Introdução
Os programas de pós-graduação profissionais no Brasil foram reconhecidos pela Portaria nº 80/1998, da CAPES; contudo, segundo Hetkowski (2016), a implantação do primeiro programa na área educacional ocorreu apenas em 2009, direcionando-se para a gestão e avaliação da educação pública, vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Desde então, os mestrados profissionais em educação vêm crescendo de maneira exponencial nos últimos anos, multiplicando-se em território nacional, principalmente para atender profissionais que atuam na educação básica pública, expandindo-se para os doutorados profissionais em educação, os quais caminham pelas mesmas perspectivas de formação e produção sobre/no ambiente de trabalho.
Esses programas são ofertados na modalidade stricto sensu e solicitam pesquisas aplicadas, considerando-se os aspectos profissionais e o ambiente de trabalho dos estudantes como propulsores para problematizações e intervenções, através do elo entre a educação superior e educação básica (Fialho & Hetkowski, 2017). Em seu bojo, os cursos trazem proposições para modificação da própria prática docente e/ou de temáticas que atravessam o campo profissional da educação, enfatizando o desenvolvimento de produtos educacionais a partir de pesquisas aplicadas/interventivas.
Costumeiramente, as pesquisas em mestrados e doutorados profissionais têm caráter intervencionista. No entanto, é importante evocar algumas ponderações (teóricas), pois a intervenção não é apenas uma prática a ser realizada quando se refere ao campo da pesquisa acadêmica. Para Teixeira e Neto (2017, p. 1056), “[...] pesquisas de Natureza Interventiva seriam práticas que conjugam processos investigativos ao desenvolvimento concomitante de ações que podem assumir natureza diversificada”. Os autores alertam para o uso indiscriminado dessa possibilidade de pesquisa, considerando-se a existência de diversas nomenclaturas como: pesquisa-ação, pesquisa participante, pesquisa ativa, entre outras; além disso, destacam a falta de cuidado “[...] com os pressupostos epistemológicos, teóricos e metodológicos, além de concepções de mundo e de educação que deveriam sustentar as nossas escolhas quando desenvolvemos um trabalho de pesquisa” (Teixeira & Neto, 2017, p. 1057).
Hetkowski (2016) afirma que a pesquisa aplicada/intervenção, na modalidade profissional, advém de questões e problematizações baseadas no cotidiano do pesquisador; sendo assim, “[...] intervém, cientificamente, no contexto estudado e estimula o pesquisador suplantar a dimensão discursiva e epistêmica, ampliando as possibilidades de propor e atuar, junto a um coletivo, na busca de soluções reais para problemas reais” (Hetkowski, 2016, p. 22). A autora menciona alguns elementos condicionantes para a intervenção, como o engajamento, o conhecimento do espaço, dos sujeitos e a participação destes na pesquisa.
Considerando esse caráter propulsor da pesquisa intervencionista nos programas de pós-graduação profissionais em educação, o presente estudo se norteia pela seguinte questão: o que pode a experiência filosófica de Deleuze tensionar aquilo que se entende por intervenção para programas de pós-graduação em mestrados profissionais na área de educação?
Servimo-nos de algumas ferramentas conceituais de Deleuze e Guattari para (re)colocar algumas problematizações sobre esse tema tão caro e importante para os programas de pós-graduação profissional em educação. Salientamos a necessidade do cuidado em recorrer a tais autores nesse campo de discussão, haja vista que eles não tomaram diretamente a educação como problema filosófico - quiçá mestrados e doutorados profissionais em educação - em seus universos de investigação. Assim, procuramos trazer algumas aproximações da filosofia desses autores com o ato de intervir como prática de composição. Não se trata de criar mais uma categoria para as pesquisas de natureza interventiva, mas de lançar algumas problematizações sobre a intervenção no universo da pesquisa em educação em programas profissionais, sem nos descuidar das questões epistemológicas inerentes.
Para efeitos didáticos, o corpo textual foi organizado em três seções: I) Pesquisa intervenção nos mestrados profissionais no Brasil - em que apresentamos uma breve descrição sobre pesquisas em mestrados profissionais que utilizam a intervenção e têm como configuração teórica a filosofia da diferença proposta por Deleuze; II) Da intervenção: algumas contribuições - em que discorreremos sobre algumas possíveis contribuições de Deleuze para aquilo que se entende como intervenção; e III) Intervenções textuais - em que, tendo como eixo sensível as forças que atravessaram nossos corpos, exercitamos uma intervenção textual em uma pesquisa encontrada na plataforma CAPES.
Pesquisa intervenção nos mestrados profissionais no Brasil
Nesta seção, antes de nos debruçar sobre as problematizações acerca da intervenção, apresentamos um breve levantamento de produções acadêmicas que envolvem a temática proposta. Para tal, realizamos uma busca por trabalhos já desenvolvidos, registrados no Catálogo de Teses e Dissertações da Plataforma CAPES (Tabela 1), utilizando os seguintes descritores: I) ‘Intervenção’ AND ‘Deleuze’ e II) ‘Pesquisa Intervenção’ AND ‘Deleuze’. Inicialmente, definimos tais descritores visando realizar a busca atentando para as pesquisas que desenvolveram intervenções com base no pensamento de Deleuze, especificamente nos mestrados e doutorados profissionais em educação. De forma simultânea, nos descritores mencionados, utilizamos os seguintes filtros: ‘Tipo’ (Mestrado Profissional)1; ‘Grande Área de Conhecimento’ (Ciências Humanas); ‘Área de Conhecimento’ (Educação). Não utilizamos recorte temporal, tendo em vista a quantidade reduzida de trabalhos encontrados. Então, selecionamos todas as pesquisas localizadas após a utilização dos filtros, sendo essas produções acadêmicas datadas entre o período de 2015 a 2018.
Da busca realizada, obtivemos os seguintes resultados: no descritor ‘Intervenções’ AND ‘Deleuze’, encontramos 166 trabalhos e, com a aplicação dos filtros, restaram apenas seis; no descritor ‘Pesquisa Intervenção’ AND ‘Deleuze’, encontramos 56 trabalhos e, aplicando-se os filtros, restou apenas um. Os trabalhos encontrados estão listados na Tabela 1.
A Tabela 1 elenca uma quantidade reduzida de autores que se aventuram nas produções acadêmicas interventivas baseadas na filosofia da diferença, especificamente com ênfase nas perspectivas e conceitos de Deleuze. Nos mestrados profissionais em educação no Brasil, encontramos apenas sete estudos, sendo que o trabalho intitulado ‘Com as letras e as palavras: ensino de arte e alfabetização’ (Benevit, 2015) se repete nos dois descritores. Dessa forma, na verdade, temos somente seis trabalhos envolvendo a temática em foco, com ênfase para a região sudeste do país.
Dentre os trabalhos encontrados, destacamos a pesquisa de Rodrigues (2016), que se reporta ao corpo deficiente feminino e procura explorar a potência desses corpos em suas multiplicidades, ao intervir com/pela dança nas aulas de educação física. Baseando-se na filosofia da diferença, a autora considera as possibilidades do bailar, almejando o contato, as trocas, a sensibilidade de um corpo. Os movimentos que Rodrigues (2016) trilha pela/na pesquisa propõem uma experimentação com o outro, tendo a dança como maneira de se expressar, improvisar e inserir-se culturalmente.
Permanecendo no campo da educação física, Fidalgo (2015) realiza uma cartografia em suas aulas, experimentando a utilização de jogos educativos que visam a cooperação e não a competitividade característica presente nas aulas desse componente curricular. O autor percorre um caminhar de (re)invenção das formas de se relacionar com o outro e com o conhecimento por meio de jogos; essa estratégia pode criar linhas de fuga, intervindo diante de uma relação que, por vezes, pode ser competitiva e excludente no âmbito escolar, desviando-se para o múltiplo, para a cooperação, jogando e bailando em conjunto.
Tabela 1 Pesquisa no Catálogo de Teses e Dissertações CAPES.
Descritor 1 - “Intervenção” AND “Deleuze” | ||||
Ano | Instituição | Autor | Título | Objetivo |
2016 | Universidade Federal do Paraná | Rodrigues, Michele Caroline da Silva | Cartografias do sensível - o corpo deficiente feminino nas aulas de educação física | “Problematiza a invisibilidade dos afetos e, portanto, o reconhecimento de si do corpo deficiente feminino, corpo que se refere às jovens com deficiência intelectual leve estudantes da APAE de Curitiba; corpo que se apresenta como objeto de estudo e para o qual se organizou um trabalho de intervenção nas aulas de Educação Física” |
2015 | Universidade Federal do Paraná | Fidalgo, Mário Cerdeira | Cartografias dos jogos cooperativos nas aulas de educação física | “[...] empreender uma cartografia das aulas de Educação Física Escolar, reconhecendo nos jogos cooperativos um meio para contrapor a lógica competitiva que rege o ensino das práticas corporais e que condiciona esta disciplina a uma relação subserviente ao Esporte”. |
2016 | Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio Grandense | Rivaroli, Ana Paula dos Santos | Natureza: cartografando saberes e suas conexões na escola e na vida | “Entender que somos parte da natureza, desse todo maior e atentarmos à problematização de alguns temas pertinentes à vida [...]”. |
2015 | Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio Grandense | Benevit, Roberta | Com as letras e as palavras: ensino de arte e alfabetização | “[...] problematiza a produção da escrita como espaço onde ocorre uma poética que incorpora “erros” e acasos, o que chamamos de produção poética verbo-visual”. |
2017 | Universidade do Vale do Rio dos Sinos | Campesato, Maria Alice Gouvêa | Tempos líquidos, paredes sólidas: percepções das relações tempo/espaço no currículo escolar | “[...] analisar de que formas as relações tempo/espaço contemporâneas são percebidas no cotidiano escolar pelos professores dessa instituição, e como tais relações afetam o currículo”. |
2018 | Universidade Estadual da Paraíba | Alves, Risolene Joana | As mulheres negras de um nordeste em trânsito em “As mulheres de Tijucopapo”: uma proposta pedagógica | "Compreender o enlace entre negritude, em especial da mulher negra e diáspora no romance As mulheres de Tijucopapo, com ênfase numa proposta pedagógica”. |
Descritor 2 - “Pesquisa Intervenção” AND “Deleuze” | ||||
2015 | Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio Grandense | Benevit, Roberta | Com as letras e as palavras: ensino de arte e alfabetização | “[...] problematiza a produção da escrita como espaço onde ocorre uma poética que incorpora “erros” e acasos, o que chamamos de produção poética verbo-visual”. |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Baseando-se em Deleuze e Guattari, Rivaroli (2016) busca cartografar as experiências realizadas na escola, bem como na vida da própria pesquisadora, a fim de entender a articulação entre o ambiente, o social e a subjetividade humana, conforme as três ecologias de Guattari. Nessa perspectiva, a autora se movimenta com os estudantes para problematizar o antropocentrismo, intervindo com estes no assistir, no desenhar, no escrever, no experimentar (não necessariamente nessa ordem), uma maneira outra de ver, de pensar com/na natureza.
Entre o ‘certo e errado’ na alfabetização, Benevit (2015) propõe ensinar letras e palavras em conjunto com a arte, (re)inventando com os ‘erros’, criando processos de abertura para uma prática livre e criativa da escrita, leitura e imagem das palavras. Com a utilização da cartografia, a autora provoca problematizações para além do assertivo, buscando, nos acontecimentos e ‘erros’, formas outras de expressar-se e criar como produção artística. Os desvios propostos por Benevit (2015) intervêm na prática, no “descarte” daquilo que não é considerado correto, intervém e produz.
Campesato (2017), por sua vez, problematiza o tempo e o espaço e seus reflexos no currículo escolar. Esses elementos se constituem como primordiais para o entendimento do sujeito que se pretende formar. A autora dialoga com professores/as para problematizar essas questões, perceber as potências do espaço, bem como as interferências que ocorrem a partir de um tempo e espaço controlados e para a entrega de resultados. A intervenção e/ou proposta nasce desses encontros, do pensar com o outro.
Alves (2018) desenvolveu sua pesquisa em busca de um outro olhar para a literatura, de modo que esta possa ser vista e experienciada para além de um componente curricular no âmbito escolar. O estudo se voltou para o protagonismo e resistência da mulher negra; para tanto, a autora trabalhou com o romance As mulheres de Tijucopapo, levando-o para a sala de aula e construindo produções de leitura e escrita por meio de oficinas, tendo a produção como criação na prática de escrever e descobrir ‘mundos no mundo’.
Para além das investigações citadas, grande parte das pesquisas realizadas em nível de pós-graduação, principalmente no que se refere à modalidade profissional, apresentam um caráter dual nas práticas de intervenção: o pesquisador e o pesquisado ou aquele que intervém e aquele (ou aqueles) objeto da intervenção. Ao que parece, o ato de pesquisar nem sempre consegue subverter a lógica dual sujeito/objeto, partindo-se de um sujeito que busca atuar sobre seu objeto. De alguma maneira, arranha-se o sujeito ou o objeto até encontrar-se um rosto.
Nesse contexto, convocamos uma série de procedimentos metodológicos para responder algumas perguntas: ‘Quem é este sujeito que pesquisa?’; ‘Quem são aqueles pesquisados?’; ‘Como mudar tal realidade?’... Mas, antes disso, questionamos: ‘O que é essa realidade?’; ‘O que essa pesquisa tem a contribuir para sairmos de um estado (educacional) inferior para superior?’.
Ao pesquisar, dificilmente conseguimos sair de certas lógicas tão naturalizadas, calcadas em certos modelos de intervenção. Tomamos a pesquisa científica para produzir a regra, uma lei, uma verdade, conformar o professor e o aluno a partir de um método e dizer-lhes: ‘esta é a melhor forma para se ensinar e para se aprender’, assumindo uma forma de intervir moralizante, com vistas à produção de uma prescrição, não sendo incomum encontrarmos em pesquisas educacionais expressões do tipo: “O professor/aluno/gestor deve...”, “é necessário...”, “é preciso...”, “tem que...” (Chaves, 2013, p. 127). Porém, entendemos que é possível se produzir outra imagem para a intervenção, envolver-se com outras formas de vivenciá-la, estar à espreita e cultivar um modo de prestar atenção como intervenção.
Da intervenção: algumas contribuições
Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída; à direita, à esquerda, para onde quer que fosse; eu não fazia outras exigências; a saída podia também ser apenas um engano; a exigência era pequena, o engano não seria. Ir em frente, ir em frente! Só não ficar parado com os braços levantados, comprimido contra a parede de um caixote. Um pensamento livre (Kafka, 1994, p. 60-61).
No campo da filosofia da educação, não é incomum a crítica ao sujeito moderno (Gallo, 2008; Brito, 2012). Ousamos dizer que esse foi um dos conceitos mais importantes para a modernidade, bem como para o processo educacional que ali estava sendo forjado. Entendia-se o sujeito como um grande pressuposto da centralidade do EU, sem possíveis assujeitamentos, que se emanciparia por meio da razão; logo, o sujeito seria dotado da capacidade de intervir num mundo que se apresentaria como solo amorfo e inerte. Por isso, uma ideia chave para tal enclave é a noção de intervenção, sobretudo quando se pensa a educação. Ora, o sujeito autocentrado precisa intervir na educação formal, sendo esta uma atitude importante para a condução do ato pedagógico a um caminho linear de subjetivação de corpos segundo a norma.
Decerto que, para Deleuze, uma intervenção não se preocuparia com a metafísica dualista sujeito/objeto, isto é, um sujeito analisando o objeto (abstração ou outro sujeito); essa condição positivista já fora questionada pelas pesquisas intervencionistas mais contemporâneas, segundo as quais o que se deve ter são relações, a fim de transformar a realidade a partir dos sujeitos participantes da pesquisa, incluindo-se o pesquisador (Teixeira & Neto, 2017). Entretanto, mesmo entendendo que ocorrem as relações, os polos ainda são evocados e a dualidade (sujeito/objeto) prossegue instalada. Então, um processo educativo que recuse as dicotomias busca por intervenções, tendo como premissa o ato criativo na educação, pois, de acordo com Tadeu (2002, p. 54),
Somem o sujeito e o objeto. Nada disso importa. Como problema, bem entendido. Não se trata mais da questão da formação ou do desenvolvimento de um corpo - o do saber-objeto ou o do educando-sujeito. O que interessa agora é saber quais composições são feitas e quais composições podem ser feitas e se elas são boas ou más do ponto de vista da potência de agir. Passar da formação para a composição, do desenvolvimento para a combinação, da organização para o agenciamento.
Deleuze lança mão de uma filosofia que faça uma crítica radical a qualquer dualismo, principalmente ao dualismo sujeito/objeto. Logo, pensar numa intervenção seria se distanciar de noções que ainda relacionam um sujeito e um objeto, não mais problematizá-las ou confiar nessa realidade embasada numa ideia moderna, essencialista e de verdade. Com o filósofo, teríamos uma dobra ou contribuição dentro de outro campo teórico para dilatar ou fabular uma intervenção.
Aquele que intervém não se deteria a um sujeito monolítico, não existiria mais um Eu Moderno; conforme dizem Deleuze e Parnet (1998, p. 109), “[...] não há mais formas [pré-existentes], mas relações cinemáticas entre elementos não formados; não há mais sujeitos, mas individuações dinâmicas sem sujeito”. É nesse sentido que Deleuze contorce a individuação com Simondon, um princípio fundamental para sua filosofia, a fim de contrapor a noção monista e o hilemórfico dual do indivíduo (Damasceno, 2007). Assim, aquele que intervém seria uma espécie de sujeito larvar, um período pré-individual, o qual se compõe com um mínimo de aparelhamento estratificado e numa “[...] matéria informal variável, uma modulação intensiva das forças, uma matéria intensa e não formada que ainda não se configurou enquanto composição estável” (Damasceno, 2007, p. 84).
Desse modo, a intervenção deve ser pensada para além da pedagogização, da formação e condução dos corpos, pois o que interessa é a sua construção no coletivo, um exercício que atualiza algo novo, criando novas realidades e experiências que culminam num aprender alegre e festivo. A intervenção toma uma proporção em que aquele que intervém devora e é devorado. Não se enxerga mais pesquisador ou professores/alunos a partir de uma delimitação maniqueísta; ao contrário, enxerga-se um coletivo rico de pensamento, imbuído numa profundidade que atarraca o sentido superficial que muitas vezes se atribui a uma intervenção: transformar uma realidade a partir de um certo controle.
Em sua filosofia, Deleuze (2003) prioriza as multiplicidades e não se refere a um sujeito previamente. De igual modo, ao nosso ver, a educação pode ser tomada como uma teoria das multiplicidades, sem a necessidade de se recorrer ao sujeito, pois compreendemos a noção de sujeito como aquele que intervém, não cumprindo mais com esse novo problema que se instaura na pesquisa em educação. Assim, o que pode este que intervém? Emitir signos. A intervenção se dá sempre a partir de uma força sobre a outra, uma violência que vem do fora, um corpo estranho que afeta e atarraca os sentidos que tendem a almejar pelo equilíbrio, pela norma e pelo já dado.
O pesquisador não é representante do aluno e nem do teórico; é tão somente uma fina linha de vida que dispara signos; ou, como dizem Deleuze e Guattari (2013, p. 78) a respeito do filósofo: “[...] é somente o invólucro de seu principal personagem conceitual e de todos os outros, que são os intercessores, os verdadeiros sujeitos de sua filosofia”.
Em primeira instância, a intervenção é relacional e não tem a ver com a análise de uma empiria de um recorte social-educacional. O importante são os intercessores acionados, enquanto mobilizadores de criações, que não necessariamente são sujeitos; os intercessores podem ser qualquer coisa. Nesse sentido, poderíamos dizer que a filosofia deleuziana se dá por meio desses intercessores que ajudam na produção de toda uma malha conceitual filosófica; logo, a vida não está numa instância e o pensamento em outra. Para Deleuze (1988, p. 156), é importante “[...] fabricar seus próprios intercessores [...]”, os quais produzem efeitos nos corpos. Nas palavras do autor,
O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores (Deleuze, 1988, p. 156).
Se, para intervir, uma possibilidade é a produção de intercessores, talvez a pesquisa na escola possa ser tomada de outro meio, a fim de resistir, pois criar é efetivamente resistir. Os intercessores são utilizados para criar uma nova escrita, uma nova forma de se relacionar consigo mesmo, com os outros e com a pesquisa, para produzir outra educação possível. Assim, na pesquisa intervencionista, temos possibilidades de realizar algumas aberturas para que outras existências sejam consideradas.
Ao que parece, não há como se pensar a pesquisa sem se pensar a intervenção, sem se dispor a pensar em algo que já delimita um campo de forças onde o pesquisador e o ‘objeto’ se colocam em relação. Ao invés de utilizar o dualismo sujeito/objeto, há de se pensar no que Deleuze e Guattari (2003) denominam como agenciamento coletivo de enunciação. Ao discorrer sobre a expressão em relação às ditas literaturas menores, ou melhor, não de uma língua menor, mas de uma “[...] língua que uma minoria constrói numa língua maior” (Deleuze & Guattari, 2003, p. 38), os autores destacam que: (1) a língua é afetada/modificada por um forte componente de desterritorialização; (2) tudo na literatura menor é político; (3) tudo adquire um valor coletivo.
Deslocando tal discussão para problematizar a pesquisa, podemos dizer que, a depender da sua postura em relação à investigação, o pesquisador é envolvido por um forte componente de desterritorialização e pode até acreditar que age sozinho; porém, tudo adquire um valor coletivo e interventivo. Desse modo, o que ele diz constitui uma ação comum e é, necessariamente, político, pois exprime um agenciamento coletivo de enunciação e não uma enunciação individuada.
Nessa perspectiva, apostamos em uma intervenção que propõe uma co-experimentação, na qual as noções de sujeito e objeto não dão mais conta do que se produz ali; é um campo de forças e afetações; um fino e potente intervir, que faz ver, abrindo passagem aos encontros, arrebatando a inércia e afirmando o devir, alianças e conexões heterogêneas. Ora, nessa intervenção, o mais importante não é o início ou o fim, mas o entre, a passagem, o meio, onde o tempo é o do acontecimento e a zona é a das intensidades.
Por isso, quando se pensa a intervenção aliada aos devires, seria difícil prosseguir com a noção clássica apresentada inicialmente, pois, para a pesquisa em educação, o “[...] devir não pode ser visto como resultado, uma transformação [...] de saída de algo inferior para o superior” (Brito, 2011, p. 242). Logo, a escrita de pesquisas que não se dissociam da produção empírica não enseja a ideia de refletir sobre um dado ou mesmo um ilogismo; a intervenção aliada aos devires traz uma política da escrita que a entende como modo de vida, que é puro encontro vital e de criação.
Longe de dizer que quem intervém é unicamente o pesquisador! Caso isso fosse dito, cairíamos no embate anteriormente mencionado acerca do sujeito moderno. Ao contrário, compreendemos aquele que intervém como aquele que está aberto aos encontros e, mais que isto, potencializa-os, produz todo um ambiente para que tais encontros proporcionem um pensamento coletivo, intensificando as potências do devir, pois uma intervenção é um acontecimento, um movimento.
Ora, lançamos mão da partícula ‘com’, pois a pesquisa intervencionista não se deteria a pesquisar ‘sobre’. Sendo assim, a pergunta deleuziana, inspirada em Artaud, “O que pode um corpo?” é arrastada para a problemática, ajudando-nos a perguntar: o que pode uma intervenção? Definidamente, não sabemos a resposta de antemão.
Nessa esteira do ‘com’, Moraes (2010) propõe o ‘pesquisarCom’. A autora parte do campo da psicologia para pensar uma forma de pesquisar que, segundo ela, não flertaria com os moldes da ciência moderna. O pesquisarCom está no campo da coletividade, onde o eixo dual pesquisador/pesquisado se rompe, fazendo brotar uma forma de se entender a pesquisa que não julga e sim conecta. Ademais, tem-se outra forma de se entender a pesquisa; o que mais nos chama atenção é a noção de que o pesquisarCom consiste em “[...] tornar-se com o outro, transformar-se, produzir mundos que se articulam, se compõem” (Arendt, Moraes, & Tsallis, 2015, p. 1156), um argumento fomentado, segundo os autores, a partir de Donna Haraway, mas que, certamente, tem muito a dialogar com Deleuze. Podemos, portanto, tomar como inspiração o pesquisarCom como uma das formas de se pensar a intervenção como um ato de intervir com aqueles corpos presentes, que não se delimitam sobre uma ordem do humano.
Não se trata de buscar por uma identidade, de extrair um conhecimento daqueles que estão sendo pesquisados. Parece-nos que a educação, assim como a psicologia moderna (Moraes, 2010), tem certo encanto por rostos e essências, na ilusão de um dia conseguir decifrá-los. Mais que obter uma verdade, compor mundos - onde se apresenta toda uma sensibilidade aos signos e às afecções, que é pura contingência -, não se tem um controle, no seu sentido de identificação e resolução, mas de embaralhar as linhas que tracejam um rosto. Não se trata de um território sem embates e contra-argumentos, onde todos pensam de maneira igual. A intervenção dialoga com o diferente, dá voz àqueles que não são escutados, a fim de produzir sempre algo novo; mesmo quando se apresentam retornos, estes sempre são diferentes e parciais.
Assim, a pesquisa que se utiliza dessa ideia de intervenção não tem comprometimento procedimental com um método fechado. De todo modo, não se despreza o método, conforme foi pensado por Descartes, e seu controle científico, pautado no solo estável da razão, ou mesmo da ciência positivista; tais conceitos têm sua importância na incursão do pensamento de outras narratividades.
Ora, graças à filosofia moderna, a Ciência adquiriu seu patamar e, por isso, podemos lançar mão de questionamentos e propor outras saídas - a partir de outros campos - para se pesquisar. É exatamente isso que propomos aqui. Se a intervenção fizer uma espécie de contorno ao método, mas sem a ele se opor radicalmente, estaremos diante de uma força da experiência, no sentido deleuziano, que não tenta prever, mas sim abrir caminhos e produzir rachaduras nos muros. Entendemos que a cada encontro surgem vários signos, forças heterogêneas que atuam a partir de conexões; portanto, para entender o fenômeno, não precisamos realizar um recorte, uma pincelada; ao contrário, preza-se muito pelo que ele pode causar e suas conexões em multiplicidades.
Na obra Mil platôs, Deleuze e Guattari (2011) fizeram um belíssimo trabalho, no qual não quiseram estudar a Terra, mas compor um pensamento filosófico, tendo como matriz propulsora os movimentos aberrantes da Terra, as multiplicidades de multiplicidades que compõem todo o plano vital. Os autores destacam o princípio da multiplicidade do rizoma no seu emaranhado de conexões; a dicotomia se torna nula e “[...] é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo” (Deleuze & Guattari, 2011, p. 23).
Pensando ainda a partir da Terra e suas composições, trazemos como exemplo a imagem-força do biólogo e a floresta [1] (Silva & Brito, 2020): muitos biólogos costumam realizar seus procedimentos de pesquisa em uma floresta oriunda de um recorte, a fim de estudar algumas variáveis, como o solo, uma espécie de animal, vegetal ou fungo. Mesmo aqueles que estudam as relações entre as espécies são unidirecionais, apoiados num recorte, numa pincelada de controle, na generalidade, imbuídos naquilo de real que o estudo da vida apresenta.
Digamos que o biólogo decida experimentar a floresta de maneira diferente: percorre a floresta e vivencia a experiência de encontros com as rochas, morcegos, vegetais, linhas, guano, folhas, fungos, fazendo desses encontros uma nova materialidade de sensações em seu corpo (que é o profissional biólogo, mas não somente), que é vibrátil aos acontecimentos e entende que se constrói a partir de relações simbióticas; não se preocupa com as filiações, mas com as alianças ali criadas; recusa as classificações estruturais que aprendera com a biologia e, a partir dos movimentos daquela floresta, exercita uma escrita que também é pesquisa, uma manifestação rizomática do que se entende por pesquisa. Pois bem! Tal biólogo estaria diante daquilo que entendemos por intervenção, na medida em que afeta os corpos daquela floresta, pelos quais também é afetado e, sobretudo, cria uma zona de experimentação imagética e escritural, tendo como plano vital a floresta e sua dissolução como biólogo biológico.
Para além de uma ação, no seu sentido físico, intervir pode ser uma pausa que jamais teria a função de salvar seus pesquisados; a pausa promovida pela intervenção seria “[...] aquilo que experimentamos quando, durante um debate, um participante toma a palavra e apresenta aquilo que está sendo debatido ‘de uma maneira um pouco diferente’” (Stengers, 2015, p. 5, grifo da autora). Assim, a intervenção não é sinônimo de convencimento, mas de promover formas que habitam e pensam juntas, tendo em vista que nem todos são obrigados a se sentirem afetados. Não seria oportuno afirmar que, na intervenção, não se busca responder ‘o que fazer?’. Caso isso ocorra, a decepção poderá ser um dos sentimentos ressoantes. É mister pensar a intervenção como uma caixa de ressonâncias que sugere compor juntos.
As noções aqui apresentadas ajudariam a tensionar não apenas as questões teóricas para a pesquisa-intervenção, mas também a propor uma intervenção, tendo como eixo gerador da escrita que poderia nascer da própria intervenção; essa escrita se daria no coletivo, criando-se uma zona de experimentação da escrita ou de um sujeito ou objeto que se distanciam de tal dicotomia para pensar uma educação pelo viés das intensidades (Kohan, 2002). No processo educativo, pesquisas que buscam por intervenções na escuta e na criação coletiva podem contribuir para se pensar em outras configurações de educação.
Aquele que escreve se utiliza da escrita para intervir no mundo, ora integra-se a ele, ora compõe outros mundos possíveis, coopera ao combinar-se com uma forma de vida, para que ambos se façam existir num novo invólucro, porque “[...] o escritor emite corpos reais” (Deleuze, 2013, p. 172). Nesse exercício de escrever, acredita-se no mundo, afirma-se com o mundo.
Na apresentação de seu livro No tempo das catástrofes - resistir à barbárie que se aproxima, Stengers (2015) argumenta sobre a ‘intervenção’, que se materializa em seu livro como força política, como ferramenta inventiva. Intervir, nesse caso, seria promover uma pausa e não uma salvação humanista para determinada situação levantada e, por isso, pode-se abrir mão da instituição escolar como condição salvacionista de uma educação morta; assim, a pausa promovida pela intervenção seria “[...] aquilo que experimentamos quando, durante um debate, um participante toma a palavra e apresenta aquilo que está sendo debatido ‘de uma maneira um pouco diferente’” (Stengers, 2015, p. 6, grifo da autora). Para a referida autora, o ato de intervir estaria longe de convencer, mas sim de promover “[...] para ‘aqueles a quem isso pode afetar’ o que nos faz pensar, sentir, imaginar” (Stengers, 2015, p. 6, grifo da autora).
Desse modo, não há nada de neutro na intervenção proposta pela autora, muito menos uma noção kantiana cosmopolita de intervir para um mundo melhor e mais justo a partir da razão. A intervenção, numa versão deleuziana, à qual Stengers (2015) recorre, seria a procura de novas armas, a criação de armas e de “[...] uma vida que explora conexões com novas potências de agir” (Stengers, 2015, p. 6). Se o livro citado é uma ferramenta interventiva, não seria oportuno afirmar que na intervenção não se busca responder ‘o que fazer?’. Caso isso ocorra, a decepção poderá ser um dos sentimentos que ressoará. É pensar a intervenção como uma caixa de ressonâncias, promovendo uma dobra no mundo.
Intervir torna-se um movimento - nem sempre esperado - que se conecta a partir de pistas do caminho trilhado, o qual deixa de ser uma via unilateral e neutra. Apenas o sujeito participante precisa de intervenção? O pesquisador é detentor de todo o conhecimento para agir sobre o objeto de pesquisa? Procuramos pensar em uma intervenção que acontece simultaneamente, que é construída em conjunto e age sobre os corpos participantes. Percorre-se o rizoma nas suas conexões e, em meio às pistas, pesquisador e participante(s) constroem possibilidades no real. Nessa esteira, age-se em escalas microssociais, até alcançar um nível mais amplo. Conforme Guattari (2012), é importante intervir em um contexto local, abrir uma fresta na maneira de relacionar-se consigo, no social e ambiental, experimentar possibilidades para (re)criar formas de ensinar, de aprender e, principalmente, de viver sobre/com esta Terra.
Sendo assim, numa pesquisa, a intervenção pretende produzir no cotidiano escolar uma captura que traça os percursos dos processos, dos líquidos caminhos que delineiam seus mapas, suas redes, marcações das atividades e movimentos de alunos, a fim de saber o que afeta seus corpos que brincam e que educações são inventadas. Aquele que intervém deve se destrajar de pesquisador neutro, direcionando seu olhar para o conjunto de artefatos produzidos pelo coletivo naquela pesquisa.
Considerações finais
O biólogo sente esse suspirar da terra, sente no seu corpo, sente que lateja quando a terra respira... Algo caiu, caiu mesmo, e o biólogo sente que essa queda atritou, disparou horrores, mas também possibilidades de emergir outras vidas. E mesmo que este céu caia que estejamos dançando, a dança pede um sonho com a terra e com outras terras ainda possíveis. Quando as forças se findarem e o peso do céu estiverem insuportáveis não sinta, não pare, não chore! Experimente dançar! Dance enquanto o céu cai, aproveite e vislumbre as estrelas, chame-as para dançar durante a queda, afinal não se sabe o que acontecerá. Esta é a hora de ver o céu mais de perto, senti-lo no corpo. Diante disso, não se sabe se tudo virará poeira cósmica. E se virar, disperse-se na poeira, torne-se molecular e ajude a compor novos céus (Silva, 2018, p. 63).
Para a produção empírica da intervenção como poética textual, considerando-se o processo e não apenas um produto final, o olhar deve ser direcionado ao conjunto de artefatos produzidos pelo coletivo, tendo como imagem-força aquilo que fervilha naquele lugar, as produções de forças, a fim de realizar uma triangulação de materialidades empíricas. A busca por encontros com corpos não se limita a uma esfera específica: a sugestão é um olhar nômade e vagabundo e, quem sabe, inventar uma nova forma de olhar um mesmo elemento que já fora visto tantas vezes, promovendo encontros que geram acontecimentos, buscando potencializar ainda mais tais acontecimentos, tendo como força geradora desse conceito o acaso e, com isso, criar um mapa desses encontros, que será a intervenção.
Intervenção é também deixar-se ser afetado de modo alegre, na composição de um plano de imanência, para saber o que pode uma intervenção e quais os seus afetos, suas forças de afetos, a fim de produzir um mundo e formadores de mundos. É interessante perceber que aquele que intervém desaparece, não está na centralidade da vida. Assim, queremos produzir outros caminhos compartilhados. Compreendemos a intervenção como produção de acontecimentos, encontros e experimentação de possibilidades. A intervenção, nesse sentido, deixa de ser uma via de mão única, tornando-se uma afetação mútua entre pesquisador e participante(s) do estudo.
Sendo assim, nesta pesquisa, não objetivamos realizar uma genealogia da intervenção como um conceito a ser esgarçado, mas nos situar como um artista que, ao olhar para uma tela em branco, ou mesmo um muro esverdeado com musgo, enxerga menos uma matéria inerte do que uma série de acontecimentos narrados pelas linhas, pelo reboco caído, pelo picho envelhecido, vislumbrando potencialidades de, a partir desses elementos, produzir intervenções naquele lugar e em si. São camadas e camadas de histórias naquele muro, do qual emergem textos dizendo sobre um acontecimento de um ‘passado’; porém, esse ‘passado’ está ali: é a conclusão de um tempo acontecimental em que o passado e o futuro se fazem presentes numa parede que conta, fala e interage, pois, como a intervenção, é uma questão de vida ou morte para aqueles que a levam a sério.
Sobre essas questões, algumas pistas são lançadas, atravessadas por experiências em busca de estudos que fazem parte de toda uma trama tradicional de pesquisa em educação, o que não queremos aqui problematizar (não de maneira exaustiva, pois isto já foi feito por demais). Pretendemos, muito mais, produzir processos vitais; buscar pensar sobre a problematização levantada, constituindo a finalidade de uma intervenção com o seguinte objetivo: ‘experimentar possíveis caminhos para pensar intervenções, a fim de promover outras formas de ver a educação’.
Frente a esse panorama, o argumento levantado é que, ao produzir uma política da existência diante da intervenção que se almeja na educação, seriam experienciados novos encontros com o mundo, atuando em intervenções inventivas, que fissurariam um contexto educacional baseado na Modernidade.
Terminamos sem concluir a intervenção no pensamento e propomos uma intervenção textual. Dentre os trabalhos anteriormente apresentados na Tabela 1, no qual elencamos os estudos encontrados em nossa pesquisa junto ao Catálogo de Teses e Dissertações da Plataforma CAPES, escolhemos o estudo realizado por Michele Caroline da Silva Rodrigues (2016), intitulado Cartografias do sensível - o corpo deficiente feminino nas aulas de educação física, a fim de realizar uma incursão escritural outra, nele inspirada.
Tal incursão é uma espécie de intervenção textual, tendo como disparador as intervenções propostas no texto selecionado; uma escrita que, na medida em que acontece, faz pontes e venta algo de novo em cada palavra, frase e experimentação. Como diz Brito (2018, p. 39), os encontros “[...] são captura, roubo, deformações, desastres. Encontrei Deleuze, e roubei Deleuze”; do mesmo modo, encontramos Michele, e roubamos Michele. Conforme destacam Deleuze e Parnet (1998, p. 15, grifo dos autores) acerca do encontro e do roubo,
Encontrar é achar, é capturar, é roubar, mas não há método para achar, nada além de uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e é isso que faz, não algo de mútuo, mas um bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sempre ‘fora’ e ‘entre’.
Nesse encontrar e roubar, há a experimentação do inesperado, a reinvenção do estabelecido. Assim partimos para ‘uma dança com pés leves’. Michele - que, sozinha, já são muitas - produz uma dança da qual viceja um corpo que faz bailado com Espinoza, Nietszche, Deleuze; entretanto, estes não são os filósofos: tratam-se de dançarinos de sua intervenção. A convocação à dança jamais seria aos filósofos, pois existe ali uma transmutação do pensamento.
Dançar seria a expressão máxima da escrita do corpo, pois nela se escreve apenas, doravante, até às pontas dos dedos. Escrevem-se movimentos com o corpo inteiro. Corpos ditos femininos experienciam a dança, que nunca é sozinha, mas tem como composição o contato. O corpo dito deficiente, em que limitações são impostas... Qual corpo é ‘normal’? E Michele baila em uma cartografia na qual os movimentos problematizam, reconhecem um corpo que foi limitado, porém composto por multiplicidades que podem ser descobertas e/ou reencontradas na experimentação do bailar, um passo para cá, dois para lá... E o corpo vai dançando, desterritorializando, saindo do cerco em que o corpo feminino deficiente foi marcado para ficar.
Michele utilizou a cartografia como procedimento de intervenção, percorrendo por entre afetamentos, para a construção de uma cartografia do dançar. Entendemos a cartografia como um “[...] modo de experimentação, de avaliação da vida, que põe a escrita como uma política da existência” (Brito & Chaves, 2017, p. 8). Ademais, seria difícil conceituar o que é cartografia como método, coisa que nem mesmo Deleuze e Guattari fizeram com esse conceito (delimitar, significar, conceituar), pois, segundo os autores trata-se de um mapa aberto e contingente. No entanto, para que serve a cartografia? Como procedimento metodológico na educação, a cartografia serve como “[...] um diagrama, um plano de imanência. Para saber o que pode um corpo. Quais são os afectos de um corpo?” (Corazza & Silva, 2003, p. 69). O que seria o cartógrafo senão um interventor que cartografa tramas do cotidiano que envolvem os acontecimentos, situações, atividades, aprendizagens? Aprendemos exatamente isso com Michele e seus encontros.
Mas, enquanto instituição disciplinar, a escola também molda os corpos, tornando-os dóceis, conforme diz Foucault (1996) no livro Vigiar e punir e como bem destaca Veiga-Neto (2002) na distribuição do espaço e tempo da escola, governando dois eixos - o corpo e o saberes:
É fácil ver a analogia entre as operações disciplinares que visam à docilização dos corpos - principalmente infantis, no caso da escola - e as operações que visam à organização dos saberes. Em qualquer caso, são operações de confinamento, quadriculamento, distribuição, atribuição de funções, hierarquização. Em qualquer caso, trata-se sempre de organizar economicamente o espaço e o tempo. De um lado - no eixo do corpo -, o objetivo é maximizar a força útil do corpo e do trabalho que dele se extrai, à custa da menor força política que sobre ele se aplica. De outro lado - no eixo dos saberes -, o objetivo é maximizar a inteligibilidade, à custa da menor dispersão e indeterminação dos saberes. É nesse jogo que se inscreve tanto a docilização do corpo quanto o poder que age sobre ele e o atravessa. O resultado mais notável disso tudo é que esse jogo acaba escondendo, ao funcionar, o seu caráter contingente, o seu caráter de jogo. Desse modo, tudo o que acontece parece ser natural e necessário (Veiga-Neto, 2002, p. 173).
Como desviar do estabelecido, dessa docilização dos corpos e aceitação de limitações? Uma única resposta é devaneio; contudo, consideramos que, nesse rizoma, pesquisas que visem produzir acontecimentos, experimentar, possam abrir uma fresta para enxergamos possibilidades de construir novas realidades. Voltamos a Michele, nessa cartografia que intervém em corpos e, mais que isso, intervém em padronizações repetidas diariamente, com o intuito de reproduzir um corpo que seja normal. A partir da entrada nesse sistema, o estudante, principalmente a estudante, “[...] começa a fazer desenhos estereotipados, ela se modeliza segundo as atitudes dominantes” (Guattari & Rolnilk, 1996, p. 99).
Com Michele, voltamos a pensar na inclusão das pessoas com deficiência no ambiente escolar: uma inclusão de pessoas ou somente de corpos em um espaço? O que pode esse corpo deficiente forçar o instituído? Michele nos alerta sobre o encontro com esses corpos: “Em meio aos múltiplos corpos se deu o encontro com o Corpo Feminino Deficiente. Corpo este que contribuiu para a desautomatização, desfamiliarização e desterritorialização do modo de pensar, agir e sentir profissionalmente” (Rodrigues, 2016, p. 10). Esse encontro apresentou meandros de inúmeras dificuldades no curso de vivência desses corpos.
O encontro com o outro, o olhar aberto para construir aulas diferenciadas, inclusivas... Michele intervém em si própria, na construção de aulas em que o corpo deficiente pudesse estar inserido, participando e bailando, tornado visível a inventividade e sensibilidade das pessoas com deficiência. Um devir na dança que se permite criar. Deleuze e Parnet (1998) destacam o devir como captura, longe de seguir o instituído, aos modelos padronizantes, são fenômenos de “[…] dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos” (Deleuze & Parnet, 1998, p. 10). A improvisação dos gestos, dos passos, constrói uma dança inventada, que descobre a elasticidade, a mobilidade do próprio corpo. A intervenção torna-se lá e cá, intervém nos corpos presentes na pesquisa de Michele, e em seu próprio agir como professora.
A partir de uma dança-intervenção, ou vice-versa, Michele propõe possibilitar um corpo que improvise, que se torne um corpo-rizoma. Assim, em sendo um corpo de conexões e multiplicidades, o rizoma não tem início e nem fim; ele se liga a uma linha e noutra; esse corpo seria um ‘sistema aberto’ (Deleuze, 2013) de possibilidades e de improviso ao inesperado. Aos corpos ensinados a limitar-se, Michele chama-os para dançar, tirando a si própria da rotina planejada. A intervenção assim pensada se torna produção de acontecimentos, produção de subjetividades, proporcionando que os corpos ultrapassem as barreiras impostas.
Michele nos ensina que, para pintar novas educações, é importante dançar... Não exatamente a dança como conteúdo de uma disciplina, mas uma dança que (se) cria a cada toque. Uma dança-intervenção, descabida de uma coreografia já dada: por quais caminhos dançarei e me perderei? Eu os inventei. É com essa potência da invenção, que ousamos pensar a intervenção em pesquisas de mestrados profissionais, na possibilidade de experimentar e (re)descobrir novos caminhos para a prática docente, para o agir dos profissionais da educação brasileira.