Introdução
Ao longo do século XX o Brasil passou por duas ditaduras: a primeira, conhecida como Estado Novo, durou de 1937 a 1945. A segunda, um pouco mais longa, caracterizou-se como uma Ditadura Civil-Militar que vigorou de 1964 a 1985. Ambas recorreram a estratégias variadas para sua consolidação, manutenção e legitimação, estratégias que deixaram marcas na sociedade brasileira. No texto apresentado, nos focamos nas marcas da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) sobre a infância e a partir da escola.
Assim, o texto parte da premissa de que a escola restou por consubstanciar-se em uma das instituições operacionais de fortalecimento ideológico e naturalização do contexto ditatorial, deixando marcas sobre a infância a partir da cultura escolar, sendo um dos locais de recepção e fonte de divulgação do ideário discursivo que pautava o Estado de exceção. Isso porque, sobre o período da Ditadura Civil-Militar de 1964 a 1985:
[...] podemos afirmar que a educação, tal como ocorrera na ditadura Vargas (1937-1945), porém, em maior escala, foi organicamente instrumentalizada como aparelho ideológico de Estado. Sob uma ditadura que perseguiu, prendeu, torturou e matou opositores, a escola foi um dos meios mais eficazes de difusão da ideologia que respaldou o regime militar (Ferreira Junior & Bittar, 2006, p. 14-15).
Aparentemente se estabeleceu, através da escola, uma materialidade de ratificação ideológica, alinhada ao projeto vencedor no golpe de 1964. Mas como a escola restou por servir, materialmente, ao fortalecimento ideológico da Ditadura Civil-Militar? Em grande medida pela cultura escolar que através de procedimentos, ritos, rotinas, normativas, currículos, material didático, radicava o discurso da época.
Assim, o texto procura estabelecer-se na discussão acerca das marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, tomando a escola e a cultura escolar como meios de operacionalização e consequente fortalecimento do ideário ditatorial, adotando como categoria de análise o discurso, compreendido como “[...] um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva” (Foucault, 1986, p. 135).
Partimos, ainda, da historicidade nas produções discursivas do período, adjunta a “[...] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 1986, p. 136).
Neste artigo consideramos a infância escolarizada como o processo de educação formal que atua com crianças até os 10 anos de idade, considerando as leis relacionadas a delimitação da faixa etária da infância, vigentes no período em estudo.
Quando inicia a Ditadura Civil-Militar, estávamos sob a vigência do Código de Menores de 1927 (Decreto nº 17.943-A, 1927), que utilizava o termo ‘infância’, mas não estipula qual seria a faixa etária dela. Tal decreto permaneceu em vigor até ser substituído pelo Código de Menores, de 1979 (Lei n° 6.697, 1979), que também era omisso em relação a determinação do que seria a infância, mencionando apenas menores como as crianças e adolescentes com 18 anos incompletos. Todavia, em alguns momentos, separava crianças, até 10 anos de idade, de adolescentes (Artigos. 50, 53 e 102).
O segundo Código de Menores, sancionado em pleno período ditatorial, teve vigência até 1990, quando foi substituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma textualmente: “Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos” (Lei nº 8.069, 1990).
Para elaboração da narrativa, a pesquisa pautou-se em uma metodologia dialética, com procedimento analítico-reconstrutivo, onde a premissa é cercada e examinada (as eventuais marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, tomando a escola e a cultura escolar como meios de operacionalização) e posteriormente reconstruída em narrativa textual e crítica, conduzida pela técnica da análise de conteúdo.
A técnica adotada para exame do corpus documental foi, portanto, a análise de conteúdo, definida por Bardin (1977, p. 38) como “[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens”.
Dentre os procedimentos foi utilizada a análise temática, onde o “[...] tema é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura” (Bardin, 1977, p. 105).
Além disso foram seguidos os passos descritos por Bardin (1977) como elementos de um procedimento de análise de conteúdo: 1) pré-análise (ou escolha e organização do corpus documental); 2) descrição analítica (investigação sobre o material); e 3) comentários ou glosas inferenciais.
O corpus documental foi constituído a partir de um conjunto de 08 (oito) documentos históricos e livros didáticos, tratados como indicativos da cultura escolar que permeou a escolarização da infância no período da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985).
Tabela 1 Documentos históricos e Livros didáticos analisados.
Referência | Localização |
Dornelles, L. W. (1971). Pátria e Cidadania: EMC. 4º ano. Rio de Janeiro, RJ: Ao Livro Técnico. | Acervo Pessoal |
Dornelles, L. W. (1971). Pátria e Cidadania: EMC. 4º ano (Guia do Professor). Rio de Janeiro, RJ: Ao Livro Técnico. | Acervo Pessoal |
Garcia, E. C. (1972). Educação moral e cívica na escola de primeiro grau. São Paulo, SP: LISA. | Acervo Pessoal |
Santos, T. M. (1967). Brasil, minha Pátria! Literatura Infantil e Matérias Escolares. 3º Livro, Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora. | Laboratório de Ensino e Material Didático - História, LEMAD/ USP (https://lemad.fflch.usp.br/) |
Comissão Nacional de Moral e Civismo. Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória nos três níveis de ensino. Prescrição sobre currículos. Programas básicos. (1970). Ministério da Educação e Cultura. Imprensa do Exército. | Laboratório de Ensino e Material Didático - História, LEMAD/ USP (https://lemad.fflch.usp.br/) |
Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969. (1969, 12 setembro). Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília. | Portal de legislação do Palácio do Planalto (http://www4.planalto.gov.br) |
Decreto nº 68.065, de 14 de janeiro de 1971. (1971, 14 janeiro). Regulamenta o Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969, que dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília. | Portal de legislação do Palácio do Planalto (http://www4.planalto.gov.br) |
Lei n° 5.700, 1º de setembro 1971. (1971, 1 setembro). Dispõe sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília. | Portal de legislação do Palácio do Planalto (http://www4.planalto.gov.br) |
Fonte: Organização autoral (2023).
Para desenvolver a narrativa o texto seguirá estruturado em 04 seções: uma primeira seção que problematizará, minimamente, a cultura escolar, abordando a mesma como potencial condutora ou meio operacional do ideário discursivo da ditadura. Uma segunda seção que discutirá as eventuais marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, examinando as denominadas práticas cívico-patrióticas (ou os ritos assumidos pelo cotidiano escolar). Uma terceira seção discute novamente as eventuais marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, mas dessa vez com o foco voltado a materiais didáticos do período, especialmente livros didáticos. Por fim, uma derradeira seção dedicada a argumentos conclusivos.
A cultura escolar: aportes teóricos
Apesar de ser uma categoria relativamente nova - com os primeiros textos datados da década de 1980 (Silva, 2006) - a cultura escolar é uma categoria de pesquisa suficientemente reconhecida em distintos campos, com relevo no campo de investigação da história da educação (Julia, 2001; Faria Filho, Gonçalves, Vidal, & Paulilo, 2004; Saviani, 2005; Munakata, 2016) (entre outros autores), definida enquanto “[...] conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, ‘normatizados’, ‘rotinizados’ sob o efeito dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas” (Forquin, 1993. p. 167, grifo do autor). De uma forma mais detalhada, a cultura escolar pode ser traduzida como
[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores. Mas, para além dos limites da escola, pode-se buscar identificar em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhecimentos e de habilidades senão por intermédio de processos formais de escolarização (Julia, 2001. p. 10-11).
Portanto, “[...] a escola como uma instituição ímpar, que se estrutura sobre processos, normas, valores, significados, rituais, formas de pensamento, constituidores da própria cultura” (Silva, 2006, p. 205). Ocorre que, apesar da originalidade da cultura escolar, o contexto social vigente - dentre outros fatores -, resta por ser o conduto de informações que também moldam a cultura escolar, posto que a organização escolar é temporal e, portanto, histórica e datada.
De tal maneira,
Quer se tome a palavra ‘educação’ no sentido amplo, de formação e socialização do indivíduo, quer se restrinja unicamente ao domínio escolar, é necessário reconhecer que, se toda a educação é sempre educação de alguém, por alguém, ela supõe também, necessariamente a comunicação, a transmissão, a aquisição de alguma coisa: conhecimentos, competências, crenças, hábitos, valores, que constituem o que se chama precisamente de ‘conteúdo’ da educação (Forquin, 1993, p. 10, grifo do autor).
Assim sendo, a cultura escolar é conformada pelo contexto social vigente, que ainda concorre para significar o seu cotidiano. Práticas pedagógicas, procedimentos, ritos, rotinas, normativas, currículos, material didático e discursos se constituem em espaços de reverberação do contexto externo - e histórico - no qual são produzidos, isto porque a escola assume, também, um ‘papel reprodutor’ (Saviani, 2005) da sociedade na qual está inserida e, duplamente, a representa e é representada por ela.
Ainda, se considerarmos que os elementos da cultura escolar não são apenas condições tópicas, mas suscetíveis de “[...] práticas, apropriações, atribuições de novos significados, resistências, o que produz configurações múltiplas e variadas, que ocorrem topicamente na escola” (Munakata, 2016, p. 122), inferimos que a escola ocupa uma relevante função nas configurações pelas quais o contexto externo será compreendido.
Na cultura escolar observam-se, ainda, peculiaridades constituídas em práticas e artefatos que são inerentes ao espaço institucional e ao seu cotidiano, sendo que um desses artefatos “[...] peculiares à escola é precisamente o livro didático. Certamente ele pode estar em outros lugares, como na biblioteca de um colecionador excêntrico, nos gabinetes do avaliador ou do pesquisador de livros didáticos, mas a sua existência só se justifica na e pela escola” (Munakata, 2016, p. 122).
Em torno do livro didático organizam-se legislações e guias didáticos (ou instruções) que são dispositivos poderosos de indexação de tal artefato com o contexto no qual e sobre o qual ele é produzido, parametrizando também a atuação mais amiudada de professores e gestores escolares.
Além do mais, “[...] o livro didático é, em primeiro lugar, o portador dos saberes escolares, um dos componentes explícitos da cultura escolar. De modo geral o livro didático é a transcrição do que era ensinado, ou que deveria ser ensinado, em cada momento da história da escolarização” (Munakata, 2016, p. 123), portanto, tais artefatos assumiriam um importante papel na cultura escolar, sendo capazes de condensar “[...] seus ritmos e ritos, sua linguagem, seu imaginário, [...] seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos” (Forquin, 1993, p. 167), fazendo parte dos artefatos “[...] que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar” (Julia, 2001, p. 2).
O livro didático “[...] se caracteriza como portador de saberes acumulados, selecionados e sistematizados por agentes de uma sociedade e a serem ensinados em específicas disciplinas escolares” (Gusmão & Honorato, 2019, p. 9). Deste modo, ele resta por constituir um artefato que supera o simples apoio ao processo de ensino, constituindo-se na consolidação de saberes e interesses de uma determinada sociedade histórica, ou seja, no próprio ensino.
O livro didático revela traços da cultura societária que o elaborou, ele explicita finalidades de uma disciplina escolar destinada à formação dos indivíduos em sociedade. Ao analisá-lo pode-se observar transformações referentes ao contexto sócio histórico, pois faz parte de suas finalidades a difusão e a consolidação de conteúdos e valores socioculturais e políticos que se desejavam evidenciar e praticar em um determinado tempo e espaço da cultura escolar (Gusmão & Honorato, 2019, p. 9-10).
Portanto, um dos meios operacionais mais efetivos para penetração de discursos e posicionamentos ideológicos na escola e a partir da cultura escolar seria, precisamente, o livro didático, de maneira especial a partir de 1966, quando o governo cria o Conselho do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), a partir do Decreto nº 59.355 (1966).
No período da Ditadura Civil-Militar, os livros didáticos eram subsidiados pelo governo federal por meio de convênios instituídos, por exemplo, entre o Ministério de Educação e Cultura (MEC), a Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). Os convênios proporcionaram um significativo aumento da produção, compra e distribuição de livros. Por intermédio dos programas da Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted) [...] realizaram-se a entrega de milhares de livros didáticos às escolas brasileiras, o que alavancou também o mercado editorial (Gusmão & Honorato, 2019, p. 10-11).
Em 11 de março de 1970 é editada, pelo Ministério da Educação, a Portaria no 35, responsável por implementar o sistema de coedição de livros com as editoras nacionais, através de recursos derivados do Instituto Nacional do Livro - INL (Decreto-Lei nº 93, 1937). O Instituto Nacional do Livro assume, em 1971, o Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Fundamental (PLIDEF) e, em 09 de junho daquele ano o Decreto nº 68.728 (1971) extingue a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático (Colted).
Anos depois, em 4 de fevereiro de 1976, o Decreto nº 77.107 (1976) cria a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) que, com a extinção do Instituto Nacional do Livro (INL), assume também as ações de edição e distribuição dos livros didáticos.
Na dança das cadeiras da editoração e distribuição de livros didáticos e ainda no período da Ditadura Civil-Militar, a Fundação de Assistência ao Estudante (FAE) substitui a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME) em 1983 e, ao final do período, o Decreto nº 91.542 (1985), cria o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em substituição ao Programa Nacional do Livro Didático do Ensino Fundamental (PLIDEF).
Essa dança das cadeiras, ou a constante alteração dos espaços responsáveis pela produção e regulamentação do livro didático, permite constatar a centralidade de tal artefato na cultura escolar do período e, portanto, o seu potencial como instrumento discursivo da Ditadura, uma vez que “[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (Foucault, 2013, p. 35).
A Ditadura civil-militar e a infância escolarizada: a cultura escolar e os seus ritos
As marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância tomaram, como um dos caminhos factíveis, a organização da educação escolarizada, onde transitam crianças em seu processo de escolarização, estando à mercê da cultura escolar (procedimentos, ritos, rotinas, normativas, currículos, material didático).
Sobre as eventuais marcas sobre a infância, é interessante notar que...
Nas mais diferentes épocas e sistemas políticos, os detentores do poder recorrem as variadas estratégias de conquista e preservação de sua posição de comando acompanhando esses processos é que se depara com o problema da legitimidade; esta é uma questão complexa, basilar do pensamento político e atrai interessados de diferentes campos de estudo. O princípio de legitimidade está diretamente associado a justificação do poder ou do direito de mandar (Santos & Quadros, 2019, p. 17).
Sobre a organização da educação escolarizada, quando inicia a Ditadura Civil-Militar, em 1964, estava em vigor a LDB 4.024, (Lei nº 4.024, 1961), sendo que a educação escolarizada era dividida em primário (Art. 25), previsto para crianças a partir dos sete anos de idade e organizado de quatro a seis séries (Art. 26) e estudos de grau médio, ou Ensino Médio, destinado à formação dos adolescentes (Art. 33), ministrado em dois ciclos, o ginasial e o colegial (Art. 34). Na LDB seguinte (Lei nº 5.692, 1971), a educação escolarizada passa a ser disposta em Primeiro Grau, dos sete aos quatorze anos (Art. 20) e Segundo Grau, em três ou quatro séries anuais (Art. 22).
Ocorre que a educação escolarizada de crianças foi estipulada como compulsória em ambas as LDBs, sendo o ensino primário obrigatório a partir dos 7 anos (Art. 27) (Lei nº 4.024, 1961) e, na LDB seguinte, o ensino de 1º grau passa a ser obrigatório dos 7 aos 14 anos (Art. 20) (Lei nº 5.692, 1971).
A educação escolarizada de crianças menores de sete anos não era obrigatória e as referências a sua institucionalização são bastante modestas em ambas as LDBs, de maneira que a LDB de 1961 apenas previa que “Art. 23. A educação pré-primária destina-se aos menores até sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou jardins-de-infância” (Lei nº 4.024, 1961) e, a lei de 1971 é ainda mais evasiva, indicando que “Art. 17 [...] § 2º Os sistemas de ensino velarão para que as crianças de idade inferior a sete anos recebam conveniente educação em escolas maternais, jardins de infância e instituições equivalentes” (Lei nº 5.692, 1971).
Portanto, tomaremos a infância escolarizada como a escolarização de crianças entre 07 (sete) e 10 (dez) anos, de acordo com a legislação vigente.
Em continuidade, ao examinarmos alguns elementos da cultura escolar do período, temos condições de inferir marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, tomando a escola e a cultura escolar como meios de operacionalização e consequente fortalecimento do ideário ditatorial, isto porque:
A cultura se constituiu numa espécie de agregado coerente de condutas, normas e valores, que dava coesão à vida social, tanto no plano coletivo como no das subjetividades. Isso era particularmente visível na ordem das estruturas, se se examinava do ponto de vista comunitário; e dos hábitos garantiam, desse modo, réplica e a previsibilidade dos padrões configuradores de toda a cultura. Se esses parâmetros se transformam para além de seu pragmatismo imediato em conteúdo de uma tradição - mediante a permanência no tempo das formas dos comportamentos - seus elementos constituintes passavam a fazer parte da memória cultural de um coletivo e dos sujeitos que nele se inseriam (Escolano, 2017, p. 110).
O primeiro elemento da cultura escolar com feições de marcar singularmente a infância escolarizada no período foram as ‘práticas cívico-patrióticas’ (Ferreira & Zimmermann, 2023), caracterizadas por ‘horas cívicas’ ou momentos cívicos, bem como as datas comemorativas do Calendário Cívico Nacional (Ferreira & Zimmermann, 2023). Espaços ritualísticos presentes nas escolas brasileiras, as práticas cívico-patrióticas pautavam-se em determinações legais, consubstanciadas nacionalmente pela Lei n° 5.700 (1971), que dispunha sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais.
Na referida lei estava prevista a obrigatoriedade do hasteamento da bandeira nacional “[...] nos dias de festa ou de luto nacional, em todas as repartições públicas, nos estabelecimentos de ensino e sindicatos (Lei n° 5.700, 1971, Art. 14). Tal obrigatoriedade era ainda mais específica em relação às escolas onde: “Nas escolas públicas ou particulares, é obrigatório o hasteamento solene da Bandeira Nacional, durante o ano letivo, pelo menos uma vez por semana” (Lei n° 5.700, 1971, Art. 14. Parágrafo único).
O hasteamento ‘solene’ e, no mínimo, semanal da Bandeira Nacional, era palco para eventos cívicos que o acompanhavam, com execução do Hino Nacional, e toda sorte de manifestações patrióticas por parte dos alunos, incluindo apresentações - poemas, leituras e, eventualmente, dramatizações e sermões -, de cunho ufanista.
Nesse sentido, as comemorações de eventos cívicos e de datas cívicas “[...] aportadas no Calendário Cívico Nacional cumpriam papel estratégico [...], contribuindo para a tentativa de disseminação de padrões comportamentais alinhados com os propósitos governamentais, expressos por meio de cerimoniais de caráter enaltecedor” (Ferreira & Zimmermann, 2023, p. 4).
No espaço de sala de aula as manifestações de patriotismo ufanista seguiam incentivadas pela mesma lei, que instituía: “É obrigatório o ensino do desenho e do significado da Bandeira Nacional, bem como do canto e da interpretação da letra do Hino Nacional em todos os estabelecimentos de ensino, públicos ou particulares, do primeiro e segundo graus” (Lei n° 5.700, 1971, Art. 39).
Tais práticas cívico-patrióticas assumiam a “[...] função de reviver coletivamente acontecimentos considerados representativos para a identidade e [buscavam] gerar mecanismos de continuidade temporal: do passado a ser rememorado, do presente vivido e do futuro como projeto de sociedade ‘ideal’” (Ferreira & Zimmermann, 2023, p. 3, grifo nosso).
A rotina, a disciplina e o discurso que acompanhavam essas práticas cívico-patrióticas restavam por “[...] congregar um amplo investimento no processo de comemoração de datas cívicas que, por sua relevância do ponto de vista histórico, contribuem para o processo de ritualização de memórias” (Ferreira & Zimmermann, 2023, p. 11), fazendo com que a naturalização do rito precedesse a aceitação implícita do que ele significava na ordem do discurso.
Além do mais, as práticas cívico-patrióticas abriam precedente para a criação de outras instâncias no interior das escolas, colaborando na disseminação do discurso vigente, como as “[...] instituições extraclasses” (Decreto n° 68.065, 1971, Art. 31) e, sobretudo, os Centros Cívicos Escolares (Art. 32).
Os termos aparentemente ritualísticos, como ‘solene’; ‘obrigatório’; ‘significado’ compõem um mesmo enunciado, apropriado ao momento histórico, sendo partícipes do mesmo conjunto discursivo onde “[...] um enunciado pertence a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo” (Foucault, 1986, p. 135).
Portanto, as práticas cívico-patrióticas não podem ser classificadas como uma formalidade, mas, antes de tudo, como componente de um discurso organizado enquanto ingrediente formativo compulsório da infância escolarizada.
A Ditadura civil-militar e a infância escolarizada: a cultura escolar e os materiais didáticos
Outro argumento importante para compreensão das práticas cívico-patrióticas é o documento Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória nos três níveis de ensino - Prescrição sobre currículos e Programas básicos, de autoria da Comissão Nacional de Moral e Civismo (Comissão Nacional de Moral e Civismo, 1970) temos uma seção inteira dedicada ao ensino primário.
Na página 13 iniciava o capítulo III - Programa Básico no Ensino Primário (Comissão Nacional de Moral e Civismo, 1970, p. 13), sendo apresentado como objetivo específico: “[...] a adequação dos assuntos às condições de idade”. Dos conteúdos relacionados a moral no ensino primário (crianças entre 07 e 10 anos), subjazem ‘respeito a Deus e amor à família’; a ‘necessidade da Religião’; ‘formar e aperfeiçoar o caráter’ e ‘valores espirituais e morais’, entre outros.
Já em relação ao civismo temos conteúdos como ‘amor à Pátria’; ‘vultos nacionais’; ‘símbolos nacionais’; ‘direitos e deveres cívicos’ e ‘organização sócio-política-econômica do país’ (Comissão Nacional de Moral e Civismo, 1970). No documento estão previstas, ainda, atividades de comemoração a “[...] grandes datas cívicas” (Comissão Nacional de Moral e Civismo, 1970, p. 15), além de “culto aos símbolos nacionais” (Comissão Nacional de Moral e Civismo, 1970, p. 15).
Essas práticas cívico-patrióticas estavam associadas a Educação Moral e Cívica, não como uma disciplinar curricular, mas como o próprio motor da cultura escolar vigente, onde...
A Educação Moral e Cívica não se daria em tempo limitado mediante a execução de um programa específico, como uma disciplina, mas resultaria, a cada momento, da forma de execução de todos os programas que dessem ensejo a esse objetivo e de um modo geral do próprio processo da vida escolar, que, em todas as atividades e circunstâncias, deveria transcorrer em termos de elevada dignidade e fervor patriótico (Santos & Quadros, 2019, p. 140).
Portanto, o segundo elemento da cultura escolar com feições de marcar singularmente a infância escolarizada no período, foram os livros e materiais didáticos, vinculados (ou não) as aulas de Educação Moral e Cívica.
A disciplina de Educação Moral e Cívica foi inserida nas escolas ao final do governo do Marechal Arthur da Costa (1967-1969) e início do governo do General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), por meio do Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969.
Assinado pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que informavam usar “[...] das atribuições que lhes confere o artigo 1º do Ato Institucional nº 12, de 31 te agosto de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968” (Decreto-lei nº 869, 1969), o Decreto-lei divulgava em seu Art. 1º que a disciplina em foco foi “[...] instituída, em caráter obrigatório, como disciplina e, também, como prática educativa, a Educação Moral e Cívica, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País” (Decreto-lei nº 869, 1969).
Além disso, o Decreto-lei expõe no artigo 2º as finalidades da EMC, destacando as seguintes:
a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;
d) o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história;
e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade;
f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-econômica do País;
g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;
h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade (Decreto-lei nº 869, 1969).
O Decreto-lei informava ainda que a Educação Moral e Cívica deveria ser obrigatoriamente aprovisionada em “[...] todos os graus e ramos de escolarização” (Art.3º, BRASIL, 1969), sendo que no Segundo Grau, além da EMC, seria ministrada a disciplina de “Organização Social e Política Brasileira” (Decreto-lei nº 869, 1969, Art.3º, § 1º) e, no Ensino Superior - inclusive na pós-graduação -, figuraria a disciplina de “Estudos de Problemas Brasileiros” (Decreto-lei nº 869, 1969, Art.3º, § 1º). Observamos, destarte, que a disciplina percorria transversalmente a educação escolarizada, iniciando pelo primeiro grau.
Portanto, disciplina de Educação Moral e Cívica, consolidou-se como uma das mais palpáveis presenças da Ditadura Civil-Militar no Brasil, tanto por emparelhar-se diretamente ao estado de exceção, estimulando discursos e operacionalizando perspectivas de balizamento do período pois,
Ainda que a discussão de Educação Moral e Cívica estivesse presente em diversos momentos da História da Educação Brasileira, sob formatos e nomenclaturas distintas conforme os currículos escolares de cada estado da federação, foram nos anos entre 1960-1980 que essa disciplina obteve maior visibilidade representando uma estratégia societária no âmbito escolar para se fazer inculcar preceitos de civilidades em tempos autoritários. No contexto da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), a disciplina de EMC foi empregada como instrumento condicionador do comportamento dos indivíduos com vistas ao enquadramento social dentro de específicos ideais de homem civilizado (Gusmão & Honorato, 2019, p. 5-6).
Sobre a obrigatoriedade dos estudos de Educação Moral e Cívica, o manual de Leny Werneck Dornelles, direcionado ao 4º ano do primeiro grau e, portanto, tendo como público-alvo crianças na faixa etária de 10 anos, assim se posicionavam:
A finalidade máxima da instituição da Educação Moral e Cívica como disciplina e prática educativa obrigatórias no sistema educacional brasileiro prende-se à necessidade de fortalecer, através da escola, os instrumentos necessários à formação de uma consciência social para uma cidadania efetiva, isto é, instrumentalizar o indivíduo, a fim de que ele possa vir a ser um cidadão consciente, capaz de praticar uma cidadania efetiva. Desenvolver em cada indivíduo a sua capacidade de pensar nos problemas que o envolvem, como pessoa e como membro da sociedade, criando soluções para cada situação que lhe seja configurada, captando e respondendo adequadamente aos apelos que a vida social e afetiva lhe oferece é o desafio que é lançado à escola, é a parte que lhe cabe na formação do cidadão consciente (Dornelles, 1971, p. I).
O regramento moral e de conduta balizavam as orientações aos professores, indicando que também os docentes deveriam assumir o discurso do período para serem mais efetivos nas pautas e práticas escolares.
Observamos a referida orientação no Guia do Professor, direcionado a professores que atuavam com crianças de 10 anos...
A pessoa aprende pelo que vive e faz, não apenas pelo que ouve e lê, dirigido por uma única outra pessoa, principalmente no que se refere aos valores implícitos na formação da cidadania. Julgamos que, nessa matéria, o exemplo da geração adulta é de particular importância na educação dos jovens (Dornelles, 1971, p. III).
O livro de Dornelles (1971) apresenta quatro grandes capítulos: ‘Símbolos da Pátria’; ‘Dinheiro é para Gastar?’; ‘Milhões de Pessoas’, e ‘Quem governa?’. Como uma obra voltada para crianças de 10 anos, o tom ufanista e patriótico vinha acompanhado de ‘dicas’ sobre a vida em sociedade e da extrema necessidade de manutenção da ordem vigente.
Por conta desse foco, dentre os conteúdos trabalhados estava a função das leis: “Para garantir o bom viver das pessoas, existem certas regras, ou normas, ou regulamentos, a que chamamos de leis. As leis são feitas pelos homens com a finalidade de ajudar as pessoas a viverem bem umas com as outras” (Dornelles, 1971, p. 70).
Outro livro didático voltado a crianças menores - na faixa etária de 09 e 10 anos - é a obra Educação moral e cívica na escola de primeiro grau, de Edília Coelho Garcia. Em 329 páginas, o livro seque o roteiro de apontar e balizar comportamentos e referências a sociedade no estado no qual se encontrava, na qual “[...] tipo de cidadão desejado pelos detentores do poder, o bom brasileiro deveria ser religioso, obediente ao governo e patriota” (Santos & Quadros, 2019, p. 147).
Na referida obra, o alinhamento ao contexto ditatorial vigente vinha acompanhado de astúcias retóricas, onde o conceito de democracia desviava-se de eleições diretas e repousava na alternância de sujeitos em mandatos eletivos:
O fato das eleições serem diretas ou indiretas, não é o que caracteriza uma democracia. Para que um regime seja realmente democrático, é preciso que os mandatos eletivos, isto é, o exercício dos cargos de governo seja por tempo determinado. Só nas ditaduras é que os chefes se perpetuam nos cargos e nunca os cedem a outros (Garcia, 1972, p. 59).
Entretanto, um dos excertos mais interessantes da obra discorre sobre a organização familiar e os valores a serem cultivados em tal instituição, bem como seu emparelhamento com os regramentos da sociedade:
Vovô é uma verdadeira autoridade aqui em casa. O que ele fala, está falado, ninguém discute porque tem sempre razão. Tem uma maneira de falar, até papai cede! E, olhe que nosso pai é um líder. Muita coisa do que vovô diz, vem do que a vovó pensa. Já notei isso: uns pensam outros dizem: uns mandam outros obedecem. É como um rodízio que a gente faz num jogo de bola: às vezes é um grupo que manda e o outro recebe as ordens, outras vezes, é a vez do outro grupo mandar. Penso que minha vez de mandar vai ser quando eu for pai e chefe de alguma coisa. [...] Na nossa casa há divisão de poderes - como diz meu pai - “cada macaco no seu galho!” Não há brigas. Mamãe pede para fazer o que é bom para nós e para o grupo [...]. No país, diz tio Pedro, há várias autoridades com seus poderes. [...] Marisa saiu-se com uma que é preciso anotar. Tio Pedro explicava um montão de coisas que eu escrevi aí em cima quando ela disse: - E ninguém manda no Presidente da República? [...] Pensei que tio Pedro fosse ficar atrapalhado, mas ele riu e disse: - No Brasil, havendo democracia, o presidente também obedece às leis e faz com que elas sejam cumpridas [...] o presidente também pode fazer leis, principalmente quando o Congresso está em recesso - isto é, não funciona (Garcia, 1972, p. 54-55).
Percebe-se que, metodologicamente, a obra apresenta o recurso da contação de histórias: conteúdos ufanistas e reguladores são tratados a partir de histórias cotidianas, em uma interessante narrativa que serve também como baliza comportamental para as crianças. Um tio ‘sabichão’, diante de sobrinhos que fazem perguntas que permitem esclarecer eventuais pontos de crítica social (“Marisa saiu-se com uma que é preciso anotar”, “pensei que tio Pedro fosse ficar atrapalhado”), conduz a narrativa de forma leve, didaticamente direcionada para compreensão de crianças.
Em termos de conteúdo, temos a elaboração de um determinado arquétipo familiar, sobre o qual são construídos argumentos que legitimam a manutenção da sociedade no estado no qual se encontrava, indicando um suposto rodízio de poderes apenas quando a criança for maior e ‘emancipada’.
O texto também colabora na leitura patriarcal (“vovô é uma verdadeira autoridade aqui em casa”, “nosso pai é um líder”) e capitalista (“quando eu for [...] chefe de alguma coisa”) da sociedade então vigente, além de apresentar um papel subalterno da figura feminina (“muita coisa do que vovô diz, vem do que a vovó pensa. Já notei isso: uns pensam outros dizem: uns mandam outros obedecem”). Aqui também é possível perceber que a norma é sutil. Ela se faz mais pelo convencimento tácito e identitário, do que pelo medo ou repressão.
Já a obra ‘Brasil, minha Pátria!’ (Santos, 1967), possui 306 páginas. Na página 2 são apresentadas todas as obras já publicadas pelo mesmo autor, dedicadas ao ensino primário. Na página 3 somos informados que o livro teve seu ‘uso autorizado pelo Ministério da Educação e Cultura. Registro nº 2.606’ e que é dedicada a Literatura Infantil e matérias escolares, sendo que na página 7 da referida obra, é apontado que ela se destina ao terceiro ano das escolas primárias, atendendo crianças na faixa etária dos 9 anos.
Os capítulos são estruturados em forma de narrativa onde o vovô Miranda, com o seu cachimbo aceso, contava histórias aos netos José e Marli. As diferentes histórias narradas em cada capítulo, são acompanhadas por uma sessão de vocabulário; questionário; gramática; exercícios, que incluem redação, e um breve texto que complementa informações.
A obra foi dividida em seis capítulos: o primeiro dedicado a ‘contos e lendas’ brasileiras; o segundo capítulo descreve ‘grandes aventuras’ de heróis nacionais, como Zumbi, Maria Quitéria e Tiradentes. Um terceiro capítulo descreve as ‘viagens famosas’, que vão da descoberta do novo mundo à fuga de Dom João VI, enquanto o quarto capítulo é dedicado a ‘vidas ilustres’. No quinto Capítulo os alunos são apresentados a ‘tipos e paisagens’: vaqueiros e boiadeiros; canoas e jangadas; usinas e canaviais; fazendas e cafezais; faiscadores e garimpeiros, encerrando com seringueiros e ervateiros. O sexto e último capítulo é dedicado às matérias escolares: Aritmética e Geometria; Ciências Naturais e Higiene; História do Brasil; Geografia Geral; Geografia do Brasil; Geografia dos Estados e Territórios.
A obra tem um claro direcionamento para o ufanismo patriótico, sendo que o autor nos apresenta seus escritos indicando que “[...] foi com o pensamento voltado para o engrandecimento da Pátria que escrevi este livro, tangido pela esperança de despertar nas novas gerações o amor e a admiração pelas conquistas e realizações da civilização brasileira” (Santos, 1967, p. 07)
A partir da leitura das obras aqui expostas, é possível inferir certo caráter estratégico que a escola e a cultura escolar assumiram no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, constituindo-se como competentes aparatos discursivos para a manutenção do estado de exceção como uma condição ‘natural’, estratégica e patriótica.
Nos roteiros produzidos pelos livros, se identifica o papel da escola como uma instituição moralizante e parametrizante, que informava um modo de vida aceitável dentro do contexto de então, responsável por conteúdos e desenvolvimento do espírito cívico e moral, emparelhada a uma lógica de manutenção do processo iniciado em março de 1964. Então,
É por meio do discurso e da ação que o agente se revela. Ao recorrermos aos princípios discursivos da alteridade, da influência e da regulação, observamos o predomínio do princípio da influência. As ditaduras têm horror ao outro, ao oponente, enfim, à pluralidade que configura a política (Germano, 2008. p. 320).
Isso em razão do forte tom de orgulho relacionado ao conceito de ‘Pátria’ pois, “[...] o exercício do poder, ou a sua conquista, requer uma busca incessante pela sua legitimação” (Germano, 2008. p. 315). Desta feita, o culto ufanista e enaltecedor da Pátria tinha, nos livros examinados, dois pilares principais:
a) o orgulho de um passado pintado com as cores e argumentos então presentes, respaldado pelos ‘heróis’ e ‘feitos’; e
b) a lógica regulamentadora, de manutenção da sociedade na sua condição de então.
Ambos os pilares remetem a uma estratégia discursiva a qual Foucault denomina normalização disciplinar, que
[...] consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é constituído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em outros termos o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma (Foucault, 2008, p. 75).
Ao apresentar as crianças elementos como ‘amor à Pátria’, ‘família’ (nuclear-modelar), ‘heróis’, importância da obediência (as leis e as hierarquias), se constrói uma narrativa edificante que, de forma capilar e sutil, bloqueia argumentos de contestação presentes e futuros em relação ao contexto então em vigor. Tal estratégia discursiva lembra que:
O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estrita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (Foucault, 2013, p. 8).
Assim sendo, como a sociedade estava inserida no contexto do discurso, ele se faz e refaz através de distintos meios, onde “[...] a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta” (Foucault, 2013, p. 14) e, em tal contexto discursivo, a escola e a cultura escolar exerciam um relevante papel na formação de crianças em escolarização compulsória.
Considerações finais
Diferentes meios operacionais foram utilizados pelos protagonistas da Ditadura Civil-Militar brasileira, entre 1964 e 1985, com o objetivo de inculcar um discurso legitimador e construir uma narrativa socialmente aceita acerca do período. Dentre tais meios é lícito supor que se encontrava a escola, através da cultura escolar.
As marcas forjadas na infância escolarizada perpassaram a cultura escolar e se localizaram na disseminação de discursos da Ditadura Civil-Militar, discursos entendidos - no escopo do texto -, como “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (Foucault, 1986, p. 56).
Para organizar a narrativa, o texto foi estruturado em 04 seções: uma primeira seção que problematizou a cultura escolar, abordando a mesma como potencial condutora ou meio operacional do ideário discursivo da ditadura.
Uma segunda seção que discutiu eventuais marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, examinando as denominadas práticas cívico-patrióticas (ou os ritos assumidos pelo cotidiano escolar).
Uma terceira seção discutiu novamente as eventuais marcas da Ditadura Civil-Militar sobre a infância escolarizada, mas dessa vez com o foco voltado a materiais didáticos do período e, por fim, uma derradeira seção dedicada a argumentos conclusivos.
A escolarização de crianças no período da Ditadura Civil-Militar brasileira, através de instrumentos como as práticas cívico-patrióticas e o livro didático, restou por ser também um meio operacional do estado de exceção, uma vez que...
Durante a ditadura militar brasileira, os dispositivos simbólicos e ritualísticos atrelados às comemorações de datas cívicas fundamentaram-se nos padrões narrativos de caráter patriótico e ultranacionalista. Isso significa dizer que os elementos fornecidos pela História sustentaram um enquadramento da memória no governo autoritário (Ferreira & Zimmermann, 2023, p. 17).
Assim sendo, exprimir, anotar e problematizar estratégias discursivas e operacionais do período, sobretudo em relação a escolarização compulsória da infância, parece ser um compromisso de relembrar um contexto em que “[...] lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras, cujo uso há muito tempo reduziu as asperidades” (Foucault, 2013, p. 8).
O texto conclui, nas inferências limitadas pelo corpus documental, que é possível perceber registros que evidenciam a cultura escolar como espaço da operacionalização de estratégias discursivas e práticas pedagógicas com feições de marcar singularmente a infância escolarizada no período, sublinhando valores como a ‘família’; ‘bem comum’; ‘direitos e deveres’; ‘unidade nacional’; ‘culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história’ e ‘obediência à lei’ - excertos retirados do Decreto-Lei n° 869 (1969).