Introdução
O presente estudo visa perspectivar como o tema da imigração e as práticas educacionais vem sendo abordado na pesquisa educacional brasileira, com foco no estado de São Paulo, atentando para os diferentes movimentos em torno dos imigrantes que ali se deram - e continuam se dando, em outras bases. Para tanto, toma como objeto de análise artigos sobre o tema publicados em periódicos científicos brasileiros do campo educacional, organizados segundo dois grandes blocos: os que investigaram processos contemporâneos e aqueles que se debruçaram sobre o passado.
Elegeu-se o fenômeno da imigração em detrimento do da emigração, pois, ao contrário do primeiro, o segundo quase não compareceu nos estudos focalizados. Ainda, o contexto paulista foi eleito como foco da análise, uma vez que a imigração estrangeira consistiria em um aspecto fundamental de sua história, tal como a concebemos hoje. Na visão da pesquisadora Zeila Demartini (2004, p. 216),
[…] uma sociedade como a paulista […] só pode ser compreendida se o fenômeno imigratório for considerado como constituinte de sua história e de seu modo de ser; o passado e o presente estão ‘carregados’ dessas várias imigrações, embora nem sempre estejam tão evidentes à primeira vista.
É o caso da capital paulista. O intenso fluxo de imigrantes que ali se estabeleceram nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX revela-se não apenas um marco em sua história, mas também um ponto de inflexão quanto a seu enquadramento político, econômico e social em relação ao restante do País. “Com uma população de cerca de 30 mil habitantes em 1872, constituindo-se em nada mais que um burgo, em 1920, com mais de meio milhão de habitantes, São Paulo ganhava o status de metrópole brasileira” (Cruz, 2013, p. 44) - graças, em grande medida, à contribuição dos imigrantes que ali se radicaram.
Tendo em mente que outros estados brasileiros têm, igualmente, a imigração estrangeira como variável determinante de sua história, o diferencial do caso paulista residiria no fato de que os fluxos migratórios não se restringiram aos séculos XIX e início do XX, mantendo-se, ao contrário, como uma constante desde então. Por exemplo, ao se tomarem os dados apresentados no Relatório Anual de 2020 produzido pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), sabe-se que, entre os anos 2011 e 2019, 209.764 (32%) dos 660.349 imigrantes de longo termo registrados no Brasil encontravam-se no estado de São Paulo (Cavalcanti, Oliveira, & Macedo, 2020).
Ainda, faz-se necessária outra consideração inicial a respeito dos aportes do presente artigo: é comum que os estudos sobre migração se restrinjam a determinado grupo étnico ou a um conjunto deles. Apesar de, até aqui, termos tratado os diferentes grupos sob o manto semântico geral de imigrantes, claro está que cada um deles porta nuanças e especificidades no que se refere tanto às suas modalidades de organização cultural quanto às maneiras como são/foram abordados no debate acadêmico.
No que concerne aos propósitos deste texto, interessa-nos circunstanciar o papel das práticas educacionais no bojo dos processos de constituição populacional em contextos marcados pela imigração. A noção de população com a qual operamos é aquela proposta por Michel Foucault (2008, 2012). Para o pensador francês, tal noção está atrelada ao surgimento de um novo objeto social que despontou como alvo de todo um conjunto de saberes e práticas de governo: não mais aquele dos indivíduos - no qual o coletivo poderia ser governado pelo governo individual e específico de cada sujeito que o compõe -, mas um agregado que precisará ser tratado em sua homogeneidade, a despeito de sua condição disforme. Como elucida Judith Revel (2011, p. 117, grifo da autora),
[...] junto às técnicas de individualização, ele [Foucault] teria de abordar um dispositivo paralelo - não contrário às disciplinas individualizantes, nem mesmo sucessivo a essas disciplinas a essas disciplinas, mas contemporâneo e complementar - que consiste em determinar ‘conjuntos homogêneos de seres humanos’ em lhes destinar uma economia específica dos poderes.
A emergência da noção de população convocou, assim, uma nova escala de apreensão analítica, preocupada não mais com as particularidades de sujeitos ou tipos sociais singulares, mas com aquilo que eles teriam em comum. Para isso, fez-se necessário operar com novos saberes e práticas a fim de compreender os processos que regeriam os comportamentos humanos, tanto em interação com o meio como entre si. Edgardo Castro (2016, p. 336) aponta oportunamente:
Para Foucault esse conceito de população que surge a partir do século XVIII comporta dois elementos: por um lado, relação número de habitantes/territórios; por outro, as relações de coexistência que se estabelecem entre os indivíduos que habitam um mesmo território (taxas de crescimento, de mortalidade) e suas condições de existência.
A emergência de tal noção vincula-se, assim, a todo um conjunto de saberes e práticas que tomam o humano como espécie biológica regida pelos mesmos processos naturais a que estariam sujeitas todas as formas de vida. Desta feita, principalmente ao longo dos séculos XIX e XX, viu-se a dimensão biológica incidir sobre os mecanismos políticos - processo que Foucault (2012, p. 180) denominou ‘biopolítica’:
Naquele momento, inventou-se o que eu chamaria de biopolítica, por oposição à anatomopolítica, que mencionei há pouco. Nesse momento, vemos aparecer problemas como os do habitat, o das condições de vida em uma cidade, a higiene pública, a modificação da relação entre natalidade e mortalidade. Nesse momento, apareceu o problema de saber como podemos levar as pessoas a fazerem mais filhos, ou, pelo menos, como podemos regular o fluxo da população, como podemos regular igualmente taxas de crescimento de uma população, as migrações.
A noção de população assenta-se no ideário político, portanto, de modo diretamente conexo à emergência da biopolítica. Entretanto, dita noção ainda comporta uma segunda direção, tal como proposta por Foucault, a qual é precisamente o foco deste estudo: como objeto direto sobre o qual se exercem os modos de governamento.
É a população, portanto, muito mais que o poder do soberano, que aparece como o fim e o instrumento do governo: sujeito de necessidades, de aspirações, mas também objeto nas mãos do governo. [Ela aparece] como consciente, diante do governo, do que ela quer, e também inconsciente do que a fazem fazer. O interesse como consciência de cada um dos indivíduos que constitui a população e o interesse como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e aspirações individuais dos que a compõem, é isso que vai ser, em seu equívoco o alvo e o instrumento fundamental do governo das populações. (Foucault, 2008, p. 140).
Desponta, assim, uma nova dimensão da noção de população: ela não só como decorrência direta da biopolítica, mas também como alvo daquilo que será denominado por Foucault como ‘governamentalidade’. Trata-se do
[...] conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bem específica, bem complexa, de poder, que tem como alvo principal a população, como forma mais importante de saber, a economia política, como instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança (Foucault, 2008, p. 142).
A população seria, portanto, não só um objeto sobre o qual se exerceria uma forma de governo, mas também um dos objetivos últimos da própria noção de governo. Ou seja, governa-se para garantir a constituição, a preservação e o fortalecimento de determinada população. Em suma, essa noção desponta no pensamento de Foucault como a instância para a qual converge o foco tanto da biopolítica quanto da governamentalidade. Entendê-la como operadora da articulação dessas duas dimensões é fundamental, portanto, à análise que aqui se propõe.
Mais especificamente, enquanto a biopolítica é o que permite perspectivar a criação dos mecanismos normativos, os quais tornam a população um objeto concreto e manipulável, a governamentalidade é o que permite compreender os efeitos ético-políticos derivados dessas práticas. Apesar de reconhecer a importância de ambas as dimensões teóricas no tocante a qualquer discussão centrada no conceito de população, na investigação que aqui se apresenta optamos por não focalizá-la como ente biológico, visto que se trata da tendência analítica na esteira da qual já opera a grande maioria dos estudos sobre imigração. Nessa perspectiva, cremos que já há uma extensa e competente produção acadêmica sobre os processos biologizantes e raciais que guiaram muitas das políticas públicas sobre imigração no Brasil no final do século XIX e início do XX.
Quando se discute a questão da formação da população nacional em articulação com o tema da imigração ao longo dos séculos XIX e XX no Brasil, é indiscutível que obras como Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro de Thomas Skidmore (1976), A invenção da brasilidade: identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração de Jeffrey Lesser (2015) e Diploma de brancura de Jerry Dávila (2006) revelam-se estratégicas para a compreensão do racismo, ao explicitarem o ideal de branqueamento que guiou as políticas públicas direcionadas à imigração tanto externa quanto interna - no caso paulista, por exemplo, pelo incentivo ao estabelecimento de imigrantes europeus, bem como, no sentido contrário, pelos entraves impostos àqueles provenientes da região nordeste do País.
No que se refere aos estudos de cunho historiográfico que, tal como este, se guiam pelo referencial teórico foucaultiano, é certo que as questões raciais aparecem direta ou indiretamente ligadas a temas como biopolítica, eugenia e higienismo social. Como exemplo, é possível mencionar trabalhos que se debruçaram diretamente sobre o impacto biopolítico nas práticas educacionais brasileiras do início do século XX, como o de Mozart Linhares da Silva (2015) ou aquele a cargo de Margareth Rago (2014), os quais, entre outras questões, discutem de modo articulado as imigrações estrangeiras e o higienismo social durante o período da Primeira República. Ainda, há o estudo de José Gonçalves Gondra (2000) que busca compreender as influências do higienismo nos discursos sobre a infância ao longo do século XIX. Desta feita, entendemos que as discussões - também no bojo dos trabalhos de inspiração foucaultiana - sobre imigração e formação de uma população nacional na virada do século XX fundamentaram-se nos debates raciais e étnicos.
Em que pesem os consensos teóricos sobre o problema migratório nos tempos pregressos e sua imbricação às práticas de eugenismo e higiene social, eles nos parecem necessários, porém não suficientes para situar o problema migratório na atualidade. Por isso, o interesse central deste estudo volta-se à criação de um diálogo entre o passado e o presente, na esperança de compreender permanências e descontinuidades nos processos referentes à formação da população paulista e os estrangeiros que ali se radicaram e vêm se radicando.
Vale mencionar, por fim, o enraizamento deste estudo no escopo geral da genealogia, tal como pensada por Foucault (2019). Assim como o francês, nosso interesse em perspectivar as relações entre passado e presente não reside na busca de uma relação necessária e suficiente entre as duas temporalidades, mas na criação de um intervalo intelectivo que possibilite estranhar aquilo que é visto como natural nos dias atuais (Foucault, 1998).
Nesse diapasão, autores como Tzvetan Todorov (2010) e Edward Said (2015) auxiliam a compreender como os ‘outros’ são essenciais para que sejam delimitadas as fronteiras daquilo que é tido como próprio de ‘uns’. É com base naqueles que se faz possível definir certa noção de um ‘nós’. Daí o papel crucial das práticas educacionais em tais processos. Embasados nas ideias de Daniel Tröhler (2017), bem como nas de Marc Depaepe e Paul Smeyers (2016), temos que a escolarização foi uma peça fundamental no processo de formação dos Estados-nação - o que obrigatoriamente abarcaria a questão migratória no caso de ex-colônias, como o Brasil.
Enquanto esses estados-nação tornavam-se definidos, bem como justificados politicamente pelas constituições e defendidos militarmente pelos exércitos, a coerência interna do estado-nação, a identificação dos habitantes com ele, teve de ser realizada pela educação, no que se refere aos sistemas escolares (Tröhler, 2017, p. 702, tradução nossa)1.
No que se refere à educação brasileira, torna-se evidente o papel das instituições educativas no esforço de criação de uma identidade nacional em face da imigração estrangeira. Sobre as primeiras décadas do século XX, Simon Schwartzman, Helena Bomeny e Vanda Costa (1984, p. 72) afirmaram: “É difícil, e era muito mais naqueles tempos, perceber a carga ideológica da noção de que a educação deveria ser um instrumento para a construção da nacionalidade brasileira, até considerarmos o fato de que o Brasil é, em grande parte, um país de imigrantes”.
Sobre o mesmo período, valendo-se de argumento semelhante, Lúcio Kreutz (2011, p. 351) assim ponderou: “A escola foi chamada a ter um papel central na configuração de uma identidade nacional, sendo ao mesmo tempo um elemento de incentivo à exclusão de processos identitários étnicos”. A escolarização era tida, assim, como peça central na formação de uma identidade nacional em torno da qual seria possível forjar certos contornos populacionais comuns.
Realizadas as considerações introdutórias, cumpre-nos apresentar o material empírico eleito para a análise. Mediante a abrangência do campo temático e, por consequência, o grande volume de fontes conexas ao objeto de estudo, restringir o material a apenas um nicho empírico respondeu, em nosso entendimento, ao propósito de garantir certa coesão procedimental.
A escolha dos periódicos acadêmicos fundamenta-se igualmente na premissa de que eles consistem nos meios de divulgação que mais circulam entre os pares. Ainda, a análise da produção acadêmica permite um vislumbre não só da profusão, mas também da diversidade de pontos de vista sobre os fenômenos migratórios em circulação no campo educacional.
Para realizar a coleta dos artigos, focalizamos a produção entre 2000 e 2020 - 21 anos, portanto - de 57 periódicos acadêmicos da área de educação, classificados no sistema Qualis-CAPES2 nas categorias A1, A2 e B1. Optamos, igualmente, por trabalhar com periódicos genéricos, isto é, não especializados em subáreas; com uma exceção: a área de história da educação. Tal escolha, claro está, radicou-se na exigência do próprio objeto de estudo.
Os periódicos escolhidos foram: Acta Scientiarum; Atos de pesquisa em educação; Cadernos CEDES; Cadernos de Educação; Cadernos de Pesquisa (FCC); Cadernos de pesquisa (UFMA); Comunicações; Currículo sem Fronteiras; E-curriculum; Eccos; Educação & Realidade; Educação & Sociedade; Educação e cultura contemporânea; Educação e Pesquisa; Educação em Foco (UEMG); Educação em Foco (UFJF); Educação em perspectiva; Educação em Revista; Educação (PUCRS); Educação (UFSM); Educação (UNISINOS); Educação Temática Digital; Educação-Teoria e Prática; Educação, ciência e cultura; Educar em Revista; Educativa; Em Aberto; Espaço Pedagógico; Horizontes; Imagens da Educação; Inter-ação; Linguagens, educação e sociedade; Linhas críticas; Perspectiva; Práxis educacional; Práxis Educativa; Pro-Posições; Quaestio; Reflexão e ação; Retratos da escola; Revista Brasileira de Educação; Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos; Revista Cocar; Revista da FAEEBA; Revista de Educação Pública; Revista de Educação (PUCCAMP); Revista Diálogo Educacional; Revista Educação em Questão; Revista Eletrônica de Educação; Revista Ibero-americana de estudos em educação; Revista Tempos e Espaços em Educação; Roteiro; Série-estudos; e Teias. Somam-se os três principais periódicos da área de história da educação: Cadernos de História da Educação; Revista Brasileira de História da Educação; e Revista História da Educação.
A partir da busca em títulos, resumos e palavras-chave de um conjunto de termos - ‘migração’, ‘imigração’, ‘emigração’, ‘imigrante/s’ e ‘estrangeiro/a/s’ -, selecionamos o material para análise, abrindo mão, ressalve-se, daqueles que tratavam a questão migratória como um dado adventício nas argumentações. Ao final, 35 textos serviram de base para o presente estudo.
O fenômeno migratório e o contexto educacional paulista: a imigração pregressa
A fim de organizar a análise dos artigos que focalizaram as imigrações no contexto paulista, operamos uma divisão entre aqueles que investigaram o passado e os que se dedicaram ao presente. Entretanto, foi encontrado um trabalho que transitou entre ambas as instâncias, o qual buscou articular narrativas históricas com questões contemporâneas. A educação no contexto diacrônico de antigos núcleos coloniais (Bastos & Souza, 2012) dedicou-se a analisar as relações entre o ensino público e o contexto político-econômico da região onde atualmente se encontra o município paulista de Gavião Peixoto, ao longo do século XX (quando era um núcleo colonial destinado a receber imigrantes, principalmente europeus, que vinham trabalhar em fazendas cafeeiras) e do XXI (quando ali se estabeleceu um polo aeronáutico). Os autores sustentam que, no início do século, a educação pública foi negligenciada por conta das dinâmicas coronelistas que imperavam na região e da baixa qualificação para os trabalhos nas lavouras cafeeiras. Já no início do século XXI, as políticas educacionais passariam a responder à exigência de mão de obra qualificada. Não obstante, poucas mudanças teriam ocorrido no âmbito educacional, já que estaria em curso ali uma reprodução cíclica do passado.
Entre os 22 estudos sobre imigração e educação, no viés historiográfico, há uma concentração do interesse nas décadas de 1890, 1900 e 1910, tratando-se, claro está, de um arco temporal atinente à Primeira República. Mais ainda, apenas três estudos, entre os demais, não apresentaram intersecção com esta última. Poder-se-ia justificar o destaque que é concedido ao período em razão do recorte que fizemos do material. Isto é, se estamos tratando de pesquisas históricas que debatem educação e migração no estado de São Paulo, a predileção pelo primeiro período republicano dar-se-ia tanto por sua importância para a história de São Paulo (Love, 1982), quanto pelo fato de que, em tais décadas, a chegada de imigrantes no Estado foi notadamente volumosa (Carneiro, 1950). Soma-se a tais motivos a relevância do período para a história da educação brasileira (Nagle, 1974).
Também seria possível entabular uma análise semelhante em relação aos grupos étnicos focalizados em cada uma dessas pesquisas, ou seja, identificar quais foram os mais abordados no interior delas. São eles, em ordem decrescente: italianos (em oito estudos); japoneses (quatro); estadunidenses (dois); afrodescendentes, alemães, árabes, espanhóis, judeus e portugueses comparecem, respectivamente, em um artigo3. Ademais, há três estudos que discutem questões ligadas à imigração sem se ater a um grupo étnico específico.
O estudo que investiga a imigração árabe (Cabreira, 2001) busca dimensionar como, apesar de o volume de imigrantes não ter sido tão expressivo como o de outros grupos - o italiano e japonês, por exemplo -, tal etnia teve pronunciada influência cultural na sociedade paulista. Apesar de o artigo ter sido publicado em um periódico acadêmico do campo educacional, ele não apresenta, porém, diálogo direto com a questão propriamente educacional. No que diz respeito ao trabalho que investiga a imigração de africanos (Yade, 2014), são aludidos tanto os movimentos internacionais de tráfico de escravos quanto os deslocamentos no interior do território nacional por conta das diásporas das populações negras após a abolição da escravidão. O estudo evita, assim, uma distinção que usualmente é realizada nos estudos entre migração interna (no interior de um mesmo país) e externa (entre países distintos).
Propor um estudo sobre população negra a partir do espaço territorial pressupõe a necessidade da desconstrução de estigmas, preconceitos, racismos e estereótipos, entre outros desqualificantes sociais. No caso do Brasil, a identidade mestiça se constrói em detrimento à identidade negra [...] (Yade, 2014, p. 188).
Tal discussão aponta para uma segunda marca do material analisado: a ausência de trabalhos que investigam os movimentos de migração interna na história da educação paulista, já que não encontramos nenhum estudo que se dedicou especificamente a essa discussão. Como uma possível exceção, podemos apontar o trabalho de Ediógenes Aragão (2003) que, apesar de não se interessar exclusivamente pela migração interna, discute a formação da classe operária paulista a partir da circulação de teorias racistas, como o darwinismo social e a eugenia, no contexto da transição do trabalho escravo para o livre, atentando para os processos de discriminação e de descarte dos trabalhadores nacionais livres e libertos. O autor contrapõe-se às teorias que justificam a importação de mão de obra estrangeira a partir da alegação de que a abolição da escravidão teria gerado um déficit na força de trabalho disponível no estado de São Paulo, defendendo que o motivo real residiria no projeto de embranquecimento populacional.
A política imigrantista subvencionada é, a partir de 1880, responsável pela marginalização do trabalhador nacional livre, no mercado de trabalho, na cafeicultura, assim como na industrialização têxtil em São Paulo, por definir um ‘ideal tipo’ de trabalhador - vinculado ao etnocentrismo e ao evolucionismo europeu -, articulando ideologia liberal com prática escravista no processo de construção do Estado Nação (Aragão, 2003, p. 151, grifo do autor).
No que diz respeito aos temas abordados, há uma significativa concentração de estudos que pautam suas discussões em torno de iniciativas escolares a cargo de imigrantes, mormente no final do século XIX e início do XX, voltadas para o atendimento de nichos populacionais específicos. Eram escolas de forte conotação étnica que, além do ensino escolar regular, também se propunham a manter a cultura e a língua do país de origem dos imigrantes que as fundaram: as assim referidas ‘escolas étnicas’ (Kreutz, 2000). Fazem-se oportunas algumas considerações a respeito do funcionamento de tais instituições.
O crescimento exponencial da população do estado de São Paulo no final do século XIX e início do XX, em virtude da volumosa entrada de imigrantes, confrontava-se com a precariedade e a insuficiência do sistema público de ensino. Por um lado, a população do estado crescia exponencialmente; por outro, os serviços públicos não se expandiam com a mesma velocidade. No que se refere especificamente ao ensino, havia uma forte demanda dos imigrantes pela criação de escolas que atendessem seus filhos (Mimesse & Maschio, 2009)4. A incapacidade do poder público de atender essa demanda levou diversos grupos de imigrantes a fundarem suas próprias instituições escolares (Prado, 2015).
Soma-se o fato de a virada do século XIX para o XX ter sido marcada por projetos nacionalistas que visavam solidificar uma identidade comum entre seus cidadãos. Para os imigrantes provenientes da recém-unificada Itália (Panizzolo, 2020) e os do período ultranacionalista japonês (Okamoto, 2018), as escolas surgiram como uma ferramenta importante para a preservação da cultura de seus países de origem, pois permitiam que as crianças, mesmo que nascidas e criadas longe da terra natal de seus pais, pudessem tornar-se cidadãos desta. Outro indicativo do valor das escolas para os países originários pode ser atestado no caso de algumas escolas que recebiam fomento financeiro e materiais didáticos da Itália (Prado, 2015). Por fim, essas instituições variavam em tamanho e público (Demartini, 2004), havendo, simultaneamente, algumas escolas que atendiam poucas dezenas de estudantes pertencentes a camadas sociais mais baixas (Prado, 2015) e outras que recebiam centenas de crianças pertencentes às elites econômicas (Cantuaria, 2004).
Nos estudos que investigaram escolas étnicas em São Paulo, predomina o interesse por escolas italianas. Há apenas dois artigos que se voltam para escolas fundadas por outros grupos étnicos, além de um terceiro que, apesar de não estar especificamente preocupado com uma instituição escolar, focaliza organizações comunitárias que, entre outras atividades, tinham escolas sob sua égide. A pesquisadora Adriana L. Cantuaria (2004) investigou, no intervalo compreendido entre os anos de 1878 e 1978, escolas que foram fundadas por e destinadas a imigrantes pertencentes às camadas econômicas mais elevadas, tornando-se colégios bilíngues com currículos internacionais destinados à burguesia paulista. Foram focalizadas escolas alemãs como o Deutsche Schule (que se tornou o Colégio Visconde de Porto Seguro) e o Colégio Humboldt, bem como o Instituto Medio Italo-Brasiliano Dante Alighieri. Ainda, a autora aponta como “[...] o espaço escolar de São Paulo, entretanto, é composto também por instituições cuja existência se articula com um tipo de relação entre grupos estrangeiros e nacionais diferente da estabelecida com a imigração tradicional” (Cantuaria, 2004, p. 51), encampando algumas instituições escolares internacionais que não estão associadas às principais etnias de imigrantes que vieram a São Paulo. São elas: o francês Liceu Franco Brasileiro (posteriormente nomeado Liceu Pasteur), a norte-americana São Paulo Graded School e os britânicos Gimnasio Anglo-Brazilian School (que encerrou suas atividades na década de 1920) e a contemporânea Saint Paul’s School. O interesse da autora voltou-se à fundação dessas escolas como algo relevante para compreender a própria formação da elite nacional, na medida em que, apesar de tais instituições serem, em princípio, destinadas aos estrangeiros, havia muitos brasileiros entre os alunos matriculados em razão do empenho das classes altas paulistas para formar seus filhos com base em um ideal europeu e norte-americano. Em sentido semelhante, podemos mencionar um estudo (Augusti, 2000), sobre a trajetória política do médico alemão Germano Melchert, o qual demonstrou como alguns imigrantes abastados se inseriram rapidamente e se tornaram influentes no interior da elite paulista.
Sobre os textos que discorreram sobre escolas étnicas italianas, dois artigos investigaram aspectos gerais, sem adentrar uma discussão sobre alguma escola ou aspecto escolar específico. São eles: A escola étnica na cidade de São Paulo e os primeiros tons de uma identidade italiana (1887-1912), de Claudia Panizzolo (2020), e O convívio concomitante e frugal das escolas elementares públicas e privadas paulistanas, de Eliane Mimesse Prado (2015), ambos já referidos aqui. No primeiro, busca-se contextualizar como se deram as tentativas de gestão e de cooperação, bem como as disputas em torno das primeiras escolas italianas fundadas na cidade de São Paulo. O arco temporal escolhido inicia-se em 1887, quando se tem o registro da primeira escola italiana na cidade - segundo o Fanfulla, periódico da comunidade italiana no Brasil -, e se encerra em 1912, ano da publicação do Regolamento per le scuole italiane all’estero5, documento emitido pelo governo italiano contendo as normas curriculares e organizacionais para as escolas italianas que funcionavam no exterior. A autora argumenta:
As escolas italianas da cidade de São Paulo podem ser pensadas [...] como constituidoras de patriotismo, e para isto, delas foi exigido a responsabilidade em ‘italianizar’ os que para cá vieram de uma Itália recém unificada, e os aqui nascidos, que pelo princípio jus sanguinis tinham, segundo o governo italiano, a transmissão da nacionalidade assegurada pela descendência. (Panizzolo, 2020, p. 26, grifo da autora).
No segundo artigo (Prado, 2015), a autora busca compreender, com base no Fanfulla e nos relatórios e dados produzidos pelos inspetores escolares publicados nos Annuarios do Ensino do estado de São Paulo6, as tensões que se deram entre as escolas particulares geridas por italianos e as escolas públicas, entendendo que ambas disputavam projetos de criação de identidades:
Nesse momento, vivia-se um embate, porque as escolas públicas paulistanas, principalmente os ‘grupos escolares’ e as escolas subsidiadas italianas buscavam o mesmo fim, ambas pretendiam a alfabetização de seus alunos, em suas respectivas línguas nacionais, para assim formarem os cidadãos (Prado, 2015, p. 195, grifo do autor).
Quanto aos demais artigos que investigaram escolas italianas em São Paulo, há mais dois escritos por Panizzolo (2019a; 2019b) que estudaram o uso de uma coleção de livros como material didático nas primeiras décadas do século XX. No caso, trata-se da série Piccolo mondo, letture per le scuole elementare7, produzida na Itália pelos ministérios das Relações Exteriores e da Instrução Pública e destinada ao ensino primário em escolas italianas fora da península itálica (Panizzolo, 2019b). Ademais, há um artigo escrito por Elaine Cátia Falcade Maschio e Eliane Mimesse Prado (2017) em que se apresenta um estudo comparado sobre o ensino de português nas escolas italianas das cidades de São Paulo e de Curitiba entre os anos de 1883 e 1907. As autoras assinalam como as escolas curitibanas contavam com apoio financeiro tanto do governo italiano como do paranaense; já as paulistas o recebiam apenas do exterior. Entretanto, as escolas em São Paulo acolhiam todos os alunos que as buscassem sem cobrar mensalidade, independentemente de serem italianos ou não. Em relação ao ensino da língua portuguesa, mesmo com a existência de leis que proibiam o uso exclusivo de línguas estrangeiras nas escolas e que instituíam a obrigatoriedade do ensino da língua nacional, em Curitiba pouco se fez para garantir o cumprimento da lei, segundo as autoras. “Na cidade de São Paulo as normatizações foram executadas, na medida em que o número de inspetores escolares que trabalhavam na capital paulista foi sendo ampliado” (Maschio & Prado, 2017, p. 98).
Tendo em mente a presença do ensino da língua e da cultura nacionais no interior das instituições de ensino estrangeiras no País, vale mencionar um estudo (Bahia, 2009) que investiga, com base na memória de militantes, duas instituições ligadas a movimentos de esquerda no interior da comunidade judaica: a Associação Scholem Aleichem (ASA) e o Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB) - a primeira localizada no Rio de Janeiro e a segunda, em São Paulo. Sob a égide dessas instituições encontravam-se diversas iniciativas culturais, comunitárias e educativas, entre as quais instituições escolares que fomentavam a propagação da cultura judaica e de valores socialistas de modo articulado a aspectos da cultura e da história do Brasil. Foi o caso do colégio Scholem de São Paulo:
No currículo escolar, a ênfase era dada à história do povo judeu, à literatura ídish e ao domínio do idioma. A celebração das festas judaicas ressaltava o caráter combativo e os valores de liberdade associados a uma leitura histórica da tradição que em nenhum momento se ‘descolava da realidade brasileira’ (Bahia, 2009, p. 131, grifo da autora).
Até aqui, as instituições de ensino estrangeiras foram tratadas, nos textos, invariavelmente como concorrentes ao ensino nacional. Fosse em uma relação de disputa mais direta e beligerante, fosse de forma mais propensa a uma relação dialógica com a cultura local, as escolas étnicas firmaram-se como substitutivas ao ensino público local. Não obstante, há estudos que se debruçaram sobre iniciativas educacionais estrangeiras que atuavam de forma complementar à escolarização nacional. Adriana Aparecida Alves da Silva e Wilson Sandano (2013a) dedicaram-se aos rituais e festas culturais promovidos pela Escola de Língua Japonesa na região onde hoje se localiza o município paulista de Pilar do Sul.
Diferentemente de outras escolas japonesas que funcionaram no estado de São Paulo que foram pesquisadas por Demartini e Kreutz, a Escola de Língua Japonesa e Internato de Pilar do Sul não era uma escola primária ou secundária. Seus alunos, mesmos os internos, a frequentavam em horário que não conflitasse com o do funcionamento do Grupo Escolar “Padre Anchieta” ou do Ginásio Estadual de Pilar do Sul (Silva & Sandano, 2013a, p. 228).
A referida escola foi fundada em 1950 e funcionou por alguns anos na ilegalidade. A propósito, é importante destacar como, durante a Segunda Guerra Mundial, foram impostas, no Brasil, proibições aos imigrantes originários dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), as quais os impediam de falar sua língua materna em público e fazer reuniões. Também sua locomoção era limitada, e suas instituições escolares, fechadas. Tais sanções foram removidas apenas em 1956 (Silva & Sandano, 2013a).
Além dos estudos sobre instituições de ensino fundadas pelos próprios imigrantes, é possível identificar outros artigos empenhados em compreender a influência dos estrangeiros no interior do ensino público paulista. É o caso de dois artigos dos autores supracitados (Silva & Sandano, 2013b; Pereira & Sandano, 2015)8, em que se buscou investigar o impacto dos imigrantes japoneses no campo escolar de Pilar do Sul. Ao final do primeiro artigo, concluiu-se não ser possível “[…] afirmar que o ingresso dos japoneses e seus descendentes modificou a cultura escolar, mas que houve alterações em alguns aspectos, como a reorganização do tempo e espaço escolar e principalmente em suas práticas” (Silva & Sandano, 2013b, p. 205). Já de acordo com o segundo texto (Pereira & Sandano, 2015), as iniciativas de nacionalização do ensino, iniciadas no Governo Vargas, se intensificariam na escola por conta da presença maior de estrangeiros; trata-se do fortalecimento do nacionalismo como resposta à presença do estrangeiro, deduz-se.
Sobre a relação dicotômica entre o ensino nacional e o estrangeiro, Zeila de Brito Fabri Demartini (2000) apresentou as tensões vividas por imigrantes japoneses ao longo da primeira metade do século XX, tanto ao se inserirem no ensino público paulista, quanto ao criarem uma rede paralela de escolas japonesas. A autora apontou como os imigrantes nipônicos conviveram, voluntariamente ou não, com dois tipos de educação: a nacional e a japonesa. A primeira era oferecida tanto nas escolas nacionais como nas japonesas, a fim de possibilitar a comunicação e a inserção no mercado de trabalho local; a segunda acontecia apenas nas escolas japonesas e visava manter o vínculo das crianças com a cultura oriental.
Ambos os trabalhos acima descreveram diferentes modos da presença de imigrantes não só em escolas étnicas, mas também nas instituições pertencentes à rede pública de ensino. Nesse sentido, vale citar dois trabalhos a cargo de César Romero Amaral Vieira (2008, 2002). O autor ressalta como o protestantismo norte-americano foi influente na formação do pensamento republicano brasileiro, trazendo noções e princípios que se tornariam importantes alicerces para a formação do ensino público paulista durante o período da Primeira República:
É inegável a contribuição dos colégios protestantes à educação pública paulista na renovação dos métodos pedagógicos: na introdução da co-educação, contra a tradição católica de separação rigorosa de sexos; na dignidade na educação do sexo feminino, contra o preconceito à sua formação; na inovação curricular, com ênfase ao aspecto científico, contra um currículo essencialmente clássico, no qual as ciências físicas e naturais eram apresentadas quase sem o uso de laboratórios e experimentação; no princípio de liberdade de religião nas escolas e contra a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas e no espírito de compreensão [...] (Vieira, 2002, p. 272).
Ainda sobre a escolarização de imigrantes, há um artigo de Eliane Mimesse Prado (2013), o qual descreve a infância de imigrantes italianos na cidade de São Caetano do Sul nas primeiras décadas do século XX. A autora narrou como muitas dessas crianças - pertencentes às classes trabalhadoras, no caso - deixaram de comparecer à escola por terem de se engajar a um ofício. A frequência intermitente dos pequenos às escolas causava preocupação em alguns docentes da rede pública. Aqui, desponta uma infância imigrante que acontecia às margens da educação escolar.
Nesse diapasão, há um bloco de abordagens - importante de ser apresentado - que discutem a educação da classe trabalhadora e questões relacionadas aos movimentos operários. Além do trabalho já citado de Aragão (2003), há outros dois: A educação libertária na bagagem dos imigrantes: uma trajetória no Brasil (Moraes, 2000) e Entre hinos, bandeiras e heróis: imigração europeia, classe operária e a constituição da nacionalidade nos grupos escolares da cidade de Santos (Carreira, 2014). O primeiro visou mapear, entre as décadas de 1890 e 1930, práticas educativas desenvolvidas por coletivos anarquistas, em sua maioria, de origem italiana. Entre elas, constavam a criação e a gestão de escolas, de centros de cultura e de ateneus. O autor buscou compreender alterações e deslocamentos no interior dessas ações educativas, dividindo-as em três fases:
[...] a primeira, entre os anos de 1895 a 1909; a segunda, entre 1909 a 1919, como funcionamento das escolas, já com a diretriz do pensamento de Francisco Ferrer e alguns centros de estudos; e finalmente, a terceira, entre 1927 a 1937, em que apenas os centros de estudos e ateneus, tornaram-se as únicas referências que trabalharam com a educação (Moraes, 2000, p. 36).
Moraes (2000, p. 37) sustentou que a primeira fase “[…] estava mais ligada a um espontaneísmo libertário, buscando alfabetizar, cada vez mais, um grande número de trabalhadores, com a preocupação de fortalecer o movimento operário, que começava a nascer no Brasil”. O destaque que é atribuído à alfabetização parece-nos importante na medida em que ele é uma preocupação não apenas dos movimentos operários, mas também do Estado.
O texto de Carreira (2014), por sua vez, investiga o papel do sistema público de ensino do estado paulista no que se refere à incorporação e à assimilação de estrangeiros vinculados a movimentos operários na cidade de Santos ao longo das décadas de 1910 e 1920. O autor descreve a existência de um projeto que buscou, por meio da educação, integrar uma população que era marcada por seu caráter heterogêneo e diverso. Nessa direção, o combate ao analfabetismo era visto como uma estratégia crucial para tal desígnio:
Nas décadas de 1910 e 1920, a escola volta ao centro dos debates sobre os rumos da nação. O analfabetismo e a ‘ameaça’ estrangeira se tornam os alvos dos discursos e das políticas públicas educacionais do período. [...] A Reforma de 1920, promovida por Sampaio Dória, alçou o analfabetismo a problema nacional por excelência e empecilho ao desenvolvimento do país. A importância atribuída à alfabetização, embora fundamental para a sua compreensão, não esgota os esforços contidos na Reforma de 1920. As noções de civismo teriam papel primordial para a formação do caráter nacional, instituindo nas crianças as concepções de amor à Pátria, de respeito à ordem estabelecida e de cumprimento de deveres (Carreira, 2014, p. 107, grifo do autor).
Por fim, vale citar um trabalho de Demartini (2004) em que a autora apresentou indicativos de caminhos possíveis para futuras pesquisas sobre imigração e educação com base em uma perspectiva histórico-comparada. Muitas de suas indicações dão-se no sentido de entender as tensões no contato entre nacionais com estrangeiros tanto no campo linguístico (investigando as relações entre o ensino da língua do país de origem e o do português), quanto no âmbito do convívio no interior das instituições de ensino.
Nos estudos recenseados até aqui é possível observar uma miríade de projetos concorrentes - tanto o nacionalista/paulista como os estrangeiros - e como as instituições escolares firmaram-se como palco privilegiado para a efetivação dessas propostas. Nessa perspectiva, é evidente como muitos dos caminhos projetados para a edificação de uma população propriamente paulista passaram pela escolarização. Se, por um lado, a vontade de embranquecer e europeizar a sociedade paulista levava as elites a matricularem seus filhos nas escolas estrangeiras voltadas às classes mais abastadas, por outro, o excesso de escolas étnicas e a desatenção quanto ao ensino da língua portuguesa preocupavam os inspetores escolares da época. De um modo ou de outro, as escolas emergiam como um espaço amiúde tensionado na medida em que, fosse pela defesa de um projeto exclusivo próprio, fosse pela cooptação daqueles vistos como diferentes, era no interior de suas práticas que repousava a chave para a construção de uma população comum.
Vejamos qual horizonte despontaria mais de um século depois.
A imigração contemporânea
Entre as 12 pesquisas sobre migração e educação que se debruçaram sobre a realidade paulista na atualidade, os temas mais abordados foram aqueles ligados à imigração vinda dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e, também, da Bolívia. Em relação ao primeiro grupo, destaca-se o âmbito do ensino superior. Por exemplo:
As universidades no Brasil, particularmente aquelas situadas no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, como a Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade de São Paulo (USP), receberam neste último quartel do século XX um número significativo de estudantes estrangeiros oriundos de diversos países latino-americanos e africanos, mediante convênios assinados com diversos organismos internacionais e universidades desses países. Mas o maior fluxo de estudantes universitários veio do continente africano, através do Programa de Estudante Convênio de Graduação (PEC-G), vinculado aos Ministérios das Relações Exteriores (MRE) e da Educação (MEC) (Fonseca, 2009, p. 24-25).
Os artigos que investigaram a presença de imigrantes africanos no ensino superior buscaram compreender fatores como: razões da imigração, condições de permanência e perspectivas de retorno aos países de origem (Subuhana, 2009; Fonseca, 2009). Entretanto, as pesquisas, nesse caso, não se restringiram ao estado de São Paulo. Em uma delas (Fonseca, 2009), a discussão dá-se de maneira cruzada entre universidades paulistas e paranaenses - no caso, principalmente a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em outro estudo (Silva & Morais, 2012), o debate visou comparar a Universidade de São Paulo (USP) com a Universidade de Brasília (UnB), no que diz respeito à integração e à sociabilidade de estudantes oriundos dos PALOP. Soma-se um artigo (Rossa & Menezes, 2020) que se voltou à trajetória de mulheres refugiadas angolanas que vivem em São Paulo. Neste último caso, a pesquisa buscou compreender o diálogo dessas imigrantes com as línguas de seu país natal e do Brasil. É importante destacar que, apesar de a língua oficial da Angola ser o português, existem diversas outras línguas naquele país - como o umbundu, o kimbundu e o kikongo - atreladas às diferentes etnias ali existentes, de modo que seria um equívoco assumir que todos os angolanos têm o português como língua-mãe.
Sobre os estudos que lidaram com a imigração boliviana, chama a atenção como, ao passo que no grupo anterior o foco se dirigiu ao ensino superior, agora a atenção se volta para a Educação Básica, em especial a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Uma justificativa possível para esse enfoque residiria no fato de que, entre os alunos estrangeiros matriculados nas redes públicas de ensino no estado e na cidade de São Paulo, a nacionalidade estrangeira mais recorrente é a boliviana, representando 34% dos imigrantes matriculados na rede estadual e 48% na municipal, segundo dados de 2019 e 2020, respectivamente9.
Nas pesquisas que se dedicaram à imigração boliviana, destaca-se a preocupação com questões atreladas ao ensino escolar e às relações interpessoais que ali se dão. Assim, há estudos que buscam analisar como se desenvolve a relação de estudantes bolivianos com seus docentes e colegas brasileiros em contextos escolares específicos, tanto da Educação Infantil (Freitas & Silva, 2015) quanto dos anos iniciais do Ensino Fundamental (Gondin, Pinezi, & Menezes, 2020) ou dos anos finais (Dias & Souza Neto, 2019). Também é possível observar discussões que se aproximam do campo dos direitos humanos e, mais especificamente, do debate sobre imigração e direito à educação (Magalhães & Schilling, 2012; Dias & Souza Neto, 2019). Aqui, a argumentação opera um recuo a fim de abordar não mais a integração do imigrante nas salas de aula, mas as condições de seu acesso às instituições educativas.
Ainda em relação às pesquisas sobre a imigração boliviana, destacamos uma que, assim como aquelas apresentadas acima, também investigou as interações sociais entre alunos bolivianos e a comunidade escolar nas quais estavam inseridos, dando atenção às diferenças culturais materializadas nas barreiras de linguagem (Gondin & Pinezi, 2020). O estudo analisou como a língua aparece simultaneamente como um lastro para organização da identidade e como um marcador de alteridade entre crianças bolivianas e brasileiras em uma escola pública no ciclo de alfabetização. Ainda, os docentes afirmaram que a principal barreira no ensino e na integração dos estudantes estrangeiros estaria associada às diferenças linguísticas, o que podia gerar obstáculos na compreensão das aulas e na comunicação com os professores e com os demais colegas.
Mesmo quando já possuem fluência na língua portuguesa, o sotaque e as formas de pronúncia das palavras podem gerar situações de incômodo para os estudantes estrangeiros, o que seria uma hipótese para justificar a timidez e a insegurança percebidas durante o trabalho etnográfico (Gondin & Pinezi, 2020, p. 15-16).
O enfoque concedido às questões da língua é recorrente nos estudos sobre educação e migração. Destacam-se, a propósito, dois artigos que investigaram o ensino de língua portuguesa para imigrantes sem se restringir a nenhum grupo étnico específico. Em um deles, partindo da noção de que “[...] aprender a ler e a escrever implica necessariamente em mudança de identidade” (Silva, 2003, p. 173-174), a autora descreve seu objeto de estudo como “[...] a identidade que se constitui na relação língua, cultura e identidade” (Silva, 2003, p. 174). Assim, o artigo desenvolve uma discussão acerca da alfabetização na formação da identidade antes de seguir com um conjunto de reflexões e indicações para docentes que trabalham com a alfabetização de adultos em contextos de pluralidade cultural. Em outro artigo (Silva & Minvielle, 2019), parte-se de uma discussão legislativa sobre a educação como direito dos sujeitos imigrantes10, argumentando que a garantia do acesso per se não asseguraria o direito, uma vez que muitos estrangeiros não conseguiam dar continuidade a seus estudos por conta de, entre outras questões, dificuldades na compreensão da língua portuguesa e de negligência da instituição para com essas dificuldades. Assim, a pesquisa se propôs a
[...] investigar se há fundamentos da Pedagogia Social11 nas iniciativas de oferta de cursos de língua portuguesa no início da trajetória escolar de migrantes e refugiados, bem como a importância/relevância desses fundamentos no seu processo de socialização, integração e garantia de direitos nas sociedades de acolhimento (Silva & Minvielle, 2019, p. 111).
Nos artigos que focalizaram o ensino de língua portuguesa para imigrantes - principalmente em sua vertente alfabetizadora -, despontam dois movimentos argumentativos: um atrelado à identidade; outro, ao direito à educação. Em relação ao primeiro, a língua materna do imigrante aparece como uma garantia e um marcador identitário que deve ser respeitado no interior das instituições educativas. Entretanto, o acesso à língua local é entendido como um meio para que o estrangeiro não só comunique sua identidade, mas também para que ele se familiarize com a dos locais. A língua, portanto, surge como um delimitador e um mediador da alteridade. No segundo movimento, o ensino da língua local é tido como pré-requisito para garantir o direito à educação, sob o preceito de que, sem ele, não seria possível assegurar condições mínimas de comunicação para o acesso ao ensino prestado nas instituições formais de ensino e, também, para o convívio no interior da comunidade escolar.
Finalizando a discussão sobre os estudos que se debruçam sobre temas ligados aos dias atuais, resta uma pesquisa que julgamos se aproximar do debate sobre direitos humanos, agora em diálogo com a educação infantil. No artigo (In) visibilidade das crianças imigrantes na cidade de São Paulo: questões para pensar a cidadania da pequena infância (Nascimento & Morais, 2020), partindo do argumento de que no Brasil há escassa produção acadêmica voltada à infância em contextos migratórios, as autoras afirmam que, apesar de haver documentos legislativos e políticas públicas que reconhecem e defendem os direitos das crianças, o foco dessas normativas se restringe à proteção dos direitos básicos à saúde e à educação. Entretanto, haveria certa negligência em relação ao reconhecimento das crianças imigrantes como sujeitos sociais e do seu direito de participação na sociedade, fundamental para o exercício da cidadania dos infantes. A pesquisa optou por realizar um debate de caráter abrangente, atentando para a presença de crianças imigrantes na rede municipal como um todo, sem se dedicar exclusivamente a nenhum grupo étnico ou instituição escolar específica.
Considerações finais
Retomando o percurso realizado até aqui, é possível afirmar que as instituições escolares, nos estudos que investigaram acontecimentos passados, consistem em um importante vetor da ação estatal em atenção à chegada dos imigrantes estrangeiros no País. Nesse sentido, a expansão do sistema público de ensino paulista e a valorização da alfabetização emergiram como respostas à variedade de instituições escolares estrangeiras que nasciam entre as comunidades alóctones. Urgia a integração dos imigrantes à sociedade brasileira/paulista, na medida em que eles suspendiam, em alguma medida, os contornos da identidade local em construção. Daí a escola como um bastião do ‘espírito nacional’.
Nos estudos que se voltaram para o presente, a integração dos imigrantes pela via escolar também desponta como uma urgência, mas agora na esteira da lógica do direito universal. A escolarização e o ensino da língua nacional para os alóctones figurariam como um dever do Estado para com os estrangeiros, possibilitando-lhes assim sua integração real. Entretanto, seria necessário que esse processo atentasse para as diferenças culturais, ou seja, cumpre ensinar a cultura local, resguardando a do estrangeiro. Preserva-se, assim, a diversidade constituinte de qualquer população, sem com isso colocar em risco a coesão necessária para garantir sua suposta unidade como conjunto.
Se a escola de antes era tida como uma instituição de defesa contra a tomada do local pelo estrangeiro, segundo uma espécie de jogo de contraposição à imagem exógena do imigrante, a educação de agora firmar-se-ia como um vetor capaz de governar as diferenças, propondo-se a incluir os imigrantes e a zelar por sua incorporação na vida social. Entretanto, não se atesta aqui uma inversão do papel da escola nas duas temporalidades, pois em ambas a prática educativa almeja a absorção do imigrante. Trata-se, pois, de uma sofisticação na forma como se imagina esse movimento aglutinador: da oposição beligerante às diferenças à engenhosa sutileza da inclusão normativa. Daí concluirmos que as práticas educacionais se configuram não apenas como uma estratégia unilateral do Estado para com os estrangeiros. Ao contrário, elas instituem-se inexoravelmente no ambíguo jogo de demandas e recusas característico das transações entre governamento e população.
Retomando a noção foucaultiana de governamentalidade, toca-nos reconhecer que a presença de pessoas estrangeiras no território paulista, ao longo de sua história, apresenta-se de modo agonístico em relação à constituição identitária da população local, na medida em que foi a entrada massiva de estrangeiros que, de um lado, pavimentou o aumento exponencial da população paulista e, de outro, não cessou de configurar os limites do governamento populacional pelo Estado.
Estamos aqui, portanto, no cerne dos processos de governamentalização social, uma vez que a população não seria apenas um objeto a que se visa governar, mas que sua gestão seria o próprio objetivo pelo qual se governa. Recordemos que, em Segurança, território, população, Foucault descreveu precisamente como teria emergido na Modernidade
[...] um Estado de governo que já não é essencialmente definido por sua territorialidade, pela superfície ocupada, mas por uma massa: a massa da população, com seu volume, sua densidade, com, é claro, o território o qual ela se estende, mas que de certo modo não é mais um componente seu (Foucault, 2008, p. 145).
Ao longo deste artigo, buscamos demonstrar, por meio dos estudos escrutinados, como a chegada e a permanência de estrangeiros no estado de São Paulo têm se apresentado como pontos de tensão no que diz respeito ao problema populacional. Nessa direção, parece-nos que a inclusão social dos imigrantes não pode mais ser entendida como apenas uma questão de observância de direitos, mas sobretudo como uma necessidade política na medida em que a própria atuação do Estado é definida em virtude dos arranjos e das vicissitudes dos grupos populacionais que são, por ele, governados. Sem um elemento, o outro não subsiste, portanto. Assim, ao tomar a imigração como um vetor agonístico na constituição das populações, claro está que isso não se dá como consequência de uma suposta dicotomia entre nacionais e estrangeiros ou, então, entre os que estão no centro e aqueles que estão à margem de determinado enquadre societário. A potência dos processos de governamentalização social reside justamente na indistinção, em última instância, de ambos os domínios populacionais, redundando em um compósito de forças complementares, à moda de um móbile ético-político a projetar movimentos que se desdobram uns dos outros incessantemente.
Com isso em vista, os estudos analisados aqui nos encaminham para duas conclusões principais. A primeira: a continuidade da imigração como um ponto de tensão marcante na constituição populacional paulista. Assim como a imigração representava no final do século XIX e início do XX um problema político que desestabilizava a sociedade local, nos tempos atuais ela persiste como um fator de atrito social na medida em que ainda figuram problemáticos os modos de lidar com esses sujeitos que, mesmo forasteiros, são igualmente responsáveis por aquilo que constitui a própria singularidade da sociedade paulista. São Paulo continua sendo, a rigor, uma terra de estrangeiros, pois.
Daí decorre uma segunda conclusão que é possível subtrair dos textos aqui escrutinados: é na escolarização que se deposita a esperança de equancionamento da tensão acima evocada. Em ambas as temporalidades focalizadas, tanto quando se critica a beligerância das políticas públicas da Primeira República, como quando se tecem diagnósticos sobre os sucessos e fracassos das políticas atuais, à escola é atribuída a tarefa, por excelência, de governar a diversidade e de mediar os conflitos populacionais envolvendo a imigração.