Introdução
As ações de assistência social estiveram sempre presentes na história do atendimento à infância no Brasil sob os mais diversos modelos. Desde as formas da caridade das entidades religiosas, até a chamada assistência científica, conceito fundamentado na ação dos médicos que representam o movimento higienista no final o século XIX e início de século XX, com o objetivo de regular e controlar o comportamento das populações pobres no país. Nesse sentido, a bibliografia de Rizzini (1990, 2011), Kuhlmann Jr. (2000, 2015); Kramer (1982), informam sobre assistência à infância no primeiro documento sobre a temática publicado no país, intitulado ‘Histórico da proteção à infância no Brasil’ de 1500 até 1922, escrito pelo Dr. Moncorvo Filho. No caso deste artigo, resultante de uma pesquisa concluída, temos diferentes aspectos a serem analisados, no entanto faremos opções a partir de um local e tempo histórico específico, qual seja, o município de Dourados/MT/MS1. Nesse contexto, trazemos à discussão aspectos de uma investigação que neste recorte vai contar a história da instituição chamada Lar Santa Rita, abordando aspectos da sua fundação, algumas propostas iniciais, bem como o atendimento às crianças na primeira gestão da instituição, analisando suas práticas civilizatórias no período de 1965 a 1982.
O Lar de Crianças Santa Rita teve sua fundação em 12 de novembro de 1965, chamado como uma Organização Não Governamental (ONG). No entanto, nem sempre foi definida por essa nomenclatura. Sua primeira razão social foi ‘Abrigo de Menores Necessitados de Dourados’; é somente no ano de 1966, em uma das reuniões lavradas em Ata que receberá o nome de ‘Lar Santa Rita de Cássia’, em homenagem à Santa Rita - referência da Igreja Católica. Essa instituição continua em funcionamento até o presente, e possui capacidade para acolher 40 crianças, de 0 a 12 anos de ambos os sexos. Hoje acolhe, inclusive, meninas adolescentes e seus bebês, vítimas de abuso e gravidez na adolescência, encaminhadas pelo Conselho Tutelar, a Vara da Infância e a 9ª Promotoria de Justiça de Dourados/MS.
Nossa opção destaca o recorte temporal entre o ano de 1965, por ser a data da fundação, e o ano de1982 - período do término da primeira gestão administrativa da instituição. O Lar Santa Rita foi criado por um Juiz de Direito e um grupo de senhoras, as ‘damas da caridade’ do município. Foi administrado na primeira fase até 1982 por esse grupo de mulheres. Após essa data, será administrado pela ‘Loja Maçônica de Dourados nº 2015’.
Nosso artigo se organiza no intuito de responder e narrar parte da história da entidade no município de Dourados, e enfoca algumas perguntas que também justificaram o desenvolvimento do trabalho de investigação: Quais foram as motivações e quem foram os sujeitos envolvidos na fundação da entidade? O que foi priorizado no atendimento às crianças na primeira gestão de 1965-1982?
As respostas para tais indagações foram procuradas em diversas fontes documentais, entre estas as publicações no jornal O Progresso2. Ressaltamos a edição do dia 3 de setembro de 1966, informando a fundação do Lar Santa Rita ao dizer: “[...] está de parabéns a diretoria do Abrigo que realizou uma grande obra, necessária a qualquer cidade civilizada” (O Progresso, 1966b, p. 6). A nota informa a concepção ‘sociedade civilizada’ e a necessidade de uma entidade que abrigasse as crianças pobres ‘menos afortunadas’. O jornal era enfático ao afirmar que para o bem da civilização, não se poderia aturar crianças ‘perambulando’ pelas ruas da cidade, pois não era uma visão agradável para as pessoas que tinham melhor poder aquisitivo.
Para debater esses conceitos de civilidade nos aproximamos da teoria de Elias (2006), no intuito de compreender o processo da fundação dessas instituições, que esperavam civilizar a criança para implementar comportamentos socialmente aceitáveis, formados a partir do que a sociedade do período, considerava como sendo valores a serem alcançados. Essas instituições, à época, visavam o amparo e a assistência à infância, e também buscavam definir modos de controle e comportamento para crianças e adultos.
Para uma pesquisa mais ampla, além das fontes documentais recorremos ainda à história oral com entrevistas a sujeitos que fizeram/fazem parte da história da entidade afirmando, com a literatura, que os contatos com as fontes orais são necessários, “[...] valorizando vozes de pessoas, trajetórias de vidas, memórias, biografias, histórias” (Sarat & Santos, 2010, p. 50-51). Selecionamos pessoas que vivenciaram a rotina do Lar Santa Rita, e estiveram presentes durante o período do recorte temporal selecionado, e assim tivemos acesso a ‘histórias dentro da história’ (Alberti, 2006) nas memórias desses sujeitos.
Os arquivos encontrados no acervo institucional continham atas, fotografias, documentos, livros de registro, estatuto, histórico da entidade, e pudemos localizar este grande volume de informações que poderão ser exploradas em uma outra proposta, e ainda o acervo de edições de jornais locais. Além de todo esse material, as legislações da época e um volume de fotografias que fazem parte de arquivos privados dos colaboradores, também foram base de exploração documental.
Procuramos realizar um cruzamento dessas diversas fontes, pois, como indica Mogarro (2005, p. 74), “[...] as informações fornecidas por estes documentos têm, necessariamente, de ser cruzadas com os dados que se encontram como fontes de outra natureza, apresentando-se em suportes variados e sob formas diversas”. Ainda sobre as fontes fotográficas utilizadas durante a pesquisa, concordamos que elas, sob diversos aspectos, possibilitam ao historiador perpassar o documento escrito já que:
[...] a foto não esgota a sua utilidade ou função pela simples contemplação estética. Exceto em algumas fotos artísticas, o que prende nossa atenção à imagem não é apenas a apreciação do belo, mas a possibilidade reconhecer/ conhecer o real. Vemo-nos transportados no tempo e no espaço, tocando o passado, eternizado pela ação mecânica da máquina fotográfica. Nesse sentido, poderíamos afirmar que a importância da fotografia como fonte para a história e a história da educação residiria nesse seu ‘dom’ de permitir visualizar o ontem e o outro em seus contornos de ‘verdade’ (Vidal & Abdala, 2005, p. 178, grifo nosso).
Portanto, com essas escolhas metodológicas e esse corpus documental, queremos narrar e compreender a história do Lar Santa Rita no município de Dourados, investigando a trajetória e o atendimento à criança no âmbito da assistência. Elegemos destacar, no primeiro momento, o período da origem e fundação da instituição, considerando o recorte temporal elencado para análise (1965-1982); e no segundo momento, as características desta primeira gestão do Lar Santa Rita considerando sua organização e funcionamento, neste mesmo período.
A história da assistência e do atendimento no Lar Santa Rita
A fundação do Lar Santa Rita ocorre em 1965, quando o município de Dourados estava passando por um processo de crescimento demográfico iniciado há duas décadas anteriores com a instalação do projeto da Colônia Nacional Agrícola de Dourados (CAND), criada pelo Decreto Lei nº 5.941 (1943). Tal iniciativa fazia parte de diversas ações da política de nacionalização das fronteiras, como uma perspectiva construída em torno do regime varguista do Estado Novo e dentro do projeto intitulado ‘Marcha para Oeste’, que objetivava a expansão agrícola e a colonização (Naglis, 2014).
Deste movimento de pessoas chegavam inúmeros migrantes em busca de terras e melhores condições de vida. Entretanto, a localidade não tinha estrutura suficiente para atender com instalações adequadas toda essa população que chegava e crescia. Esse contexto de muito movimento e falta de estrutura gera desequilíbrio demográfico e aumento da pobreza, além de precariedade das condições de atendimento à população. No período, não havia nenhuma instituição de atendimento à infância ou políticas públicas de amparo e assistência. No Brasil, as primeiras iniciativas de educação e atendimento às crianças menores de seis anos de idade foram realizadas na chamada pré-escola - especificamente em Dourados, foram criadas escolas confessionais, a exemplo da Escola Erasmo Braga e a Escola Imaculada Conceição, implantada nos últimos vinte anos (1930-1950).
Com esse relativo crescimento sem planejamento, os números do abandono também se elevam, e na década de 1960 teremos um volume grande de crianças nessas condições no município, já que, conforme Gressler e Swensson (1988), na falta de um lugar de atendimento, elas eram deixadas na porta da casa do Juiz de Direito, à época. Há relatos de crianças que estavam morrendo de fome, assim: “[...] em 1ª de novembro de 1965, o Juiz Rafael, com 5 crianças abrigadas em sua casa, saía, a pé, de casa em casa, convocando senhoras e senhoritas para uma reunião no Fórum” (Gressler e Swensson, 1988, p. 156).
Nessa reunião, segundo os documentos consultados, tem origem a instituição ‘Lar Santa Rita’. Sua gênese está no movimento de mulheres que, buscando realizar uma atividade com caráter assistencial, filantrópico e motivadas pela convocação da Assembleia Geral no dia 12 de novembro de 1965, no Fórum da Comarca de Dourados, fundaram uma entidade para o acolhimento dessas crianças. Àquela reunião compareceram senhoras que faziam parte da sociedade douradense - as chamadas ‘damas da caridade’ -, alguns filantropos e juristas.
Ao final da Assembleia ficou instituída a primeira razão social da instituição ‘Abrigo de Menores Necessitados de Dourados’ e estabeleceu-se a eleição da primeira diretoria da entidade. Foram eleitas por votação entre os pares e empossadas: Presidente, Geni Ferreira Milan; Vice-Presidente, Maria de Lourdes da Cruz e Souza; 1.ª Secretária, Ymera Fedrizzi; 2ª Secretária, Maria Florezia Pessôa Carneiro; 1ª Tesoureira, Afife Bussuan; e 2ª Tesoureira, Filomena Guimarães Gomes (Histórico do Lar de Crianças Santa Rita, 2005).
A fundação da instituição vai representar a proposta que demandava uma sociedade civilizada, como mencionamos, e desde o início as inúmeras notícias eram veiculadas no jornal O Progresso, que, comunicava as reuniões, os eventos e os principais fatos envolvendo a referida instituição. Na edição de 27 de novembro de 1965, temos um fragmento de uma das reuniões que enfatizou a percepção desse grupo da liderança, à época, sobre os motivos de se abrir uma instituição como aquela.
Na imprensa local se destacava a infância pobre como um problema a ser resolvido pela comunidade, pois sua presença não era compatível com um grupo social que adentrava aos ‘portais da modernidade e da civilidade’, portanto precisava ser escondida da vista. Outro aspecto a ser destacado é a associação da infância a uma concepção utilitarista, na qual a criança ou a infância deveria ser preparada para tornar-se útil. O ‘perambular de corpos’ pela cidade não poderia se expressar como ideário civilizatório da chamada ‘boa sociedade’ noticiava o jornal:
Todos os douradenses devem apoiar esta Entidade de alto fim filantrópico, para que muito breve deixemos de ver perambulando pelas ruas tantas crianças maltrapilhas e opiladas, ao Deus dará; pois, se Deus quizer, essas crianças terão uma casa onde obterão toda a assistência adequada, onde poderão frequentar as aulas, onde, enfim, aprenderão a tornarem-se ‘úteis’ a elas mesmas e à sociedade (O Progresso, 1965, p. 6, grifo nosso).
Importante destacar a perspectiva eliasiana da boa sociedade, que retira da vista e leva para o ‘fundo da vida social’ o que for considerado repugnante, vergonhoso, constrangedor, o sujo, o feio, elementos que não condiziam com a etiqueta socialmente aceita. No caso deste cenário, “[...] crianças maltrapilhas perambulando pela cidade” (O Progresso, 1965, p. 6). Essa situação é resultado das próprias decisões políticas do período, tratadas como aspectos de uma cidade primitiva e destinada à barbárie, necessitando, portanto, de um novo modo de comportamento ou padrões com uma “[...] tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista” (Elias, 2011, p. 123).
No curso do que Norbert Elias trata como o processo civilizador, os grupos sociais tendem a criar estratégias para que isso ocorra, e no exemplo de uma sociedade que começa a se constituir no município de Dourados ‘Todos os douradenses devem apoiar esta Entidade’ e são convocados a um esforço coletivo rumo à civilização. Dessa forma, não seria aceitável que as crianças abandonadas estivessem à mostra, revelando as incongruências desses processos sociais em andamento.
Nesse contexto, seria fundamental que o repugnante fosse “[...] removido para o fundo da vida social [...]”, pois é “[...] característico de todo processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este ocultamento para `longe da vista´do que se tornou repugnante” (Elias, 2011, p. 123, grifo nosso), e assim as crianças abandonadas se tornaram empecilhos aos arroubos civilizatórios da nova sociedade douradense em constituição.
A entidade, desde sua origem, acolhia crianças recém-nascidas até a idade de 12 anos. A instituição teve início com o abrigo de seis crianças, conforme o documento nos informa: “[...] A presidente Da. Geni Milan, depois de breves palavras, fez uma demonstração juntamente com seu marido, das contas e despesas do Abrigo, e leu uma relação de crianças em nº de seis” (Lar de Menores Santa Rita, 1966-1976, Livro 01, p. 17-18)3.
Observa-se que seu primeiro endereço foi provisório e localizava-se no edifício do Fórum local, espaço que lhe conferia respeitabilidade e fomentava a ajuda das pessoas mais abastadas da cidade por considerar uma ação séria. Posteriormente, o prefeito Napoleão Francisco de Souza4 cedeu um terreno para a entidade para que fosse construído um prédio próprio, localizado na antiga Rua Espírito Santo - atualmente rua Toshinobu Katayama, onde a instituição está sediada. A inauguração oficial do Lar Santa Rita ocorreu no dia 27 de agosto de 1966, em edifício próprio nesse terreno.
O evento de fundação do Lar foi noticiado na imprensa local por meio do jornal O Progresso, na edição do dia 3 de setembro de 1966. Na reportagem havia uma convocação para a população visitar a instituição, fazer doações e colaborar com seu funcionamento. No fragmento, observamos novamente o destaque como sendo uma demanda da civilidade desses locais de atendimento à infância, conforme se vê neste texto: “[...] visitem o lar, e façam a sua doação... está de parabéns a diretoria do Abrigo que realizou uma grande obra, necessária a qualquer cidade civilizada” (O Progresso, 1966b, p. 6). Ou seja, as fontes informam as iniciativas fazendo parte do ideário do período e promovendo a civilidade, pois era necessário retirar as crianças abandonadas da vista da população e dar-lhes uma educação que transformasse seus modos e costumes.
Essa educação civilizadora pautada em comportamentos e etiquetas de controle, bem como na padronização de regras, deveria ser um esforço coletivo e iniciado na infância. As instituições são percebidas como importantes promotoras dessas propostas civilizatórias que estão focadas na regulação dos costumes, no controle das emoções, nas formas disciplinares de condução das regras, etiquetas e normativas pautadas para todos os indivíduos, mas especialmente às crianças, quando “[...] o círculo de preceitos e normas é traçado com tanta nitidez em volta das pessoas, a censura e a pressão da vida social que lhes modela os hábitos” (Elias, 2011, p. 140) e permite uma mudança em direção à pretendida organização social e às mudanças do comportamento.
No caso das instituições de acolhimento, as crianças com histórias de abandono demandavam maiores esforços na sua educação, pois segundo o mesmo autor “[...] a criança que não atinge o nível de controle das emoções exigido pela sociedade é considerada ‘doente’, ‘anormal’, ‘criminosa’, ou simplesmente ‘insuportável’, do ponto de vista de uma determinada casta ou classe e, em consequência, excluída da vida da sociedade” (Elias, 2011, p. 140, grifo nosso). Nesse sentido, além dos problemas de um indivíduo que não se inclui socialmente, as crianças sofriam do abandono das condições mínimas de existência como alimentação, habitação, proteção, cuidados familiares, aspectos básicos e estruturais para que o indivíduo se constituísse como pessoa.
A documentação analisada informa que o lugar da instituição para a sociedade da época, era um espaço importante não somente de atendimento para as crianças, como para as famílias que não se encaixavam nos modelos e padrões sociais esperados. A instituição representava ainda uma oportunidade para os grupos mais abastados poderem fazer doações, trabalho voluntário, e ficar em paz com sua consciência, alimentando um sentimento de estar ajudando ao próximo, experiência fomentada pela religiosidade, desde longa data, especialmente na educação das mulheres.
A instituição em sua organização, diretrizes e objetivos estabeleceu todas as medidas em um Estatuto que foi discutido e votado durante reunião realizada em 28 de março de 1966, ainda no salão do Fórum da Comarca da cidade. No documento aprovado, as finalidades estavam explícitas e envolviam todas as pessoas da comunidade:
São suas finalidades: a) Dar assistência de modo geral a todos os menores necessitados de Dourados, velando por sua saúde, educação, instrução e bem estar da infância e juventude; b) manterá na proporção da possibilidade, tantas casas, com nomes definidos, regidas pelos presentes estatutos, quantas forem necessárias, para assegurar a sua finalidade; c) comprovadamente necessitado, receberá e manterá desde os recém-nascidos até os menores de 12 anos, de ambos os sexos; d) `vigiar, proteger` e colocar os menores, egressos do abrigo (Estatuto do Abrigo de Menores Necessitados de Dourados, 1972, Art. 2º, p. 1, grifo nosso).
A primeira reunião foi presidida pelo juiz Rafael Arcanjo Arruda e, de acordo com o relato, após a leitura de todos os capítulos do estatuto, conduzida por ele, o documento foi aprovado por todos os presentes (Histórico do Lar de Crianças Santa Rita, 2005). Embora toda a sua gestão estivesse nas mãos das mulheres, e elas sempre estiveram à frente de todas as atividades desde a sua fundação (1965-1982), as reuniões eram presididas pelo Juiz que idealizou a proposta da instituição, além de serem realizadas no Fórum da cidade símbolo de justiça e do poder local.
Neste momento, abordamos o aspecto da liderança feminina, que se impõe somente nas figurações privadas e domésticas, embora apenas mulheres estivessem à frente de todo o trabalho, no momento decisório das reuniões a direção era feita por um só homem e aconteciam no espaço público do Fórum, à época dirigido majoritariamente por homens, pois o número de mulheres na área do direito era menor.
Estas características das mulheres de elite se constituem em determinados espaços, expressando modelos sociais esperados para as pessoas do sexo feminino. Se considerarmos a teoria eliasiana na qual Elias (1994) aborda os processos de longa duração, vamos perceber que a civilidade dos costumes, ou a ‘cortenização dos guerreiros’, teve uma forte influência das mulheres, pois para os homens tornarem-se ‘gentleman’, educados e corteses, tiveram que se adaptar e conter seus impulsos mais primários, seu comportamento e suas emoções mudando seus hábitos e aprendendo uma nova etiqueta. A presença das mulheres foi fundamental no processo de aprendizagem dessas novas etiquetas sociais. Diante das mulheres, os guerreiros precisaram ter controle e autocontrole de suas emoções, aprender a dialogar, aprender bons modos, boas maneiras e se adequar a novas regras de comportamento. No registro da Figura 1 observamos essa presença feminina no Lar Santa Rita, mulheres que atuaram ativamente na entidade desde a sua fundação. O sociólogo Cas Wouters, inspirado em Elias, em suas pesquisas sobre manuais de civilidade, nos informa que as mulheres dominaram os espaços privados, e a partir destes, controlaram a ‘balança de poder’ influenciando também nos espaços públicos.
Embora confinadas ao domínio de seus lares e da ‘boa sociedade’, mulheres das classes alta e média passaram, mais ou menos, a mobilizar e organizar a esfera social da boa sociedade. As operações dessa formação social tomaram espaço, em grande medida, nas salas de estar privadas das mulheres. Até certo ponto, as mulheres passaram a exercer a função de ‘guardiãs das portas’ da boa sociedade (Wouters, 2012, p. 553, grifo do autor).
Sobre a educação destas mulheres, podemos perceber que elas vinham de contextos mais abastados. A imagem expressa pelas vestimentas, os penteados nos cabelos, típicos da época, os móveis, as louças, as reuniões sociais, todos estes elementos informam seus lugares e a sua formação no grupo que tem uma etiqueta própria. São mulheres formadas para desempenhar um determinado papel desde a infância com uma civilidade específica:
O processo de ‘cortenização do guerreiro’ nos estudos de Elias (1993-1994) não incluem diretamente mulheres e crianças, mas é consenso que sua presença esteve sustentando os bastidores e os contextos privados. As guerras e as disputas travadas entre mulheres, homens e crianças têm como lugar privilegiado o espaço doméstico e o interior da vida familiar em seus processos de organização. [...] nos espaços íntimos de domínio dos grupos femininos, mulheres impõe regras e fazem suas batalhas cotidianas, no entanto, também necessitam de conhecimentos e habilidades específicas que serão aprendidas ao longo da vida, começando na infância. Ainda que o comportamento, os modos e a etiqueta social para os espaços públicos tenham tido padrões semelhantes nas sociedades ocidentais e colonizadas a partir da Europa, tais padrões foram regulados por atitudes específicas para às mulheres enfatizando os domínios do privado e do lar (Sarat, 2018, p. 93, grifo da autora).
Outro aspecto sobre a instituição é o financiamento das atividades. A princípio, todo o investimento no Lar Santa Rita era feito a partir de doações e participações comunitárias. Posteriormente, ao organizar-se enquanto entidade, passa a contar com verbas derivadas de outras frentes como: contribuições mensais (sócios), doações da comunidade e auxílio dos poderes públicos - federal, estadual e municipal (Estatuto do Abrigo de Menores Necessitados de Dourados, 1972, Art. 3º, p. 1). Com as doações da comunidade e verbas recebidas, foram construídos e reformados pavilhões, equipada a cozinha, dormitórios e espaço externo, tais lugares aos serem inaugurados recebiam o nome de seus doadores. As cerimônias eram publicadas no jornal O Progresso, enfatizando o ‘espírito caridoso e filantrópico’ das pessoas que contribuíam com a instituição, e o periódico ainda dava destaque aos indivíduos como bons exemplos de ‘cristãos’. Havia também o título de ‘sócio benemérito’, que era entregue somente para indivíduos que fizessem contribuições de valores consideráveis. Também para a entrega dos títulos, eram realizadas cerimônias divulgadas nos jornais locais convidando a população para prestigiar. Localizamos no jornal O Progresso o registro de uma das cerimônias, apelando ao espírito solidário dos cristãos. Uma das notícias publicadas na edição de 11 de outubro de 1969 tinha o convite intitulado ‘Causas Filantrópicas’:
O prédio atual foi construído com capacidade de abrigar 30 crianças. Hoje, mantém 59, não aceitando mais, por falta de espaço, pois diariamente nos chegam mais e mais crianças, que somos obrigados a recusar, por não termos onde colocá-las. É uma situação calamitosa, a da criança desamparada. Querendo solucionar êste problema, elaboramos um projeto de construção que abrigará 300 menores, sendo êste o nosso ideal. Visto que encontramos ressonância em nosso apêlo, dirgimo-nos à V.Sa., na esperança de obtermos ajuda para a felicidade e bem-estar de tantas crianças, tão precocemente atingidas pela má sorte, que só agora encontraram um verdadeiro lar. Se obtivermos auxílio, irmanados com a boa vontade e ‘solidariedade dos cristãos’, conseguiremos realizar algo de bom, e de duradouro, pois como diz São Francisco de Assis - ‘é dando que se recebe’ (Causas Filantrópicas, 1969, p. 1, grifo nosso).
O fragmento informa, claramente, o envolvimento da comunidade com doações para todos os fins: construção do seu espaço físico, ampliação, pequenas reformas e mesmo a manutenção da entidade. A documentação mostra as atividades realizadas em prol do Lar, as promoções e eventos sociais: festas, shows, leilões, rifas, carnês de contribuições, campanhas, etc. Estes movimentos são importantes, e abrem uma discussão que não poderemos ampliar por hora, pois o debate acerca das iniciativas individuais e comunitárias, à medida que se ampliam expõem a ausência do poder público na solução das demandas da população.
Os eventos mencionados acima, eram coordenados e organizados por Ymera Fedrizzi, secretária da instituição no período (1965-1974) (Histórico do Lar de Crianças Santa Rita, 2005). Entre as diferentes ações, destacamos o Baile de Debutantes, evento muito comum na sociedade abastada do período, e foi realizado pela diretoria para angariar recursos financeiros destinados à instituição. O primeiro Baile de Debutantes ocorreu no dia 27 de agosto de 1966, cujo convite podemos observar na Figura 2. Neste evento debutaram 23 meninas. A Figura 3, nos mostra o dia do evento o nome das participantes, filhas das famílias mais abastadas. Para a ocasião, eram vendidas as mesas e o traje exigido era de gala, como vemos na Figura 3. O evento foi divulgado com destaque no jornal O Progresso nos seguintes termos: “[...] Nesta oportunidade, O Progresso cumprimenta a direção do Lar Santa Rita de Cássia pela brilhante iniciativa em dotar Dourados de um acontecimento, que ficará devidamente marcado indelevelmente em nossos anais sociais” (O Progresso, 1966a, p. 6).
A notícia acima apela para o aspecto dos doadores estarem imbuídos de ‘boa vontade’ e ‘solidariedade dos cristãos’, nos permitindo inferir no debate entre educação e assistência que se tornou caro na história do atendimento e da história da infância, nos remetendo ao conceito de filantropia, no seu sentido moralizador já que “[...] abrangia ações de prevenção dos ‘males causados pela indigência’: a recuperação dos presos, a assistência aos órfãos e aos loucos, a higiene pública, as caixas econômicas e as sociedades de socorros mútuos estavam na agenda dos filantropos” (Sanglard & Lopes, 2018, p. 282, grifo dos autores).
Ainda sob essa percepção, Marcílio (1998) indica que a filantropia interessava às lideranças da sociedade visto que estas tinham interesse em manter o controle, buscar a ordem, o respeito às normativas, solucionar os conflitos sociais, preservar as famílias - todas essas ações como parte das utopias filantrópicas. Além disso, segundo Souza (2018), há uma preocupação em fundamentar cientificamente a assistência, tendo como finalidade a salvação da criança, do seu corpo, dentro da perspectiva utilitarista.

Fonte: Acervo pessoal de Maria Eugênia Carvalho do Amaral (1966)
Figura 2 Cartaz de divulgação do 1º Baile de Debutantes
À época da criação do Lar, temos a publicação do Código Civil que sugeria a repressão como o caminho para buscar a solução do ‘problema’, e havia grande preocupação com a criança abandonada na história da assistência, no sentido de retirá-la do convívio social. Kuhlmann Jr. (2015, p. 27) afirma que “[...] a história da assistência tem sido também a da produção de uma imagem do pobre como ameaça social a ser controlada [...] quando a criança pobre é identificada como menino de rua, que, por sua vez, torna-se sinônimo de trombadinha, ou menor infrator”.
Mulheres da caridade: a primeira gestão do Lar Santa Rita (1965-1982)
Desde a sua formação, a instituição teve uma direção feminina, embora a iniciativa da criação tenha partido de um juiz da cidade. A primeira presidente foi a senhora Geni Ferreira Milan, que assumiu a gestão mas ficou por pouco tempo, pois veio a falecer5 em 3 de janeiro de 1969, em um trágico acontecimento que marcou a história da entidade e do município. Os registros de entrevistas e conversas na cidade, contam que ela foi assassinada em uma espécie de ‘duelo’ no qual se envolveu publicamente.
Por ser uma mulher à frente do seu tempo, era muito respeitada e combativa, discutia com as pessoas em pé de igualdade, se vestia e se portava diferente do padrão esperado para as mulheres e tinha grande liderança no município. Suas atitudes tidas como pouco ‘femininas’, se caracterizavam por ela participar ativamente do trabalho e cuidado com as fazendas da família, andava a cavalo vestindo calças masculinas, portava armas com uma espécie de cinturão. Em entrevista à autora (informação verbal), Roger Alexandre Milan Brochado, neto de Geni, lembra de uma fotografia6 em que sua avó estaria com tais vestimentas: “[...]essa foto, pra mim, é a foto que marca muito a personalidade dela, onde ela se encontra de bombacha, cinturão, 38(revolver) na cintura, bota cano alto, calça pra dentro da bota, chapéu, fazendeira mesmo” (Entrevista..., 2022). Os autores abaixo também pontuam:
Quem viveu em Dourados no período anterior ao ano de 1969, por certo há de recordar-se daquela interessante figura, cujo arrojo a colocou sempre num patamar um tanto acima dos naturais, nos moldes femininos. A sua excentricidade residia num vigor fora do comum. A sua ação importava num determinismo que fazia da sua personalidade algo fora do normal (Capilé Jr., Capilé, & Souza, 1995, p. 102).
Nesse acidente, Geni Milan perdeu a vida precocemente. Este fato mudou a configuração da primeira gestão da instituição, e a partir de então a diretoria precisou se reorganizar e convocar uma nova substituta, sendo eleita Arlene Andrade Marques e empossada como presidente pelo período de 26 de setembro de 1969 a 17 de novembro de 1969 com um mandato tampão.
Posteriormente, mas ainda no ano de 1969, encontramos o registro da eleição de Maria Florezia Pessoa Carneiro como presidente, que permaneceu até o mês de março de 1970. Ainda de acordo com a Ata nº 144 do Livro 01, no dia 13 de março de 1970 (Lar de Menores Santa Rita, 1966-1976), foi realizada uma reunião onde foi eleita a nova diretoria da entidade. Nessa ocasião, Afife Macksoud Bussuan foi eleita presidente e permaneceu no cargo até o ano de 1982 - término dessa primeira gestão. No período (1965-1982), mesmo com mudanças entre os cargos de secretária, vice-presidente e tesoureira, permaneceu somente a presidente Afife.
A diretoria do Lar, na primeira gestão, foi composta por mulheres, desde a sua fundação até o ano de 1982. Com embasamento no próprio Estatuto institucional, em seu Art. 4º (Estatuto do Abrigo de Menores Necessitados de Dourados, 1972, p. 1), da administração, encontramos a designação e os critérios para fazer parte da diretoria, “b) A Diretoria será sempre eleita em Assembleia Geral e terá a duração de dois anos, constituída por elementos femininos”. Tal perspectiva segue uma tendência do período que vai envolver as mulheres da dita ‘boa sociedade’. Camara (2017, p. 211) informa que as damas da sociedade da época, “[...] projetaram-se em diferentes frentes de ação em vários momentos [...]” pois estavam envolvidas e marcavam presença nas chamadas ‘causas filantrópicas’.
Trabalhamos com diferentes documentos como fontes em uma perspectiva de cruzamento das fontes e para fins de registro dessas crianças que eram acolhidas pelo Lar, localizamos em seu acervo as denominadas ‘Fichas de Registro’: a primeira ficha no acervo institucional datava de 1976, como podemos observar na Figura 4. Nelas constavam os dados pessoais da criança e dos pais, foto 3x4, a data e horário de entrada na entidade, e um espaço intitulado ‘condições da criança na ocasião do recebimento’ e observações.
Nas observações mencionadas na Figura 5, localizamos alguns motivos apontados pelos pais e responsáveis para deixarem a criança na entidade, entre os quais: pobreza e falta de condições financeiras, falecimento de um dos pais, desemprego, questões de saúde, necessidade de trabalho (não havia creche para deixar as crianças), conflitos conjugais (encaminhados pelo juiz de direito). A pobreza e o falecimento de um dos pais, foram motivos frequentes nas fichas para a entrada de crianças na instituição.
As crianças quando entravam no Lar, precisavam cumprir uma rotina, constituída por horários para as atividades diárias, conforme a documentação “[...] estipulou-se horário para as crianças como o exposto: 7 hs café, 9 hs lanche, 11:30 hs almoço, 15 hs merenda, 18 hs jantar, banho às 17 hs” (Lar de Menores Santa Rita, 1966-1976, Ata nº 146, Livro 01, p. 193). As rotinas são importantes, mas elas também podem se constituir em momentos complexos na instituição se considerarmos que, em geral, favorecem os adultos, em detrimento das crianças. Sobre essa temática, Barbosa (2000) nos diz que esse cotidiano como parte do atendimento às crianças está ligado aos rituais, hábitos que se repetem, associados à ordem e àquilo que os adultos esperam da educação das crianças atendidas em instituições.
Embora possamos compreender sua importância para a educação das crianças, também percebemos seu caráter opressor ao estabelecer uma forma de disciplinarização a partir de modalidades de treinamento, em que “[...] o indivíduo é treinado para desenvolver um grau bastante elevado de autocontrole e independência pessoal” (Elias 1994, p. 100). Os elementos presentes nas rotinas, no caso de crianças abandonadas, podem torná-las ainda mais complexas e desafiadoras.
Deste modo, a organização da instituição se estabelecia também como mecanismo de controle, pois além de cumprir finalidades sociais, regular comportamentos e implementar normas, ela trazia em seu projeto todo o ideário civilizatório que preconizava um ‘bom funcionamento da entidade’ e se pautava nesses aspectos a serem obedecidos. Em uma das dependências do Lar foi planejada a construção de pavilhões para abrigar as crianças do sexo masculino com idade a partir de 8 anos, e já havia uma proposta de atividades para essas rotinas, em que “[...] os meninos aprenderiam serviços de horta, pomar e granja e continuariam os seus estudos na cidade, o que dependeria também de condição própria” (Lar de Menores Santa Rita, 1966-1976, Ata nº 218, Livro 02, p. 96). Sobre o espaço para os meninos nas atividades acima mencionadas, não encontramos registros de tal movimentação. Tal proposta levanta um debate sobre as pautas de gênero, tema a ser aprofundado em um outro momento.
Pessoas da primeira gestão podem ser identificadas em um dos registros fotográficos cedidos por Marisa Pereira dos Santos, que também foi aluna do Lar e tinha em seus arquivos privados alguns documentos e imagens fotográficas. Um dos aspectos que chama atenção é a quantidade de crianças, uma vez que se tratava de um município que contava, à época, com 30 anos desde sua fundação (1935), portanto ainda muito jovem para um número tão alto de crianças com histórias de abandono. Observamos ainda o espaço físico e a primeira diretora nos fragmentos do cenário. A fotografia como fonte possui este valor afetivo, carrega o sentido de “[...] criadora de memórias e recordações [...]” (Le Goff, 1990, p. 211), e que foi guardada para a posteridade por um motivo que somente quem a deixou tem condições a elencar.
Na Figura 6, registro feito após uma reunião. Estão presentes as crianças moradoras do Lar meninos e meninas, duas funcionárias uma dela com um bebê no colo e a Sra. Afife Bussuan, a presidente da instituição no período, disposta no canto esquerdo da cena.

Fonte: Acervo particular de Marisa Pereira dos Santos (1977)
Figura 6 Crianças do Lar Santa Rita reunidas no pátio
O registro é marcante em nossa pesquisa, pois podemos observar um número significativo de crianças abrigadas - em torno de 67 crianças contadas nesta fotografia -, demonstrando que havia uma alta demanda de atendimento às crianças abandonadas na cidade. Chama atenção na fotografia a faixa etária de crianças atendidas desde bebês até crianças maiores de 12 anos, conforme aponta o Estatuto da entidade.
Tais crianças poderiam ser adotadas, porém o processo de adoção deveria cumprir diversos critérios minuciosos. Inicialmente, o casal que desejasse adotar passava por uma entrevista. Em seguida, fazia-se o preenchimento de uma ficha com os dados da família candidata a adoção, e após realizavam-se entrevistas com esses pretendentes. Na entrevista, ponderavam-se questionamentos acerca de diversos aspectos de sua vida pública e privada, para verificar as condições destas pessoas que desejavam adotar uma das crianças. Após uma análise da diretoria da entidade, a criança poderia ser adotada e o processo era acompanhado de um período de adaptação com a família que durava em torno de 30 dias. Ao término desse tempo, ela poderia retornar ao Lar se assim o desejasse ou confirmar a adoção. Para a concretização da adoção, o juiz de Direito da época assinava um requerimento, e todo esse procedimento era registrado em Ata.
Em um dos fragmentos do Estatuto do “Abrigo de Menores Necessitados de Dourados”, o Art. 20º, aborda a respeito de uma das exigências para que a adoção fosse aprovada pela diretoria, “[...] às pessoas que desejarem desde que façam prova de serem casados civilmente, função definida, ‘idôneos’ e de ‘reputação ilibada’ e titular, digo, e tutelar o menor” (Estatuto do Abrigo de Menores Necessitados de Dourados, 1966, Art. 20º, p. 4, grifo nosso).
Tais aspectos refletem a concepção da época, de que a família adequada deveria ser composta por homem e mulher, com boas reputações, conforme os padrões de avaliações de determinado grupo social. Interessante destacar o caráter ainda bastante conservador da instituição e da legislação em voga que fundamentava os trâmites das adoções.
Nos registros fotográficos temos alguns aspectos da chamada cultura escolar presente no uso de uniformes pelas crianças, que buscava a homogeneização no sentido também de promover a referida ‘civilização’ a partir da adoção de certos comportamentos, imposição de normas, bem como direcionando modelos de conduta. Para Elias (2011), existe um padrão de comportamento estabelecido e para serem considerados civilizados, os indivíduos precisam agir de acordo com esse controle, portanto era fundamental para a instituição a utilização de normas que permitissem a todas as pessoas serem colocadas no mesmo patamar e atender a uma modelagem específica. Não é possível explorar todas as possibilidades do documento, mas ele permite ver a extensão do atendimento à infância abandonada, e o modo como este se organizou.
Finalizando a história do Lar nesse período
O Lar Santa Rita primeira instituição fundada na cidade de Dourados MT/MS, cuja finalidade foi promover o atendimento à infância. A instituição permanece há mais de 50 anos em pleno funcionamento, atualmente também tem o CEI Lar Santa Rita - uma escola de educação infantil. Tal entidade, desde a sua fundação, possuía uma relação significativa com a comunidade, ligada aos gestos de caridade e às boas ações envolvendo a filantropia.
Analisamos no levantamento e cruzamento das fontes, a existência de um sentimento incômodo por parte da sociedade ao observar as crianças perambulando pelas ruas, portanto, demandava-se à necessidade de propor algum tipo de atendimento que resolvesse a situação da exposição contínua das crianças e também a presença de notícias nos impressos locais que, de alguma forma, causava incômodos na população mais abastada.
Dessa forma, conjugando-se uma força de grupo pertencente às lideranças sociais mais abastadas, o Lar Santa Rita foi fundado, não somente para atender às crianças, mas também para aplacar esse aspecto que remetia à barbárie e ao primitivo, pois os discursos de progresso, civilidade, ordem, estavam presentes. No entanto, não se via, de modo concreto, o que, particularmente, justificava as iniciativas dessas pessoas.
Retirar as crianças das ruas e prover um lar para elas foi uma ação conjunta para dirimir problemas sociais, minimizar a pobreza, mas também a possibilidade, como já mencionamos, inspiradas em Elias, jogar para o fundo da cena social ou da vida social aqueles aspectos repugnantes, vergonhosos, grotescos, e que envergonham a todas as pessoas, que é ver crianças serem abandonadas. Entretanto, tais situações infelizmente ainda estão presentes na atualidade, pois não temos lares suficientes para acolhê-las, embora tenhamos legislação que minimamente as protege, e precisamos reivindicar o seu cumprimento e a garantia de que as crianças sejam respeitadas como cidadãs de direito.