante da impossibilidade do Governo Federal de fazer vigorar a BNCC sobre a Rede Federal. Se observado especificamente a pesquisa nas áreas de Filosofia e Sociologia na EPT, diante do cenário dessas transformações do Ensino Médio, em contexto histórico aqui descrito, de personificação de um inimigo ideológico dessas disciplinas, identificamos que as pesquisas são praticamente inexistentes, com amplo campo de investigação em aberto.
O debate sobre a importância da Sociologia na educação básica está presente em diversos países, conforme aponta Oliveira (2021), e é impulsionado pelas associações de área na defesa do ensino dessa disciplina. Porém, se observadas as pesquisas da área realizadas sobre o ensino, Oliveira (2021, p. 7) constata que não representam “[...] um tema central na agenda de pesquisa desta ciência [...]”, constatação que pode ser ampliada para a área de Filosofia. Do mesmo modo, a extensão das mudanças da BNCC sobre a Rede Federal, os conflitos políticos, as disputas em torno do currículo, assim como a sobrevivência da Filosofia e da Sociologia no Ensino Médio na EPT são perguntas ainda por serem feitas. Pesquisadores se voltaram para a análise dessas disciplinas na EPT, a partir de perguntas como ‘para que serve Sociologia?’ (ou Filosofia) na EPT (Oliveira, 2010), momento que pensaram a inclusão dessas disciplinas como obrigatórias na Rede Federal, a partir de uma proposta de educação unitária e politécnica, e que estabeleceu determinado prestígio para elas nos cursos técnicos integrados ao ensino médio, a tal ponto de permanecerem nesses currículos. Essa Tal presença, que está marcada por uma carga horária muito superior em relação às experiências dos itinerários formativos da Educação Básica, a partir do novo ensino médio, na forma como se apresentam na maioria dos estados brasileiros.
Partindo das análises aqui realizadas, primeiro, da dimensão política, a respeito do avanço da extrema direita e de contemporização da educação a partir da ‘guerra cultural’, e, segundo, na dimensão dos conflitos presentes na institucionalização da Filosofia e da Sociologia no Ensino Médio, enquanto disciplinas que são postas como salvaguarda da formação cidadã e para a democracia, desde a inclusão obrigatória a partir de 2008, lançamos algumas questões para a identificação do que provoca essa permanência na Rede Federal, em qual contexto e como são estabelecidas mediações com o campo.
A autonomia da Rede Federal, cujos objetivos e finalidade estão determinados pela sua lei de criação (Lei nº 11.892/2008), segundo Heeren e Silva (2019), fez com que a reforma do novo ensino médio não atingisse essas instituições de ensino, já que a lei de reforma do ensino médio (Lei nº 13.415/2017) e as alterações produzidas na LDB não fazem referência à Educação Profissional Técnica de Nível Médio na modalidade integrada. A reforma do ensino médio provocou mudanças fundamentais na Educação Profissional e Tecnológica para além da Rede Federal, conforme aponta Pelissari (2021), com a inclusão do itinerário formativo ‘Formação Técnica e Profissional’, abrindo a possibilidade de habilitação em alguma profissão a partir do novo Ensino Médio. Essa mudança está associada às novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica (Resolução CNE/CP nº 1, de 5 de janeiro de 2021, Conselho Nacional de Educação, 2021), que criou a oferta ‘concomitante’ e ‘concomitante intercomplementar’, permitindo a oferta de EPT em nível médio por diferentes instituições, podendo estas instituições realizarem a oferta simultânea, ‘integrada no conteúdo’, ou não, com matrículas e itinerários independentes. A nova BNCC, a criação do itinerário formativo associado à EPT e a respectiva flexibilização na oferta profissionalizante em nível médio foram mudanças operadas em contexto de crise de legitimidade das Ciências Humanas, e que estão associadas aos movimentos políticos de guerra cultural e de batalhas ideológicas, fatores que impactam decisivamente nos processos de difusão do conhecimento dessas áreas, e aumentam as tensões em torno da organização didática e curricular dessas. Apontamos que a realidade das disciplinas de Filosofia e Sociologia na EPTNM da Rede Federal, em sua modalidade integrada, constitui um contrassenso com a realidade da educação básica e representa uma diferença muito significativa em comparação com as novas possibilidades de EPT em nível médio, distinção que é adensada por se tratar de disciplinas que sobrevivem na EPT, assim como em toda a educação brasileira, sempre ameaçadas e em contexto de deslegitimação das Ciências Humanas, tensionadas na relação entre Estado, Governo e Educação desde a crise política brasileira de 2015 e a ascensão da direita e o aprofundamento do autoritarismo.
O traço inicial desta sobrevivência que apontamos se refere à capacidade de defesa da permanência dessas disciplinas pelos profissionais da Filosofia e da Sociologia atuantes na Rede Federal, em contexto de expansão da oposição na sociedade civil a essa permanência. A profissionalização destes docentes, a alta capacitação quando comparados ao ensino médio em toda a rede pública, que dispõe da maioria de mestres e doutores atuando nestas áreas na Rede Federal, profissionais da educação que apresentam vínculos de pesquisa e extensão, são elementos que reposicionam Filosofia e Sociologia no ensino médio em outras condições, absolutamente díspares do efetivamente realizado na educação básica. A noção de campo empreendida por Bourdieu (2004, p. 20) pode contribuir nessa reflexão. Conforme o autor, campo se refere ao “[...] universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura, ou a ciência. Esse universo é o mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas [... onde se observa ...] esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas próprias leis”. Na medida em que avançam as imposições e pressões externas sobre o campo, de ordem institucional, política, econômica, Bourdieu aponta para o ato de refratar, de retraduzir as pressões e demandas externas, desenvolvendo a capacidade de autonomia deste campo. As pressões externas, que agem de forma heterônoma sobre as instituições de ensino, em disputa com a autonomia do campo, fazem com que se possa conservar ou transformar esse campo. A capacidade das áreas de Sociologia e Filosofia de escaparem a essas leis sociais externas e manterem suas posições no currículo da EPT está politicamente ameaçada, e está condicionada à situação de ‘dependência na independência’ que Bourdieu assinala, ou seja, a Rede Federal possui autonomia sobre os currículos, mas o Estado pode impor novas condições a qualquer momento, estabelecendo um novo lugar para essas disciplinas.
A defesa destas disciplinas na EPT não se deve exclusivamente pelo fator de autonomia da Rede Federal, já que a não inclusão da Rede Federal na reforma do Ensino Médio não é suficiente para explicar a sobrevivência de Filosofia e Sociologia, recordando que a autonomia está sob constante vigilância e ameaça, principalmente no período 2017-2022. Apontamos para a capacidade de fortalecimento dos campos da Filosofia e Sociologia a partir das lutas travadas por essas áreas no interior da Rede Federal, e que podem ser identificadas em duas direções: no reforço que a Filosofia e a Sociologia proporcionam aos princípios da EPT nos Institutos Federais, em direção a uma posição política baseada nas concepções de educação unitária, omnilateral e integral. Essas concepções partem de teorias sociais e formulações das Ciências Sociais e da Filosofia, portanto, essas áreas fortalecem a própria identidade do Ensino Médio Integrado e da EPT. Ao mesmo tempo, pensando a partir de uma Sociologia Pragmática, ou dos usos do conhecimento filosófico, se constata a proeminência das análises filosóficas e sociológicas no mundo contemporâneo, atreladas e difundidas nos campos da educação, das ciências sociais aplicadas, assim como das ciências exatas e da natureza, com formulações incontornáveis sobre o conhecimento humana, a vida e a organização social. A extensão e a permanência na forma disciplinar da Filosofia e da Sociologia, como operado hoje nos currículos do Ensino Médio Integrado da Rede Federal, não apresenta indícios de vitalidade e sustentação político-pedagógica, diante das forças do novo Ensino Médio. As pressões externas ao campo e a posição dos pesquisadores e profissionais dessas áreas diante de uma reformulação do Ensino Médio Integrado colocará à prova a defesa da Filosofia e da Sociologia e a capacidade de fortalecimento da oferta destas disciplinas, que luta contra a deslegitimação da sociedade civil ao mesmo tempo que mais uma vez compete com o sombreamento e a sobrevivência mínima nos currículos da educação básica.
Considerações finais
Procuramos neste texto trazer algumas reflexões a respeito do ensino de Filosofia e Sociologia num contexto fortemente marcado por questões complexas, principalmente no que se refere à crise da democracia. O reconhecimento de ambas as disciplinas como parte constitutiva fundamental para se pensar os projetos de mudança social e educacional nos faz concluir que estamos diante de alguns dilemas, dentre eles o confronto entre interpretar a realidade simultaneamente aos processos de mudança desencadeados pelas crises políticas, socioeconômicas e culturais, e a busca de espaço para permanecer na Educação Básica, a partir da interface entre suas forças e rigores disciplinares e as demandas emergentes da sociedade.
Se em mais de uma década como disciplinas obrigatórias presentes no Ensino Médio, a Sociologia e a Filosofia colocaram em foco hierarquias como geradoras das mais diversas contradições sociais presentes na sociedade brasileira, tanto no plano da produção do conhecimento e da prática pedagógica, quanto como força impulsionadora para a ação de diversos sujeitos emergentes na cena identitária nacional, atualmente nos deparamos justamente com forças sociais que repelem as áreas, e solicitam a limitação da circulação dos conhecimentos produzidos nessas áreas.
Mais uma vez as duas disciplinas possuem como função questionar o caráter periférico atribuído a elas no currículo escolar, além de discutir como as formas de dominação política e cultural emergidas nos últimos anos tentaram minar o campo democrático e frear a mudança social, impactando nos processos de identidade e reconhecimento. Entendidas a partir desse processo de mudança, cabem às duas áreas um reordenamento da ação pedagógica, vislumbrando novamente uma transformação, diante de reiteradas ameaças e possibilidades de naufrágio dessas disciplinas na Educação Básica.