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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.47  Maringá  2025  Epub 01-Dez-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v47i1.65859 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Práticas de educação inclusiva em tempos de pandemia pela COVID-19: estratégias sob o olhar da gestão educacional

Prácticas educativas inclusivas en tiempos de la Pandemia del COVID-19: estrategias desde la perspectiva de la gestión educativa

Andréa Souza Teixeira Gonçalves1 
http://orcid.org/0000-0003-1288-6286

Helena Venites Sardagna1  * 
http://orcid.org/0000-0002-6175-9542

1Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Rua Machado de Assis, 1456, 95520-000, Osório, Rio Grande do Sul, Brasil.


RESUMO.

O presente artigo trata de uma pesquisa que teve como objetivo investigar e compreender como se estabelecem as práticas de gestão da inclusão escolar em diferentes redes de ensino, identificando suas concepções e estratégias na operacionalização durante a pandemia pela COVID-19. O estudo se deu a partir de cinco escolas de diferentes redes de ensino, localizadas nos municípios de Osório, Tramandaí e Torres, pertencentes à região Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Participaram três escolas da rede estadual, sendo uma de cada município; uma escola da rede municipal de Osório e uma escola da rede privada/comunitária de Osório. A metodologia seguiu abordagem qualitativa do tipo exploratória e descritiva, e o instrumento foi um questionário on-line composto por oito questões objetivas e seis descritivas. Este foi respondido por gestores das escolas participantes, e as informações obtidas formaram o corpus empírico. A análise dos dados teve inspiração nos estudos foucaultianos, compreendendo que as práticas inclusivas se apresentam como uma das formas de regular sujeitos e controlar a população. Os resultados gerados do exercício analítico se apresentam em três enfoques principais: 1) estratégias pedagógicas para a inclusão no ensino remoto; 2) alternativas digitais para o ensino remoto; 3) práticas de gestão da educação no ensino remoto.

Palavras-chave: gestão escolar; práticas inclusivas; ensino remoto; biopolítica

RESUMEN.

Este artículo trata de una investigación que tuvo como objetivo investigar y comprender cómo se establecen las prácticas de gestión de la inclusión escolar en diferentes redes educativas, identificando sus concepciones y estrategias en la operacionalización durante la pandemia de COVID-19. El estudio se realizó a partir de cinco escuelas de diferentes redes de educación, ubicadas en los municipios de Osório, Tramandaí y Torres, pertenecientes a la región Litoral Norte de Rio Grande do Sul. Participaron tres escuelas de la red estatal, una de cada municipio; una escuela de la red municipal de Osório y una escuela de la red privada/comunitaria de Osório. La metodología siguió un enfoque cualitativo exploratorio y descriptivo y el instrumento fue un cuestionario en línea, compuesto por 8 preguntas objetivas y 6 descriptivas. Fue respondida por los directivos de las escuelas participantes y la información obtenida conformó el corpus empírico. El análisis de los datos se inspiró en los estudios foucaultianos, entendiendo que las prácticas inclusivas se presentan como una de las formas de regular los sujetos y controlar a la población. Los resultados generados a partir del ejercicio analítico se presentan en tres enfoques principales: 1) estrategias pedagógicas para la inclusión en la enseñanza a distancia; 2) alternativas digitales para la enseñanza a distancia; 3) prácticas de gestión educativa en la enseñanza a distancia.

Palabras clave: gestión escolar; prácticas inclusivas; aprendizaje remoto; biopolítica

ABSTRACT.

This article is about a research study that aimed to investigate and understand how school inclusion management practices are established in different education networks, identifying their conceptions and strategies in operationalization during the COVID-19 pandemic. The study was carried out from five schools of different education networks, located in the municipalities of Osório, Tramandaí and Torres, belonging to the North Coast region of Rio Grande do Sul. Three schools from the state network participated, one from each municipality; a school from the municipal network of Osório and a school from the private/community network of Osório. The methodology followed a qualitative exploratory and descriptive approach, and the instrument was an online questionnaire, composed of 8 objective and 6 descriptive questions. It was answered by managers of the participating schools and the information obtained formed the empirical corpus. Data analysis was inspired by Foucauldian studies, understanding that inclusive practices are presented as one of the ways to regulate subjects and control the population. The results generated from the analytical exercise are presented in three main approaches: 1) pedagogical strategies for inclusion in remote teaching; 2) digital alternatives for remote teaching; 3) education management practices in remote teaching.

Keywords: school management; inclusive practices; remote learning; biopolitics

Introdução1

A perspectiva da educação inclusiva é uma diretriz para os sistemas de ensino no Brasil, prevista na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva2 (PNEE-PEI, 2008), em vigência a partir de janeiro de 2008. Outros dispositivos legais - como a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei no 9.394, 1996), chamada de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei no 13.146, 2015), conhecida como Lei Brasileira de Inclusão (LBI) - asseguram, por meio de resoluções, pareceres e decretos, que todas as escolas das redes de ensino municipais, estaduais ou comunitárias/privadas promovam a educação inclusiva, garantindo matrícula e permanência na escola. Essa garantia prevê ainda a oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE) para estudantes com deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação.

De modo geral, as escolas têm criado políticas internas e implementado estratégias pedagógicas para atender às especificidades e promover uma educação que contemple efetivamente a todos. Contudo, experiências em pesquisas anteriores evidenciam que há diferentes realidades quanto à implementação das políticas educacionais inclusivas por parte das instituições.

Outro fator relevante foram os desafios que a pandemia nos colocou, com as adaptações e flexibilizações que as escolas precisaram implantar, após um período de fechamento total dessas instituições. Na segunda metade do mês de março de 2020, as escolas foram surpreendidas com o fechamento repentino, quando se agravava no Brasil a COVID-19, doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2 (popularmente chamado de novo Coronavírus), identificado pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na China. Com a rápida disseminação desse vírus, as escolas fecharam por tempo indeterminado, e os contatos passaram a ser por meio remoto.

Nas redes de ensino do Rio Grande do Sul, após um tempo de organização que envolveu principalmente as áreas da saúde e da educação, docentes passaram a realizar as aulas diretamente de suas residências, utilizando meios alternativos, como videoaulas, plataformas digitais, aplicativos como o WhatsApp e outras redes sociais para envio de materiais. Em algumas situações, houve também a entrega de atividades de forma física, em especial, por problemas de conectividade. No início, tal cenário parecia ser temporário; todavia, ele prosseguiu para além do ano letivo. Nesse período, foram muitos os desafios e as angústias por parte da gestão escolar, de docentes, famílias e discentes para se adequar a esse novo formato.

Nesse contexto, o Conselho Nacional de Educação (CNE) orientou a integração curricular e a prática das ações educacionais em nível nacional, sendo destacados três pareceres eminentes:

- Parecer CNE/CP nº 5, de 28 abril de 2020, que tratou da ‘reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19’ (Parecer CNE/CP no 5, 2020a);

- Parecer CNE/CP nº 9, de 8 de junho de 2020, que retomou essa temática, com o reexame do Parecer CNE/CP nº 5/2020 (Parecer CNE/CP no 9, 2020b);

-Parecer CNE/CP nº 11, de 7 de julho de 2020, que definiu ‘Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da Pandemia’ (Parecer CNE/CP no 11, 2020c).

No Parecer nº 5 (2020a), em Nota de Esclarecimento, de 18 de março de 2020, o CNE indicou que os sistemas de ensino (previstos nos Artigos 16, 17 e 18 da LDBEN) deveriam considerar a aplicação dos dispositivos legais em articulação com as normas estabelecidas para a organização das atividades escolares e a execução de seus calendários e programas. Pela legislação, a gestão do calendário e a forma de organização é de responsabilidade de sistemas e redes ou instituições de ensino.

Considerando os dispositivos legais e normativos vigentes, o CNE reiterou que a competência para tratar dos calendários escolares é da instituição ou rede de ensino, no âmbito de sua autonomia, respeitadas a legislação e normas nacionais e do sistema de ensino ao qual se encontre vinculado, notadamente o inciso III do artigo 12 da LDB (Parecer CNE/CP no 5, 2020a).

Outro ponto sobre o contexto pandêmico foi o agravamento das desigualdades pela situação econômica e o aumento da violência no âmbito familiar devido ao isolamento social (Bordiano, Liberal, Lovisi, & Abelha, 2021). Nesse cenário, as vítimas passaram a conviver diariamente com os seus agressores, restando evidente a situação de vulnerabilidade de crianças, adolescentes e mulheres dentro de seus próprios lares - local no qual deveriam estar mais seguros. A pandemia de COVID-19 “[...] encontra a população brasileira em situação de extrema vulnerabilidade, com altas taxas de desemprego e cortes profundos nas políticas sociais” (Werneck & Carvalho, 2020, p. 1).

As instituições precisaram se reinventar em um momento de conhecimento científico insuficiente sobre o vírus: realizaram tentativas e criaram protocolos pedagógicos não presenciais para construir estratégias, visando não apenas ao cumprimento de calendário, mas à aprendizagem. Ao mesmo tempo, era necessário atender aos protocolos sanitários. Foram decisões complexas, sendo que algumas envolviam o cumprimento de diretrizes, mas outras ficavam ao encargo das comunidades escolares, sob a responsabilidade da equipe de gestão escolar.

As estratégias elencadas por parte de cada instituição escolar não estavam suficientemente pautadas em certezas, uma vez que se vivia uma realidade ainda não experimentada. Passado um ano da declaração do estado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde, as escolas foram retomando aos poucos as suas atividades em sistema híbrido, durante o ano de 2021. Porém, ainda restavam muitas dúvidas e inquietações em termos de protocolos de segurança no ambiente escolar - e mais dúvidas ainda quanto aos atendimentos educacionais especializados direcionados aos alunos com deficiência ou transtorno global do desenvolvimento.

A inclusão escolar é uma perspectiva e uma prática que está diretamente relacionada às práticas de gestão, uma vez que um dos papéis dos gestores é promover a articulação entre diversas dimensões do campo da gestão escolar (financeira, pedagógica, ética, interativa, conceitual e humana/social), sobretudo considerando as reinvenções em tempos pandêmicos.

Entre os pesquisadores que abordam a gestão da inclusão, destacam-se alguns que, embora numa perspectiva distinta da assumida no presente estudo, consideramos pertinente trazer para a discussão, por pautarem as práticas de gestão da maior parte das instituições escolares. Sobre a relação entre a política educacional e a gestão escolar, enfatiza Lück (2009, p. 20):

Considerando que a gestão escolar é um processo compartilhado, torna-se necessário também considerar o desdobramento da liderança em coliderança ou liderança compartilhada, pelas quais ocorre o compartilhamento com outros profissionais e até mesmo com alunos, do espaço da tomada de decisões e da oportunidade de interinfluência recíproca de todos os membros da comunidade escolar.

Sob essa ótica, a gestão tem um papel de grande responsabilidade para viabilizar a concretização das políticas educacionais inclusivas e, para além disso, promover a construção coletiva de concepções inclusivas, removendo qualquer tipo de barreira existente. A direção escolar é um dos processos da gestão de uma organização escolar, concretizada na tomada de decisões sobre as diretrizes e a coordenação dos trabalhos.

Nesse sentido, o nível de participação dada ao coletivo define o estilo de gestão. Por esse viés, a gestão adotada pela maior parte das instituições públicas de ensino se diz democrática, isto é, procura atingir metas e cumprir responsabilidades decididas de forma coletiva e cooperativa, visando ao cumprimento das prerrogativas legais e à qualificação do processo de ensino e aprendizagem.

Para pensar a gestão escolar e a educação inclusiva, Carvalho (2010) destaca a importância da reorganização escolar em um conjunto de ações de gestão, currículo e recursos didático-pedagógicos em sinergia com a comunidade escolar e as políticas públicas. A escola será um espaço inclusivo se as suas dimensões físicas, como salas de aula, dependências administrativas, áreas externas e outros aspectos físicos que envolvem sua arquitetura e engenharia, permitem acessibilidade física com maior autonomia possível, em especial para alunos com deficiência. A escola será um espaço inclusivo se houver articulação com as políticas públicas que garantem aos cidadãos o exercício de seu direito à educação, como um bem (Carvalho, 2010).

A referida autora descreve e caracteriza a prática pedagógica em sala de aula, abordando três dimensões mais amplas para melhor compreender o sistema educacional. Tais dimensões foram denominadas como nível macropolítico (sistema educacional), nível mesopolítico (a escola) e nível micropolítico (a sala de aula) (Carvalho, 2010).

Para Carvalho (2012), a participação dos sujeitos na escola, nas decisões e na organização escolar é um dos aspectos que configuram a gestão democrática. Porém, existem outras questões a serem pensadas. Assim, o sentido de incluir não significa o esforço de promover a imersão dentro do mesmo ambiente escolar e o desafio à aprendizagem, uma vez que as próprias práticas de inclusão são alvo de uma biopolítica. Tem a ver com um contexto no qual se criam categorias, pautadas em uma métrica ou média, como dentro/fora, habilitado/não habilitado, atingiu/não atingiu, ou em processo de atingir.

Lopes e Fabris (2017) defendem que não se trata de dois polos dicotômicos - inclusão ou exclusão -, de modo que esse viés de dentro ou fora deve restar superado. Além disso, as referidas autoras afirmam que “[...] para que a inclusão seja assumida como uma verdade para todos, inclusive ultrapassando tipos específicos e já pensados a ser incluídos, é preciso transformá-la em um problema ético, filosófico, político e educacional” (Lopes & Fabris, 2017, p. 11). Nesse sentido, é potente denominar esses processos de in/exclusão.

A partir dessa problematização, a questão que guiou os estudos foi a seguinte: como se estabelecem as práticas inclusivas na gestão escolar das diferentes redes de ensino durante a pandemia do novo Coronavírus (COVID-19), e como se constituem as concepções e estratégias da sua efetivação no decorrer do período pandêmico?

Gestão da in/exclusão no contexto biopolítico

É a partir do século XIX que Foucault (2002) identifica o surgimento da anormalidade como problema da população sobre o qual as instituições deveriam incidir, entre elas, a escola. Sob essa perspectiva, pode-se referenciar a obra de Michel Foucault Os anormais, que discorre sobre as três figuras que representam a invenção do ‘anormal’ em momentos históricos distintos: o monstro humano, o indivíduo a corrigir e o onanista (Foucault, 2002). É pertinente para o presente estudo a figura identificada por Foucault (2008) de indivíduo a corrigir, aproximando as noções dos sujeitos escolares que são alvo de técnicas e práticas ‘normalizadoras’: “O indivíduo a ser corrigido é muito frequente, na medida em que é imediatamente próximo da regra, sempre vai ser difícil determiná-lo” (Foucault, 2008, p. 72).

Para Foucault (2002), a partir da Modernidade, estabelece-se uma arte de governar que não tem relação com governo político, mas sim com a forma de dirigir as condutas dos sujeitos da sociedade. São derivações de invenções do século XVIII, analisadas por Foucault (2008), que instituem o que é ‘normal’ e o que é ‘anormal’ na constituição da norma. Desse modo, os discursos que definem tempos e espaços para os sujeitos ‘anormais’ (os que estão fora da média) acabam por interferir na efetivação da inclusão como um direito.

Evidencia-se a operação de uma biopolítica que coloca em funcionamento mecanismos necessários tanto para a normalização de crianças e jovens posicionados como incluídos quanto para a regulamentação da população e regulação das condutas dos sujeitos (Sardagna, 2013). Os espaços de normalização são caracterizados por mecanismos de poder e biopolítica que reforçam a visão centralizada entre normais e anormais, incluídos e excluídos, principalmente no momento atual marcado por um tempo de reprodução discursiva sobre a população.

Nesse sentido, vale o alerta para que olhemos para cada prática educacional, cada expressão que usamos para nomear o outro e as coloquemos sob suspeita. Palavras que significam tolerância, culpabilização do outro, padrões culturais hegemônicos, identidade estável, universalidade, multiculturalismo, exotismo, déficit, respeito, integração são alguns exemplos de expressões que devem ser problematizadas quando utilizadas para pensar a inclusão (Lopes & Fabris, 2017, p. 107)

As ações normalizadoras não são advindas somente da escola, mas da sociedade, juntamente com outros mecanismos disciplinadores que buscam conduzir os sujeitos. Desse modo, passaram a imprimir um olhar para a pessoa com deficiência como alguém a ser corrigido ou normalizado por norma baseada em média. Nesse contexto, a responsabilidade pela referida correção recai sobre as instituições, a exemplo da escola, da medicina, etc.

No Brasil, a década de 1990 foi o marco do imperativo da inclusão das pessoas com deficiência no ensino regular, a partir de tratativas internacionais. Países como o Brasil passaram a ser orientados por declarações mundiais, como a Declaração Mundial de Educação para Todos, de 1990, e a Declaração de Salamanca, de 1994, que resultou da Conferência Mundial de Educação Especial. Esta visou respeitar as diferenças e características do indivíduo em relação ao processo pedagógico.

Essas declarações tiveram grande repercussão no Brasil, no início do século XXI, inclusive no discurso oficial, que se apoiou em consulta à comunidade. “Aponta-se a inclusão como um avanço em relação à integração, porquanto implica uma reestruturação do sistema comum de ensino” (Jannuzzi, 2012, p. 187). Os discursos imperativos da inclusão que vêm no bojo das grandes declarações, assim como dos regulamentos legais e documentos orientadores, acabam por constituir processos normalizadores que, embora se narrem como abertos à diferença, instituem regimes semelhantes para todos os sistemas de ensino, atravessando, inclusive, os campos de saberes. Dito de outro modo, não se questionam os discursos de inclusão, pois eles existem para o ‘bem’ das pessoas com deficiência.

Em termos de política, muitos fatos causaram mudanças e avanços referentes à implementação da educação inclusiva, principalmente no que se refere à evolução das leis brasileiras. Nesse sentido, é importante delimitar a concepção acerca da inclusão escolar, não de maneira pragmática no sentido de ser a favor ou contra, tampouco no tom binário do dentro-fora ou na defesa de certas práticas em detrimento de outras, mas acentuando o sentido que foi constituindo essa concepção ao longo dos anos. Entende-se que tanto o ‘in’ de ‘inclusão’ quanto o ‘ex’ de ‘exclusão’ são construtos históricos forjados na própria constituição da anormalidade. Sob essa ótica, Veiga-Neto e Lopes (2011, p. 122-123) desafiam a repensar a inclusão enquanto propõem a necessidade de se estabelecer uma crítica que vá além de contra ou a favor, mas “[...] fazer uma crítica à inclusão - visando olhar outras coisas que ainda não olhamos e pensar coisas que ainda não pensamos sobre as práticas que a determinam e as políticas que a promovem - implica, entre outras coisas, ir contra a corrente dominante”.

Numa breve descrição dos principais conceitos, a partir dos quais o presente estudo se inspira, a noção de governamentalidade é entendida como uma forma de poder exercida por diferentes mecanismos do Estado, a exemplo das instituições de ensino, que visam à economia política e utilizam como táticas de governo os dispositivos de segurança. Foucault (2001) aponta que a arte de governar é a forma como a população é conduzida a fazer o que se deseja de maneira imperceptível.

A biopolítica é empregada numa aproximação com as políticas educacionais, como forma de gestão e regulação da vida, como um conjunto de mecanismos e procedimentos tecnológicos (que envolvem saber e poder) com o intuito de manter e ampliar uma relação de dominação da população em massa (Foucault, 1999). Assim, a biopolítica é relacionada às políticas direcionadas a múltiplas cabeças, pela ação do que Foucault (1999) chamou de biopoder, no contexto do avanço do capitalismo.

Para discutir sobre a inclusão na educação, é também pertinente a noção de in/exclusão, na relação com as práticas sociais, culturais e políticas, no Estado neoliberal. Compreende-se, a partir de Lopes, Lockmann, Hattge e Klaus (2010, p. 6, grifo das autoras), que “[...] qualquer sujeito, dentro do seu ‘nível de participação’, poderá, a todo o momento, estar incluído ou ser excluído de determinadas práticas, ações, espaços e políticas”. Nesse contexto, Saraiva e Lopes (2011, p. 19, grifo das autoras) corroboram essa ideia quando se busca “[...] não deixar ninguém fora do jogo e preparar organizações não governamentais para que recebam aqueles ‘excluídos’ de hoje, para serem reeducados e reconduzidos ao mercado”.

Do ponto de vista da gestão educacional, não se pode desconsiderar que esta compreende a organização da instituição, promovendo condições efetivas para garantir o avanço do processo de ensino aprendizagem. Todavia, buscamos uma aproximação com a noção de governamentalidade que, na inspiração em Michel Foucault (2001), é uma forma de gestão da vida e das condutas, da mesma forma como a gestão da in/exclusão com as práticas de governo da comunidade escolar.

Aquino (2017), ao analisar a educação no contexto do biopoder, compreende que a biopolítica, enquanto estratégia de governamento, possui um forte aliado nas práticas educacionais. Após essas considerações, afirma que “[...] o governamento biopolítico vale-se essencialmente de ações de cunho pedagógico - ou, para ser mais preciso, pedagogizante -, sem o qual seus intentos não se efetivariam” (Aquino, 2017, p. 55).

Essas noções contribuíram para constituir um olhar para o cenário pandêmico, especialmente para pensar como foram/estão in/excluídos os alunos com deficiência nas instituições escolares e de que forma seus gestores criaram alternativas para tais práticas.

Procedimentos metodológicos

O estudo empregou a abordagem qualitativa do tipo exploratória e descritiva, utilizando noções foucaultianas como ferramenta analítica. As informações obtidas pelas respostas dos gestores participantes foram relacionadas a um contexto discursivo que acaba por constituir saberes, significados e subjetividades. O conceito de discurso, no sentido dado por Foucault (1996), foi tomado como uma prática que age na construção social, constituindo e naturalizando visões de mundo das pessoas e de suas instituições. Segundo Foucault (1996), trata-se de um conjunto de dizeres que podem pertencer a campos de saberes diferentes, mas que seguem regras de funcionamento comuns.

Quanto à abordagem, a pesquisa qualitativa evidencia significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, na busca por uma maior incursão no contexto pesquisado, conhecendo processos e seus fenômenos não reduzidos à operacionalização de variáveis (Minayo, Deslandes, & Gomes, 1999). A pesquisa qualitativa busca entender um fenômeno específico com profundidade, trabalhando com descrições, comparações e interpretações. Assim, está mais preocupada com o nível de realidade que não pode ser quantificado do que com generalizações que se comprovam numericamente ou estatisticamente.

O cunho exploratório permitiu estimular os entrevistados a pensarem livremente sobre um tema, possibilitando, inclusive, emergirem aspectos subjetivos. Minayo et al. (1999, p. 54-55) afirma que “[...] na abordagem qualitativa não podemos pretender encontrar a verdade com o que é certo ou errado, ou seja, devemos ter como primeira preocupação à compreensão da lógica que permeia a prática que se dá na realidade”.

Os sujeitos da pesquisa são cinco gestores escolares e um coordenador pedagógico, e o instrumento utilizado foi um questionário semiestruturado, composto por 13 questões objetivas e dissertativas. Os gestores são vinculados a cinco escolas de Educação Básica da região Litoral Norte do Rio Grande do Sul. O convite foi feito para a equipe diretiva de doze escolas pertencentes às três redes de ensino (municipal, estadual e privada/comunitária) dos municípios da referida região (Capão da Canoa, Osório, Torres, Tramandaí). No entanto, mantiveram-se até o final da investigação gestores de cinco escolas, pertencentes a diferentes redes, nos municípios de Osório, Torres e Tramandaí. As escolas serão identificadas por letras, seguidas do município conforme especificado na Tabela 1: ‘A’ corresponde à rede municipal; ‘B’, à rede estadual; ‘C’, à rede privada/comunitária.

Tabela 1 Redes de ensino participantes e gestores. 

Municípios Rede municipal Rede estadual Rede privada/comunitária
Osório Escola A Osório (Gestor) Escola B Osório (Gestor) Escola C Osório (Gestor)
Torres - Escola B Torres (Gestor) -
Tramandaí - Escola B Tramandaí (Gestor e Coordenador) -

Fonte: As autoras (2022).

A Escola A, localizada no distrito de Atlântida Sul, foi fundada em 17 de abril de 1986, tendo como sua mantenedora a Prefeitura Municipal de Osório/RS. A escola atende a 310 alunos, matriculados desde a Educação Infantil, em turmas de pré-escola, até o 9º ano do Ensino Fundamental.

A Escola B Osório, localizada na zona urbana do município, foi fundada em 8 de maio de 1962, e sua mantenedora é a Secretaria Estadual de Educação. Atualmente, atende a 390 alunos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental.

A Escola B Torres, localizada no centro do município, foi fundada em 7 de julho de 1961, e sua mantenedora é a Secretaria Estadual de Educação. Atende a 992 alunos matriculados do 1º ao 9º ano, ofertando também a Educação de Jovens e Adultos (EJA) nos anos finais do Ensino Fundamental.

A Escola B Tramandaí, situada no centro do município, foi fundada em 11 de julho de 1962. Atualmente, a instituição atende a cerca de 1.200 estudantes, matriculados no Ensino Fundamental (1º ao 9º ano), no Ensino Médio, na Educação Profissional e na EJA. Sua mantenedora é a Secretaria Estadual de Educação.

A Escola C está localizada no centro urbano de Osório e se caracteriza como escola confessional. Foi fundada no ano de 1984 e atualmente atende a 689 estudantes matriculados em turmas de pré-escola, do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

As questões versaram sobre as propostas das escolas, os tipos de serviços de apoio que ofertam, recursos, materiais e articulações para acessibilidade, estratégias estruturais e pedagógicas para promover a educação inclusiva durante a pandemia, diretrizes para o ensino durante a pandemia, articulações com familiares e/ou responsáveis dos estudantes durante o isolamento social, práticas gestoras para as aulas durante a pandemia e no retorno das aulas presenciais.

A análise dos dados teve inspiração nos estudos foucaultianos, compreendendo que as práticas inclusivas se apresentam como uma das formas de regular sujeitos e controlar a população. No cruzamento das informações com o campo conceitual, foi possível identificar que as recorrências se apresentaram sob três principais enfoques: estratégias pedagógicas para inclusão no ensino remoto; alternativas digitais para o ensino remoto; práticas de gestão da educação no ensino remoto.

Exercício analítico: a educação inclusiva na pandemia

O primeiro enfoque da análise, ‘estratégias pedagógicas para inclusão no ensino remoto’, deixa evidente que os gestores das escolas demonstraram preocupação quanto à escolha das propostas e à disponibilidade de materiais e equipamentos, se estariam ou não coerentes com as especificidades dos estudantes com deficiência. Sobre as diretrizes, tem-se o exemplo a seguir:

No caso dos alunos dos anos finais os professores foram orientados durante as aulas remotas a fazerem projetos interdisciplinares, visando buscar além de aspectos cognitivos também manter o vínculo com a escola. No caso dos alunos dos anos iniciais, as professoras unidocentes já trabalham de forma globalizada, a supervisão sugeria atividades adequadas às necessidades específicas de cada aluno e também ao contexto da família (tempo disponível dos responsáveis para desenvolver as atividades remotas, condições econômicas, etc.) (Gestor Escola A Osório, 2022).

Durante a pandemia, o trabalho tanto de gestores quanto de docentes extrapolou os turnos de trabalho, pois muitas vezes a articulação com as famílias passou a se dar nos três turnos (Saraiva, Traversini, & Lockmann, 2020). Sobre o planejamento e a operacionalização das aulas, bem como dos atendimentos especializados, um dos gestores salienta:

As principais diretrizes para o planejamento das atividades para os estudantes com deficiência no ensino remoto são: - garantir que todas as aulas estejam disponíveis online; - oferecer suporte pedagógico personalizado; - adaptar as ferramentas utilizadas de acordo com a necessidade de cada aluno; - criar um ambiente virtual inclusivo e acolhedor (Coordenador Escola B Tramandaí, 2022).

A educação por meios remotos foi um grande desafio para escolas e docentes em geral. Saraiva et al. (2020, p. 12) identificaram que aspectos como “[...] insegurança, necessidade de adaptações rápidas, invasão da casa pelo trabalho e pela escola, ansiedade frente às condições sanitárias e econômicas [...]” são elementos que marcaram o cenário educacional na pandemia. Outras menções são destacadas como estratégias possíveis, por exemplo, o trabalho individualizado com cada estudante com deficiência, considerando as suas peculiaridades, o contexto familiar e o trabalho colaborativo entre professores da sala de aula comum e do AEE:

A orientação que temos e que trabalhamos é de que os estudantes especiais tenham os mesmos direitos que os estudantes de qualquer nível de ensino, com a mesma qualidade. O atendimento está diferenciado para cada estudante, onde se trabalha dentro de suas necessidades e potencialidades em relação ao grau de dificuldade e ao nível socioeconômico. Nesse momento as atividades foram planejadas juntamente com a professora da sala de recursos - AEE e os professores do ensino normal, visando atender a todos (Gestor Escola B Torres, 2022).

Acrescenta-se, também, a menção do currículo adaptado e as adequações curriculares que estabelecem uma possibilidade para atender às dificuldades de alunos com deficiência ou que apresentem dificuldades de aprendizagem, com o intuito de auxiliar na construção de conhecimento. Nesse sentido, o Artigo 59, Inciso I da LDBEN preconiza que os sistemas de ensino deverão assegurar “[...] currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades” (Lei no 9.394, 1996).

Os materiais foram desenvolvidos para cada indivíduo onde os estudantes que possuem acesso à plataforma, participam das aulas normalmente, juntamente com seus pares, onde os conteúdos são adaptados e os estudantes que não têm acesso, os conteúdos são impressos. Nossos estudantes possuem deficiência intelectual, síndrome de Down e autismo (Gestor Escola B Torres, 2022).

Ainda quanto às diretrizes para as aulas no período pandêmico, o gestor da Escola C Osório destaca o “[...] planejamento com currículo adaptado; aulas de reforço no contraturno, atividades diagnósticas quinzenais para acompanhamento” (Gestor Escola C Osório, 2022).

Aliadas à flexibilização e à adequação ao momento pandêmico, as práticas de governamento, na perspectiva de Foucault (2002), fazem-se presentes por meio de mecanismos para ‘ajustar o discente’, que funcionam nas instituições e, simultaneamente, nos operadores pedagógicos. Essa concepção pode ser reforçada na seguinte menção: “A avaliação é feita conforme a capacidade de cada estudante, onde observa-se sempre o acesso aos mesmos conteúdos, mas com as adaptações conforme as potencialidades e de fácil entendimento para que a família possa ajudá-los” (Gestor Escola A Osório, 2022).

Nota-se, por exemplo, que a referência aos estudantes considerados incluídos está no coletivo da turma. Historicamente, as instituições se utilizaram de testes, treinamentos de habilidades e avaliações das capacidades, valendo-se de parâmetros homogeneizadores. São práticas pautadas em um tipo de saber que, por vezes, permite rotular os alunos como ‘problemático’ ou ‘indisciplinado’, ou então um saber que o qualifica e, consequentemente, valoriza-o.

Sobre o enfoque ‘alternativas digitais para o ensino remoto’, o estudo mostra que houve a busca por aproximação da tecnologia com outros recursos para auxiliar no processo de aprendizagem. Nesse eixo, estão destacadas práticas que envolveram o contato entre as escolas e os estudantes, com seus meios e alternativas para as aulas durante a pandemia.

Ao mencionar os meios para concretizar as aulas, o gestor da Escola A Osório assinala ainda a preocupação em manter o vínculo com os alunos, destacando o envio de vídeos, o uso de plataforma educacional, encontros remotos e até o uso do aplicativo de WhatsApp pessoal, assim como outras redes sociais: “A maioria utilizava vídeos nas postagens na plataforma, também realizavam vídeo chamadas utilizando o aplicativo de WhatsApp, a fim principalmente de manter o vínculo com os alunos [...]” (Gestor Escola A Osório, 2022).

Já em Torres, observa-se também a busca pelo acolhimento e o atendimento às especificidades, destacando-se que alguns não tiveram acesso à internet; portanto, a alternativa foi buscar parceria com a família para alcançar materiais impressos. Nessa situação, a mediação ficava por conta da família.

Em parceria com a família, elaboramos as atividades, onde aqueles que têm acesso à internet participam das aulas online pela plataforma classroom, onde os estudantes especiais têm conteúdos de temas diferenciados, respeitando a sua caminhada. E aos estudantes que não tem acesso à internet, os conteúdos eram enviados impressos. A preocupação é ter acolhimento inclusivo em relação ao estudante e à família (Gestor Escola B Torres, 2022).

Na escola comunitária, também são citados meios utilizados, a exemplo de alternativas digitais e uso da internet, como plataforma, vídeos e atividades on-line, como jogos interativos. Segundo o gestor da escola privada/comunitária C de Osório:

Durante o período das aulas remotas, as avaliações para alunos PNE foram realizadas via plataforma e mediante propostas práticas, interagindo por postagens de vídeos ou fotos. Mediante resultados de jogos contextualizados aos conteúdos ou atividades orais via Zoom (Gestor Escola C Osório, 2022).

Sobre o uso de plataformas, o acesso não abrangeu todo o público de alunos. Estudos mostram que “[...] por mais que existam algumas escolas que consigam promover momentos de encontro digital, por meio do uso de diferentes plataformas, esse modelo é reservado a uma minoria” (Saraiva et al., 2020, p. 13).

Ainda quanto às alternativas, um dos representantes de escola traz a necessidade de profissional intérprete nas atividades remotas. “As atividades são adequadas às necessidades dos alunos, com a utilização de ferramentas e aplicativos para facilitar a aprendizagem destes alunos. Também possuímos intérpretes que atenderam os alunos através de vídeo aula e lives” (Gestor Escola B Osório, 2022).

Evidencia-se uma diversidade de meios, com maior ênfase nas ferramentas digitais, pela internet, via plataformas e rede social, mas também o contato direto com materiais físicos, em situações de falta de conectividade. Pelas colocações dos gestores, pode-se perceber que a inclusão no momento pandêmico suscitou diversos questionamentos e preocupações, razão pela qual se fez necessária a ponderação da realidade enfrentada em um momento tão peculiar, sem precedentes, bem como a análise das diversas situações dos estudantes.

Ao mencionar as alternativas encontradas pelas escolas para o ensino remoto e híbrido, além do desenvolvimento dos programas curriculares, há uma grande preocupação na avaliação da aprendizagem, com ferramentas remotas, pois a escola historicamente se pauta por uma média implícita no currículo, ainda que se perceba a tentativa de se considerar as peculiaridades individuais.

Ao mesmo tempo, há menções quanto ao exercício do acompanhamento individual. “Durante o período remoto se avaliou a devolutiva de atividades propostas dentro do interesse e possibilidades de cada um. As orientações eram dadas durante os encontros online” (Gestor Escola B Tramandaí, 2022). Nessa direção, o representante de outra escola assinala: “É importante que as orientações dadas pelos professores sejam adequadas as suas necessidades (disponibilizar material didático em formatos alternativos como livros). Que promovam atividades adaptadas ao nível da aprendizagem do aluno” (Gestor Escola B Torres, 2022). Ainda reforçando essa prática, o gestor aponta “[...] que a avaliação seja diferenciada, qualitativa e constante, considerando cada avanço do aluno e suas peculiaridades” (Gestor Escola B Osório, 2022).

Já sobre o enfoque ‘práticas de gestão da educação no ensino remoto’, evidenciou-se que, em linhas gerais, a implementação das práticas inclusivas durante a pandemia foi uma das maiores preocupações, tanto por parte dos docentes quanto dos gestores. É notória a correlação existente na nova configuração das aulas no modelo de ensino remoto, trazendo novas demandas para a articulação entre escola, educadores e família, pois as atividades foram desenvolvidas nos lares. Assim, outro desafio das instituições e dos docentes foi manter as famílias presentes nessa nova conjuntura educacional.

Algumas ações foram realizadas por parte da gestão escolar, no que diz respeito à adequação do calendário, das propostas curriculares e do formato das aulas. Sobre isso, um dos entrevistados enfatiza:

Durante as reuniões era discutido com os professores e todos contribuem com sugestões, não havia uma orientação de como fazer, mas sugestões conversadas entre o grupo. A maioria utilizava vídeos nas postagens na plataforma, também realizavam vídeo chamadas utilizando o aplicativo de WhatsApp, a fim principalmente de manter o vínculo com os alunos (Gestor Escola A Osório, 2022).

Nota-se que havia muitos elementos a considerar nessas discussões, de ordem estrutural, pedagógica, tecnológica, sanitária e, inclusive, das interações humanas. Outro gestor enfatiza tais problemáticas, dando destaque aos prejuízos emocionais:

Considero que o período foi extremamente delicado e certamente comprometedor. O trabalho da equipe pedagógica escolar, e agora faço ponderações, relativo à unidade escolar que gerencio, realizou um nobre trabalho em busca de metodologias diferenciadas e investimento na plataforma digital para acolhimento aos alunos de inclusão. A parceria das famílias e as atividades adaptadas propostas nos planejamentos contribuíram no papel de alcançar os alunos, contudo, e agora fecho os apontamentos peculiares, o contexto pandêmico de modo geral, trouxe muito prejuízo emocional e social. Estes fatores ainda trazem um desfecho pedagógico de busca a novas alternativas e possibilidades para alcançar o sucesso acadêmico, gradativo dos alunos (Gestor Escola C Osório, 2022).

Observou-se que as dificuldades eram complexas e que a gestão envolvia questões de cunho pedagógico, tecnológico, social, entre outros, para muito além do papel da escola.

As práticas inclusivas dependiam muito do acesso do aluno a tecnologia e da ajuda e incentivo das famílias. A partir de 2021, o aluno sem acesso à tecnologia e, portanto, sem encontros online para interação com colegas e professores teve a opção de retirar atividades impressas, mas, isso dependia da disponibilidade das famílias em ir até a escola retirar e devolver as atividades com os alunos (Gestor Escola A Osório, 2022).

O gestor da Escola B Osório, por sua vez, traz também as angústias em relação aos aspectos pedagógicos de adequação curricular e aos fatores externos estruturais, como internet, equipamentos e acompanhamento da família:

Acredito que foi o momento de grande aprendizado, mas também de muitas angústias e dificuldades, pois no remoto contamos com os fatores externos como a internet, as ferramentas digitais e a participação dos responsáveis, o que por muitas vezes fica aquém do necessário para avançar na aprendizagem (Gestor Escola B Osório, 2022).

Sobre os desafios do período, o gestor da escola de Tramandaí manifestou que “[...] implementar práticas inclusivas não é tarefa fácil, principalmente, no contexto atual da Pandemia” (Gestor Escola B Tramandaí, 2022). Contudo, há também a convicção de que, apesar das limitações do isolamento social, o atendimento a todos foi realizado de maneira satisfatória, como na expressão de outro gestor, que enfatiza ainda a necessidade da interação social.

Acredito que os alunos de inclusão foram atendidos satisfatoriamente dentro das limitações impostas pelo momento pandêmico e mais dependentes da atenção e acompanhamento de seus familiares. Assim como os demais alunos, os incluídos sentem a falta de convivência e interação social fazendo com que no retorno haja uma nova adaptação no ambiente escolar (Gestor Escola B Torres, 2022).

A interação social foi um fator de preocupação por parte dos gestores, tanto em relação à qualidade da aprendizagem quanto à socialização.

Os alunos com deficiência retornaram ao espaço escolar a partir do início do ano 2022. O retorno foi de extrema importância. O fator principal foi a interação social. Independente da faixa etária, a socialização contribui para o aprendizado. As aulas presenciais potencializam o aluno e oportuniza o professor na prática de qualidade de ensino, considerando na oportunidade que o aluno tem em apontar suas necessidades e dificuldades no processo ensino-aprendizagem, mediante, o acolhimento diário (Gestor Escola C Osório, 2022).

Apresentando outra problemática, o gestor da escola municipal de Osório traz a dificuldade de gerir recursos humanos para os atendimentos aos alunos, pela limitação de especialistas para o AEE. Esse profissional faz a ponte entre o aluno e o professor da sala de aula comum, permitindo trocas de experiências e articulações em relação às práticas pedagógicas, contribuindo, desse modo, para qualificar o processo de ensino e aprendizagem.

Um fato relevante que observei durante este período foi o quanto a estratégia adotada pela mantenedora prejudica o AEE da escola, pois as professoras especialistas são distribuídas utilizando o critério da demanda (alunos com diagnóstico estabelecido), logo estas professoras ficam pouco tempo na escola, desenvolvendo pouco vínculo com a comunidade escolar, o que neste momento foi fundamental para a mediação com as famílias para o desenvolvimento das atividades. A mantenedora não considera a busca ativa como um fator relevante, ou o atendimento de alunos sem laudo médico [...] (Gestor Escola A Osório, 2022).

Nas respostas sobre meios e alternativas para viabilizar a prática pedagógica para a inclusão escolar no ensino remoto, evidencia-se a preocupação com a avaliação, salientando-se o atendimento às especificidades de cada estudante. Um dos gestores entrevistados descreve que: “A avaliação é feita conforme a capacidade de cada estudante, onde observa-se sempre o acesso aos mesmos conteúdos, mas com as adaptações conforme as potencialidades e de fácil entendimento para que a família possa ajudá-los” (Gestor Escola B Torres, 2022).

As menções dos gestores não deixam dúvidas em relação à preocupação que os docentes tiveram sobre o enfrentamento à pandemia e sobre a gestão do campo pedagógico, além do desejo de manter todos os seus alunos presentes nas aulas on-line. Observou-se que as decisões foram tomadas com a participação da gestão e coordenação pedagógica das escolas, sob as diretrizes das mantenedoras. Logo, ao envolver os docentes, oportunizou-se um trabalho educacional colaborativo importante, também, para o pós-pandemia.

Por outro lado, percebe-se que, pelo impacto do momento em que foi declarada a pandemia, pela necessidade de tomar decisões de ordem estrutural, pedagógica e de gestão da educação como um todo, assim como pelo isolamento social, as propostas foram sendo cunhadas sem amplas discussões. O olhar para o campo da gestão escolar nos possibilita compreender como as instituições participantes implementaram práticas gestoras da educação inclusiva, constituindo novos formatos, com vistas à aprendizagem.

Todavia, há ainda muitas dúvidas quanto à natureza dessas adaptações e de seus desdobramentos pós-pandemia. Salientam-se ações para a articulação entre docentes da sala de aula comum e professores especialistas do AEE para promover estratégias pedagógicas inclusivas. Percebe-se também que as escolas realizavam tentativas para o cumprimento das aulas e do calendário, sem saber ao certo se a proposta seria efetivada.

Mediante as informações, são perceptíveis as tensões enfrentadas durante a pandemia da COVID-19 pelas instituições das três redes de ensino do Litoral Norte no que tange à garantia do direito à educação, como previsto nas políticas educacionais e garantido na legislação. Em contrapartida, a análise propõe problematizar o currículo referenciado nas normalidades, a partir das quais os estudantes com deficiência são comparados. Os tensionamentos presentes nas experiências das escolas corroboram que o ser humano é constituído por experiências, as quais são singulares a cada sujeito. Da mesma forma, concordando com Sardagna (2013), as narrativas contribuem para essa formação, pois categorizam, hierarquizam e classificam sujeitos.

As práticas de gestão foram relacionadas à condução das práticas de in/exclusão social e escolar, as quais, no contexto da governamentalidade, visam atingir o maior número de sujeitos. As instituições escolares são também meios para conduzir e controlar o aluno pela avaliação (considerando sua média). Esse aluno com alguma necessidade específica é alvo de uma vigilância constante na escola, a fim de saber em que nível da média se encontra, que aptidões apresenta, que atendimentos necessita, que práticas normalizadoras são exigidas e onde pode ser posicionado dentro do bojo dos serviços de apoio no contexto da escola. É nesse contexto que se operam também as práticas de in/exclusão, na perspectiva discutida por Lopes e Fabris (2017), de que cada um, dentro do seu ‘nível de participação’, poderá ser incluído ou excluído, visto que ambas as posições são invenções advindas das práticas normalizadoras da sociedade.

Considerações finais

O estudo aponta as tensões enfrentadas durante o período da pandemia, o que exigiu uma adaptação repentina de todo o corpo social. Os principais obstáculos enfrentados pelos gestores escolares participantes foram os seguintes: a falta de acessibilidade tecnológica pelos alunos, no caso de equipamentos e internet; a falta de assistência familiar durante as aulas on-line; dificuldades no uso das plataformas digitais disponibilizadas para dar continuidade ao ensino e para manter o vínculo institucional; dificuldades na organização das propostas pelo isolamento social; tensionamentos na gestão de recursos humanos, em especial, quanto à demanda de especialistas para acompanhar o processo de aprendizagem de estudantes com deficiência.

Evidenciou-se que, nos contextos das escolas participantes, houve a constante busca por concretizar a educação inclusiva, com foco na aprendizagem e na socialização. Compreendendo a escola como ambiente social que constitui sujeitos e que toma a diferença como parte da sua constituição, a ideia de educar a todos implica assumir que não apenas o aluno com deficiência precisa de um olhar sensível, pois aprende em outro ritmo, mas que todos os alunos têm suas especificidades.

Em síntese, pode-se afirmar que as práticas inclusivas se efetivaram parcialmente durante o período da pandemia, em virtude de entraves postos pelo distanciamento social. Houve tentativas por meio de estratégias do ensino remoto, com a utilização de ferramentas digitais e da internet; todavia, não houve alcance à totalidade dos estudantes.

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6Nota: As autoras foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

8Rodadas de avaliação: R1: quatro convites ; três pareceres recebidos

9Revisor de normalização: Adriana Curti Cantadori de Camargo Vanêssa Vianna Doveinis

Recebido: 17 de Novembro de 2022; Aceito: 26 de Janeiro de 2023; Publicado: 06 de Dezembro de 2024

* Autor para correspondência. E-mail: helena-sardagna@uergs.edu.br

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Andréa Souza Teixeira Gonçalves: Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Licenciada em Pedagoga pela mesma Universidade. Integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Processos Inclusivos (GPEPI) da UERGS; Professora de Educação Infantil em Porto Alegre. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1288-6286 E-mail: andrea-goncalves@uergs.edu.br

Helena Venites Sardagna: Doutora em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Mestre em Educação pelo mesmo Programa; Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do curso de Pedagogia na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa Educação e Processos Inclusivos (GPEPI/UERGS). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6175-9542 E-mail: helena-sardagna@uergs.edu.br

Editor-Associado responsável

: Solange Franci Raimundo Yaegashi (UEM) ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7666-7253 E-mail: sfryaegashi@uem.br

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