Introdução
O período da ditadura salazarista em Portugal durou quarenta e um anos e ficou conhecido como Estado Novo. Espelhando-se em outros governos ditatoriais em ascensão na Europa, promoveu o ideal nacionalista baseando-se em valores religiosos e morais sob a justificativa de serem os verdadeiros desde a formação do país como unidade.
Há que se concordar com Hobsbawm (1990, p. 22), ao afirmar sobre o pesquisador de história das nações e nacionalismos em não ser um nacionalista político comprometido, por “[...] requerer muita crença naquilo que, obviamente, não é assim”. Nesse sentido, entende-se o momento histórico como tendo sido marcado por um nacionalismo português calcado em afirmações que não necessariamente expressassem o sentimento das pessoas, mas um discurso unificador a partir de ideologias que acreditavam se contrapor àquilo que se desejava combater.
A formação do Estado português não se deu por afinidades étnicas ou culturais, mas principalmente pela continuidade de um poder político forte e centralizador (Mattoso, 1998). Os elementos de formação do povo português são extremamente diversos, não sendo possível afirmar a existência de unidade cultural, étnica ou mesmo territorial, lembrando aqui da ocupação do povo celta na região setentrional e mouro, na meridional durante muitos séculos. Um exemplo está no próprio significado do nome do país, cuja origem remonta ao local específico do Porto, uma região ao norte do país sem maiores afinidades culturais com as demais. E assim segue quanto aos nomes dos concelhos e condados do que hoje é o país Portugal.
No período da ditadura, como em outros, infere-se à volta das ‘tradições nacionais’, com vistas a se aproximar da cultura e modelo de desenvolvimento de outros países europeus, cuja outorga nacionalista procurava afirmar-se pela premissa de um coletivo cultural comum. A cientificidade acerca de uma identidade nacional no país só passou a existir a partir de 1974, por meio da entrada do tema na Universidade. Antes disso, principalmente no período salazarista, foi duramente combatida pelos intelectuais defensores do regime, sob a alegação de representarem o pensamento marxista (Mattoso, 1998).
Por esse motivo, o que ganhou força na segunda metade do século XIX e grande parte do XX em Portugal foi uma imaginação nacionalista pautada na antiguidade e profundidade (Sobral, 2012). Assim, o orgulho de ser a nação mais antiga da Europa, cujas fronteiras haviam sido delimitadas no século XII, foi um discurso predominante na Ditadura Salazarista.
O primeiro partido a denominar-se “[...] nacionalista [...]” é uma organização católica fundada em 1903, com um ideário em que se exalta a identificação entre a nação e o Cristianismo, se combate o laicismo e se propõe uma intervenção política que, em lugar da luta de classes, defende a conciliação entre capital e trabalho para lidar com a chamada “[...] questão social [...]”. O partido desaparece com a República em 1910, mas o seu legado perdurará no nacionalismo oficial do Estado Novo (Sobral, 2012, p. 64).
Um dos motivos para o início da ditadura tem em questão o seguinte motivo: a “[...] ameaça bolchevique” (Menezes & Ferreira, 2012, p. 53). Como um dos fatores para a queda da primeira república1 é apresentado o anticlericalismo (Menezes & Ferreira, 2012). Apesar disso, o governo encontrou resistência por parte de alguns membros que contribuíram com a estruturação da Ditadura Salazarista, tais como militares e conservadores republicanos (Loff, 2008). No entanto, a Igreja Católica procurou vincular em seu discurso o cristianismo e a democracia, em contraposição ao ‘comunismo ateu’. Sob o mesmo argumento de civilização atrelado ao constructo identitário nacional, a Igreja arvora para si o papel de guardiã da moralidade portuguesa.
E, ainda no início da Ditadura Salazarista em Portugal, lançou uma ‘orientação’ para que o ensino fosse pautado nos princípios da doutrina e moral cristãs, “[...] tradicionais no país” (Loff, 2008, p. 167). Considerar o cristianismo como algo que faz parte da tradição de um país significa considerar a identidade nacional a partir da construção de um habitus que se procura afirmar nos diversos dispositivos da sociedade2.
Entendemos por ‘nacionalização de massas’ a popularização do nacionalismo das elites [...] e, sobretudo, do que está presente em representações difundidas pelas diversas instituições do Estado, bem como a mobilização das populações em seu apoio. O Exército e a escola pública, sobretudo a instrução primária, que se irá divulgando ao longo de todo o século XX, são as principais instituições oficiais envolvidas nesse esforço. A estas juntam-se organizações de formação e mobilização nacionalista desenvolvidas sob o Estado Novo moldadas em congéneres dos nacionalismos totalitários, como a Mocidade [...] (Sobral, 2012, p. 76-77, grifo do autor).
Como a Mocidade Portuguesa (MP) e a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) atuaram nas instituições públicas de ensino e fora delas, em Portugal, e como influenciaram a formação moral e a construção dos ideais de identidade nacional da juventude portuguesa durante a ditadura salazarista?
A partir destas questões, o presente artigo pretende discutir a atuação da Mocidade Portuguesa (MP) e da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) na educação pública em Portugal no período salazarista. Interessa ainda compreender como essas instituições desenvolveram uma ação pedagógica, formal ou não formal, visando difundir valores morais e ideais de identidade nacional específicos entre os anos de 1936 e 1974.
O período corresponde à criação e extinção das duas entidades, que resultaram do esforço em elaborar uma educação aos moldes do Estado Novo Salazarista (1933-1974). Portanto, trata dos processos de educação formal e educação não formal praticadas pelas MP e MPF durante os governos ditatoriais de António de Oliveira Salazar e Marcello Caetano, que o sucedeu em 1968.
As instituições tinham a finalidade de formar os futuros meninos e meninas que atuariam na vida social e política de Portugal, forjados nos pensamentos e modelo do que seria o ideal português durante a ditadura de Salazar. Por isso, interessa inicialmente o fato delas terem surgido a partir da iniciativa do próprio Ministério da Educação Nacional (MEN).
O principal objetivo deste artigo é identificar como a Mocidade Portuguesa (MP) e a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) atuaram nas instituições públicas de ensino em Portugal e como influenciaram na formação moral e na construção dos ideais de identidade nacional da juventude portuguesa durante a ditadura salazarista.
Portanto, será necessário apresentar como foram formuladas e organizadas pelo governo. Com isso, demonstra-se que serviram como meio para a formação da cidadania portuguesa e sua identidade nacional. Deve-se, para tanto, entender a formulação dessa política pública, que teve interesse do alto comando do governo salazarista por tanto tempo, e como ela funcionava.
Para atingir os objetivos aqui propostos, no primeiro momento realizamos uma pesquisa bibliográfica. Nessa pesquisa, identificamos o livro de Pimentel (2008), Mocidade Portuguesa Feminina. Nele, a autora apresenta o resultado de sua pesquisa sobre a educação portuguesa para mulheres no período salazarista. A pesquisa de Viana (2001), que resultou no livro A Mocidade Portuguesa e o Liceu: lá vamos contando… (1936-1974), é outro ponto de contribuição para entendimento das questões postas neste artigo. A obra de Arriaga (1976), Mocidade Portuguesa: breve história de uma organização salazarista, foi publicada no calor da Revolução dos Cravos, dois anos após seu acontecimento, e fornece caminhos reflexivos importantes para a compreensão da época. A obra de Loff (2008), O nosso século é fascista! O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945), elucida acerca de questões políticas e ideológicas do governo salazarista. A tese de Correia (2002), encontrada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), Récita do Liceu: Rodrigues de Freitas / D. Manuel II (1931-1973), colabora com informações sobre o cotidiano da MP e como a entidade via estudantes e como deviam se comportar.
No segundo momento, realizamos uma pesquisa documental nos arquivos da Biblioteca Pública Municipal do Porto e na Biblioteca Nacional de Portugal; em ambos os locais foi possível acessar materiais de divulgação das instituições elaborados e distribuídos no período pesquisado. Os documentos oficiais do período apresentados neste artigo são: Jornal da MP, suspenso em 1940 e substituído pelo Boletim da MP; o Boletim para dirigentes da MPF e o jornal mensal da MPF, denominado Lusitas, cuja assinatura era obrigatória às meninas filiadas à MPF e serviria de auxílio para o trabalho pedagógico das mulheres nos Centros Primários. A análise desses irá contribuir com as percepções e interesses estatais na instituição, organização e condução de ambas as entidades educativas de caráter formativo.
O Jornal da MP era de publicação quinzenal, com a primeira edição datada de 1º de dezembro de 1937 em Lisboa, quando se comemorou a restauração da independência da Espanha, ocorrida em 1640. Foi criado com a finalidade de ser lido pelos filiados da MP obrigatoriamente. O Boletim da MP iniciou como mero registro das atividades e tinha periodicidade anual de 1937 até 1940. Após esse ano, passou a ser mensal e em 1943 adotou o título Mocidade Portuguesa: Boletim do Comissariado Nacional. O Boletim para dirigentes da MPF começou a ser publicado e veiculado em outubro de 1952, com tiragem inicial de 5.000 exemplares, aumentando a cada novo número e chegando a 11.000 no ano de 1962. Foram encontrados 4 tomos possíveis para leitura, abrangendo os anos de 1952 a 1963, que serão objeto para análise e reflexão neste artigo. O jornal denominado Lusitas, que significa em Portugal as crianças dos 7 aos 10 anos de idade, exercia a mesma finalidade do Jornal da MP, ou seja, instruir as filiadas na sua formação e das crianças formadas por elas. Para o artigo, foram identificados exemplares do período de 1940 a 1951.
Considerando a característica pedagógica como a principal razão da MP e da MPF, a finalidade maior seria a inculcação de um habitus. Ou seja, tinha o intuito declarado de interiorização dos princípios de um arbitrário cultural, conforme a teoria elaborada por Bourdieu e Passeron (2014). Antes de entrar nesse conceito, porém, é necessária a distinção entre educação formal, não formal e educação difusa.
Para Brandão (2007, p. 9), “[...] não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é sua única prática e o professor não é seu único praticante”. Nesse sentido, a educação existe por toda parte, em qualquer lugar onde existam redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra. Dessa maneira, da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais e entre as incontáveis práticas sociais.
A educação difusa é o tipo de educação que se diferencia tanto da educação familiar como da educação institucionalizada. Desse modo, pode ser definida como a ação pedagógica exercida “[...] por todos os membros educados de uma formação social ou de um grupo” (Bourdieu & Passeron, 2014, p. 53). Para os objetos apresentados, a MP e a MPF, observam-se as duas formas anteriormente citadas, pois veremos tanto a relação intergeracional quanto o grupo constituído por uma mesma faixa etária.
Como toda ação pedagógica - isto é, toda imposição através de um poder arbitrário, de um arbitrário cultural, a educação difusa também exerce o efeito de uma violência simbólica. Isso porque as relações de força entre os grupos ou as classes constitutivas da sociedade estão na base do poder arbitrário.
Em toda ação pedagógica o efeito propriamente simbólico se exerce numa relação de comunicação. Além disso, o seu resultado como efetiva aprendizagem só se produz quando são dadas as condições sociais da imposição ou inculcação. Isso ocorre quando as relações de força estão implicadas numa definição formal de comunicação.
Toda ação pedagógica implica no trabalho pedagógico como trabalho de inculcação, que deve durar o bastante para produzir uma formação durável, traduzida na forma de um habitus. Constituído como produto da interiorização dos princípios de um ‘arbitrário cultural’, o habitus consegue se perpetuar mesmo após a cessação da ação pedagógica. Por isso, ele é capaz de continuar nas práticas de cada indivíduo os princípios do “[...] arbitrário interiorizado” (Bourdieu & Passeron, 2014, p. 53).
A educação participa tanto no seu destino exterior como na sua estruturação interna e no seu desenvolvimento espiritual, na vida e no crescimento da sociedade. Assim, se o desenvolvimento social depende da consciência e dos valores que regem a vida humana, a história da educação é a história da transformação dos valores válidos para cada sociedade. Por isso, é preciso que se tenha em mente que a educação representa o sentido de todo o esforço humano. Ou seja, que a essência da educação consiste na modelagem dos indivíduos pela norma da comunidade.
A ação pedagógica realizada pela MP e pela MPF apresentava um efeito propriamente simbólico e se exercia pela relação de comunicação estabelecida entre seus sócios e dirigentes. Além disso, o seu efeito propriamente pedagógico só se produzia em função das condições sociais de imposição ou da inculcação de um habitus.
O conceito de habitus trazido por Bourdieu (2007) permite compreender a estrutura das práticas sociais não como um processo que se faz de maneira mecânica, de fora para dentro, de acordo com as condições objetivas presentes em determinado espaço ou situação social. Ao contrário, as práticas sociais são estruturadas e apresentam propriedades típicas da posição social dos sujeitos que as produzem e das suas formas de perceber e apreciar o mundo, suas preferências, seus gostos, suas aspirações previamente estruturadas em relação ao momento da ação (Bourdieu, 2007).
Outro conceito importante para compreender o papel pedagógico da MP e da MPF é o de capital cultural. Ou seja, uma herança cultural que se transmite de maneira osmótica e contribui para reforçar, entre os membros da classe culta, a convicção de que os conhecimentos, as aptidões, os gostos e o bom gosto são frutos do dom e não parecem resultar de uma aprendizagem. Mas, essa herança representa “[...] o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos, a saber, a transmissão doméstica do capital cultural” (Bourdieu, 1998, p. 73).
Porém, essa não é a única forma de apropriação desse tipo de capital. O capital cultural também pode ser adquirido através da experiência escolar, ou mesmo, através do contato pessoal com os amigos ou com outros indivíduos e instituições. Neste último caso, o capital social acumulado pelo indivíduo funcionaria como meio auxiliar para acumulação do capital cultural.
O artigo visa ainda contribuir para uma melhor compreensão das estratégias de controle e difusão de normas, comportamentos, saberes e valores voltadas para a produção da identidade nacional de suas infâncias, no período da ditadura salazarista, em Portugal. Também pode ser relevante ao apresentar um novo enfoque às discussões sobre o papel pedagógico da MP e da MPF como difusoras de um habitus tido como o único legítimo e socialmente aceito para aquela sociedade.
Assim, o artigo organizar-se-á em uma breve história das duas entidades representativas do governo na educação formal, não formal e difusa; análise de documentos norteadores das duas instituições; breve discussão do contexto social português no período e considerações finais acerca dos objetos apresentados. Ao final, espera-se contribuir com a construção histórica da educação ocidental no que diz respeito aos governos ditatoriais, trazendo à luz necessário debate sobre a importância de constante visitação e avaliação acerca de possíveis avanços e retrocessos ocasionados por esse modelo governamental.
Breve história da Mocidade Portuguesa (MP) e da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF)
A Mocidade Portuguesa (MP) foi uma instituição criada pelo governo salazarista, no ano de 19363, com o objetivo de promover na educação da juventude os ideais pregados pelo Estado. Surgiu, portanto, a partir de iniciativa do Ministério da Educação Nacional (MEN). De acordo com publicação do Comissariado Nacional (MP, 1942, p. 82) são ideais da MP a juventude generosa, a cristandade, a lusitanidade, a ordem social e o culto da justiça, “[...] mas nunca deixará de haver ricos e pobres”.
O MEN foi criado em Portugal, em 19364, com a extinção do Ministério da Instrução Pública (Braga, 2010). Havia um debate, na época, acerca das nomenclaturas, em que a ideia de instrução era compreendida apenas como concernente às faculdades intelectuais, já a ideia de educação ampliava o sentido e era compreendida como o meio para ‘conduzir’ a um determinado objetivo formativo, sendo por isso escolhido o termo educação para designar as políticas públicas de formação e instrução das crianças e jovens portuguesas.
A maioria dos Ministros possuía formação acadêmica em Direito, pela Universidade de Coimbra5, a mais antiga do país e intimamente ligada à história e às tradições portuguesas. A alteração no nome trouxe uma carga de sentido bastante diferente da nomenclatura anterior; antes, percebia-se a educação na condição de transmissão de saberes produzidos pela humanidade e, portanto, de cunho essencialmente intelectual. A partir de 1936, a educação passou a ter outros significados, principalmente para o ensino primário, cuja finalidade naquele momento era de ‘gerar conformação social’, excluindo o desenvolvimento de capacidades e saberes.
Ela visa, no plano individual, criar a motivação que leve ao domínio dessas capacidades e saberes. Essa motivação é, para o regime salazarista, o sentimento patriótico nacionalista. A partir da aquisição ou não desta motivação por parte dos educandos a escola procederá então, no plano social, à oportuna repartição dos alunos de acordo com critérios seletivos e discriminatórios [...] (Correia, 2002, p. 73).
Nesse sentido, o período salazarista promoveu uma educação na qual os jovens deveriam ter uma consciência nacionalista e católica, não fazendo distinção entre uma e outra. Ou seja, deveriam ser formados para inculcar um habitus considerado o único legítimo e socialmente aceito durante todo o período de exceção. A MP no ano de 1938 contava com 2000 filiados (MP, 1938).
Carneiro Pacheco, primeiro-ministro do MEN, apresentava-se como alguém que iria resolver os problemas criados na sociedade a partir de uma educação formal que se pautava pelo ‘Estado demo-liberal’ e pelo ‘Estado-indivíduo’, que desconsiderou a importância da Igreja Católica na condição de baluarte da moral disciplinadora. Ao deixar o ministério, assumiu o cargo de embaixador de Portugal na primeira embaixada portuguesa instituída no Vaticano. Demonstra, por um lado, uma possível relação dele com o meio religioso e, por outro lado, que o capital social acumulado durante a Ditadura Salazarista permitiu estreitar ainda mais a sua relação com a Igreja Católica ao ponto de ser agraciado com o cargo que passou a ocupar posteriormente.
Segundo Bourdieu (1998, p. 69), o rendimento do “[...] trabalho de acumulação e manutenção do capital social é tanto maior quanto mais importante for esse capital”. Nesse sentido, ao serem procurados por seu capital social, os seus detentores, que não têm de ‘relacionar-se’ com todos os seus ‘conhecidos’, pois são conhecidos por mais pessoas do que as que conhecem, têm valor porque são ‘conhecidos’ e estão em condições de transformar todas as relações circunstanciais em ligações duráveis. No caso, António Faria Carneiro Pacheco, ao se tornar conhecido pelo trabalho realizado durante a sua passagem pelo MEN, acumulou capital social suficiente para alavancar a sua carreira em outras áreas, assumindo, assim, uma embaixada estratégica para o projeto cristão-patriótico do governo salazarista.
A Mocidade Portuguesa foi pensada pelo Ministro Carneiro Pacheco para ser uma organização de doutrina e combate antiliberal e antimarxista ao serviço da nação (Arriaga, 1976). Justificava-se por ser uma entidade nacionalista, baseada na Constituição6. Nesse sentido, a ação pedagógica realizada por essa entidade apresentava um efeito propriamente simbólico utilizando-se da educação não formal, mas com forte influência na política de educação formal do Estado português. Ou seja, seu efeito propriamente simbólico só se produzia em função das condições sociais e políticas de imposição e de inculcação delineadas pela ideologia dominante no regime salazarista.
Desde a sua criação, a MP apresentou caráter expressamente ideológico, posicionando-se contra o liberalismo e o marxismo, duas visões de mundo consideradas pelo regime salazarista como chagas sociais que deveriam ser combatidas. O ‘nós contra eles’ é uma das estratégias de mobilização política típica dos regimes de orientação fascista, que até os dias atuais encontra adeptos ao redor do mundo.
Quando o regime salazarista se propõe a combater uma educação marxista, na verdade, está apenas construindo um discurso ideológico de validação de um habitus, pautado nos valores, na visão de mundo e de construção de uma identidade nacional que deveriam se tornar hegemônicos na sociedade portuguesa e se alinhar com os princípios defendidos pelos detentores do poder político. De acordo com o primeiro Comissário da MP7, engenheiro Francisco José Nobre Guedes8:
A MP é um movimento cuja aceleração nada poderá deter. Em pouco tempo dominará por completo. Nalguns anos abaterá os nichos onde se abrigam ainda os velhos representantes da democracia macabra, mãe legítima do comunismo, como liquidará os filhos tarados desta moderna lepra. Portugal será dêstes novos portugueses, a quem não faltará nunca ânimo e fôrça para o levar, através dos tempos, pelos caminhos do seu constante engrandecimento (MP, 1937, p. 1)9.
Já na primeira edição do Jornal da MP, publicado em 1937, os objetivos da entidade de hegemonizar o debate ideológico entre os jovens portugueses através das políticas educacionais ficam evidentes. O engenheiro Francisco José Nobre Guedes (MP, 1937, p. 1), comissário da MP, afirma que “[...] nada poderá deter [...]” aquele movimento, que em “[...] pouco tempo dominará por completo [...]” e em alguns anos “[...] abaterá os nichos onde se abrigam os velhos representantes da democracia macabra [...]” e “[...] liquidará os filhos tarados dessa moderna lepra [...]”, o comunismo.
O jornal deixou de circular entre setembro de 1940 e outubro de 1942. A partir de 1942 a veiculação do jornal ficou suspensa entre setembro e outubro, circulando apenas dez meses por ano, portanto. Além disso, identifica-se a presença de cores e não há mais paginação. O diretor dos serviços de formação a partir daquele ano passou a ser o Frei Montalverne. O editor-diretor do jornal, Rui Santos, que até então escrevia longos textos de caráter filosófico sobre o papel da MP, passou a inserir textos de outros autores e com mais variedades.
O Comissário Nacional da MP, Marcello Caetano, escreveu uma coluna com o título ‘Voz de Comando’ e publicada no jornal da MP entre os anos de 1942 e 1944. Era um canal direto entre a maior liderança da MP e seus liderados, trazendo informações, ideias e direcionamentos para “[...] preparar os homens novos de um novo Portugal” (MP, 1942, n.p.). Após 1944, outros membros do MEN dão continuidade ao editorial emulativo ao caráter e formação dos homens portugueses, a exemplo do Comissário Interino José Soares Franco; Joaquim Gomes Marques, Capitão de Engenharia e Diretor de Serviços para Instrução Geral; e Rodrigues Cavalheiro, Diretor de Serviços Culturais. A coluna foi identificada até o ano de 1947 (Voz de comando, 1947, p. 11), tendo por título “Deveres de aprumo, retidão, compostura, bondade e devoção à Pátria”.
Para os membros da MP, a educação deveria exercer uma ação pedagógica capaz de produzir uma formação durável, ou seja, um habitus, e perpetuar nas práticas sociais a incorporação dos valores morais vigentes. Dentre eles o mais relevante era o combate à ‘democracia macabra’, ‘mãe legítima do comunismo’. Nesse sentido, vai se produzindo uma série de pensamentos que se afirmam na condição de ideias e preceitos formadores de um capital cultural nacionalista negador daquilo que não o pertence. Esses valores eram defendidos pelo posterior ministro da educação nacional, António Carneiro Pacheco, que apresentou, em 1934, a proposta de uma formação ideológica dos jovens e sua integração num movimento nacionalista.
Criada para enaltecer os valores portugueses, alimentava-se da história do país para se legitimar. Salazar, em 1941, responde à Jeunesse10 que as razões do governo português para criar o movimento da Mocidade Portuguesa foram duas: “[...] a necessidade imperiosa de fazer viver a juventude num ambiente de patriotismo saudável e de espírito heroico [...]” e “[...] a conveniência de completar a acção da família e da escola através de uma obra de educação tendo por objectivo a formação do caráter” (MP, 1941, p. 73)11. O próprio Salazar define qual seria o efeito propriamente simbólico esperado pela ação pedagógica e de imposição e inculcação realizadas pela MP na educação pública portuguesa, a saber: a partir de ideias específicas de patriotismo e de espírito heroico; completando a ação da família e da própria escola; formar, na juventude portuguesa, um caráter nacional baseado nos valores ético-morais do grupo político hegemônico, ou seja, nos valores cristãos e nacionalistas de tipo fascista.
Em 1937, após um ano da criação da MP, foi criada a MPF, dirigida pela Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN) e sua primeira Comissária foi D. Maria Guardiola, com o objetivo de educar as futuras mães e esposas de Portugal. Em estudo detalhado sobre a estrutura e funcionamento dessa instituição, Irene Flunser Pimentel (2008) apresenta o livro cujo título já remete a uma ideia trazida como pertencente à alma da mulher portuguesa: Mocidade Portuguesa Feminina: educada para ser boa esposa, boa mãe, católica e obediente. Descreve a trajetória da MPF do surgimento, em 1937, até o seu fim, em 1974. “Ideologicamente, a elite dirigente da MPF defendeu o ideário nacionalista e a doutrina católica e, além de compartilhar os mesmos inimigos do Estado Novo - o liberalismo e o comunismo -, erigiu como adversário específico o feminismo” (Pimentel, 2008, p. 17). Assim, a autora afirma que por meio da educação aplicada na MPF os valores defendidos e combatidos pela instituição aludem ao apresentado por Bourdieu acerca do ‘arbitrário interiorizado’.
A premissa de uma entidade criada para formar as mulheres portuguesas no sentido de nacionalismo e cristianismo, apresentando a importância do culto de glórias passadas e que deveriam ser preservadas, foi apresentada por Arriaga (1976). Ele apontou as principais diretrizes norteadoras da instituição salazarista. Com um regulamento rigoroso, acreditava-se que ao ser seguido e incutido estaria garantida objetivamente a educação e a construção de um habitus nas mulheres portuguesas daquela geração e além. Apesar disso, sua análise não considerou a riqueza de detalhes apresentada por Pimentel (2008).
Assim, o principal objetivo deveria ser a construção de uma mentalidade portuguesa aliando as ideias nacionalistas e religiosas como se pertencessem a uma mesma significância. Partindo do mesmo princípio da MP, o objetivo era formar uma nova mulher por meio da educação moral cristã tradicional no país. Possuía quatro vieses educacionais: moral, civismo, física e social. Com o objetivo de estender às colônias portuguesas, o Decreto-lei nº 43.271 (1960) tornou extensiva ao ultramar a secção feminina da Organização Nacional da Mocidade Portuguesa.
As meninas portuguesas deveriam ser preparadas para serem física, intelectual e espiritualmente as mulheres portuguesas almejadas pelo Estado Novo. Foi, portanto, uma instituição cuja atuação era independente da MP, mas trabalhava em conjunto com ela para atender aos interesses do Estado naquele momento. Segundo o ministro da Educação Nacional, António Carneiro Pacheco, a finalidade da MPF seria “[...] educar e nacionalizar a juventude, preparando a mulher, de quem depende a segurança e a felicidade da família, e, por conseguinte, o bem da Nação” (Pimentel, 2008, p. 23). O papel da mulher estaria assim bastante delimitado na sociedade portuguesa e competia à MPF educar as jovens para esse futuro. À liderança cabia desenvolver mecanismos para realização e alcance de tais objetivos.
A educação escolar era vista como uma extensão da educação que se recebia em casa. Porém, a educação formal não era suficiente para inculcar um arbitrário cultural de controle dos corpos femininos. Por isso, a MPF, atuando no espaço escolar através da educação não formal, deveria complementar a inculcação desse arbitrário e preparar as moças portuguesas para garantir a segurança e a felicidade da família, o que representava o bem-estar da própria nação, ou seja, prepará-las para cuidar da casa e dos filhos e manter os seus corpos dóceis para cumprir as obrigações do casamento.
A Mocidade Portuguesa Feminina teve como Comissária Nacional12 Dona Maria Guardiola entre os anos de 1937 e 1968. A partir desse ano, assumiu Dona Maria Ana Almeida da Luz Silva, que já ocupava o cargo de Comissária Nacional Adjunta para o Ultramar desde 1963. A última Comissária Nacional da MPF foi Dona Maria Joana Bidarra de Almeida. A primeira Comissária ocupou também o cargo de reitora do liceu Maria Amália até o ano de 1947. Na função de responsável pela formação moral e nacionalista estava o Padre Gustavo de Almeida e, após sua morte em 1965, o Padre João Trindade, sendo o único cargo ocupado pela figura masculina na instituição (Pimentel, 2008).
É emblemático o fato de a função responsável pela formação moral e nacionalista da entidade ser sempre ocupada por homens religiosos. Isso reforça a ideia de que o efeito propriamente simbólico esperado pela ação pedagógica da entidade era formar as moças para uma visão de mundo nacionalista-cristã e, consequentemente, machista. Além de nos fazer refletir sobre quem, de fato, definia as prioridades dessa ação pedagógica. Esses homens religiosos eram os portadores do capital simbólico e representavam a Igreja Católica Apostólica Romana com seus interesses, alinhados aos interesses do Estado salazarista.
A criação das entidades Mocidade Portuguesa (MP) e Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) permearam o campo de atuação entre a educação formal, não formal e difusa. Foram reservados espaços físicos em alguns centros escolares para a atuação das instituições, mas também se estipularam decretos por parte do governo para que atividades extraescolares e assistenciais da escola ficassem a cargo da MP e da MPF (Pimentel, 2008).
Desse modo, a formação cívica nacional da juventude portuguesa ocorria nos mais diversos espaços educacionais com uma definição bastante clara do objetivo dessa formação: corpos dóceis, educados e preparados para atender às necessidades nacionais da sociedade daquele período. Uma personalidade cuja identificação nacional estaria automaticamente ligada aos valores da nacionalidade portuguesa pertencentes ao país desde o seu início, a saber: a obediência, o respeito e a cristandade.
Conforme a primeira edição do Jornal da MP, a entidade era nacionalista, baseada na Constituição. Para Marcello Caetano (1946, p. 4) “A Mocidade Portuguesa é a mais séria tentativa de educação juvenil em massa até hoje feita em Portugal”; ou seja, o primeiro Comissário Nacional da MP e então Ministro da Colónias no ano em que proferiu essa frase acreditava ser uma organização que iria contribuir de fato para a sociedade portuguesa futura.
A Liga dos Antigos Graduados da MP foi uma organização criada para dar vida ao que se dizia sobre ela: “Quem uma vez pertenceu à Mocidade Portuguesa não pode sair dela” (Vida da MP, 1946, p. 272). Havia um presidente, Luís d’Avillez, e Pedro de Avillez foi o presidente da primeira reunião dos sócios, que ocorreu em 9 de junho de 1945, com a presença do Comissário Nacional Interino, José Soares Franco.
Todos os que viveram intensamente a vida da ‘Mocidade Portuguesa’ mesmo aqueles que hoje, por aparentes desinteligências ou por simples capricho, se afastaram de nós, as sentem dentro de si como que formando uma segunda natureza. Todos sentimos a potencialidade dessas idéias - fôrça pronta a frutificar, pronta a traduzir-se em actos e as plasmar tôdas as nossas atitudes (A nossa posição, 1946, p. 90).
O sentido de criação e existência da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina parecem encontrar nessas palavras o seu significado. Fazer com que portugueses e portuguesas, mesmo após deixarem de ser diretamente educados pela MP e pela MPF, continuassem a seguir com ações e práticas idênticas àquelas do período quando passaram pelos ensinamentos seria a maior conquista destas instituições. Assim, o habitus teria o significado da identidade nacional, distinguindo essas pessoas das demais nacionalidades.
Por esse motivo, o texto segue defendendo a resolução de problemas portugueses de maneira portuguesa:
[...] uma verdadeira política respeitará o sentimento religioso do nosso povo, atendendo aos seus princípios cristãos e católicos em tôdas as suas projecções sociológicas [...]. Assim como em nome da Pátria não deve ser negada a Família, assim também em nome da sociedade internacional não devem ser repudiadas as nacionalidades [...] (A nossa posição, 1946, p. 93).
A relação portuguesa com os chamados valores portugueses e ideais de nacionalidade encontra no sentimento religioso e em seus princípios o sentido de existência da própria pátria. A instituição de uma entidade formadora dessas concepções, moldando os indivíduos por meio de um arbitrário cultural específico, mas que eles conseguissem levar em suas práticas diárias na vida, contribuindo para um capital social português que extirpasse os ideais considerados antinacionalistas. Assim, o governo salazarista, por meio da MP e da MPF, teria alcançado seus objetivos pedagógicos e políticos.
O dia a dia da Mocidade Portuguesa (MP) e da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF)
O funcionamento da MP e da MPF ocorria dentro dos liceus, em espaços destacados na escola para tal. Segundo Viana (2001), apesar do movimento governista para a MP se tornar extraescolar, passou para a história como parte integrante da escola. Algo semelhante pode se afirmar sobre a MPF. Em ambos havia a obrigatoriedade de filiação aos meninos e meninas estudantes dos liceus.
Assim, podemos inferir que a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Femina eram as entidades responsáveis pela educação não formal no ambiente escolar, mas que também exerciam grande influência nos currículos e na organização da educação formal nas escolas públicas portuguesas. A expressão disso era a obrigatoriedade de filiação de estudantes.
Conforme Jornal da MP de 28 de novembro de 1942, era dever dos filiados da MP “[...] andar fardado, usar o emblema, ir às instruções aos sábados” (Santos, 1942, p. 3). Essas constituíam algumas das práticas dos meninos ligados à MP. Além disso, a formação deveria servir aos futuros portugueses o desenvolvimento da aptidão em “[...] dominar e colonizar” (Caetano, 1945, p. 4). Quanto a esse assunto, o Decreto-lei nº 43.271 (1960), tornou extensiva ao ultramar a secção feminina da Organização Nacional Mocidade Portuguesa.
Segundo tese defendida por Luís Grosso Correia em 2002, algumas características fizeram parte das ações escolares sob influência direta da MP. A primeira dizia respeito ao prêmio nacional, instituído pelo MEN no Decreto-lei nº 27.084 (1936), ou seja, ainda no começo da atuação do órgão. Nele constava como um dos critérios para recebimento pelo estudante a efetiva participação nos trabalhos da MP. No ano de 1943, o liceu D. Manuel II não foi indicado ao referido prêmio pelo fato de o seu melhor aluno não ter participado com devoção dos trabalhos da MP.
Tanto na escola quanto fora dela estudantes portugueses estabeleciam ligações que podiam ser fundadas em trocas materiais ou simbólicas. Para Bourdieu (1998), a instauração ou perpetuação desse tipo de ligações supõem o reconhecimento de proximidade, seja no espaço físico (geográfico), econômico ou simbólico. A existência dessas relações não se dá de forma natural, ou mesmo social, mas é produto de estratégias de investimento social, consciente ou inconsciente, orientadas para a instituição ou reprodução de relações diretamente utilizáveis a curto ou longo prazo.
Em outras palavras, são orientadas para transformar as relações eventuais em relações necessárias e eletivas, ou seja, em obrigações duráveis e subjetivamente garantidas. O autor define essa rede de relações como capital social e admite que a sua reprodução seja tributária de todas as instituições. Nelas são produzidas ocasiões, lugares, ou práticas que reúnem indivíduos tão homogêneos quanto possível nos aspectos pertinentes ao sentido de existência e persistência de um grupo.
Como exemplo citado anteriormente, em 1943 o melhor estudante do Liceu D. Manuel II não foi indicado ao prêmio nacional do MEN por não ser signatário do capital social reconhecido pela Mocidade Portuguesa. Ou seja, ele não participou com devoção dos trabalhos da MP, de acordo com a avaliação dos dirigentes da entidade. Isso significa que esse estudante de maneira consciente ou inconsciente não construiu estratégias de investimento social para reprodução das relações instituídas pela MP. Aqui se identifica a clara sinalização da possibilidade de ineficácia na ação pedagógica. O objetivo último da entidade era atingir a todos os jovens e não conseguiu, pelo citado, nem mesmo os mais aplicados estudantes dos liceus, o que pode sinalizar que a ação pedagógica realizada por ela não era unanimidade entre estudantes portugueses.
Os documentos para a Mocidade Portuguesa (MP) e a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF)
Alguns documentos foram elaborados com a finalidade específica de direcionar as atividades e formulações teóricas dos meninos e meninas das duas organizações. Dos meninos, houve o Jornal da MP e o Boletim da MP, e das meninas, o jornal denominado Lusitas e o Boletim para Dirigentes da MPF.
A primeira edição do Jornal da MP, em dezembro de 1937, era justificada pela necessidade de melhor diálogo com os seus filiados, a ser realizado de maneira direta, apesar de alegar ter os veículos de comunicação como meios de transmissão de ideias. O jornal seria de leitura obrigatória aos seus filiados.
A criação do Jornal da MP exerceu dupla função: de propaganda e ampliação da ação pedagógica não formal realizada pela entidade. O texto impresso tem o poder tanto de divulgar a instituição como de inculcar, de forma direta, um arbitrário cultural. Nesse último caso, transmitir e interiorizar as ideias dominantes no regime salazarista entre estudantes vinculados à educação pública portuguesa filiados à MP e obrigados a ler o periódico.
Os boletins da Mocidade Portuguesa (MP) tinham teor diferente dos da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF), embora em ambos possam ser encontradas as premissas ideológicas anteriormente citadas para a formação do homem e da mulher portuguesa forjada nos ideais de nacionalidade.
O boletim da MP começou como um registro anual das atividades realizadas a partir de 1937 e depois de 1940 passou a ter periodicidade mensal. O primeiro foi apresentado pelo primeiro Comissário Nacional da MP, Engenheiro Nobre Guedes (1937, p. 2):
Deve ter-se em vista que a organização vincule no espírito da mocidade a necessidade da fé como amparo superior da existência e a moral cristã como norma perfeita de solidariedade humana; o culto da independência da pátria e da sua unidade territorial; a viva admiração pelas glórias do passado e conhecimento das responsabilidades delas resultantes; a perfeita consciência do levantamento nacional iniciado em 1926; a necessidade social dum governo de fôrça e autoridade; a belesa moral do lema que manda sacrificar o interesse dum ao bem de todos.
A preocupação em dar continuidade ao processo iniciado em 1926 visava conferir maiores poderes ao governo, mas principalmente tendo em vista uma ampla aceitação e concordância. Para isso, a MP deveria cumprir o papel de formar os cidadãos em seu caráter físico e moral, cultuando deveres morais, cívicos e militares. De acordo com o Regulamento da Organização Nacional da MP, existiam quatro escalões de filiados, abrangendo os meninos portugueses dos 7 aos 26 anos de idade: o primeiro, denominado lusitos, dos 7 aos 10 anos; o segundo, infantes, dos 10 aos 14, o terceiro, vanguardistas, dos 14 aos 18; e o quarto, os cadetes, acima dos 18 anos (Decreto nº 37.765, 1950). Foi ainda publicado no Boletim de 1937, mas retirado na publicação oficial em 1950, o parágrafo 2º com a seguinte redação: “A MP cultivará nos seus filiados a educação cristã tradicional do País, nos termos do §3º do artigo 43° da constituição Política, e em caso algum admitirá nas suas fileiras um indivíduo sem religião” (Regulamento da Organização Nacional da MP, 1937, p. 11). Nele, informa-se que o regulamento havia sido publicado em 4 de dezembro de 1936, pelo então Ministro da Educação Nacional, António Faria Carneiro Pacheco. Observa-se, aqui, o esforço legislativo em afirmar aspectos que deveriam compor a natureza da identidade nacional portuguesa, reforçando a não aceitação da ausência de religiosidade.
A imprensa é um dos campos da produção cultural em que os indivíduos envolvidos travam uma luta pelo controle da produção e pelo direito de impor como legítimas as classificações e as hierarquias dos bens culturais produzidos. Eles disputam, no interior do campo, as definições do que consideram lícito e saudável. Assim como a definição de quais indivíduos e instituições estariam legitimamente autorizados a fazer essas classificações e hierarquizações (Bourdieu, 1978).
Durante a ditadura salazarista, a MP e a MPF eram as instituições legitimamente autorizadas pelo Estado português a publicar jornais destinados aos estudantes das escolas públicas e disseminar as ideias consideradas lícitas e saudáveis para esse público (da fé e da moral cristã; do culto da independência da pátria e da unidade territorial; da admiração pelas glórias do passado, da consciência dos ideais do regime iniciado em 1926, sua força e autoridade; e do seu lema: ‘sacrificar o interesse dum ao bem de todos’). Exerciam, portanto, o poder legítimo, dentro desse campo de produção simbólica, de exprimir os interesses específicos dos grupos e classes dominantes, responsáveis pela produção dessa lógica.
Foi encontrado o tema da influência e necessidade da religião cristã na formação do caráter num dos programas da 5ª Conferência de Educação Moral e Cívica (EMC). A conclusão é de que foi a ‘religião católica’, que é cristã, que civilizou Portugal, tendo por justificativas os heróis que praticavam a religião, a vida sobrenatural e os sacramentos (MP, 1937). Ou seja, faz-se uma relação indissociável no país entre civilização e religiosidade, devendo pertencer ao desenvolvimento educacional da nação para ter êxito, portanto. Em contrapartida era apresentado também o marxismo, como uma teoria de cunho ateu, pelo Professor Doutor Luiz Pinto Coelho, à época também secretário-inspetor da MP.
No Boletim de novembro de 1940 há as conclusões do I Congresso Nacional da MP, realizado em maio de 1939. Nele, ocorreu o questionamento acerca de quem seria responsável pela formação moral, com a seguinte resposta:
Serão normalmente sacerdotes (o pároco, ou seu delegado) os instrutores de formação moral - verdadeiros assistentes religiosos de cada Centro. Todos eles, pela circular nº 365, de novembro de 1939, são propostos - para nomeação - ao Comissariado Nacional, pelo Director dos Serviços de Formação Nacional, depois de se ter entendido com a competente autoridade eclesiástica diocesana (MP, 1940, p. 13).
A realização dos congressos da MP evidencia outro aspecto da ação pedagógica da entidade no campo da educação não formal. Fica evidente, na análise da fonte, que esses congressos tinham o objetivo explícito de inculcar na juventude portuguesa uma formação moral centrada nos valores cristãos-nacionalistas. Mais que isso, a fonte deixa claro o tamanho da colaboração dos sacerdotes católicos para o alcance desse objetivo. Eles eram os ‘verdadeiros assistentes de cada Centro’ (o pároco, ou seu delegado), ou seja, os sacerdotes eram responsáveis pela formação moral dos jovens, tendo sido esses delegados, para tal missão, pelos participantes do I Congresso Nacional da Mocidade Portuguesa.
Mais adiante, ainda no mesmo boletim, encontra-se a afirmação de que a doutrinação dos jovens deveria ser latina e cristã, em oposição ao liberalismo. A importância da formação moral é justificada com mesmo fervor, ao certificar que a Constituição mandava, o regulamento da MP prescrevia, por ser tradição e, mais ainda, por ser verdade. Ao apresentar isso, o Padre Manuel Rocha, Diretor dos Serviços de Formação Moral, descarta qualquer possibilidade de questionamento ou mesmo de oposição. O boletim segue defendendo ideias como formação integral da juventude, conferindo conselhos para a formação de bons dirigentes e ainda recomendando exames de consciência e prática de atividades físicas.
No Boletim também são encontrados discursos sobre o papel da MP na sociedade portuguesa e em outros países, colônias de Portugal. É assim o título do texto ‘Colonizar e civilizar’, escrito pelo Capitão Celestino Marques Pereira, Diretor dos Serviços de Educação Física e Desportos, publicado no boletim número 1, volume V, de 1945. Portanto, o dever de civilizar estaria atrelado ao dever de colonizar; pelos discursos expressos no boletim, ambos estariam também conectados à manutenção das tradições portuguesas, principalmente religiosas.
A encíclica de Pio XI sobre a educação cristã da juventude, escrita em 1929 e publicada em vários números do boletim do comissariado nacional da MP, serve para compreender como o governo pensava a educação. O início de cada trecho da carta no boletim vinha com o título ‘Roteiro acerca da educação cristã da juventude’. Em um de seus trechos, afirma-se que a educação da juventude pertence à Igreja e ao Estado. De modo particular, cada um dos segmentos sociais teria sua parcela de responsabilidade e influência sobre a formação dos jovens. A naturalização dessa influência seria compreendida pela necessidade de unificação nacional do país.
É falso, portanto, todo o naturalismo pedagógico que, na educação da juventude, exclui ou menospreza por todos os meios a formação sobrenatural cristã; é também errado todo o método de educação que, no todo ou em parte, se funda, sobre a negação ou esquecimento do pecado original e da graça, e, por conseguinte, unicamente sobre as forças da natureza humana.
Tais são, na sua generalidade, aqueles sistemas modernos, de vários nomes, que apelam para uma pretendida autonomia e ilimitada liberdade da criança, e que diminuem ou suprimem até a autoridade e acção do educador, atribuindo ao educando um primado exclusivo de iniciativa e uma actividade independente de toda a lei superior natural e divina, na obra da sua educação (Pio XI, 1946, p. 287).
O Boletim de janeiro de 1942 traz os ideais da MP: juventude generosa, cristandade, lusitanidade, ordem social e culto da justiça. Sobre a ordem social é afirmado categoricamente a impossibilidade de deixarem de existir ricos e pobres. Ou seja, a sociedade e suas instituições serviriam apenas para a manutenção da realidade já existente. Ainda no ano de 1942 são apontados alguns problemas da MP como falta de dirigentes competentes e dedicados, assim como falta de dinheiro.
No jornal da MPF, Lusitas, também são apresentadas histórias de cunho moral e pedagógico, a exemplo das fábulas ‘Os náufragos da Ilha Rochosa’ e ‘O cogumelo dourado’. Nele, ainda se identificam textos e passagens com diferenças de papeis entre masculino e feminino, competindo às mulheres o papel de esposa e mãe. Essas histórias deveriam ser contadas pelas meninas, professoras filiadas à MPF. Sem o significado de produzir conteúdos para uso em sala de aula, mas com o mesmo teor educativo de formação das futuras mães de Portugal, esse era o Boletim para Dirigentes da MPF. Ou seja, os jornais da MP e da MPF se utilizam do máximo possível de recursos pedagógicos para atingir o objetivo principal de inculcar nos jovens e nas jovens portuguesas as premissas gerais do arbitrário cultural imposto pelo regime salazarista.
O primeiro número do Boletim para dirigentes da MPF: Centros primários é inaugurado com texto cujo título ‘Tu podes fazer cristandade’ chama atenção. Nele, há o interesse claro em relacionar a cristandade à iluminação e a necessidade em inculcar os preceitos cristãos, não separando patriotismo de vocação missionária religiosa. Essa afirmação encontra-se explícita na edição do Boletim de outubro de 1954 onde está a seguinte afirmação: “[...] merecer como portuguesas - o que torna inútil acrescentar como cristãs” (Boletim para dirigentes da Mocidade Portuguesa Feminina, 1954, p. 6). Verifica-se ainda em alguns números do Boletim a solicitação para que as filiadas da MPF adquirissem exemplares do Lusitas, considerado o jornal das alunas.
Como a finalidade do jornal Lusitas era de auxílio ao trabalho pedagógico das meninas em sala de aula, foram encontrados vários modelos de assuntos e conteúdos a serem ensinados. Há no número 208, publicado em 30 de novembro de 1953, uma História em Quadrinhos (HQ) sobre a vida de Maria, mãe de Jesus. Provavelmente deveria ser lido e mostrado aos estudantes em sala de aula. Além disso, eram constantes sequências de HQ que traziam fundo moral e religioso. Publicado de forma mensal desde maio de 1943, passou a ter periodicidade quinzenal a partir de março de 1947.
Considerações finais
Os dispositivos criados para legitimar, na educação formal portuguesa, as verdades sobre o ideal nacional e sua identidade tiveram fôlego de existência menor do que a ditadura. Ao se assemelharem em vários aspectos aos modelos dos regimes totalitários nazifascistas, apesar de suas constantes negações, findaram principalmente pelos mesmos questionamentos impostos à existência de uma juventude subserviente aos ditames do Estado.
Em discurso, no primeiro aniversário do Centro Universitário do Porto, ocorrido a 22 de janeiro de 1943, o diretor Domingos Rosas da Silva discorre sobre o papel do Centro e a importância da MP. Sobre as finalidades do ensino superior, ele cita as três mais importantes: ensinar, criar a ciência e aplicá-la. A função da MP estaria em preencher as lacunas exigidas pela sociedade e não contempladas na atuação direta do Centro Universitário. E faz uma crítica aos docentes sobre a ausência de uma postura verdadeiramente educadora, citando que as gerações anteriores possuem certo preconceito em relação às mais jovens e considerando os mais novos como piores. “Se este critério fosse verdadeiro, se cada geração fosse melhor do que a que se lhe segue, não seria difícil localizar em tempos históricos a geração modelar e o paraíso terrestre em época relativamente recente” (Silva, 1943, p. 134).
Por considerar a importância da espiritualidade mesmo em pessoas da ciência e sua deficiência em ser ensinada ou vivida pelos docentes, recorria-se à MP como expediente a esse problema. A experiência da MP pelos jovens possuía nas palavras do diretor a finalidade de proporcionar à juventude da ciência a possibilidade de aliar aspectos exigidos pelo meio social na atuação presente e futura desses membros, ao fazer científico, inerente ao convívio acadêmico em um Centro Universitário. Obviamente um desses aspectos exigidos consistia em viver de acordo com princípios rígidos da moral cristã. O prof. Domingos conclui afirmando que o Centro Universitário pertencia à Mocidade Portuguesa, talvez num gesto de aproximar os conceitos de ambas em serem cristãs e nacionais.
No discurso de posse do Diretor Universitário do Porto, Dr. Jaime Rios de Sousa, em 19 de abril de 1947, o então Comissário Nacional da MP discursou13. Aproveitando o momento, afirma que os princípios basilares dos Centros Universitários se confundem com os da MP. Ressalta que a MP é um movimento de rapazes e para rapazes, estimulados a viverem “[...] como rapazes” (Coelho, 1947, p. 153). Portanto, seriam formados para cumprirem sua função de cidadãos portugueses, homens com senso de organização e hierarquia. Manter o país sob esse modelo tinha o sentido de dar continuidade ao sentimento nacionalista, em contraposição aos movimentos internacionalistas.
O que a Mocidade quer, com o seu nacionalismo, é que Portugal exista, viva, trabalhe, se organize e progrida em harmonia com as suas características fundamentais; que não se pretenda, de dentro ou de fora, torcer o nosso País para encaixar em moldes ou figurinos alheios (que contrariam as tendências e aspirações nacionais) só porque são bonitos ou estão na moda (Coelho, 1947, p. 154).
Combater internacionalismos, principalmente o comunismo, era um dos deveres da MP. Seria defendendo a ideia do nacionalismo português que a MP, nos espaços onde ela estivesse, afirmava a identidade portuguesa, colocando pensamentos divergentes automaticamente no campo do antinacionalismo. O comissário atesta que competia à MP a ‘moldagem’ dos futuros dirigentes do país. A formação da elite portuguesa estaria, pois, na MP.
O Diretor dos Serviços de Formação Moral, Frei José Montalverne, escreveu no boletim de junho de 1943 texto com o título ‘A formação moral da MP’. Nele, há aspectos de cunho doutrinal e pedagógico. Embora faça afirmações no sentido de que a MP não é obra da Igreja nem imponha a religião católica, considera que ela é a “[...] verdadeira Igreja de Cristo” (Montalverne, 1943, p. 238). Por esse motivo, estaria apta a ensinar a religião católica.
A MP foi uma instituição educacional criada para dar continuidade a uma formação educacional escolar. Assim, consistia em disseminar ideias e ações formadoras dos cidadãos portugueses nos moldes do pensamento do governo de Salazar. Ser homem português requeria assimilar e agir de acordo com os preceitos da identidade nacional portuguesa, pautada na ação patriótica e cristã. Meninos e meninas deveriam cumprir funções bem específicas dentro da sociedade.
Havia a afirmação da unidade nacional por meio da unidade religiosa ancorada no princípio da sua existência precípua. “Tal como em Portugal, destacados activistas católicos dominaram sistematicamente os aparelhos da Educação Nacional e da censura” (Loff, 2008, p. 173); aqui ele se refere à Espanha, mas fazendo uma correlação imediata com o que acontecia em Portugal a respeito do espaço conferido à Igreja Católica no setor educacional na Ditadura Salazarista.
Palavras que se repetiam com o objetivo de corroborar a religião cristã-católica à educação nacional portuguesa eram comuns. Assim, tradição, espiritualismo, obediência, força moral surgem para ratificar a premissa de ideias consideradas cristalizadas na sociedade portuguesa, como se prescindissem delas para continuar a existir. O discurso ontológico de que o ser português encontraria sentido no ser católico pautava-se na afirmação da existência de “[...] um só Deus, um só Cristo, uma só fé, uma só pátria” (Lisbos apud Loff, 2008, p. 170)14.
A defesa de uma falsidade e danos do naturalismo pedagógico se verifica na transcrição da encíclica de Pio XI no boletim do comissariado nacional da MP. Nela, a educação é tratada como ferramenta para doutrinação religiosa, devendo estar clara, pois que não há ausência de interesses no fazer educativo.
Caberia aos adultos a formação das crianças. Principalmente na condução da identidade cristã. O papa considera errado entregar ao estudante a autonomia de sua educação, negligenciado o fato de que se deve partir do pecado original. Assim, ao mesmo tempo que é nato ao português a religiosidade, não se deve esquecer de ensiná-lo. Essa atribuição deveria ser do Estado e suas instituições educativas.
A partir de outubro de 1952 o Boletim para dirigentes da MPF passou a ser publicado em Lisboa com o objetivo de passar informações necessárias ao exercício da função das mulheres filiadas. Chama a atenção o número de exemplares produzidos; uma média de 5.000 por número, sendo ampliado a cada novo número. O n. 1 tem como primeiro artigo um texto cujo título é ‘Tu podes fazer cristandade’, numa clara alusão a um dos significados para a existência da MPF.
Cada ano letivo possuía uma campanha e naquele ano o lema exaltava o compromisso das mulheres portuguesas em educar as crianças no sentido religioso. “Como havemos de passar, a pequeninas e maiores, estas palavras de ordem (tu podes fazer cristandade, tu podes iluminar os caminhos alheios) se primeiro as não vivermos, as não esculpirmos no nosso querer, na nossa consciência, na nossa alma?!” (MPF, 1952, p. 5). Para ensinar às crianças o real significado e incentivá-las a perceber sua capacidade em exercer algo considerado tão importante, era necessário que as dirigentes tivessem antes internalizado. ‘Esculpir’ no ‘querer’, na ‘consciência’, na ‘alma’, possui aqui o mesmo sentido que desenvolver em si um habitus, posteriormente tratado como natural e repassado às crianças, tendo em vista a realização do mesmo processo.
Baseava a campanha como “[...] um motivo nacional que é simultaneamente patriótico e religioso - a vocação missionária dos portugueses” (MPF, 1952, p. 7). O sentimento de religiosidade, afirmada como presente no “ser português”, é aqui considerado para estimular na educação a continuidade do que era afirmado fazer parte da nacionalidade e, consequentemente, da identidade portuguesa.
O segundo Boletim tinha como lema a palavra ‘Missionar’, numa perspectiva de continuidade do lema do primeiro número. Relacionando as palavras ‘vocação’, ‘pátria’, ‘cristão’ e ‘educador’, o Boletim traz para as dirigentes a obrigatoriedade da ação a partir de algo apresentado como inerente à educação. Ser educador é, antes de tudo nesse sentido, estar vocacionado a. Desse modo, não há escolhas, pois, a vocação é um chamamento ao qual não se pode fugir e quando é de ordem religiosa (‘vocação de Cristão’), torna-se impossível negar.
Caras dirigentes: Também agora o materialismo, sob diversas e novas formas, ameaça a supremacia do espírito. A guerra recente e o medo das futuras tornam instável a vida; e a fraqueza da Fé torna as consciências dos homens vulneráveis a todos os desmandos. Corre pelo mundo uma desenfreada ânsia de prazer que faz relegar todos os deveres de estado. A própria Família não cumpre sua missão, porque a mulher desertou do ser posto.
[...] E nunca a sociedade se levantou da queda e se ergueu para o Alto sem o valor das Mães! [...] (MPF, 1952, p. 98).
Às mulheres competiam as obrigações com a família e, não fazendo isso, relegou ao Estado toda a obrigação. O papel de mãe, a ser desempenhado pela mulher, deveria ser o mais importante a exercer. O texto apresenta o valor da mulher-mãe para o desenvolvimento da sociedade. Com isso, qualquer outra função deveria ser considerada menos essencial, tendo em vista o fortalecimento da ‘fé’ e da ‘nação’ nesse contexto.
O exemplo da rainha Dona Leonor, nascida em Portugal no século XV, é detalhadamente relatado no Boletim dos meses de abril e maio de 1958. Os textos, transcritos do livro de Dr. João Ameal, figura importante para a historiografia portuguesa, contam a história de sua vida e sua contribuição cristã do reino de Portugal. Seu papel de esposa, mãe e rainha, dentro dos preceitos cristãos de nacionalidade, foram importantes a serem exemplificados.
Os demais temas tratados pelo Boletim tinham constantemente o viés religioso. Assim, a função da portuguesa deveria sempre estar de acordo com os textos e orientações apresentados e difundidos por esses materiais de divulgação da boa conduta da rapariga portuguesa.
O ideal de civilização portuguesa perpassa pela compreensão da história do país que viu seu surgimento e afirmação de nacionalidade na religião. A Igreja Católica Romana foi o começo e sentido da organização, manutenção e expansão de Portugal. Para a ditadura salazarista a continuidade da civilização portuguesa precisava da permanência nos portugueses do habitus que deu sentido à existência portuguesa durante todos esses séculos. E estava a correr o risco de se perder em decorrência de ideias estrangeiras, liberais e anticristãs, trazidas principalmente pelo comunismo ateu e desnacionalizante.
As instituições da MP e da MPF foram criadas e conduzidas por pessoas que acreditavam nesse pensamento de desvirtuação da juventude por meio de ideologias contrárias ao ‘ser português’. Retomar os valores, por meio de práticas, discursos e ações tinha o sentido de estabelecer uma figuração social para manutenção da identidade nacional portuguesa. Essa estaria alicerçada no que promoveu a formação portuguesa e deu explicação à sua civilidade, a religião como elemento de unidade cultural.
Foi com a realização de atividades, organização e formação que a MP e a MPF queriam promover no seio da juventude o sentimento de identidade nacional. Embora tenha conseguido uma grande quantidade de portugueses filiados à MP nos primeiros anos, o desinteresse pela instituição fez com que o governo adotasse algumas medidas, como incentivar atividades esportivas e obrigatoriedade de filiação. Do lado feminino, o Boletim para dirigentes conseguiu uma tiragem de onze mil exemplares por edição no ano de 1962, o que conferia uma significativa abrangência e circulação das ideias entre as filiadas da MPF.
Apesar dos esforços governamentais durante toda a ditadura portuguesa, o ano de 1974 marcou o fim de ambas as instituições educacionais. Elaboradas para serem complementares à vida escolar e acadêmica, encontrou existência e permanência principalmente nesses espaços. O motivo de sua concepção estava na circulação de ideias que só viram coerência no exercício do poder de uma ditadura. Ainda assim, é possível identificar no artigo ora apresentado que possíveis resistências, mesmo no período de exceção, existiram, configurando, assim, o esforço, porém não êxito de instituições educacionais totalizantes e com o objetivo de forjar uma identidade hegemônica ou única da nacionalidade portuguesa.