SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46 número1Escola normal secundária ‘Leonel Franca’ de Paranavaí (1956-1974): a formação feminina para a docênciaA análise arqueológica do discurso e a questão do cuidado com o outro: reflexões e possibilidades educativas que se manifestam em um modo de vida índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Dez-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.65622 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

A pretexto de uma biblioteca conventual amazônica: livros, educação e presença mercedária em Belém do Grão-Pará nos séculos XVII e XVIII

A pretexto de una biblioteca conventual amazónica: libros, educación y presencia mercedária en Belém do Grão-Pará en los siglos XVII y XVIII

Luiz Fernando Conde Sangenis1  * 
http://orcid.org/0000-0002-2833-0365

Lucia Maria Gonçalves de Andrade1 
http://orcid.org/0000-0001-5773-5903

1Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais, Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua Francisco Portela, 1470, 24435-005, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil.


RESUMO.

Os mercedários chegaram à Amazônia em 1639, e no ano seguinte, fundaram seu primeiro convento em Belém no Estado independente do Grão-Pará e Maranhão, ao final do período da União Ibérica (1580-1640). Vindos de Quito, no Vice-Reino do Peru, acompanharam a expedição de retorno de Pedro Teixeira, através do Rio Amazonas, após os portugueses terem empreendido a subida e a exploração do rio, de Belém ao Equador. Deram importante contribuição à fundação de Belém e ao desenvolvimento da região amazônica. O convento, marco arquitetônico da cidade, foi importante centro de formação da Ordem das Mercês e seus frades conquistaram reconhecimento pelo preparo intelectual para o exercício do ensino e a promoção da cultura letrada. A biblioteca conventual notabilizou-se não apenas pelo número de livros, mas também pela variedade e riqueza do seu acervo. Dela nada sobrou, a não ser as informações registradas no Inventário dos bens sequestrados aos extintos religiosos mercedários na Capitania do Pará, manuscrito sob a guarda do Arquivo Nacional, e que foi produzido em 1794, quando da expulsão dos mercedários de Belém. O estudo do espólio bibliográfico ajuda a compreender como os livros deram suporte às funções missionárias e educativas exercidas pelos membros da Ordem Mercedária na Amazônia.

Palavras-chave: mercedários; Grão-Pará e Maranhão; história da educação colonial; biblioteca conventual

RESUMEN.

Los mercedarios llegaron a la Amazonía en 1639 y al año siguiente fundaron su primer convento en Belém en el estado independiente de Grão-Pará y Maranhão, al final del período de la Unión Ibérica (1580-1640). Viniendo de Quito, en el Virreinato del Perú, acompañaron la expedición de regreso de Pedro Teixeira, a través del río Amazonas, luego de que los portugueses hubieran emprendido el ascenso y exploración del río, desde Belém hasta Ecuador. Hicieron una importante contribución a la fundación de Belém y al desarrollo de la región amazónica. El convento, hito arquitectónico de la ciudad, fue un importante centro de formación de la Orden de la Merced y sus frailes ganaron reconocimiento por su preparación intelectual para el ejercicio de la docencia y la promoción de la cultura letrada. La biblioteca del convento destacaba no sólo por la cantidad de libros, sino también por la variedad y riqueza de su colección. De él no queda nada más que la información registrada en el Inventario de bienes incautados a los religiosos mercedarios extintos en la Capitanía de Pará, manuscrito en custodia del Archivo Nacional, que fue producido en 1794, cuando los mercedarios fueron expulsados ​​de Belém. El estudio del acervo bibliográfico ayuda a comprender cómo los libros apoyaron las funciones misioneras y educativas realizadas por los miembros de la Orden Mercedária en la Amazonía.

Palabras-clave: mercedários; Grão-Pará y Maranhão; historia de la educación colonial; biblioteca conventual

ABSTRACT.

Mercedaries arrived in the Amazon in 1639, and the following year they founded their first convent in Belém in the independent state of Grão-Pará and Maranhão, at the end of the period of the Iberian Union (1580-1640). Coming from Quito, in the Viceroyalty of Peru, they accompanied Pedro Teixeira's return expedition, across the Amazon River, after the Portuguese had undertaken the ascent and exploration of the river, from Belém to Ecuador. They made an important contribution to the foundation of Belém and to the development of the Amazon region. The convent, an architectural landmark in the city, was an important training center for the Order of Mercy and its friars gained recognition for their intellectual preparation for the exercise of teaching and the promotion of literate culture. The convent library was notable not only for the number of books, but also for the variety and richness of its collection. Nothing remains of it except the information recorded in the Inventory of goods seized from the extinct mercedarian religious in the Captaincy of Pará, a manuscript in the custody of the National Archives, which was produced in 1794, when the mercedarians were expelled from Belém. The study of the bibliographic collection helps to understand how the books supported the missionary and educational functions performed by the members of the Mercedary Order in the Amazon.

Keywords: mercedarians; Grão-Pará and Maranhão; history of colonial education; conventual library

Introdução

O complexo arquitetônico mercedário de Belém do Grão-Pará, constituído de templo e convento, fundado em 1640, é um caso exemplar da pujança das ordens religiosas na região amazônica e de sua importantíssima atuação no ensino e na educação. Basta dizer que, no século XVIII, apenas o convento mercedário de Belém possuía uma biblioteca com mais de quatro mil exemplares, quantidade de livros bastante incomum para a época, inclusive quando se toma como referência de comparação as demais bibliotecas conventuais da Metrópole, no mesmo período.

Não há como compreender a consecução da conquista e da colonização do Brasil, e com maior força na região amazônica, sem levar em conta a importante ação das ordens religiosas e dos seus missionários. Mercedários, jesuítas, franciscanos, carmelitas, beneditinos, oratorianos, compõem um conjunto de ordens religiosas que assumiram as responsabilidades para formar e administrar temporal e espiritualmente as reduções e os aldeamentos dos indígenas, mais adiante, quase todos elevados a vilas e a cidades. Os conventos dos religiosos foram os grandes indutores do desenvolvimento urbanístico das cidades, bem como fomentadores da arquitetura e das artes, além de serem os únicos centros de educação e de cultura da colônia, até o período pombalino, com destaque para as escolas conventuais que educavam a juventude e cujas bibliotecas eram a grande referência para o desenvolvimento da cultura letrada.

Passando da História para o campo mais específico da História da Educação, não foi encontrado trabalho algum que tematizasse a presença ou a atuação dos frades mercedários no âmbito educacional brasileiro, em particular, no período colonial. Em verdade, a produção bibliográfica, seja em livros, artigos em periódicos, comunicações em congressos das áreas da educação e da história da educação, teses e dissertações tematizam muito pouco o período colonial brasileiro. Os raros trabalhos que elegem esse espaço temporal versam quase exclusivamente sobre a atuação missionária e educacional da Companhia de Jesus (Sangenis & Mainka, 2019). Trata-se, portanto, de uma importante lacuna da historiografia, especificamente, da História da Educação Brasileira. É preciso, pois, reforçar o fato de que, no Brasil, assim como nas Américas, ao longo do período colonial, diversas ordens religiosas atuaram na catequese e na missionação de índios, bem como na educação dos povos autóctones e dos colonos, por encargo e patrocínio das coroas dos estados ibéricos.

O ponto de partida deste trabalho foi motivado pelo estudo do acervo bibliográfico do Convento de Nossa Senhora das Mercês de Belém, a partir do manuscrito sob o título de Inventário dos bens sequestrados aos extintos religiosos mercedários na Capitania do Pará (4A.COD.0.102), sob a guarda do Arquivo Nacional. O Inventário teve origem, após a expulsão dos mercedários da província, em 1794, quando o Rei de Portugal mandou sequestrar seus bens e incorporá-los à Coroa. Dentre os bens conventuais sequestrados, após a expulsão dos membros da Ordem da cidade de Belém, avulta o acervo de livros do convento, guardados na livraria conventual, na casa da botica ou nas celas dos frades que habitavam o convento.

Análise do acervo bibliográfico pertencente ao Convento das Mercês de Belém, no Maranhão e Grão-Pará, a partir dos registros do Inventário de 1794, é desafiante, pois a materialidade do acervo se perdeu no tempo. Ficaram apenas os registros manuscritos das obras, que nem sempre são cuidadosos e cercados de maior minúcia. Em geral, são referidos a autoria, o título, a língua em que foram escritos e o valor monetário estimado da obra. Boa parte dessas referências são abreviadas. Em um número significativo de registros, as abreviações, tanto de títulos, quanto da autoria, trazem enorme dificuldade para a sua identificação. Não há referência ao ano de edição, nem tampouco do editor ou local da impressão.

Por maior que tenha sido o esforço dos que compuseram o Inventário, na tentativa de identificar, descrever e classificar o acervo bibliográfico conventual, não é simples o trabalho de identificação de obras que foram editadas há, no mínimo, trezentos anos.

No que concerne a relação dos livros existentes no convento mercedário de Belém, compreendemos que se trata de um documento fundamental para investigar a ação educacional dos frades mercedária e suas relações com a sociedade amazônica da época, iniciada no Brasil, mais corretamente, no então independente estado do Maranhão e Grão-Pará, a partir do Século XVII.1 Trata-se de uma contribuição que possibilitará o alargamento do conhecimento historiográfico concernente à História da Educação regional e nacional.

Sobre a origem da Ordem das Mercês e sua expansão pelas Américas

A Ordem de Nossa Senhora das Mercês teve origem na Idade Média, sendo fundada no ano de 1218, por iniciativa de Pedro Nolasco e apoio do rei Jaime I de Aragão, sob o título de Ordem da Virgem Maria das Mercês da Redenção dos Cativos de Santa Eulália de Barcelona, no Reino de Aragão. Surgiu a partir do clima de fervor cristão no contexto de reconquista da Península Ibérica sob o domínio dos muçulmanos. Foi aprovada pelo Papa em 1235. Por ter sido criada após o IV Concílio de Latrão (1215), que proibiu a criação de novas regras para institutos nascentes, a confirmação pontifícia agregou a Ordem das Mercês ao grupo das instituições que seguiam a Regra de Santo Agostinho.

A Ordem das Mercês, especificamente, surgiu para libertar cristãos cativos em poder dos mulçumanos. Categorizá-la, em plena Idade Média, não foi tarefa fácil por trazer elementos particulares e inovadores.

Não se podia classificar como Ordem monástica de vida comum contemplativa como os beneditinos, cartuxos, cistercienses e premonstratenses, porque não era a contemplação o seu objetivo; nem como ordem mendicante de vida ativa como os franciscanos, agostinianos, dominicanos e carmelitas, pois todos esses mendigavam dos fiéis o necessário para sobrevivência em troca de serviços apostólicos; nem como Ordem religiosa redentora clerical com os trinitários, pois foi constituída segundo a documentação por frades leigos. A Ordem de Santa Maria das Mercês era uma Ordem laica de vida ativa em comum, cuja finalidade era a defesa da fé, mediante redenção ou resgate (Ordem das Mercês, 1998. p. 30).

Ao buscar semelhança com outras instituições religiosas mais antigas e recentemente criadas naquele período, constituiu-se ao modo de uma ordem religiosa militar, como as demais existentes, cuja finalidade era a defesa da fé e o combate aos infiéis com armas, constituindo corpos de exércitos profissionais bem equipados e militarmente disciplinados.

Tinham o escudo formado heraldicamente pela Cruz branca sobre o fundo vermelho da catedral de Barcelona, e pelas armas reais do rei Jaime I, que participou de sua fundação. O uso de cavalos por cada frade, de sapatos como os templários. O título de Mestre para o hierarca supremo da Ordem denominação que somente as Ordens militares usavam; de ‘Lugar-tenente’ do Mestre, para os representantes do mesmo nas distintas dioceses e regiões; de Prior, para o superior de Barcelona; de Comendador, para o encarregado da comenda ou da casa, que só as Ordens militares usavam. [...] As Constituições mercedárias de 1272 foram redigidas tendo em vista as das Ordens militares. Há disposições não só inspiradas, mas sim copiadas das santiaguistas.2 O rei Jaime II, em confirmação de Arnaldo de Amer como Mestre-Geral, afirma que as Ordens dos hospitalários, templários, calatravos e uclesenhos (São Tiago), têm regra semelhante à das Mercês (Ordem das Mercês, 1998. p. 31-32, grifo do autor).

O uso das armas por parte dos frades mercedários, sem escândalo de cristãos ou de mouros, na obra da redenção de cativos em poder dos chamados infiéis, é outro ponto de semelhança entre a Ordem das Mercês com as ordens militares. Ainda que pusessem ênfase na guerra contra os infiéis, os mercedários buscavam salvar a fé dos cristãos cativos resgatando-os, pacificamente, e utilizando armas somente quando fosse necessário para a defesa da redenção.

A Ordem de Nossa Senhora das Mercês foi uma das escolhidas pelos reis católicos Isabel e Fernando para serem enviada para a América. Um dos possíveis motivos para o envio destes religiosos para o Novo Mundo era a habilidade de lidarem com gentes de outra religião, especificamente, os maometanos do norte da África. Acompanhando a segunda expedição de Colombo, em 1493, viajavam três frades mercedários, quatro franciscanos, um eremita de São Jerônimo e três ou quatro clérigos (Morán, 1997; Vásquez Fernández, 2006). Fonte do Arquivo Sevilhano das Índias documenta a fundação de um mosteiro mercedário em São Domingo, em 15 de julho de 1514 (Vásquez Fernández, 2006).

Segundo Morán (1992), a presença mercedária se iniciou aos poucos, numa primeira fase, entre 1493 e 1508, e uma segunda fase, de 1508 a 1520, em que se pode falar de consolidação e evolução. Os frades das Mercês acompanharam os conquistadores do México, da América Central e do Peru. Viajaram por todo o espaço castelhano ao lado de Pizarro e Cortés. A partir da Nicarágua (1527), iniciaram a missionação da América Central. Mais tarde, em 1536, fundaram o convento da Guatemala, originando um segundo foco. Com a conquista do Peru (1531-1533), começaram a terceira fase de expansão da Ordem pela América do Sul, fixando-se definitivamente em Quito. A Ordem, nesse vasto território, conseguiu manter efetiva presença, até cerca de 1771, quando uma determinação régia mandara encerrar os conventos, mosteiros e casas religiosas com menos de oito religiosos.

Conforme a investigação realizada por Román-Álvarez (1990), 327 mercedários viajaram à América no Século XVI, de 1494 a 1600. Observou que a maioria se dirige ao Peru (150) e suas províncias. Outros vão para Guatemala (73) e Santo Domingo (50), poucos foram a princípio para o México (12) e Rio da Prata (15). Em sua investigação considerou somente os religiosos com nome e algum motivo para viajar à América, ainda que se saiba que se passaram mais. O assentamento dos mercedários na Nova Espanha foi bem tardio, contudo, foram pioneiros no Peru e Guatemala. As expedições estão repartidas por todo o século, desde os anos 1530 a 1600.

Na parte espanhola da América do Sul, os mercedários fundaram as seguintes províncias: 1564 - Guatemala; 1564 - Los Reyes ou Lima; 1566 - Chile; 1593 - Tucumán e Rio da Prata; 1604 - Antilhas e Venezuela; 1615 - Quito; e 1616 - México (Morán, 1992).

A Ordem, no Capítulo Geral de Huete de 1686, entendeu que deveria organizar um novo código legislativo, mais atualizado e melhor estruturado. O Pontífice Inocêncio XI em sua bula Militantis ecclesiae de 15 de maio de 1687 deu aos mercedários pleno poder para reformar suas leis na forma e no conteúdo. Para realizar esta nova codificação, foi nomeada uma comissão que, no final de 1691, pôde apresentar o texto das novas Constituições à Sé Apostólica. O Papa Inocêncio XII sancionou-as com a bula Ex innuncto nobis divinus em 7 de setembro de 1691, as novas Constituições entraram em vigor em 1692. São também chamadas de Constituições Matritenses por causa do local de sua edição. Foram divididas em oito distinções ou partes. Estas compõem-se de vários capítulos que, por sua vez, subdividem-se em artigos, tratando dos conteúdos atinentes à vida da Ordem. Importante marcar que, nessas Constituições, aparece conteúdo inédito. “A novidade total é a sexta distinção: ‘exercício e profissão das letras’” (Ordem das Mercês, 1998, p. 176, grifo do autor).

A Ordem das Mercês gozava há muito tempo de todos os privilégios das ordens mendicantes, concedidos por diversos pontífices. As ordens mendicantes, surgidas no Século XIII, incluíam nas suas regras a observância da estrita pobreza, não só dos religiosos, mas também dos conventos e da instituição enquanto tal. Suprem as necessidades de seu sustento solicitando esmolas aos fiéis, expressando o ideal evangélico de pobreza. O primeiro grupo foi constituído pelos carmelitas, franciscanos, dominicanos e agostinianos. Os trinitários, irmandade redentora, usaram um terço das esmolas para redenção. No entanto, foi o Pontífice Bento XIII que, pela bula Aeternus Aeterni Patris de 8 de julho de 1725, declarou a fraternidade mendicante sem deixar de ser redentora, pois desde suas origens possuía bens para resgatar cativos.

Em 1770, a Ordem das Mercês era constituída de:

[...] 229 conventos com 4.495 religiosos, nas seguintes províncias: Aragão 27 conventos e 590 religiosos, Castela 20 conventos e 589 religiosos, Valência 15 conventos e 430 religiosos, Andaluzia 22 conventos e 705 religiosos, França 16 conventos e 81 religiosos, Paris 3 conventos e 23 religiosos, Itália 7 conventos e 75 religiosos, Sardenha 5 conventos e 70 religiosos, México 20 conventos e 427 religiosos, Santo Domingo 7 conventos e 148 religiosos, Guatemala 17 conventos e 161 religiosos, Quito 10 conventos e 145 religiosos, Lima 15 conventos e 271 religiosos, Cuzco 12 conventos e 310 religiosos, Tucumán 12 conventos e 227 religiosos, Chile 16 conventos e 174 religiosos, Maranhão 6 conventos e 70 religiosos (Ordem das Mercês, 1998. p. 178).

A Ordem Mercedária dividiu o espaço amazônico com outros religiosos, jesuítas, franciscanos e carmelitas. Suas atuações, em espaços delimitados pelas coroas ibéricas, certamente, guardam singularidades, não obstante se ocuparem de tarefas que eram comuns a todas as demais ordens. Ao partir desta compreensão, a presente pesquisa, na área da educação, ganha relevância para melhor compreendermos o legado educacional deixado pelos mercedários na região.

Circunstâncias da chegada dos primeiros mercedários a Belém do Pará

A chegada dos primeiros frades mercedários à Amazônia, no ano de 1639, é cercada de uma série de acontecimentos históricos, com ramificações internacionais que envolvem outras nações europeias, além de Portugal. A conquista e a ocupação da região amazônica iniciam-se no período dos Felipes, tempo em que vigia a União Ibérica. Segundo Boxer (1969, p. 118), “[...] o império colonial ibérico, que durou de 1580 a 1640, e que se estendia de Macau na China, a Potosi no Peru, foi o primeiro império mundial onde o sol nunca se punha”.

França, Inglaterra e Holanda opunham-se as pretensões de domínio cada vez mais alargado da Coroa Ibérica unificada. A invasão holandesa no Nordeste brasileiro e os ataques às possessões portuguesas na costa africana e no Oriente, e de ingleses e franceses em todo o império, levavam à queda dos preços do açúcar, das drogas e especiarias, agora chegadas em massa ao Havre, Londres ou Amsterdam. E, mais grave ainda, afetavam o fornecimento de escravos (Teixeira da Silva, 2016).

Nas Américas, comerciantes ingleses, franceses e holandeses também ameaçavam a ocupação ibérica da região (Wehling, 1999). Passaram a investir na ocupação de territórios no Mar das Caraíbas e no norte do continente sul-americano, entre os deltas do Rio Orenoco, na atual Venezuela, e do Rio Amazonas. A presença desses estrangeiros impedia que Madri realizasse a união de suas fronteiras coloniais costeiras (Mauro, 1991).

Consta que, em 1604, Daniel de La Touche, Senhor de la Ravardière, o mesmo nobre que, em 1612, comandaria a expedição francesa com o objetivo de estabelecer a chamada França Equinocial no Maranhão, havia explorado as costas da Guiana com o navegador Jean Mocquet. Após explorar a costa e penetrar nos rios Oiapoque e Caiena, retornou a sua pátria (Azevedo, 1893).

Em março de 1612, nova expedição liderada por Daniel de La Touche partiu da França, agora, com destino ao Maranhão. Nessa época, o já arrojado explorador reunira informações suficientes para abandonar as pretensões de ocupar a Guiana e preferir o território do Maranhão, certamente, muito mais fértil e adequado à colonização. Obteve carta patente, em outubro de 1610, autorizando-o a fundar uma colônia ao sul da linha equinocial (Azevedo, 1893).

É possível que seus planos tenham sido adiados em decorrência da morte do Rei Henrique IV, no mesmo ano de 1610. No entanto, a empresa marítima despertou o interesse de particulares calvinistas, como o banqueiro Nicolau de Harley e François de Rasilly, que, em comum acordo com a Coroa francesa, financiaram o empreendimento. Em março de 1612, partiram do porto de Cancele, na Bretanha, cerca de quinhentos colonos a bordo de três navios, sob o comando de Daniel de La Touche. Em 08 de setembro de 1612, franciscanos capuchinhos que acompanhavam os franceses, rezaram a primeira missa e, a seguir, os colonos iniciaram a construção de um forte na ilha escolhida para se fixarem. O forte, denominado São Luís, prestou homenagem ao soberano, Luís XIII de França (1610-1643).

Mal chegadas a Madri, as notícias sobre a investida francesa, em 1613, Felipe III, de Espanha - Felipe II em Portugal - ordenou ao governador do Brasil, Gaspar de Sousa, que se fixasse em Olinda, de modo a melhor acompanhar e comandar as iniciativas destinadas a expulsar os invasores, e prosseguir na descoberta e conquista da região, genericamente chamadas de ‘terra do Rio das Amazonas’.

Depois de realizadas as ações militares, cuja culminância foi a batalha de Guaxenduba, em novembro de 1614, estabeleceu-se uma trégua de quase um ano entre portugueses e franceses. No entanto, Felipe III, em negociações com o Rei da França, defendeu os interesses lusitanos e se negou a abrir mão de São Luís. Em novembro de 1615, os franceses foram expulsos em definitivo e embarcados de volta à França.

O insucesso da fundação da França Equinocial, no Maranhão, não inibiu o intento de franceses a ocupar outros espaços geográficos, agora, mais ao norte, entre o Rio Amazonas e o Rio Orenoco. Em 1626, realizaram uma primeira tentativa de colonização ao longo do Rio Sinnamary. Em 1634, fundaram a cidade de Caiena, ao norte do Amapá, na atual Guiana Francesa. A partir do porto de Caiena, os franceses passaram a realizar incursões ao longo da costa, em direção ao sul, até o delta do rio Amazonas, onde pretendiam fixar posição. Mas os franceses não estavam sós. Ingleses e holandeses também disputavam os mesmos territórios, assim como tentavam se estabelecer no vale do Rio Amazonas.

A ligação fluvial entre a foz do rio Amazonas, no Atlântico, e os Andes punha em risco as minas de prata do Peru (Teixeira da Silva, 2016). Trata-se, portanto, de verdadeira ameaça à segurança do império colonial espanhol na América. O controle da foz do Amazonas era o único meio para expulsar os invasores e conter a penetração dos concorrentes estrangeiros. A conquista e a colonização do Maranhão tornaram-se importante política colonial de Felipe III de Espanha, havendo o monarca de entregar aos portugueses a missão militar.

Ante a permeabilidade das fronteiras entre América lusa ou espanhola, a linha divisória estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas pareceu perder sentido no tempo da unidade política do período filipino. Em certa medida, portugueses e espanhóis movimentavam-se em um espaço colonial comum, não significando que fosse pacífica a conciliação dos interesses entre ambas nações.

Mas no caso da Amazônia, houve mútua conveniência. O governo de Madri, não tendo outra forma mais adequada de expulsar os estrangeiros, garantir o domínio dos territórios e proteger seus interesses ameaçados, valeu-se dos portugueses e lhes autorizou, cada vez mais, a penetrar em direção ao interior do continente. Por sua vez, os portugueses não mediram esforços para cumprir as determinações reais na penetração e exploração da bacia amazônica, o que muito os favorecia.

Pelo Tratado de Tordesilhas a linha de separação das duas coroas passava pelo estuário, ou muito próximo de Belém. Para maior facilidade do desenvolvimento do território os portugueses agiam em interesse comum com os castelhanos, por isso Portugal se achava sob o domínio de Espanha. Esse fato fez com que a nação portuguesa, que mantinha as suas tradições, os seus hábitos e certa autonomia, se esforçasse em decifrar o mistério, que se encerra rio acima, e em tomar posse das terras em nome da Espanha para Portugal. Depois que alcançou a independência, os territórios explorados e conquistados ficaram incorporados ao patrimônio português (Jobim, 1957, p. 26).

A fundação de Belém, após a conquista de São Luís, por ordem expressa do Rei, foi um dos atos que deram legalidade ao alargamento da Amazônia lusa. Conforme Caio Prado Júnior (1971), a fundação de Belém, em 1616, foi fortemente motivada por razões políticas e estratégicas com a intenção de controlar a vasta região da Amazônia. A constituição de um núcleo urbano deveria funcionar como um marco de posse e de defesa da imensa bacia amazônica contra as investidas dos estrangeiros. A construção do Forte do Presépio, núcleo original da cidade de Belém, asseguraria o objetivo. Assim, foi iniciada uma lenta penetração pela intrincada rede hidrográfica amazônica.

Em 1621, como parte das mesmas determinações de conquista e ocupação da Amazônia, Felipe III, de Espanha, cria o Estado do Maranhão, entidade autônoma, politicamente independente do Estado do Brasil e com governo próprio instalado em São Luís, respondendo diretamente à Metrópole. O novo Estado estendia-se do Rio Oiapoque ao Cabo de São Roque, compreendendo as capitanias do Pará, Cumã, Maranhão e Ceará (Loureiro, 1978). Cabo do Norte, chamado pelos franceses de Cabo D’Orange, atual estado do Amapá, na época da criação do Estado do Maranhão, era região ainda inexplorada pelos portugueses e estava ocupada pelos ingleses, holandeses e franceses. Uma das medidas para permitir a conquista e a expulsão dos estrangeiros foi transformá-la em capitania particular, doada ao desbravador português Bento Maciel Parente, em 1637. Todavia, extinguiu-se após a morte de seu donatário em 1642, quando o território foi reincorporado à Coroa e integrando à capitania do Pará (Handelmann, 1982).

Para uma melhor compreensão geográfica, o novo Estado do Maranhão compreendia os atuais estados do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, parte do Amazonas e Amapá, abrangendo toda a costa norte e quase todo o vale amazônico. O Estado do Brasil, por sua vez, era constituído pelas capitanias pertencentes à Coroa, do Rio Grande do Norte, até a capitania de São Vicente, e pelas demais capitanias privadas.

Eis, portanto, a situação histórica que precedeu a chegada dos mercedários em Belém, tempo em que os reinos ibéricos unificados sob um único monarca, travavam grandes disputas políticas, geográficas, comerciais e diplomáticas com outras nações europeias.

A expedição de Pedro Teixeira em que vieram os frades mercedários de Quito a Belém

A vinda dos mercedários de Quito para Belém deve-se, sobretudo, a fantástica expedição de Pedro Teixeira ao Vice-Reino do Peru. Em 28 de outubro de 1636, ao partir de Belém, iniciou uma viagem de exploração pelos rios amazônicos em direção a Quito, no Equador. Ao iniciar a viagem, liderava mais de 1.200 homens, entre militares, índios e colonos, sem contar mulheres e crianças indígenas que acompanhavam o grupo, embarcados em mais de 50 grandes canoas.

Dois anos após a partida, e ter cumprido o objetivo de atingir Quito, Pedro Teixeira regressou a Belém como o maior conquistador da Amazônia luso-brasileira. Se não tivesse ocorrido a expedição rio acima, seguramente teria sido feita por espanhóis rio abaixo, conforme veremos a seguir, e a atual Amazônia brasileira seria conquistada para a Espanha.

A própria expedição de Pedro Teixeira é motivada por acontecimentos inusitados protagonizados por missionários franciscanos do convento de Quito. Segundo a narrativa de Azevedo (1901), em 1636, os frades franciscanos intentaram alargar o campo espiritual de sua atuação, de modo a se embrenhar na região de confluência dos rios Napo e Aguarico, para fazer maior número de cristãos entre os índios denominados de Encabelados.3 Os frades franciscanos recebiam escolta de poucos soldados comandada por Juan de Palacios. A relação com os índios, inicialmente, foi muito cordial; mas ao cabo de pouco tempo rompeu a discórdia.

Severidades dos missionarios, ou, como allegam estes, violencias dos soldados, levantaram os índios em armas. Saíu-lhes ao encontro Palacios, de espada e rodella, e foi morto por elles. Varridos por uma descarga de arcabuzes, sumiram-se os matadores nos bosques. Mas já os militares desanimavam da resistencia e os religiosos da conversão; por isso decidiram refugiar-se em logar mais seguro, enquanto aguardavam soccorros. Da gente armada sáe então um aventuteiro portuguez, de nome Francisco Fernandes, com extranhas propostas. Estivera no Grão-Pará, onde, a seu ver, se iria dar, baixando pelo Napo. Lá colhera noticia de que, por aquelles rios, se encontrava o El-Dorado, e a Casa do Sol; descoberta que, realizada, satisfaria as ambições mais intensas (Azevedo, 1901, p. 29).

Não havendo credulidade de todos no que propunha Francisco Fernandes, parte dos missionários retornaram a Quito. Bernardo Pereira de Berredo (1749), não menciona Francisco Fernandes, muito menos as suas propostas, mas relata que os religiosos sacerdotes com a maior parte dos soldados retornaram para Quito; enquanto dois frades laicos com mais alguns soldados abandonavam o Aguarico ou rio do Ouro, e tomando o rumo do Napo, embarcados em uma pequena canoa, desceram as correntezas na incerteza de seu destino, ou como disse Berredo (1749, p. 289), “[...] encomendaram a sua fama às precipitadas correntes do (rio) das Amazonas”. Desses últimos, segundo Anísio Jobim (1957), faziam parte os dois religiosos leigos, Frei Domingos de Brieva e Frei André de Toledo; o português Francisco Fernandes, que dizia conhecer o Pará; seis praças espanhóis e alguns índios.

Muitos dias depois, chegaram ao forte de Gurupá4, para surpresa dos portugueses.

Famintos, semi-nús, hypnotisados pelo terror dos selvagens, mal sabiam dizer por onde vinham, que terras tinham atravessado. Perdidos na solidão immensa, assombrados do volume das aguas, por vezes agitadas como as do oceano, receosos de algum encontro funesto com tribus indomitãs, consideravam milagroso o salvamento (Azevedo, 1901, p. 30).

Contaram os frades que, antes de se verem salvos, por seus cálculos, teriam caminhado duzentas léguas, quando se depararam com nova região populosa habitada por índios omaguás; esses, além de dóceis, forneceram-lhes mantimentos. E continuando sempre a descer as águas caudalosas, “[...] não viram o El-Dorado nem a casa do Sol, mas na bôca do Tapajós lhes saíram ao encontro os índios bravos, e os despojaram de tudo que traziam. Ainda combalidos do susto, receberam, como benção do céo, o agasalho dos portugueses [...]”, conclui Azevedo (1901, p. 30).

Os viajantes foram conduzidos a São Luís, onde se achava o governador Jacome Raymundo de Noronha. Após ouvir os relatos dos fugitivos, viu-se este obrigado a empreender a cabal exploração do rio, conforme a corte, por diversas vezes, houvera lhe recomendado. Um dos frades partiu para a Europa para dar parte do sucedido ao governo; o outro, Frei Domingos de Brieva, ficou para servir de guia à projetada expedição que seria liderada pelo capitão Pedro Teixeira.

Informa Azevedo (1901) que

[...] preparou-se uma armada de quarenta e sete canoas, a maior parte de grande porte; mil e duzentos indios de remo e peleja, mais de sessenta soldados portuguezes, as guarneciam; contando as mulheres e creanças, ascendia o numero total a duas mil e quinhentas almas (Azevedo, 1901, p. 31).

O objetivo era fazer o caminho inverso, até chegar a Quito. De Gurupá, onde se juntaram todas as unidades da expedição, partiram em 17 de outubro de 1637. A viagem não foi fácil. A começar pelo frade e os demais soldados castelhanos recém-chegados que não eram, na verdade, excelentes guias. Mas a agudeza de Pedro Teixeira e os esforços de seus auxiliares suplantavam a incapacidade dos improvisados pilotos. À medida que a jornada avançava, minguava a fidelidade dos indígenas que integravam a expedição. O trabalho era duro, as privações constantes e a incerteza da aventura esmoreciam os ânimos. A bem da verdade, afirma Azevedo (1901, p. 32), “[...] só violentados iam ali os indígenas. [...] A muitos prostrava a doença e desses bastantes sucumbiam; dos que restavam validos eram quotidianas as deserções”.

Passados quase dez meses, em 15 de agosto de 1638, aportou Pedro Teixeira no Payamino, afluente do Napo. De lá caminhou por terra em direção a Quito. Houve grande alvoroço com a chegada dos viajantes à cidade; e não foi menor o espanto com a volta do religioso franciscano frei Domingos de Brieva, que todos julgavam morto. Ao encontro de Pedro Teixeira vieram as pessoas mais graduadas de Quito. O governador foi avisado em Lima e levaram-lhe o roteiro da viagem e a planta do rio que passava a se chamar São Francisco de Quito “[...] porque a nova descoberta se deve à ordem seraphica; e porque da cidade correm as águas (tal era a idéia dos navegantes) directamente até ao mar” (Azevedo, 1901, p. 33).

Pedro Teixeira, segundo Berredo (1749), teria deixado Quito no dia 16 de fevereiro de 1639. Sua chegada em Belém se deu em 12 de dezembro de 1639. No caminho de descida, fundou o povoado de ‘a Franciscana’, em homenagem aos missionários franciscanos que atuaram naquela região, sito a vinte léguas abaixo do rio Aguarico, chamado do Ouro. Berredo (1749) transcreve o auto de posse que se acha registrado nos livros da Provedoria de Belém do Pará e Senado da Câmara, datado de 16 de agosto de 1639. O marco estabelecido por Pedro Teixeira em a Franciscana permitiu o alargamento do território da Amazônia lusa e sua posterior legitimação. Os tratados de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1777) reconheceram que parte considerável da Amazônia era domínio de Portugal.

As autoridades castelhanas do Vice-Reino do Peru temiam que os holandeses que ameaçavam o Maranhão e a costa brasileira pudessem fazer o mesmo caminho dos portugueses rio acima. Por despacho de 10 de novembro, o Vice-Rei ordenou que a armada portuguesa fosse abundantemente fornecida de munições de guerra e voltasse ao Pará pelo mesmo caminho e fosse acompanhada por duas testemunhas escolhidas “[...] das de melhor opinião para que como testemunhas de vista, pudesse grangear a sua relação, na Corte de Madrid, o mais inteiro credito” (Berredo, 1749, p. 290).

A decisão sobre quem seriam as testemunhas a acompanhar o retorno da expedição de Pedro Teixeira foi prolongada e cercada de polêmicas. Para escândalo dos franciscanos, foram escolhidos dois padres da Companhia de Jesus para acompanhar Pedro Teixeira. Assim, relata Azevedo (1901):

Não devemos esquecer o intermedio comico da viagem: a disputa entre franciscanos e jesuítas, pela honra e proveitos da descoberta. Entrava nas instrucções do vice-rei o mandarem-se á côrte de Madrid pessoas de autoridade e lettras bastantes que; acompanhando a expedição na baixada, servissem de fiscaes. Offereciam-se para o encargo pessoas das mais qualificadas do districto; com direitos adquiridos requériam para si os franciscanos; mas pertenceu a palma aos jesuitas. Com grande escandalo dos frades menores, a Real Academia de Quito elegeu para a honrosa missão os padres André de Artieda e Christovam de Acuña5 da Companhia. [...] Não obstante, escassa gloria adquiriu para si a principal personagem della. O nome do jesuita sobrepoz-se ao de Pedro Teixeira na memoria da posteridade; os leigos franciscanos desappareceram; do soldado Francisco Fernandes, que teve a afortunada idéa de imitar o desertor de Pizarro, ninguem sabe. O proprio rio perdeu a denominação passageira, que recordava um facto, em que tomara parte a gente seraphica. Christovam de Acuña não desprezou a lenda das amazonas; avigorou-a, pelo contrario, com testemunho novo (Azevedo, 1901, p. 33-34).

Pois como se sabe, o Padre Christoval de Acuña, ao publicar em Madri, no ano de 1641, a sua relação intitulada Nuevo Descubrimento Del Gran Río de Las Amazonas construiu uma narrativa que - não obstante fornecer detalhes preciosos sobre a viagem de Pedro Teixeira, e que serão uma das principais fontes de autores como Berredo e Azevedo, por nós, aqui, bastante citados, - arvora-se da prerrogativa de testemunha ocular da história para apagar e moldar os fatos com o claro objetivo de tornar patente as glórias da Companhia de Jesus.

Finalmente, sem grande alarde, é Berredo quem anuncia que, além dos padres da Companhia, acompanharam a nova empresa de Pedro Teixeira, em retorno a Belém, quatro religiosos mercedários:

[...] Padres Fr. Pedro de la Rua Cirne, Fr. João da Merce, e Fr. Diogo da Conceição, e Superior dos tres Fr. Affonso de Armejo, Religiosos da Ordem Calçada de Nossa Senhora das Merces; dos quaes morrendo o ultimo, e hum dos Companheiros no mesmo caminho, foy depois Fr. Pedro o seu Fundador nas Cidades de Belem do Parà, e S. Luiz do Maranhão (Berredo, 1749, p. 294).

O Padre Acuña não escreve uma só linha sobre os mercedários que com ele viajaram até Belém.

Vendo Pedro Teixeira a grande veneração que gozava a Ordem de Nossa Senhora das Mercês em Quito, por terem sido os mercedários os primeiros propagadores da fé, desejou levar consigo relíquias da Ordem para Belém onde pensou que os frades poderiam fundar um convento. Pedro Teixeira, por requerimento entregue ao Provincial da Ordem das Mercês, em 24 de janeiro de 1639, formalizou o seu desejo de que os frades pudessem servir na missionação, muito necessária no Grão-Pará. O referido requerimento consta transcrito no manuscrito intitulado Notícia da fundação do convento de Nossa Senhora das Mercês desta cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, onde se inclui o descobrimento do Rio das Amazonas e outras noticias mais da fundação das aldeias do Rio Negro pelos primeiros religiosos da congregação (Documento 18, 1784), documento com 21 folhas duplas, datado em Belém, no ano de 1784, sob a guarda da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro:

Dis Pedro Teixeira, capitam mór de Enfantaria, e descobrimento por S. Mage., e capitam mór da armada Portugueza com poder de Governador, e capitam mór general particular por commissão do Governador, e capitam general Jacome Raymundo de Noronha, para fazer nesta occazião o descobrimento e tudo o mais que convier ao serviço de Deos, S. Mage. e bem da Gentilidade e sua conversão, e augmento daquelle conquista, e os mais officiaes e capitaens da sua Companhia e com elle assistentes, e abaixo assignados. Pedimos a V.P.M.R pelo affecto e devoção que temos a sagrada religião de Nossa Senhora das Mercês, Redempção de Captivos, seja servido darmos Religiosos para que em nossa Cidade de Bellém, cituada no Grão-Pará, possão fundar hum Convento da dita Ordem pelo grande fruto que esperamos em Deos e sua Santíssima May, que se hade fazer em Almas dos moradores da dita Cidade, e conversão da Gentilidade que ha grande numero, e perecem por falta de Doutrina que já agoardão pela mizericordia de Deos e de seus Ministros para o que nos obrigamos e offerecemos citio para a dita Fundação, e terras para todo o gênero de Lavoiras, e gado para sustento do dito Convento, e do citio e Terras faremos logo Escripturas para que se veja a nossa vontade e devoção, supposta que pedimos a V.P.M.R. com toda a efficacia seja servido concedernos os Religiosos que pedimos para o effeito sobredito que nisso recebemos caridade, como confiamos na pessôa de V.P.M.R. Christandade, e Religião sermos depachados com toda amizade e favor (Documento 18, 1784, p. 2-3).

O mesmo manuscrito também recolhe a pronta resposta, datada do mesmo dia, em que Frei Francisco Muñoz de Baana, Vigário Provincial da Província de Nossa Senhora das Mercês, agradece e assente positivamente ao pedido de Pedro Teixeira. Partiram em sua companhia dois religiosos ordenados e dois laicos.

Pedro Teixeira deu inestimável contribuição para assegurar a posse da vasta bacia Amazônica para Portugal. Teixeira foi nomeado para o cargo de capitão-mor do Grão-Pará, tomando posse em fevereiro de 1640; cargo ocupado por pouco tempo, até o mês de maio de 1641. Em 4 de julho desse mesmo ano, veio a falecer em Belém, cidade que ajudou a fundar.

A Ordem de Nossa Senhora das Mercês, de origem espanhola, encontrava-se em atividade no Vice-Reino do Peru desde o século XVI. Pedro de la Rua de Cirne e seus companheiros de hábito fundaram em Belém, em 1640, o primeiro convento mercedário da Amazônia.

As principais atividades dos mercedários no território da antiga província do Maranhão e Grão-Pará foram as missões e núcleos doutrinais, distribuídas ao longo dos rios Negro e Urubu. A Ordem Mercedária chegou a ter, em 1751, três conventos no Maranhão; em 1660, fundou a missão Saracá, futura vila de Silves, considerada a mais antiga povoação do atual estado do Amazonas; e, em 1663, fundou as missões de São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato, ambas no rio Urubu (Rezende, 2006).

O convento

Como dissemos na Introdução, a primeira construção da igreja e do convento de Nossa Senhora das Mercês de Belém foi iniciada em março de 1640, poucos meses após a chegada dos religiosos mercedários, em Belém, vindos de Quito, em 1639.

Sobre a fundação do Convento, novamente, há que se recorrer ao manuscrito intitulado Notícias da fundação do convento de Nossa Senhora das Mercês desta cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará (Documento 18, 1784).

Outra referência importante é a obra de Eugênio Ferraz, em segunda edição revista e ampliada, editada em 2000, com o título Convento dos Mercedários de Belém do Pará: breve histórico de sua recuperação.

Os mercedários começaram sua obra construindo um hospício com ermida. Receberam do doador das terras, Mateos Cabral, “[...] sete vacas, para o início de seu gado” (Ferraz, 2000, p. 37). De fato, as sete vacas se multiplicaram em numeroso rebanho, uma vez que a Ordem se tornou proprietária de diversas fazendas de gado. Em fins dos seiscentos, já possuíam pequenas fazendas nos arredores da cidade, dentre as quais a fazenda Val-de-Cães, localidade onde, atualmente, foi construído o Aeroporto Internacional de Belém, além de propriedades na Ilha de Joannes, atual Marajó, cujas terras foram doadas aos religiosos pelo Barão de Ilha Grande de Joannes, em 1696 e 1726. A atividade econômica de criadores de gado, com o tempo, tornou-os bastante prósperos, situação propícia para iniciarem nova construção, em 1748, de modo a ampliar a igreja e o convento.

Segundo estudos de Luiz Mott (2009), e que se vale de documentação inédita, corrige a opinião repetida por diversos pesquisadores. Segundo a versão até então consagrada e rebatida por Mott, as primeiras construções dos mercedários de Belém teriam sido feitas em taipa de mão ou de sopapo, depois melhoradas com paredes de taipa. No entanto, Mott (2009, p. 13, grifo do autor) afirma “[...] que entre a primitiva construção original de taipa e os edifícios monumentais do século XVIII, houve importante reconstrução deste Convento, utilizando-se para tanto ‘pedra e cal’”. A informação é relevante porque a aplicação de materiais construtivos de maior qualidade é indício de que os religiosos foram capazes de angariar recursos suficientes para promover uma construção mais robusta e que, certamente, mais cedo do que se pensava, o convento foi uma das referências arquitetônicas do núcleo citadino que se consolidava.

Nos fundos do convento, junto à Baía do Guajará, em 1665, foi construído o Forte de São Pedro Nolasco para a proteção militar da cidade. Os religiosos haviam cedido seus direitos para aquela construção e, em contrapartida, exigiram que o mesmo tivesse seu acesso por entre a cerca do convento, na orla do rio, e que se chamasse de São Pedro Nolasco em homenagem ao fundador da ordem.

Por volta de 1790, inspirada em um barroco simples, foi terminada a construção monumental do templo e convento que se conservam na atualidade, em alvenaria de pedra. O prédio foi projetado pelo arquiteto bolonhês Antônio José Landi.

Em 1794, os religiosos são expulsos da província, sendo instalada nas dependências do convento a sede da Alfândega, em 1797. No ano de 1835, no auge dos combates travados durante a revolta da Cabanagem, passou a ser utilizado como arsenal bélico. Posteriormente, ali, funcionou o Trem de Guerra e o Quartel de Milícia, além do Arsenal de Guerra, a Recebedoria Provincial dos Correios, o Corpo de Artilharia e o Batalhão de Caçadores. Durante o século XIX, ficou a igreja abandonada e fechada por muitos anos, servindo de depósito e tendo muitas de suas obras estragadas e roubadas. Deve-se ao segundo arcebispo de Belém do Pará, D. Santino Maria da Silva Coutinho (1868-1939), as obras de restauração que permitiram a reabertura da igreja em 1913. Em 1978, um incêndio destruiu quase todo o convento, sendo a igreja pouco afetada. E em 1986, o conjunto foi integralmente restaurado e tombado pelo IPHAN.

No ano de 2018, foi publicado no portal.ufpa.br a notícia de que a Universidade Federal do Pará foi autorizada pela Secretaria de Patrimônio da União a ocupar o antigo prédio do Convento dos Mercedários. Segundo a professora Thais Sanjat (Universidade Federal do Pará [UFPA], 2018), mencionada na notícia, “A escolha do convento dos Mercedários para a instalação das atividades ocorreu por sua importância arquitetônica e cultural”. Esta edificação se localiza na Praça Barão do Rio Branco, Belém, PA, e vem resistindo bravamente às ações do tempo, sendo palco de diversos acontecimentos históricos e políticos importantes no país.

A magnitude das obras civis, em etapas sucessivas de ampliação do conjunto arquitetônico, é sinal da importância que a Ordem granjeou na Amazônia e justifica o desenvolvimento de novos estudos, em especial, no campo da educação, em razão dos diversos testemunhos históricos do grande preparo intelectual dos frades para o exercício do ensino e da promoção da cultura letrada.

A biblioteca

A biblioteca conventual ganha importância, não apenas pelo número de livros, mas também pela variedade e riqueza do seu acervo. A biblioteca, ou o conjunto de livros inventariados, está formada pelos livros guardados na Livraria do convento, bem como casa da botica e nas celas dos religiosos.

No Inventário, é possível identificar os títulos dos livros existentes nas celas dos frades e na livraria do convento, além de quantos volumes estavam presentes em locais diversos das instalações do convento e quantos eram ao total. Quanto aos livros encontrados nas celas de vários religiosos, eram numerosos. A cela do Fr. José Francisco de Andrade conta com 86 títulos; a do Fr. João da Veiga se destaca por ser a cela que continha a maior quantidade, sendo ao todo 305 e possuindo livros em latim, grego, francês, italiano, espanhol e português; a do Fr. Manuel Borges 28 obras; a do Fr. João Jozé Craveiro 12; a do Fr. José da Costa 59 livros.

Ao todo, foram inventariados mais de quatro mil exemplares catalogados por temas, dentre os quais destacamos: Teologia Dogmática, Moral, Liturgia, Homilética, Direito Canônico, Direito Civil, Direito Natural e das Nações Cultas da Europa, Ciências Naturais e Humanidades. O idioma com maior destaque era o latim.

Quanto ao número de livros, poucas bibliotecas conventuais, da mesma época, dispunham de tantas obras, mesmo em Portugal ou em Lisboa (Campos, 2013). O Inventário relaciona todos os bens deixados pelos frades na igreja e no convento. Organiza, por cômodo, tudo o que existia em seu interior. Relaciona e discrimina, além dos livros - itens de nosso interesse -, móveis, objetos de uso litúrgico, pertences pessoais e demais artefatos, e indica o valor estimado de cada item. A partir desse documento, é possível saber quais os títulos dos livros, o número de exemplares, e em que idiomas estavam escritos. A fonte se encontra em forma física para consulta, em bom estado de conservação, não havendo microfilme ou digitalização. Foi possível fotografar o documento em sua integralidade e, assim, facilitar o acesso às informações necessárias para o desenvolvimento da pesquisa.

Arthur Cezar Ferreira Reis, historiador e governador do Amazonas, com as informações que colheu do catálogo da biblioteca conventual existente na Biblioteca e Arquivo Paraense, e que cremos possuir igual teor do que consta no Inventário, afirma:

Os mercedários distinguiam-se como educadores. A casa de Quito era um dos grandes centros de trabalho cerebral do Reino Vizinho. Em Belém, não esquecendo essa ocupação espiritual, além das ‘pregações e confissões’ a que se entregaram, abriram escolas para os filhos dos colonos, a título de noviços, ensinando ‘bons costumes e latim’. [...] No tocante à educação da mocidade, os Mercedários, prosseguindo na tarefa que lhes tinha marcado os começos da atividade no extremo-norte, transformaram o convento de Belém num grande centro de ensino, onde estudaram os moços paraenses que ali dispunham de uma ótima biblioteca, compreendendo os campos da História, da Geografia, das Ciências Naturais, da Filosofia, da Teologia, do Direito Canônico, das Latinidades. Os clássicos franceses, latinos e lusitanos estavam presentes. Algumas centenas de volumes, além do que constava na cela de cada religioso. Um setor magnifico, enfim, de alta cultura, que dignificava a Amazônia (Reis, 1942, p. 30 e 33, grifo do autor).

Emílio Castro (1968), importante estudioso da história da Ordem das Mercês no Brasil, ratifica as elogiosas referências acerca das qualidades da ação apostólica e educativa exercida pelos mercedários na Amazônia.

Além das Missões e Núcleos Doutrinais os mercedários do Grão-Pará se dedicaram com infatigável porfia à educação da juventude, missão para qual estavam excelentemente preparados, já que provinham do Equador, onde a Ordem Mercedária tinha alcançado um elevado nível de cultura (Castro, 1968, p. 29).

O alto nível cultural e formativo desses religiosos, assim como ficou patente nas duas referências anteriores, se deveu, portanto, ao fato de terem vindo de Quito, na expedição de Pedro Teixeira, para atenuar a penúria de sacerdotes e de assistência religiosa em que se achava a província do Maranhão, em razão do bloqueio holandês em guerra contra a Espanha, cuja Coroa dominava todo o Brasil, durante o tempo da União Ibérica. Pois em Quito, os religiosos das Mercês gozavam de grande reputação e eram reconhecidos por sua esmerada formação, o que muito contribuiu para o desenvolvimento da cultura e da educação naquele Vice-Reino de Espanha.

O estudo do índice de livros constantes no Inventário não nos garante afirmar que as obras recolhidas e inventariadas fossem objeto da leitura mais substantiva dos frades, já que nem sempre se pode estabelecer uma relação direta entre livro possuído e livro lido. Há também de se considerar que não há informações acerca do tamanho e do que continha o acervo do convento antes do espólio registrado no Inventário. Pois em se tratando de bens valiosos para a época, não se pode descartar a hipótese de que o acervo poderia, ainda, ser maior, e que eventual dissipação, por subtração ou destinação indevida de livros por parte de terceiros, possa ter havido. Com segurança, por ora, apenas podemos afirmar que tratamos de obras que estavam disponíveis à leitura na biblioteca comum e, às vezes, na cela dos religiosos, o que pode ser indício de que essa proximidade conferia trato mais íntimo e afetivo com os livros. No entanto, o acervo descrito no espólio do Convento das Mercês de Belém pode nos ajudar a compreender de que modo a biblioteca colaborava em dar suporte às funções missionárias de pregação, de cura das almas, de formação e de docência exercida pelos membros da ordem naquele estado independente da Amazônia.

A partir da ótica da Biblioteconomia, Parada (2011) afirma que é possível estudar como a biblioteca conventual contribui para o alcance dos objetivos institucionais.

Em nosso contexto, portanto, a biblioteca torna-se o lugar onde os frades vão buscar as ferramentas, principalmente os livros, que devem dar cobertura intelectual à sua própria aprendizagem e ao próprio exercício da profissão clerical. É aqui que reside a importância da biblioteca, entendida como local que guarda um dos mais preciosos tesouros do convento, os livros. A biblioteca conventual é um local que desempenha uma função essencial de apoio e apoio espiritual e intelectual aos membros da instituição de forma a melhor contribuir para o desenvolvimento dos seus talentos e como garantia do excelente desempenho das tarefas que lhes são confiadas. A biblioteca não é substantiva, não existe por si mesma, mas ‘é uma função’ da instituição a que pertence (Parada, 2011, p. 59, tradução nossa).6

A ‘função do livro’ no convento, conforme Parada (2011), depende sempre da missão e das funções desempenhadas pela ordem religiosa, e em última instância deve servir para aprofundar a própria fé e para reforçar a fé dos fiéis.

De modo geral, o livro é um instrumento para a devoção, para a oração mental e individual e para a leitura coletiva; ferramenta de apoio na formação intelectual do religioso e garante sua melhor preparação para o exercício do apostolado; torna-se também a memória fundacional e da regra e um dos argumentos de autoridade supremos, e fundamento das tarefas docentes e investigadoras (Parada, 2011, p. 72, tradução nossa).7

Parada entende que a formação de uma biblioteca conventual, desde seu início, tem a intencionalidade de responder às necessidades espirituais e pastorais dos religiosos; portanto, nas bibliotecas conventuais não há livros cuja a finalidade não seja formativa ou adequada ao seu trabalho missionário. O tema é fundamentalmente religioso, não obstante haver outras disciplinas correlatas, haja vista ter o frade de dar conta de tarefas educativas e espirituais as mais diversas. A biblioteca não é apenas um lugar de memória, mas “[...] um espaço de relação dialética entre livros e leitores, diferente em cada período histórico” (Parada, 2011, p. 73).

Considerações finais

Em conclusão, sem pretensão de esgotar o assunto, permanecem abertas várias questões. Qual o papel desempenhado pela biblioteca conventual das Mercês em Belém do Grão-Pará? Poderá esse acervo espelhar um claro reflexo do conteúdo da formação recebida pelos frades visando ao cumprimento de suas atividades missionárias? De que modo o suporte bibliográfico pertencente ao convento colaborou com as funções formativas, educativas e espirituais da Ordem? Até que ponto abre a possibilidade de realização de uma história das ideias pedagógicas a partir da presença ou da ausência de determinados autores e obras? São perguntas que nos desafiam e que poderão nortear novas pesquisas a partir da análise do acervo descrito no Inventário.

A Igreja, em especial, através das ordens religiosas, mantiveram o monopólio da educação, até o fim do século XVIII. As bibliotecas conventuais, no mesmo período, foram os centros de cultura e formação intelectual dos jovens brasileiros. Posteriormente, com o enriquecimento do país, se tornou possível que os pais pudessem enviar os filhos para estudar na Universidade de Coimbra e em poucas mais da Europa.

No Brasil, após a proibição de Pombal a respeito da fundação de novos conventos e a determinação do ensino leigo com a adoção das aulas régias, diminui o papel dos conventos na formação de intelectuais e dos jovens, em fins do século XVIII. Uma série de outras restrições impostas às ordens religiosas, no período Imperial, a exemplo da proibição de novos ingressos de candidatos, determinaram a sua decadência e quase extinção. Em 19 de maio de 1835, foi emitida uma circular proibindo o noviciado. Isto levou a uma deterioração, já que sem o recrutamento de novos religiosos, os que aqui estavam iam envelhecendo e desaparecendo, e com isso os remanescentes não eram capazes de dar conta de encarregarem-se de todas as tarefas existentes. Os conventos, indutores da cultura e, também, da expansão e da urbanização das cidades em seu entorno, já não representavam mais a vitalidade de antes. A função dos conventos como centro de cultura começou a entrar em decadência.

O governo imperial, com a finalidade de examinar o estado que se encontravam os conventos do Norte do país, envia Gonçalves Dias para tal tarefa. Em relato sobre o que encontrou em São Luís do Maranhão, o poeta conta que:

As mercês tiveram em outro tempo uma grande e vasta livraria: lembram-se que ainda algumas pessoas do tempo em que, frequentando as escolas, lá iam com seus companheiros gazear na livraria do convento e por brinquedo se atiravam com os livros uns aos outros, sem que alguém interviesse para lhes pôr cobro. Estragaram-se ou desapareceram: os que restam cabem em três pequenas prateleiras arrumadas de topo, sem outra ordem mais do que as teias de aranha que os ligam (Moraes, 2006, p. 26).

Pelo relato do poeta é possível ter uma ideia de como ocorreu a ruína dos conventos das diversas ordens que atuaram no mesmo período e espaço geográfico. Chama-nos a atenção o fato de Gonçalves Dias ter averiguado a situação do convento de São Luís do Maranhão, do qual ainda desconhecemos fontes que esclareçam como seria a biblioteca para além desse testemunho. Nada fala da biblioteca do convento de Belém.

As bibliotecas conventuais, em fins do século XVIII, foram dilapidadas e desapareceram. No entanto, foram fundadas dioceses providas de livrarias. Já em princípio do século XIX, os tempos eram outros e a influência dos religiosos no movimento intelectual brasileiro diminui cada vez mais.

Referências

Azevedo, J. L. (1893) Estudos da história paraense. Belém, PA: Tavares Cardoso & Irmão. [ Links ]

Azevedo, J. L. (1901). Os jesuítas no Grão-Pará, suas missões e a colonização: bosquejo histórico com vários documentos inéditos. Lisboa, PT: Tavares Cardoso & Irmão. [ Links ]

Berredo, B. P. (1749). Annaes historicos do Estado do Maranhão em que se da noticias do seu descobrimento, e tudo o mais que nelle tem succedido desde o anno em que foy descuberto até o de 1718. Lisboa, PT: Officina de Francisco Luiz Ameno. [ Links ]

Boxer, C. (1969). O império colonial português (1414-1825). Lisboa, PT: Edições 70. [ Links ]

Campos, F. M. A. S. G. (2013). Bibliotecas de história: aspectos da posse e uso dos livros em instituições religiosas de Lisboa nos finais do século XVIII (Tese de Doutorado em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa. [ Links ]

Castro, E. S. (1968). Mercedários no Brasil ontem e hoje. Rio de Janeiro, RJ: Imprensa Nacional. [ Links ]

Documento 18. (1784). Notícias da fundação do convento de Nossa Senhora das Mercês desta cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, onde se inclui o descobrimento do Rio das Amazonas e outras notícias mais da fundação das aldeias do rio Negro pelos primeiros religiosos da congregação (Manuscrito, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira. Proveniente da Coleção Carvalho, CEHB n. 9.389. ABN v. 72, p. 118).. Belém, PA. Recuperado de https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456696/mss1456696.pdfLinks ]

Ferraz, E. (2000). Convento dos mercedários de Belém do Pará: breve histórico e registro de sua recuperação. Belo Horizonte, MG: C/Arte. [ Links ]

Handelmann, H. (1982). História do Brasil. Belo Horizonte, MG: Editora Itatiaia. [ Links ]

Inventário dos bens sequestrados aos extintos religiosos mercedários na Capitania do Pará. (1794). [Manuscrito]. Arquivo Nacional, Seção Histórica, 4A.COD.0.102. [ Links ]

Jobim, A. (1957). O Amazonas, sua história: ensaio antropogeográfico e político. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional. [ Links ]

Loureiro, A. J. S. (1978). Síntese da história do Amazonas. Manaus, AM: Editora Metro Cúbico. [ Links ]

Mauro, F. (1991). O Império Luso-Brasileiro: 1620-1750. Lisboa, PT: Estampa. [ Links ]

Moraes, R. B. (2006). Livros e bibliotecas no Brasil colonial (2a. ed.). Brasília, DF: Briquet Lemos. [ Links ]

Morán, P. B. (1977). El envío de misioneros a América durante la época española. Salamanca, ES: Universidad Pontificia. [ Links ]

Morán, P. B. (1992). Religiosos en hispanoamérica. Madrid, ES: MAPFRE. [ Links ]

Mott, L. (2009). Travessuras de um frade sodomita no Convento das Mercês de Belém do Pará (1652-1658). Revista Estudos Amazônicos, 4(2), 11-35. [ Links ]

Ordem das Mercês. (1998). A ordem de Santa Maria das Mercês (1218-1992): síntese histórica. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Histórico de la Ordem de las Mercês/Vicariato da Ordem das Mercês do Brasil. [ Links ]

Parada, C. R. (2011). Las bibliotecas conventuales desde la biblioteconomía: la antigua biblioteca del convento de La Merced de Barcelona Itinerantes. Revista de Historia y Religión, 1(1), 57-76. [ Links ]

Prado Júnior, C. (1971). História econômica do Brasil. São Paulo, SP: Brasiliense. [ Links ]

Reis, A. C. F. (1942). A conquista espiritual da Amazônia. São Paulo, SP: Escolas Profissionais Salesianas. [ Links ]

Rezende, T. V. F. (2006).A conquista e a ocupação da Amazônia brasileira no período colonial: a definição de fronteiras [Tese de Doutorado em História). Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. [ Links ]

Román-Álvarez, J. (1990). A Ordem da Misericórdia. Sua contribuição para a evangelização americana. Evangelização e teologia na América (século XVI). Navarra, ES: Serviço de Publicações da Universidade de Navarra. Recuperado de https://dadun.unav.edu/bitstream/10171/4719/1/JOSE%20ROMAN%20ALVAREZ.pdfLinks ]

Sangenis, L. F. C., & Mianka, P. J. (2019). Presença franciscana e supremacia jesuítica no campo da História e da História da Educação na época colonial - um diagnóstico na pesquisa historiográfica a partir da análise dos CBHE da SBHE. Revista Brasileira de História da Educação, 19(49), 1-24. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e061) [ Links ]

Teixeira da Silva, F. C. (2016). A conquista e colonização da América portuguesa. In M. Y. Linhares, História geral do Brasil (p. 15-68). Rio de Janeiro, RJ: Elsevier. [ Links ]

Universidade Federal do Pará [UFPA].(2018). UFPA ocupará prédio do antigo Convento Mercedários. Recuperado de https://www.portal.ufpa.br/index.php/ultimas-noticias2/8165-ufpa-ocupara-predio- do-antigo-convento-dos-mercedariosLinks ]

Vásquez Fernández, L. (2006). Evangelización pacificadora de los mercedários durante la conquista del Perú: visión global en la que se señala, al final, al pacificador P. Bovadilla. Estudios Humanísticos, 1(5), 71-92. DOI: https://doi.org/10.18002/ehh.v0i5.3079 [ Links ]

Wehling, A. (1999). Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. [ Links ]

32NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e, ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 30 de Outubro de 2022; Aceito: 12 de Janeiro de 2023

*Autor para correspondência. E-mail: lfsangenis@gmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Luiz Fernando Conde Sangenis: Doutor em Educação (UFF), Professor Titular da Faculdade de Formação de Professores da UERJ, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos de Desigualdades Sociais, Líder da Rede Internacional de Estudos Franciscanos no Brasil e do Grupo de Pesquisa Seraphicus. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2833-0365 E-mail: lfsangenis@gmail.com

Lucia Maria Gonçalves de Andrade: Licenciada em Pedagogia (UERJ), ex-bolsista de Estágio Interno Complementar (UERJ), Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos de Desigualdades Sociais, ex-bolsista de mestrado da CAPES, membro do Grupo de Pesquisa Seraphicus. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5773-5903 E-mail: luciamga3@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons