Introdução
A interdisciplinaridade é uma noção e uma operação multifacetada e contingente, e o interesse em pesquisá-la é global, alimentando debates em diferentes comunidades epistêmicas (Huutoniemi, Klein, Bruun, & Hukkinen, 2010). No Brasil, a problematização da interdisciplinaridade incorpora importantes contribuições. Entre elas, Ivani Fazenda (2017, p. 24) observa que falar de interdisciplinaridade significa estabelecer o debate no âmbito da "[...] impossibilidade de encontrar-se uma linguagem única para a explicação do conhecimento [...]", em projetos que partem da " [...] dúvida, da pergunta, das indagações, do diálogo, da troca, da reciprocidade" (Fazenda, 2017, p. 92). Em sentido similar, Hilton Jupiassu (2006) refere-se à interdisciplinaridade, nesse sentido, como um ‘espírito’ investigativo que renuncia à “[...] manipulação totalitária do discurso da disciplina” (Jupiassu, 2006, p. 2). Já Maria Cândida Moraes (2010) posiciona a interdisciplinaridade no que qualifica como abertura de "[...] nossas gaiolas epistemológicas [...]", no contexto de uma crise paradigmática que envolve priorizar novas relações, interações, emergências e redes do conhecimento.
Essas contribuições são cruciais quando se presta atenção no exercício de institucionalização da interdisciplinaridade no Brasil da década de 2000. Foi nesse período que a interdisciplinaridade tomou a forma de um programa nacional de apoio e fomento à cursos de pós-graduação stricto sensu (Doutorados e Mestrados) por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), autarquia que aprova, acompanha e avalia o sistema de pós-graduação no país. A partir daí, começaram a ser estruturados programas de pós-graduação interdisciplinares como projetos de longo prazo. De imediato, o desafio que passou a ser desenhado institucionalmente foi o de promover pesquisas interdisciplinares nos níveis de mestrado e doutorado a partir da superação de tradições profundamente disciplinares. Olívio Alberto Teixeira (2004) pontuou, à época, problemas e desafios da interdisciplinaridade em sentido nacional, a saber: a) a organização e a coordenação de operações de pesquisa e sua institucionalização; b) a comunicação e a linguagem entre pesquisadores(as); c) problemas de ordem científica e epistemológica, especialmente sobre a construção de objetos científicos interdisciplinares, e d) a validação científica de pesquisas interdisciplinares (Teixeira, 2004).
Na medida em que os programas interdisciplinares de pós-graduação foram conseguindo se firmar no cenário institucional da ciência brasileira, a discussão dos quatro eixos de problemas e desafios propostos por Teixeira (2004) ainda permanece. Por um lado, ela se liga a questões epistemológicas globais sobre a interdisciplinaridade e, por outro, busca avaliar o quão interdisciplinar é a pesquisa realizada em programas interdisciplinares (em outros termos, até que ponto é possível dizer que uma pesquisa que se denomina interdisciplinar produz resultados interdisciplinares? Que efeitos as representações organizacionais e institucionais da interdisciplinaridade exercem sobre investigações no devir da interdisciplinaridade? Quão vantajoso é o rótulo de ‘interdisciplinar’ a uma pesquisa em suas dimensões científicas e políticas?).
Neste artigo, buscamos pontuar o status da interdisciplinaridade no âmbito de investigações de pós-graduação com o interesse de perceber de que interdisciplinaridade se fala e que interdisciplinaridades possíveis são operadas no âmbito institucional, no processo de produção do conhecimento e na tessitura de textos de defesa. Para isso, utilizamos um corpus de 105 dissertações de mestrado defendidas entre 2015 e 2018 no âmbito do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário, da Universidade Estadual do Centro-Oeste, Paraná (PPGDC-Unicentro).
Consideramos que o cenário de programa emergente como o então PPGDC que, em 2018, completava cinco anos de existência, pode constituir um locus microscópico de reflexão sobre as controvérsias que acontecem na constituição própria de programas interdisciplinares e institucionalizados de pesquisa pós-graduada no Brasil: por um lado, o desenvolvimento comunitário - área de concentração - oferece uma agenda de temas, problemas e práticas que emergem graças a uma interdisciplinaridade pretensamente instrumentalizada (apaziguadora das disciplinas, ao mesmo que apaziguada por elas) e, por outro, o estatuto interdisciplinar (aberto, fluido e conflitivo) depende, para ser transformado em abordagem metodológica, da estabilidade oferecida pela área de concentração que dela se apropria e que buscará, ali, respostas disciplinares para seus problemas.
A reflexão sobre corpus acerca do estatuto da interdisciplinaridade na construção das investigações entre 2013 e 2018 (defendidas entre 2015 e 2018) fornece elementos de visualização das controvérsias científicas, técnicas e institucionais constituídas nas teias da interdisciplinaridade. Ela também permite delinear as dependências epistêmicas entre disciplinaridade e interdisciplinaridade entre áreas de um mesmo campo de conhecimento ou entre campos. A provocação dessas questões no âmbito de um programa de pós-graduação pode trazer à tona não a peculiaridade, mas a regularidade de um dilema que habita programas ou iniciativas interdisciplinares institucionalizadas: o da necessidade de se produzir conhecimento científico válido e validado (com reconhecibilidade, refutabilidade e prestígio de pares) a partir da negociação entre a estabilidade disciplinar e a instabilidade teórico-metodológica da interdisciplinaridade. Assim, o objetivo deste artigo é, a partir da leitura da produção científica de dissertações de um programa de pós-graduação stricto sensu interdisciplinar, compreender micro historicamente o estatuto da interdisciplinaridade e o binômio disciplinaridade/interdisciplinaridade na perspectiva da reflexão sobre a institucionalização da própria interdisciplinaridade. Discutimos tal produção buscando mapear o estatuto da interdisciplinaridade na formulação textual, em termos de apropriações, problemas, oportunidades e usos.
Partimos da ideia de que as dissertações produzidas no âmbito do PPGDC são marcadas por uma intencionalidade institucional de interdisciplinaridade. Assim, a própria nomeação do programa carrega a verbalização registrada da interdisciplinaridade como ponto de articulação de pesquisas sobre a área de concentração do programa em foco. Nesse sentido, consideramos a interdisciplinaridade também sob a ótica de uma virada reflexiva operada nas Humanidades e nas Ciências Sociais (Aurell, 2013), que tem servido para a construção de críticas internas dos campos científicos contemporâneos a partir da consciência de si, considerando-se a sofisticação e a fragmentação do próprio conhecimento entre o final do século XX e início do século XXI. Ler esses trabalhos dissertativos, assim, significa considerá-los numa dimensão eminentemente científica de um lado (os textos estão discutindo temas particulares, ligados aos interesses originais de seus/suas autores/as), mas também articulados a linhas institucionalizadas de pesquisa, laboratórios científicos, interesses difusos de orientadores e orientadoras, expectativas quanto ao futuro profissional de quem escreve. Como estamos preocupados com o mapeamento da circulação da interdisciplinaridade nesses textos, que constituem a materialidade das opções institucionalmente construídas no PPGDC, consideramos as dissertações como documentos que precisam ser cotejados com outras classes de documentos, de ordem científica e institucional. Como documentos históricos do processo de construção do conhecimento, eles cobrem uma trajetória intelectual, mas também representam narrativas de experiência acadêmica, todas historicamente contingentes.
O artigo está dividido em duas partes. Na primeira, discutimos a interdisciplinaridade como campo discursivo heterogêneo e sua apropriação institucional no âmbito das políticas de pós-graduação recentemente implantadas no Brasil. Depois, trabalhamos com a constituição de novos programas depois de 2010, considerando o PPGDC. Em seguida, debruçamo-nos sobre as dissertações produzidas no PPGDC no período proposto, considerando a construção desses documentos da experiência científica. Argumentamos que é impossível falar de estatuto da interdisciplinaridade nessa produção científica sem considerar o campo da interdisciplinaridade como campo de disputa conceitual, institucional, epistemológico e político numa ciência em construção.
Interdisciplinaridade na pós-graduação brasileira
No Brasil, a Capes coordena o sistema brasileiro de pós-graduação, também financia grande parte do sistema com bolsas, grants e infraestrutura. Propostas de programas de pós-graduação são submetidas a áreas de conhecimento pré-estabelecidas, nas quais atuam como pareceristas autoridades nacionais em cada campo de conhecimento. Na CAPES, os programas de pós-graduação interdisciplinares tornaram-se oficialmente reconhecidos a partir de 1999, com a criação da então ‘Área Multidisciplinar’, renomeada para ‘Área Interdisciplinar’ em 2008 (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2013).
Na época, várias novas propostas de criação de programas de pós-graduação não puderam ser analisadas do ponto de vista monodisciplinar, e as comissões sugeriram a constituição de uma área interdisciplinar capaz de julgar as propostas. A Capes constituiu, então, a Comissão de Cursos Multidisciplinares, que passaria a ser incubadora desses novos cursos (Wasserman, 2003).
A proposição de cursos interdisciplinares no final da década de 1990 acompanha o desenvolvimento da discussão em torno da interdisciplinaridade na educação brasileira, que já havia experimentado alguns cursos isolados de pós-graduação em instituições como a Universidade de São Paulo (USP). Alguns eventos tiveram impacto na constituição de cursos de pós-graduação interdisciplinares naquele momento, tais como a criação do laboratório Nacional de Computação Científica (1998), que reuniu pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Museu Paraense Emílio Goeldi. No mesmo ano, foi publicado o Manifesto de Angra em Defesa da Universidade Pública, que criticava a guinada neoliberal em torno das políticas de educação no Brasil. O Manifesto desenhava a interdisciplinaridade em meio à discussão de novos paradigmas curriculares, voltados a uma formação ampla, sólida, de compromisso intelectual (Academia Brasileira de Ciências [ABC], 2004).
A criação da Área Multidisciplinar inaugura o segundo momento da institucionalização da interdisciplinaridade da educação superior brasileira, conforme pontuam Elvio Pereira e Elimar do Nascimento (2016). Nessa segunda fase da interdisciplinaridade no Brasil, que vai até 2007, o país assiste ao crescimento, ao reconhecimento e a institucionalização de práticas e experiências interdisciplinares, com apoio da CAPES. No período, o sistema nacional de pós-graduação expande cursos interdisciplinares de 46 programas em 1999 para 228 em 2007 (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2009).
Entre 1999 e 2007, observa-se um processo de acomodação e de construção social da interdisciplinaridade no ambiente institucional da pós-graduação com divergências e desafios para a própria Comissão de Cursos Multidisciplinares estabelecida pela Capes. De acordo com Julio Wasserman (2003), os primeiros anos de construção da política nacional de pós-graduação interdisciplinar são ocupados por divergências resultantes da “[...] incompleta compreensão do processo interdisciplinar por parte de alguns cursos e por falhas na construção da filosofia da comissão, que abriga cursos multidisciplinares que deveriam ser agregados em áreas monodisciplinares” (Wasserman, 2003, p. 116).
A então ‘Área Multidisciplinar’ da Capes entendia interdisciplinaridade como exercício de interação entre docentes obrigatoriamente oriundos de diferentes áreas do conhecimento com objetivos comuns. No debate em torno da própria designação oficial da área, Wasserman lembra que a maioria dos representantes de 105 cursos que estavam compondo a comissão em 1999 era contrária, ainda em 2003, à inserção do termo ‘interdisciplinar’ na comissão. Parte do argumento para essa posição era exposta pelo então vice-coordenador da área, Claudio Habert, que observava que “[...] embora os objetivos e temas devam ser interdisciplinares e específicos, as metodologias devem ser tradicionais, como uma maneira de agregar credibilidade ao trabalho. Caso contrário a ciência se transforma em superstição” (Wasserman, 2003, p. 117).
Como a própria comissão precisava entender melhor o que é interdisciplinaridade, a expansão de programas fazia com que a Capes fosse promovendo seminários de articulação e reelaboração da filosofia institucional em torno da interdisciplinaridade, aprovando novos programas interdisciplinares, ao mesmo tempo em que construindo perspectivas de avaliação sobre eles.
Uma das áreas interdisciplinares que foi construindo participação significativa na consolidação da abordagem interdisciplinar na pós-graduação brasileira foi a de Estudos Ambientais, que veio a inaugurar o que Pereira e Nascimento (2016) consideram como a terceira fase da interdisciplinaridade, iniciada entre 2008 e 2009 até 2011, quando se consolidam programas de pós-graduação.
Em 2009, o ‘Documento de Área’ da Capes já promovia uma avaliação desse processo de expansão dos programas interdisciplinares. Arlindo Philippi Junior e Pedro Geraldo Pascutti, então coordenador e vice-coordenador de área na Capes, observavam que, “[...] ao longo do tempo vem ocorrendo o amadurecimento nos procedimentos e instrumentos de avaliação dos programas de pós-graduação interdisciplinares [...]" (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2009, p. 1) e que os cursos desempenhavam uma dupla função à época: enquanto induziam áreas inovadoras, abrigavam propostas de novos cursos de universidades mais jovens e distantes com estrutura de pós-graduação em fase de formação e com dificuldades de constituir densidade docente. A organização interna da área na Capes foi estabelecida em 2006 com câmaras temáticas: I - Meio Ambiente & Agrárias; II - Sociais e Humanidades; III - Engenharia, Tecnologia e Gestão, e IV - Saúde & Biológicas.
O documento delineava a interdisciplinaridade como desafio para o avanço da ciência e da tecnologia, tomando o cuidado de construir, antecipadamente, a noção de multidisciplinaridade: “Entende-se por multidisciplinar o estudo que agrega diferentes áreas do conhecimento em torno de um ou mais temas, no qual cada área ainda preserva sua metodologia e independência" (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2009, p. 6). Para a Capes, então,
[...] entende-se por interdisciplinaridade a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento, não pertencentes à mesma classe, que contribua para o avanço das fronteiras da ciência e da tecnologia, transfira métodos de uma área para outra, gerando novos conhecimentos ou disciplinas e faça surgir um novo profissional com um perfil distinto dos existentes, com formação básica sólida e integradora (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2009, p. 6).
A partir da delimitação desenhada pela Capes, o órgão expunha os objetivos esperados de um programa de pós-graduação interdisciplinar, primando pela “[...] geração de conhecimento e qualidade de recursos humanos formados, seja maior que a soma das contribuições individuais das partes envolvidas” (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2009, p. 6). Embora esse desejo institucional fosse bastante amplo, Philippi Junior e Pascutti (2009) ressaltam que os desafios desses programas eram: a) Promover a abertura para o enfrentamento de novas perspectivas teórico-metodológicas de pesquisa, ensino e inovação; b) Atender aos desafios epistemológicos que a inovação teórica e metodológica coloca; c) Promover gradativamente a incorporação de metodologias interdisciplinares nos projetos de pesquisa docentes e discentes; d) Aprofundar as características definidoras dos conceitos de pluri, multi e interdisciplinaridade, e e) Identificar canais para a intensificação do diálogo inter e intra câmaras temáticas da área interdisciplinar. É importante notar que, em 2009, o Brasil contava com 248 programas de pós-graduação interdisciplinares, e outros seis programas já estavam aprovados para iniciar em 2010.
O período mais recente e ainda em curso no Brasil começa em 2011, quando a interdisciplinaridade chega aos cursos de graduação (Pereira & Nascimento, 2016). Em 2013, 18 universidades federais já ofereciam bacharelados interdisciplinares em 4 grandes áreas do conhecimento: humanidades, artes, saúde e ciência e tecnologia (Pereira & Nascimento, 2016).
Ao longo desse período, a Capes alterou as câmaras de distribuição de programas de pós-graduação, desmembrando Agrárias e Ambientais e constituindo uma nova área, Ciências Ambientais. A câmara I passou a ser Desenvolvimento e Políticas Públicas, a II, Sociais e Humanidades, a III Engenharia, Tecnologia e Gestão, IV, Saúde e Biológicas (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2013). A reestruturação é um processo contínuo, porque acompanha a criação de novas áreas que, às vezes, acabam absorvendo programas que já existem. Na avaliação de 2013, a Capes salientava a existência de 297 programas interdisciplinares no Brasil, estando assim distribuídos: 21,9% em Desenvolvimento e Políticas Públicas; 30% em Sociais e Humanidades; 23,6% em Saúde e Biológicas e 24,5% em Engenharia, Tecnologia e Gestão (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2013). A interdisciplinaridade continuava a despertar a necessidade de delimitação, e a Capes observava, no Documento de Área 2013, que a noção dizia respeito a “[...] novas formas de produção de conhecimento e formação de recursos humanos que assumam como objeto de investigação fenômenos que se colocam entre fronteiras disciplinares” (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2013, p. 11). E continua: “[...] necessidade de incorporação de uma racionalidade mais ampla” (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior [Capes], 2013, p. 11).
A expansão dos cursos de pós-graduação no Brasil, até esse período, apresenta-se forte e continuada desde 2000, sem muitas tensões aparentes entre as proposições disciplinares e interdisciplinares, na medida em que essa tensão ficava enfraquecida em função do investimento em ambas as modalidades de programas de pós-graduação (Lima & Cortes, 2013).
É nesse contexto que a Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) propõe à Capes o PPGDC, em 2012. O projeto nasceu na convergência entre Humanidades e Saúde, com docentes dos campos de História, Psicologia, Ciências Contábeis, Fonoaudiologia, Educação, Educação Física, Farmácia, Nutrição e Medicina. O programa foi estruturado com uma área de concentração chama ‘Desenvolvimento Comunitário’, e propondo três linhas de investigação: com três linhas de pesquisa: a) Cultura, formação humana e desenvolvimento comunitário, destinada a pesquisas ligadas aos Aspectos culturais, suas relações com a formação humana e as práticas comunitárias, englobando representações sociais, relações de poder e as dimensões biopolíticas dos indivíduos em sua comunidade; b) Processos de saúde e desenvolvimento comunitário, ligada a Práticas e saberes dos processos de saúde no desenvolvimento humano, em suas relações com instituições, família e comunidade. Ações interdisciplinares nas mais diversas modalidades de assistência e cuidado; c) Ambientes, políticas públicas e desenvolvimento comunitário, ligada a ambientes e suas implicações para o desenvolvimento humano. Relação entre os ambientes e práticas sociais em contextos educacionais, ambientais, de trabalho, de políticas públicas e de saúde coletiva, discutindo as aproximações e conflitos entre diferentes espaços nos quais o indivíduo participa.
A proposta teve alterações ao longo de sua trajetória, e foi aceita em 2013, já com a possibilidade de receber estudantes. A versão final da proposta passou a incorporar duas linhas de pesquisa: Linha de pesquisa 1 - Cultura, práticas sociais, formação humana e desenvolvimento comunitário. Descrição: Saberes e práticas sociais, culturais, educacionais, ambientais e suas relações com a formação humana, englobando subjetividades no contexto comunitário. Linha de pesquisa 2 - Processos do desenvolvimento humano nos contextos comunitários. Descrição: Saberes e práticas dos processos do desenvolvimento humano e as dimensões institucionais, organizacionais, de saúde, de trabalho e de políticas públicas em suas relações com a comunidade.
De 2013 a 2017 o programa permaneceu ofertando curso de Mestrado, quando, por ter avaliação favorável, pode propor um curso de Doutorado, que foi aprovado e começou suas atividades em 2019. Na primeira fase do programa, quando ofertava apenas curso de mestrado, foram produzidas 105 dissertações.
A perspectiva do programa tem sido, desde a primeira fase em que apresentava apenas curso de mestrado, aproximar os campos de conhecimento da saúde e das humanidades, mas é importante notar ainda na própria constituição filosófica do curso uma hierarquia, na medida em que se afirma que a interdisciplinaridade se apresenta no sentido de ‘ir além’ da saúde, aliando outros conhecimentos a ela para interpretar fenômenos (APCN-PPGDC-Unicentro, 2017). Os trabalhos de investigação conduzidos demonstram a heterogeneidade interpretativa da interdisciplinaridade e, nesse sentido, permitem, em nível local, percebermos as dinâmicas que acontecem quando da formulação de políticas científicas e de formação acadêmica, mas especialmente os níveis e os sentidos da apropriação de linguagens, perspectivas ou abordagens científicas.
Interdisciplinaridade como campo discursivo heterogêneo
Ao discutir a interdisciplinaridade como situação epistêmica, Julie Klein (2000) afirma que a sua emergência, ao longo do século XX, está ligada à conformação do estatuto contemporâneo do conhecimento no embate entre uma ciência normal, hierárquica, rígida e elitista e uma outra, pós-normal, de caráter democrático e participativo. O debate do tema aglutina forças como o mérito da razão prática e a defesa da verdade universal, a relevância e a excelência, ou ainda a matematização da linguagem científica. A autora observa, também, que a interdisciplinaridade é resultado de oportunismo na produção de conhecimento, que acontece de duas formas: quando cientistas buscam conhecimento e recursos já existentes para conseguir produzir outros novos ou quando usuários do conhecimento (como política e indústria) cercam as oportunidades para adquirir conhecimento injetando recursos para obter soluções a problemas particulares. No primeiro caso, a interdisciplinaridade é a recombinação de especialidades já existentes. No segundo, é um caminho para objetivos não científicos do conhecimento.
Essas tensões entre conhecimentos e posições epistemológicas com relação à interdisciplinaridade tem sido sistematicamente pensada em produção recente. Peter Weingart e Nico Stehr (2000) compilaram a discussão sobre interdisciplinaridade no limiar do século XXI em obra que se preocupou, ao mesmo tempo, em apresentar a discussão histórica e contemporânea do tema. A historiadora Julie Klein (2000), uma das principais autoridades globais no assunto, abriu a coletânea dando espaço para o que chamou de vocabulário da ciência interdisciplinar.
Klein (2000) abria seu capítulo chamando atenção para a relevância do debate sobre interdisciplinaridade, já estabelecida na metade do século XX, especialmente consolidado pelo que chamou de ‘novo contrato’ entre governos e ciência no início da Guerra Fria, que demandou novas estruturas organizacionais, tais como escritórios de transferência de tecnologia, consórcios, pesquisa de contrato e empresas (Klein, 2000). Essa perspectiva da metade do século XX ampliou a importância de uma ciência voltada à resolução de problemas, de caráter instrumental e não necessariamente interdisciplinar. Ao historiar o debate em torno da interdisciplinaridade na segunda metade do século XX, ressalta positivamente a padronização das relações disciplinares nessa postura científica, a saber: a) o desenvolvimento de ligações usando a perspectiva de uma disciplina para modificar a perspectiva de outra; b) o reconhecimento de novos níveis organizacionais da ciência; c) o uso de técnicas de pesquisa de uma área para elaboração de modelos teóricos em outra; e) o desenvolvimento de um novo escopo teórico para reconectar a pesquisa em domínios separados como tentativa de integrá-los (Klein, 2000).
Esse debate proposto por Klein (2000) leva em consideração as múltiplas facetas da interdisciplinaridade, tais como a adequação de metáforas espaciais na constituição desses saberes (fronteiras entre áreas), orgânicas (intersecções) e hibridismos (zonas de negociação entre áreas). Além disso, salienta os modos pelos quais a resolução de problemas de investigação é proposta, considerando uma tipologia desses problemas, que abriga os de primeiro tipo (problemas intelectuais numa disciplina tradicional), de segundo tipo (problemas intelectuais e multidisciplinares, mas que não podem ser resolvidos em apenas um campo) e de terceiro tipo (problemas multidisciplinares que precisam solução conjunta e demandam políticas públicas) (Klein, 2000).
No diálogo desenhado ao longo do século XX, a interdisciplinaridade, então, acaba se tornando um discurso paradoxal, no qual disciplinas são pejorativizadas devido ao rigor porque seriam propriedades privadas da ciência, enquanto que a inovação seria a saída (Weingart & Stehr, 2000, p. 25). Falar de interdisciplinaridade implicaria falar de novas organizações do trabalho científico. Nesse sentido, Weingart observa, assim como Klein (2000), que considerar atividades interdisciplinares não significa apenas tecer críticas à disciplinaridade, às fronteiras estabelecidas entre campos de conhecimento, uma vez que essas espacialidades não sobrevivem.
Um olhar mais atento à construção da interdisciplinaridade, proposto por Potthast (2010) sugere, contudo, que a estabilidade pretendida pelas disciplinas é irrompida pela própria disciplinaridade, na medida em que os campos de conhecimento têm suas próprias divisões internas (Potthast, 2010). Osborne (2011), ao dar continuidade na discussão, pontua que as fronteiras externas dos campos de conhecimento também apresentam porosidade. Nos movimentos de constituição dos saberes disciplinares, nesse sentido, cruzar fronteiras é um elemento intrínseco à formação das disciplinas, ao mesmo tempo que constituem inovação epistêmica, já que critérios demarcatórios de disciplinas (tais como problemas, materiais, métodos, teorias e conceitos) também conectam diferentes práticas disciplinares.
Joe Moran (2002) observa, nesse sentido, que a crítica da disciplinaridade das disciplinas científicas pertence às próprias disciplinas (Moran, 2002) e que esse nível superficial de leitura reside nas disputas em torno do prefixo ‘inter’, que carrega ambiguidades. Apesar de forjar conexões, também permite a construção de espaços não disciplinados e não disciplinares na ciência. Nesse sentido, Moran (2002) considera que as ambiguidades são oportunas, porque permitem a produção de novas formas de conhecimento. Julie Klein (2005) também têm discutido o problema da institucionalização da interdisciplinaridade nos níveis do ensino e da pesquisa em âmbito universitário nos EUA.
Klein (2010) retoma o debate em torno da interdisciplinaridade, expondo os argumentos em favor dessa abordagem, considerando a transição entre uma imagem de estrutura linear de conhecimento que foi substituída pelo cenário de ‘rede’ ou de ‘teia’, com o objetivo de transpor a ideia de fragmentação e segmentação por outra mais vívida de conectividade, integração, ligação e agrupamento. Esse deslocamento reforçou, por conseguinte, imagens de relevância, aplicabilidade e explanação, embora a organização da interdisciplinaridade aconteça de maneiras diferentes em cada campo de conhecimento (Klein, 2010, p. 5). A autora aproveitou para discutir os condicionantes da interdisciplinaridade a partir da perspectiva dos EUA, pontuando, nesse sentido, cinco deles, a saber: 1) a complexidade inerente da natureza e da sociedade; 2) o desejo de explorar problemas e questões que não estão confinadas a uma única disciplina; 3) a necessidade de resolver problemas societais e 4) o poder das novas tecnologias (Klein, 2010). Klein (2010) pontuou, assim, métodos disciplinares que foram sendo popularizados em diversos campos, como é o caso da história oral, da bioquímica, das ciências cognitivas, da estatística e da econometria. Outra emergência é especialmente enfatizada: novas comunidades de práticas de pesquisa, em parte devido ao processo de ampliação e encontros de campos de trabalho, que tem formado, inclusive, uma zona pidgin de comunicação científica, que é uma nova linguagem da subcultura científica (Klein, 2010).
As observações de Klein (2010), nesse sentido, permitem considerar o amadurecimento da discussão epistemológica sobre interdisciplinaridade e se encontram com o que Andrew Barry e Georgina Born (2013), chamam de duas inflexões discursivas contemporâneas sobre a interdisciplinaridade. A primeira afirma que ela oferece novas técnicas ou práticas de conhecimento para a sociedade e a segunda argumenta que ela é capaz de forjar melhores relações de proximidade entre pesquisa científica e inovação. Barry e Born (2013) enfatizam que, na discussão sobre interdisciplinaridade, é preciso evitar entendê-la como novidade, bem como considerá-la apenas do ponto de vista de políticas institucionais no campo científico. São justamente essas duas precauções que, quando não tomadas, geram polarização baseada em julgamentos superficiais sobre o status criativo ou repressivo de um determinado campo de conhecimento (Barry & Born, 2013). Nesse sentido, os autores sugerem modos de interdisciplinaridade, tais como o de síntese integrativa, o de subordinação (que envolve hierarquizações do trabalho científico).
Jerry Jacobs (2014) pontua os desafios da interdisciplinaridade para a estrutura institucional, forjada historicamente na primeira metade do século XX, e que incide sobre a formação profissional, o financiamento público e privado, hierarquias e divisões sociais de trabalho no âmbito interno do ensino superior. Por outro lado, Felicity Callard e Des Fitzgerald (2015) salientam os ‘emaranhados experimentais’ que podem emergir da produção de conhecimento interdisciplinar, ao discutir o que chamam de pragmática da colaboração interdisciplinar, que envolve estratégias já conhecidas como coautoria, mas também co experimentação e co organização de projetos.
É importante considerar, também, que os embates em torno da interdisciplinaridade estão aproximados às estruturas especialmente acadêmicas, na medida em que universidades e seus departamentos tendem a permanecer estanques. Essa é a diferença quando universidades são comparadas a indústrias, onde o obstáculo ao diálogo de diferentes áreas de expertise e elaboração de novos campos a partir da defesa da disciplinaridade seriam fatais aos respectivos empreendimentos (Raynaut, 2014).
Na medida em que as emergências cotidianas adentram a esfera universitária, acabam por impulsionar campos de saber já consolidados a crises e à necessidade de mudança, provocativamente construindo arenas de incerteza, muitas delas recaindo na base pretensamente desenhada para eliminar controvérsias: o currículo. A performatividade dos saberes acadêmicos, no âmbito de uma crise de compartimentalização do conhecimento característica da ciência moderna (Morin, 2000), caminha em compasso com o imperativo da convergência e da integração de saberes de maneira contínua (Santos, 1988), sem, contudo, tecer uma linguagem e procedimentos inequívocos para transformações. Assim é que, contemporaneamente, a interdisciplinaridade é ao mesmo tempo ponto de partida, de chegada, e porta aberta para o devir de uma mudança paradigmática na relação e performance de saberes.
Em torno de protocolos de leitura sobre interdisciplinaridade
Huutoniemi et al. (2010), ao analisar a interdisciplinaridade, tem recentemente proposto uma tipologia e alguns indicadores, partindo de um ponto de vista epistemologicamente organizado. As autoras apresentam categorizações da pesquisa interdisciplinar em perspectiva histórica para considerar a necessidade de construir novos indicadores híbridos para a avaliação da interdisciplinaridade. Elas mostram, nesse sentido, o focus de interesse de integração disciplinar, já categorizadas nos anos 1970 como multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, quando partindo do desenvolvimento do conhecimento científico. Quando partindo da maturação de interdisciplinas, era possível pensar vários tipos de interdisciplinaridade, como indiscriminada, auxiliar, composta, suplementar, unificada ou ainda pseudo. Sob a ótica da distância entre campos de conhecimento, as autoras apresentam categorias como unificação do conhecimento, acumulação do conhecimento ou ainda pensamento diferente em torno de um mesmo interesse científico. Entre as práticas interdisciplinares, as autoras cobrem categorias como ‘aprendizado grupal comum’, ‘negociação’, ‘integração por uma liderança’, ecletismo, holismo, interdisciplinaridade informada, sintética, conceitual, generalista, contextualizadora, metodológica, carismática, heurística, pragmática, endógena ou exógena (Huutoniemi et al., 2010). Há, ainda, um deslocamento favorável à leitura de interdisciplinaridade quando se tece um deslocamento da noção de ‘disciplina’ para a noção de ‘campo’, o que lhe dá mais permeabilidade, mantendo certas soberanias internas.
A tipologia e os indicadores para interdisciplinaridade sugeridos buscam distinguir o que é integrado, como é feita essa integração e as razões de adotar uma abordagem interdisciplinar, conforme Tabela 1.
Na Tabela 1 é importante observar que, do ponto de vista do escopo da interdisciplinaridade, ou seja, do que é integrado quando se produz uma investigação interdisciplinar, o indicador ‘restrito’ acolhe pesquisas numa mesma grande área de conhecimento. Nesse sentido, a interação de conceitos, categorias de análise ou instrumentos de trabalho de pesquisa que acontece na formulação de uma da investigação não é excepcional, apresentando pouco estranhamento entre si. Essa caracterização restrita de interação interdisciplinar tem profunda relação com uma dimensão enciclopédica no devir da construção de investigações dessa natureza, ainda mais porque as áreas acabam por promover apenas justaposições de campos de conhecimento sem que haja construção de novas noções ou processos criativos e interpretativos. Talvez essa relação entre interdisciplinaridade restrita e abordagem enciclopédica tenha desdobramentos para as dimensões epistemológicas, teórico-metodológicas de investigações, com consequente ligação com a formulação de problemas de investigação e resultados.
Tabela 1 Tipologia e Indicadores de Interdisciplinaridade.
Tipologia | Indicador | Características |
Escopo da Interdisciplinaridade | Amplo | Integração entre campos conceitualmente distantes (ex: direito e engenharia, estudos culturais e medicina, filosofia e neurologia). Interações são realmente desafiadoras devido à heterogeneidade epistemológica. |
Restrito | Campos que participam são conceitualmente próximos, na mesma grande área. A interação entre eles não é excepcional ou incomum; não há desafios epistemológicos já que não há pressupostos muito estranhos entre si. | |
Tipo de interação interdisciplinar | Enciclopédica | Consiste na justaposição de campos que estão ligados apenas por um tema. Não há interação cognitiva entre eles; pesquisa trabalha com problemas separados por campo e usa conceitos de um ou de outro campo, indiscriminadamente. |
Contextualizadora | Conhecimento é produzido em contexto multidisciplinar, mas com interação cognitiva entre campos limitada pelo problema a ser trabalhado. Grupo heterogêneo com um mesmo interesse. | |
Multidisciplinaridade composta | Grupo é formado por diferentes campos que são combinados de maneira modulada para produzir um conhecimento novo. Mesmo assim, a interação entre os campos tende a ser técnica. | |
Empírica | Integra diferentes tipos de dados empíricos no sentido de investigar relações entre fenômenos observados em diferentes campos de conhecimento, ou para combinar hipóteses ou resolver um problema interdisciplinar..Ex.: humanidades ambientais. | |
Metodológica | Diferentes abordagens metodológicas são combinadas de uma maneira nova e integrada. Métodos não são apenas justapostos mas desenvolvidos para incorporar uma leitura interdisciplinar. | |
Teórica | Pesquisa sintetiza ou contrasta conceitos, modelos ou teorias de mais de um campo de conhecimento para desenvolver novas ferramentas teóricas para a análise interdisciplinar. | |
Tipos de objetivos | Orientada epistemologicamente | Interdisciplinaridade conceitual ou endógena. Integração de várias perspectivas disciplinares é feita para levar a um entendimento mais amplo de um fenômeno. |
Orientada instrumentalmente | Busca resolver um problema extra-científico ou desenvolver algum produto ou política. A interdisciplinaridade como solução prática para problemas complexos. (não constitui necessariamente abordagem inter) | |
Orientação mista | Busca avanço do conhecimento e/ou solução de um problema científico ou não científico, tratando-os da mesma maneira. A perspectiva interdisciplinar serve como diagnóstico e, ao mesmo tempo, explanação de um problema bem como no desenvolvimento ou implementação de soluções. Para qualificar uma investigação como de orientação mista, é necessário que estejam fortemente presentes no texto, ao mesmo tempo, uma interdisciplinaridade epistemológica e instrumentalmente presentes tanto no arrazoado teórico-metodológico como nos objetivos. |
Fonte: Huutoniemi et al. (2010, p. 83).
Por outro lado, outros indicadores e formas de interação interdisciplinar não apresentam tantas precauções como acontece com o indicador já apontado, porque prescindem de uma maior aproximação, flexibilidade teórico-metodológica e instrumental entre campos de conhecimento, constituindo, também, investigações mais ‘arriscadas’, novos campos de conhecimento ou diferentes abordagens sobre um dado tema ou campo.
Não há protocolos apropriados para aferir ‘interdisciplinaridade’ em programas interdisciplinares na medida em que é frágil a definição monolítica de interdisciplinaridade. Isso, contudo, não significa que investigações em torno de algumas características da interdisciplinaridade já pontuadas não possam e não devam ser realizadas, ainda mais porque exercícios analíticos em torno do assunto servem para entender e refletir sobre as possibilidades de avanço e desafios que programas dessa natureza podem apresentar.
Nesse sentido, Vanessa Satolo (2016) comparou dois programas interdisciplinares na área de agronegócios, um da Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), em Dourados, Mato Grosso do Sul, e outro da Universidade Estadual Paulista ‘Júlio de Mesquita Filho’ (UNESP), em Tupã, São Paulo, adotando para isso uma leitura sobre percepções e publicações produzidas entre os respectivos corpos docente e discente. Satolo (2016) notou que em ambos os públicos de ambas as universidades a facilidade de diálogo entre pares de áreas distintas do conhecimento tem sido considerada como ponto pacífico. Contudo, essa situação já não é a mesma quando se trata da equalização ou trabalho conjunto a partir de conceitos, sendo que a maior dificuldade reside na adoção de novas metodologias, ou seja, metodologias de outra área, numa dada pesquisa (Satolo, 2016). Termos como “[...] dificuldade ligada à mudança na forma de estruturar o raciocínio [...]” (Satolo, 2016, p. 106), ou de orientar discentes de áreas distintas emergem a partir da própria construção de novos olhares metodológicos. Soma-se a isso a constatação de que a prática didática interdisciplinar também é um desafio muito importante, tanto para docentes quanto para discentes, que apresentam muita dificuldade em compreender conteúdos programáticos de outras áreas (mudança na forma de estruturar o raciocínio). Por fim, existe uma convergência encontrada por Satolo (2016), que diz respeito à ideia de que é urgente aos programas que docentes e discentes estejam receptivos a novos conceituais, a novas metodologias, bem como a visões integrais ou sistêmicas ou holísticas de seus objetos de investigação.
Jalcione Almeida et al. (2006) observam, a partir de um relato de experiência, que o estabelecimento de diálogos epistemológicos são fundamentais na constituição da interdisciplinaridade, especialmente para equalizar o que chamam de “[...] desigual perseverança dos pesquisadores” (Almeida et al., 2006, p. 122). Isso porque:
Mesmo se a exigência de certos princípios de pesquisa é aceita por uma grande parte da comunidade científica, ela não garante a colaboração estreita em um trabalho interdisciplinar, quando dificuldades aparecem no plano da cooperação entre pesquisadores. Pode-se afirmar, sem risco de erro, que a história da produção de conhecimento, no Brasil como no mundo, de uma maneira mais geral, transborda de exemplos de insucessos estridentes deste tipo de experiência, poucas exceções escapando à regra (Almeida et al., 2006, p. 122-123).
Para Almeida et al. (2006, p. 133), "[...] o campo científico tende a reproduzir uma representação das ciências na qual cada disciplina ou domínio do conhecimento estabelece um subcampo de ação, onde os pesquisadores desenvolvem um habitus que lhe é próprio e onde raramente admite-se contestação [...]", e, nesse sentido, o risco de clausura de pesquisadores e pesquisadoras é forte na medida em que reagem, intergeracionalmente, aos desafios postos pela confrontação epistemológica, devido ao medo de tornar suscetível a implosão da experiência quando do debate entre duas epistemologias diferentes (Almeida et al., 2006). Em outras palavras, pesquisadores(as) experientes não querem abrir mão das certezas e de sua posição em dado campo ou subcampo do conhecimento, enquanto pesquisadores(as) em formação não estão ainda com seus temas ou pesquisas bem delineadas.
Parte dessas escolhas que vão sendo constituídas a partir da própria história do conhecimento interdisciplinar no país se perpetua quando da adoção de trajetórias que, pelo menos aparentemente, apresentam menos tensões epistemológicas, como quando observamos que, de um corpus de 105 dissertações de um único programa que é formado por áreas de conhecimento distintas como Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas e Ciências da Saúde, mais de 50% do total residem em apenas um dos campos e que a maioria dos produtos foi desenvolvida a partir de profissionais de uma mesma grande área de conhecimento. A conformação de uma identidade restrita de interdisciplinaridade, nesse sentido, residiria, inclusive, na adoção de linguagem acadêmica circunscrita a uma dada grande área de conhecimento em pouca interação com outras.
O estabelecimento, nesse sentido, de diálogos entre pares, que é considerado fácil, convive paradoxalmente com a maior ou menor perseverança de pesquisadores(as) orientandos(as) ou orientadores(as) no desafio interdisciplinar na medida em que, por vezes, parece ser difícil romper com o campo de origem na tentativa de adotar conceituais ou metodologias de outras áreas. Dessa forma, parte do interesse na interdisciplinaridade recai sobre o ponto menos conflituoso de um trabalho de investigação interdisciplinar, que é uma pesquisa voltada ao apontamento de contribuições, avaliações de políticas, leituras de eficiência, identificação de experiências e práticas profissionais, replicação de protocolos consagrados numa dada área, entre outros - e essa preocupação tem sido constatada nacionalmente (Almeida et al., 2006; Schmitt,Travassos, Fialho, & Remor, 2006; Martin, 2011).
Parte significativa desses apontamentos pode ser observada entre 2015 e 2018, n o corpus de 105 dissertações de mestrado foram defendidas no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário, da Unicentro. Delas, 38 em 2015, 31 em 2016, 15 em 2017 e 21 em 2018. Delas, 36 estavam enquadradas na Linha de Pesquisa 1 - Cultura, Práticas Sociais, Formação Humana e Desenvolvimento Comunitário, 63 delas na Linha de Pesquisa 2 - Processos de Desenvolvimento Humano nos Contextos Comunitário e 6 que foram enquadradas como ‘mistas’. No caso da formação de graduação de mestrandos e mestrandas que foram à defesa entre 2015 e 2018, observa-se o predomínio das Ciências da Saúde (34,3%, ou 36 textos) e das Ciências Humanas (30,5%, ou 32 textos), campos seguidos por Ciências Sociais Aplicadas (27 textos) e outras áreas.
A prevalência da formação na área de Saúde também é evidente entre docentes do programa (56,2%), seguida das Ciências Humanas (19%) e das Ciências Sociais (16,2%) (Tabela 2). Nota-se, contudo, que a proporção de docentes do campo da saúde é bem maior do que a de outras áreas, compreendendo mais da metade dos trabalhos defendidos no período. Esse processo tem relação com a constatação de 65% das dissertações ter orientadores(as) e orientandos(as) na mesma grande área de conhecimento.
A construção de investigações em uma mesma grande área, considerando inclusive a vinculação de origem de orientandos(as) e orientadores(as) desenha um cenário no qual, em termos de escopo de interdisciplinaridade, as pesquisas majoritariamente são restritas (99 dissertações, contra 6 que podem ser consideradas amplas). Quando falamos em objetivo de uma investigação interdisciplinar considerando o corpus de dissertações que temos, à luz do protocolo utilizado, constata-se que apenas uma dissertação está orientada epistemologicamente, 13 metodologicamente e 91 delas orientadas instrumentalmente. Interdisciplinaridade, quando pensada instrumentalmente, acaba adquirindo outras feições, tais como um reducionismo do seu sentido para noções mais vagas como a de “[...] promoção de conhecimento interdisciplinar em equipes de saúde” (D7, 2015, p. 10). Já na dissertação D9 (2015), a interdisciplinaridade é pensada como um ‘despertar de interesse’ ligado ao desenvolvimento local e resolução de problemas, uma vez que seu objetivo foi “[...] investigar se os repasses do ICMS ecológico foram utilizados pelos municípios da região centro-sul do Paraná de maneira eficaz” (D9, 2015, p. 8). Por conseguinte, as investigações levantadas perfazem um caminho no qual a interdisciplinaridade é entendida majoritariamente de um ponto de vista enciclopédico (78 textos), tendo reforçado essa tendência desde que as primeiras dissertações foram defendidas em 2015 (Tabela 2). Com relação ao escopo restrito, nota-se, também, que essa tendência foi sendo acentuada até o total desaparecimento de escopo interdisciplinar amplo nos textos defendidos em 2018.
Tabela 2 Tipo de interação interdisciplinar por ano.
Ano | Enciclopédica | Contextualizadora | Total |
2015 | 28 | 10 | 38 |
2016 | 21 | 10 | 31 |
2017 | 12 | 3 | 15 |
2018 | 17 | 4 | 21 |
Total | 78 | 27 | 105 |
Fonte: elaborado pelos autores.
Do ponto de vista da orientação das investigações, nota-se preponderante ausência de trabalhos orientados epistemologicamente para a interdisciplinaridade (apenas uma pesquisa defendida em 2017), um campo hegemônico de orientação instrumental em todos os anos de defesa de trabalhos e raramente pesquisas que tenham orientação metodológica (7 em 2015, 2 em 2016, 1 em 2017 e 3 em 2018). A dissertação 19 (2015), ao trabalhar com amamentação sob a ótica de profissionais de saúde, acaba incorporando pontes metodológicas no sentido de trabalhar com discursos de medicalização desse processo, numa dimensão próxima da antropologia, com o uso de história de vida. Outras entendem que a interdisciplinaridade é a partilha de conceitos e métodos de conhecimentos correlatos, como é o caso de farmácia, medicina, enfermagem e nutrição associados, em um sentido, ou de história e geografia, direito e administração de outro.
Quando realizamos cruzamento de formação de graduação e grande área de atuação de orientação, é possível notar que, entre grandes áreas distintas na relação orientador(a)-orientando(a) ou na mesma área, a presença predominante de textos que têm interação interdisciplinar enciclopédica (57 textos na mesma área e 21 em grandes áreas distintas). Contudo, no caso de grandes áreas distintas, a proporção de tipo contextualizadora é bem maior (16 em 37, o que representa 43%, enquanto 11 em 58 representa apenas 18%). Nesse sentido, a dissertação D9 (2015), ao discutir práticas de agentes comunitários de saúde em relação às necessidades especiais de pessoas com paralisia cerebral, observa que os questionamentos levantados na pesquisa estavam no contexto do “[...] trabalho interdisciplinar, convivendo com profissionais de saúde e educação”. Assim, interdisciplinaridade foi encarada como “[...] cooperação entre áreas” (D9, 2015, p. 38).
Considerações finais
A dimensão instrumental ou enciclopédica de interdisciplinaridade, e especialmente a perspectiva de pesquisas orientadas a problemas, como é o caso de várias dissertações defendidas no programa que utilizamos como base para a obtenção do corpus não é peculiar ou lococêntrica. Em algumas áreas a quase naturalização da multidimensionalidade de fenômenos que exigiram o trabalho articulado de profissionais de diferentes campos do conhecimento já é motivo para dizer que uma pesquisa é interdisciplinar, como é o caso de Menossi, Lima, e Corrêa (2008). No caso das ciências da saúde, a interdisciplinaridade em sua dimensão prática tem a ver com a formação de equipes de diferentes áreas de conhecimento, geralmente em saúde, ou seja, numa mesma grande área, para atendimento.
A permanência da ideia de que a pesquisa interdisciplinar significa diretamente a busca de resolução de problemas, aliada com as defesas internas de campos que são constatadas quando há maior agregação na grande área do que em áreas distintas acaba contribuindo para a construção de um reducionismo conceitual, epistemológico e teórico-metodológico da própria pesquisa interdisciplinar. Por outro lado, essa operação acaba indiretamente por constituir algumas confusões entre interdisciplinaridade como abordagem teórica ou escolha epistemológica e prática. Por fim, nos esforços de defesa ou nas tradições que vão sendo constituídas considerando os processos intergeracionais de encontro entre orientadores(as) e orientandos(as) em momentos distintos da construção do conhecimento, a urgência da flexibilização de abordagens, do passo adiante com relação ao diálogo entre pares para a ação entre pares a partir da dialética abandono-adoção de conceitos, ainda permanece desafiadora.